Conclusões do advogado-geral Lenz apresentadas em 6 de Dezembro de 1988. - IAN WILLIAM COWAN CONTRA TRESOR PUBLIC. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICAL DO TRIBUNAL DE GRANDE INSTANCE DE PARIS. - TURISTAS ENQUANTO DESTINATARIOS DE SERVICOS - DIREITO A INDEMNIZACAO EM CASO DE AGRESSOES. - PROCESSO 186/87.
Colectânea da Jurisprudência 1989 página 00195
Edição especial sueca página 00001
Edição especial finlandesa página 00011
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Senhor Presidente,
Senhores juízes,
A - Matéria de facto
1. No pedido de decisão prejudicial apresentado por uma Comissão que se encontra na dependência do tribunal de grande instance de Paris, que constitui o objecto destas conclusões, o problema colocado é o da não discriminação na concessão de indemnizações às vítimas de infracções penais. O processo suscita questões de princípio atinentes à construção sistemática da livre prestação de serviços e aos direitos dela decorrentes para os cidadãos comunitários.
2. O demandante no processo principal, súbdito do Reino Unido, foi agredido, roubado e ferido à saída de uma estação de metro em 11 de Junho de 1982 quando se encontrava em Paris. Em 26 de Maio de 1983, requereu à referida comissão, autora do reenvio, a indemnização do prejuízo sofrido. O pedido baseia-se no artigo 706.°, n.° 3, do code de procédure pénale, que estabelece:
"Todo aquele que tenha sofrido um prejuízo resultante de factos voluntários ou involuntários que configurem o tipo legal de uma infracção penal, pode obter do Estado uma indemnização sempre que se verifiquem os seguintes pressupostos:
1) esses factos causaram danos corporais que determinaram a morte, a incapacidade permanente ou a incapacidade total para o trabalho durante mais de um mês;
2) o prejuízo consiste numa perturbação grave das condições de vida resultante da perda ou diminuição de rendimentos, do aumento dos encargos, da inaptidão para exercer uma actividade profissional ou da lesão da integridade física ou mental;
3) o lesado não pode obter, seja a que título for, a reparação ou a indemnização efectiva e suficiente deste prejuízo".
3. O artigo 706.°, n.° 15, do code de procédure pénale limita o âmbito de aplicação da norma às "pessoas que tenham a nacionalidade francesa ou aos estrangeiros que provem ser nacionais de um Estado que concluiu com a França um acordo de reciprocidade para a aplicação das referidas normas e que preencham as condições estabelecidas nesse acordo, ou que sejam titulares do cartão de residente".
4. Com base nesta última norma o agent judiciaire du Trésor recusou ao demandante o direito à indemnização. Este último, por seu lado, alegou que a norma em questão é incompatível com o direito comunitário, dado que implica uma discriminação ilegítima, em razão da nacionalidade. A Comissão de indemnização, solicitada a pronunciar-se, suspendeu então a instância e submeteu ao Tribunal a seguinte questão prejudicial:
"O disposto no artigo 705.°, n.° 15, do code de prócedure pénale, que regulam os casos em que um cidadão estrangeiro, vítima em França de uma infracção penal, pode beneficiar de uma indemnização pelo Estado francês, é compatível com o princípio da não discriminação, enunciado, designadamente, no artigo 7.° do Tratado de Roma?
5. Quanto aos demais factos da causa, bem como às observações das partes, remete-se para o relatório para audiência.
B - Parecer
6. A questão prejudicial exige que se determinem o alcance e os limites da livre prestação de serviços. Ao contrário da livre circulação de mercadorias e de pessoas, não existe neste domínio uma jurisprudência tão pormenorizada, que se possa falar de um sistema acabado de livre prestação de serviços. Como demonstra o presente processo, determinadas questões continuam em aberto relativamente ao âmbito de aplicação e aos critérios de delimitação da livre prestação de serviços.
7. A comissão instituída junto do tribunal de grande instance, à qual cabe julgar a causa principal, deve ser considerada "órgão jurisdicional" na acepção do n.° 2 do artigo 177.° do Tratado CEE. Trata-se na verdade de uma instituição com carácter autónomo e competência para se pronunciar sobre litígios relativos a pedidos de indemnização das vítimas. Esta comissão é concebida como jurisdição obrigatória que, como instância permanente, deve a sua existência a uma lei. A comissão profere as suas decisões com base em normas jurídicas, designadamente, o code de prócedure pénale. Reúne assim todas as característica, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça de um órgão jurisdicional, na acepção do artigo 177.° do Tratado (1).
8. No pedido de decisão prejudicial, o tribunal de reenvio suscitou expressamente a questão da compatibilidade de uma norma de um Estado-membro com o direito comunitário. O Tribunal não está vocacionado para se pronunciar sobre esta questão. Na verdade, cabe ao tribunal nacional decidir quanto à inaplicabilidade ou invalidade das normas do respectivo Estado-membro. Contudo, o pedido de decisão prejudicial não é por isso inadmissível. De acordo com uma jurisprudência constante, o Tribunal não se encontra vinculado ao teor literal da questão objecto de reenvio (2), dispondo da faculdade de a reformular tendo em conta o conjunto das circunstâncias de facto e de direito, de forma a que seja a problemática jurídico-comunitária a tornar-se objecto do processo. Neste caso, o Tribunal pode fornecer ao tribunal nacional através da decisão prejudicial, critérios que lhe permitirão resolver o caso em apreço.
9. A questão prejudicial pode assim ser colocada da seguinte forma:
"Uma desigualdade de tratamento baseada na nacionalidade respeitante a vítimas de infracções penais que requerem uma indemnização do Estado constitui uma discriminação em razão da nacionalidade, incompatível com o direito comunitário?"
10. Coloca-se antes de mais a questão de saber se um cidadão comunitário, enquanto tal, ou como o demandante no processo principal, na qualidade de turista, se encontra numa posição jurídica regulada pelo direito comunitário, de onde lhe advenha uma situação de privilégio. Deve começar-se por analisar a segunda hipótese, mais próxima dos factos da causa.
11. Sem definir por agora o conceito de turista, uma pessoa com esta qualidade pode retirar direitos da sua posição de destinatário de serviços. Tal pressupõe que o destinatário de serviços possa ser titular autónomo de direitos e de obrigações jurídico-comunitários.
12. Até agora ainda não se chegou a uma construção completa da livre prestação de serviços. O que há de estabelecido é que, para retomar a definição legal do artigo 60.° do Tratado CEE, os serviços constituem prestações "realizadas normalmente mediante remuneração, na medida em que não sejam reguladas pelas disposições relativas à livre circulação de mercadorias, de capitais e de pessoas". Esta formulação aponta para uma função residual da prestação de serviços. Ora, tendo em conta que nas normas que regulam os objectivos e a acção da Comunidade (artigo 3.° do Tratado CEE), a prestação de serviços é tratada em pé de igualdade com a circulação de mercadorias, de pessoas e de capitais, o seu âmbito de aplicação não pode restringir-se a uma função subsidiária. No domínio das liberdades fundamentais, cabe-lhe um papel autónomo.
13. A delimitação do âmbito de aplicação material deve necessariamente basear-se na ideia de um mercado comum livre de qualquer restrição em razão da nacionalidade ou da residência em todas as actividades económicas intracomunitárias. Com a livre circulação de mercadorias e a livre circulação de pessoas (nesta distingue-se tradicionalmente a livre circulação de trabalhadores e a liberdade de estabelecimento (3)), as actividades económicas transfronteiriças ficam já cobertas em grande medida. Se se quiser definir a livre prestação de serviços de uma forma não apenas negativa, como figura residual, mas em termos positivos, as "trocas de produtos" transfronteiriças abrangem seguramente produtos que não são "mercadorias". Foram já consagrados pela jurisprudência do Tribunal exemplos desta categoria de trocas económicas, designadamente no domínio da rádio ou teledifusão transfronteiriça (4) ou dos seguros (5).
14. Este tipo de prestação de serviços não requer necessariamente a passagem na fronteira de pessoas. É possível ainda conceber outros tipos de trocas de serviços além fronteiras. É o caso daquelas situações em que o prestador de serviços se desloca a outro Estado-membro, ou em que o destinatário beneficia desses serviços noutro Estado-membro. Segundo a concepção tradicional da livre circulação de pessoas, estes movimentos migratórios não são tidos em conta. Ora, é necessária uma regulamentação comunitária se não se quiser reduzir a livre prestação de serviços às trocas de serviços que tenham lugar sem deslocamentos de pessoas. Ora, do Tratado CEE e do direito comunitário derivado é possível deduzir-se que tal não foi jamais a intenção do legislador comunitário. O exemplo típico de prestação de serviços, na acepção do artigo 59.° do Tratado CEE, é o do prestador de serviços que se desloca temporariamente a outro Estado-membro para aí efectuar a sua prestação. Pode tratar-se (embora não seja necessário) do lugar de residência do destinatário da prestação. Este pode perfeitamente beneficiar da prestação noutro lugar. A única condição a observar a este respeito é a de que o prestador e o destinatário dos serviços não residam no mesmo lugar.
15. O entendimento segundo o qual a livre prestação de serviços se efectua através da deslocação temporária do prestador de serviços, tem sido igualmente corroborado por acções e actos jurídicos da Comunidade. Assim, os regulamentos relativos à livre prestação de serviços foram frequentemente adoptados paralelamente (no tempo e no conteúdo) a disposições relativas à liberdade de estabelecimento. O programa geral para a supressão das restrições à livre prestação de serviços (6) e o programa geral para a supressão das restrições à liberdade de estabelecimento (7) foram adoptados no mesmo dia, publicados conjuntamente e mais tarde regularmente citados em conjunto.
16. A Directiva 75/362/CEE do Conselho, de 16 de Junho de 1975, contém ao mesmo tempo uma regulamentação aplicável a ambos os domínios, o da liberdade de estabelecimento e o da livre prestação de serviços. Trata-se da directiva que tem por objectivo o reconhecimento mútuo dos diplomas, certificados e outros títulos de médico e que inclui medidas destinadas a facilitar o exercício efectivo do direito de estabelecimento e da livre prestação de serviços (8). Outros exemplos são constituídos pela Directiva 73/148/CEE (9), relativa à supressão das restrições à deslocação e à permanência dos nacionais dos Estados-membros da Comunidade, em matéria de estabelecimento e de prestação de serviços ou a Directiva 75/34/CEE (10), relativa ao direito de os nacionais de um Estado-membro permanecerem no território de outro Estado-membro depois de nele terem exercido uma actividade não-assalariada.
17. Ainda que analisemos a questão principalmente na perspectiva do prestador de serviços, tal não significa que o destinatário desempenhe um papel juridicamente irrelevante. Devido à sua necessária participação na troca, ele é também um potencial beneficiário da livre prestação de serviços a nível comunitário. Nem o artigo 59.° do Tratado CEE, nem o direito comunitário derivado lhe exigem que receba exclusivamente a prestação no lugar de residência. Tendo-se assim admitido que, para a existência de uma prestação de serviços na acepção do direito comunitário basta que o prestador e o destinatário dos serviços residam em Estados-membros diferentes, cabe agora analisar as consequências que daí resultam relativamente ao estatuto jurídico do destinatário dos serviços.
18. Já no programa geral para a supressão das restrições à livre prestação de serviços, se referia estar o destinatário sujeito a restrições ilícitas. Neste sentido, afirma-se, no título III, a necessidade de eliminar determinadas restrições, a que o texto a seguir se refere, "independentemente do facto de afectarem o prestador, quer directa quer indirectamente, através do destinatário ou da prestação".
19. Em vários actos comunitários do período posterior à adopção do programa geral, o destinatário de serviços é referido expressamente enquanto titular de direitos: nos considerandos da Directiva 64/221/CEE do Conselho (11), afirma-se que "a coordenação... deve ter por objectivo, antes de tudo, as condições de entrada e estada dos nacionais dos Estados-membros que se desloquem na Comunidade, quer para exercer uma actividade assalariada ou não assalariada quer na qualidade de destinatários de serviços" (12). Esta ideia é em seguida retomada no artigo 1.° da directiva, do seguinte teor: "As disposições da presente directiva aplicam-se aos nacionais de um Estado-membro que se dirijam para outro Estado-membro ou que neste permaneçam, quer para exercerem uma actividade assalariada ou não-assalariada, quer na qualidade de destinatários de serviços (13). A directiva regula a obrigação dos Estados-membros de concederem a autorização de residência e prevê, designadamente, que o interessado seja autorizado a permanecer provisoriamente no território até à decisão de concessão ou de recusa da autorização de residência (ver n.° 2 do artigo 5.° da directiva). Uma directiva mais recente, relativa à supressão das restrições à deslocação e à permanência dos nacionais dos Estados-membros na Comunidade, em matéria de estabelecimento e de prestação de serviços (14) obriga os Estados-membros, no n.° 1, alínea b), do artigo 1.°, a suprimir as restrições à deslocação e à permanência dos nacionais dos Estados-membros que desejem deslocar-se a outro Estado-membro na qualidade de destinatários de uma prestação de serviços. O n.° 2 do artigo 4.° estabelece que:
"Relativamente aos prestadores e aos destinatários de serviços, (15) o direito de permanência corresponde à duração da prestação.
Se esta duração for superior a três meses, o Estado-membro em que se efectuar a prestação emite a autorização de residência comprovativa desse direito.
Se essa duração for inferior ou igual a três meses, o bilhete de identidade ou o passaporte ao abrigo do qual o interessado entrou no território bastam para a a sua estada. O Estado-membro pode, contudo, exigir que o interessado comunique a sua presença no território".
20. A partir do momento em que a directiva é transposta para o direito interno, o destinatário de serviços goza de um direito orginário de permanência no Estado-membro de que não é nacional. Beneficia neste domínio do princípio da livre circulação de pessoas, já consagrado na alínea c) do artigo 3.° do Tratado CEE (16). É possível que o estatuto de que beneficia ao abrigo do direito comunitário seja objecto de uma restrição ilícita, caso em que qualquer restrição resultante de uma norma nacional é inaplicável, por violação do direito comunitário.
21. A questão que agora nos interessa é a de saber se um turista deve ser considerado, potencialmente ou em concreto, destinatário de serviços. Nos processos apensos 286/82 e 26/83 (17) o Tribunal pronunciou-se no sentido de que "os turistas, os beneficiários de tratamento médico e aqueles que efectuam viajens de estudo ou de negócios devem ser considerados destinatários de serviços". Não há qualquer razão para alterar esta jurisprudência. O acórdão do Tribunal não esclarece no entanto o que deve entender-se por "turista" não precisando igualmente em que medida este último pode invocar o direito comunitário em matéria de não discriminação.
22. Abordemos agora o problema da definição de turista segundo o direito comunitário. Se tivermos em conta que os turistas apenas constituem uma categoria de destinatários de serviços, é duvidoso o interesse de tal definição. De qualquer modo, não tem interesse, de um ponto de vista jurídico, definir de forma rigída os diversos tipos de destinatários de serviços, distinguindo-os assim uns dos outros. A nossa tarefa deve ser apenas a de concretizar o conceito de destinatário de serviços.
23. Mesmo que se deseje circunscrever de forma abstracta o conceito de turista em direito comunitário, nada obriga a que, para efeitos de definição, se considere decisivo este ou aquele tipo de prestações. Se, como foi sugerido no decurso de audiência, fosse de considerar o critério da pernoita num hotel, tal permitiria sem dúvida abranger grande parte do movimento de viajantes. Uma prestação efectuada numa unidade hoteleira não levanta neste domínio qualquer problema. Além disso, constituiria um elemento comum em relação a outros destinatários potenciais de serviços, tais como (segundo a jurisprudência do Tribunal) as pessoas que se deslocam por motivo de estudos ou de negócios (18). Mas por outro lado, um número considerável de viajantes ficariam excluídos da definição, apesar de poderem beneficiar de forma substancial das estruturas previstas para o turismo, tornando-se nesse momento destinatários de serviços.
24. Segundo uma sondagem (19) publicada pela Comissão, os que, no âmbito dos fluxos turísticos internacionais, pernoitam em casa de parentes ou conhecidos (21%) constituem, logo a seguir ao grupo de frequentadores de hotéis (32%), o grupo mais importante de viajantes. Não pode seriamente duvidar-se de que essas pessoas participam igualmente em prestações turísticas típicas, como, por exemplo, a gastronomia ou a ida a manifestações de carácter cultural.
25. Pode quando muito definir-se o turista como aquele que é destinatário, sob qualquer forma, de prestações oferecidas no quadro dos estabelecimentos turísticos. Ora, mesmo uma definição deste tipo, por mais ampla que seja, é desde logo questionável, se se partir do princípio de que uma série de organizações culturais, como os teatros, cinemas, museus, etc, prestam de igual modo os seus serviços aos nacionais.
26. O turismo internacional constitui um importante ramo do sector terciário que é regulado pelas disposições do Tratado CEE relativas às prestações de serviços.
27. Quando, num contexto jurídico concreto como o do presente processo, haja que qualificar uma pessoa como destinatário de serviços, duas considerações se nos deparam como ponto de partida:
28. - podemo-nos, por um lado, no quadro de uma apreciação preliminar, orientar genericamente pelos serviços de que é possível beneficiar durante uma viagem, concluindo assim pela qualidade de destinatário de serviços logo no início da viagem. Corroboram este ponto de vista diversas regulamentações relativas à entrada e à estadia, dado que a pessoa pode já na fronteira e mesmo antes de se encontrar no território de outro Estado-membro, e ainda, por maioria de razão, antes mesmo de beneficiar de uma prestação de serviços, invocar a sua qualidade de destinatário de serviços.
29. - uma outra possibilidade de determinar o destinatário de serviços é constituída por uma consideração a posteriori, que tem em conta os serviços efectivamente utilizados. Este procedimento exclui em larga medida os abusos na utilização da qualidade de destinatário de serviços.
30. É no entanto a primeira destas duas possibilidades que nos parece melhor. É conforme com as poucas regras já existentes, que têm por objecto o destinatário de serviços, e evitam vazios jurídicos que apenas podem ser fonte de incertezas e conflitos.
31. Já aludi à problemática resultante do facto de, conjuntamente com actividades especificamente turísticas, outro tipo de prestações, oferecidas em igualdade de circunstâncias aos nacionais, poder dar lugar à invocação da liberdade de prestação de serviços. Isto é válido tanto para manifestações de natureza cultural, como para determinados meios de transporte. É evidente que as infra-estruturas do transporte desempenham um importante papel em matéria de turismo. Esta conclusão vale igualmente no que respeita às companhias de táxis, aos organizadores de viagens em autocarro, às empresas de aluguer de veículos bem como aos transportes públicos.
32. Neste contexto, pode perfeitamente considerar-se, por exemplo, que a utilização do metropolitano constitui uma prestação de serviços na acepção do direito comunitário. A este respeito, a forma de organização concreta da empresa de transporte é irrelevante, contanto que se trate de um infra-estrutura utilizável mediante remuneração, aspecto aliás decisivo no que se refere à apreciação da sua qualidade de prestador de serviços no domínio do direito comunitário.
33. Contra a integração das redes de transporte existentes nos Estados-membros na categoria dos prestadores de serviços presentes no mercado turístico poderia, quando muito, invocar-se à primeira vista o artigo 61.° do Tratado CEE. Esta disposição prevê que a livre prestação de serviços, em matéria de transportes, se rege pelas disposições contidas no título relativo aos transportes. No entanto, pode rejeitar-se esta objecção, dada a sua superficilidade.
34. O artigo 61.° do Tratado CEE respeita em primeiro lugar aos transportes transfronteiriços, enquanto objecto primário da regulamentação relativa à livre prestação de serviços. Mas esta disposição abrange igualmente o empresário de transportes, ainda que não residente, na sua qualidade de prestador de serviços. A posição aqui defendida é confirmada pelo acórdão proferido no processo 13/83 (20), no qual a matéria regulada no n.° 1 do artigo 61.°, conjugado com o n.° 1, alíneas a) e b), do artigo 75.° do Tratado CEE, é definida como abrangendo "os transportes internacionais com partida ou chegada no território de um Estado-membro ou que atravessam o território de um ou de vários Estados-membros" bem como "as condições de acesso de transportadores não residentes aos transportes nacionais...". Nada se opõe assim a que uma prestação de transporte seja considerada, mesmo sendo exclusivamente interna, como prestação de serviços em benefício de um destinatário residente noutro Estado-membro, podendo igualmente dar-se por assente o carácter oneroso da prestação, na medida em que a remuneração constitua a contrapartida da utilização do transporte.
35. Resta agora analisar o argumento segundo o qual a indemnização pelo Estado podia, em si mesma, ser considerada como prestação de serviços regulada pelo direito comunitário. Contra tal interpretação, pode desde já invocar-se a descrição, baseada em exemplos, de prestação de serviços contida no artigo 60.° do Tratado CEE. De acordo com esta definição, os serviços são prestações realizadas normalmente mediante remuneração, que compreendem designadamente actividades de natureza industrial, comercial, artesanal, bem como as actividades das profissões liberais. Ora, pelo menos após os considerandos inequívocos enunciados pelo Tribunal no acórdão do processo 263/86 (21), quanto à questão de saber se o ensino estadual podia ser considerado prestação de serviços, na acepção do Tratado, torna-se impossível sustentar que uma medida de carácter social financiada por verbas públicas tem a natureza de "prestação de serviços". Os elementos determinantes no processo Humbel são no essencial idênticos ao do presente processo.
36. A importante característica da remuneração consiste, segundo a interpretação do Tribunal, no facto de esta constituir contrapartida económica da prestação em causa e ser normalmente definida entre o prestador e o destinatário de serviços (22). Do mesmo modo que este elemento está ausente no caso do ensino público, não é identificável no caso em apreço qualquer remuneração como preço da indemnização às vítimas de infracções, na acepção da mencionada definição.
37. A restante argumentação expendida no acórdão 263/86 pode igualmente ser utilizada no caso em apreço. Ao criar e manter um sistema de indemnização das vítimas, o Estado não pretende empenhar-se em actividades remuneradas, cumprindo apenas a sua missão face à população nos domínios social, cultural e educativo (23). Tais prestações são, regra geral, financiadas pelo orçamento público.
38. As prestações de carácter social podem relevar em termos jurídico-comunitários principalmente no domínio da política social, ou ainda no quadro da livre circulação de trabalhadores, orientada para a completa integração das categorias de pessoas em causa. Em contrapartida, não se prestam a servir de instrumento à livre prestação de serviços.
39. O "turismo social", entendido como um movimento migratório com o objectivo exclusivo, ou pelo menos privilegiado, de procurar prestações sociais eventualmente mais vantajosas no país de acolhimento, não constitui finalidade do Tratado CEE. O que se depreende, precisamente no contexto da livre prestação de serviços, da expressão "mediante remuneração".
40. Resulta das considerações precedentes que a aplicabilidade do Tratado (24) nos casos de viajantes que se desloquem nas condições referidas, é de sustentar tanto do ponto de vista material como pessoal. Do ponto de vista material, porque tal caso está sujeito ao âmbito de aplicação da livre prestação de serviços, e do ponto de vista pessoal, na medida em que os destinatários de serviços são sujeitos de direito protegidos pelas disposições aplicáveis do direito comunitário. Nada impede assim que se recorra ao princípio comunitário da igualdade de tratamento (25). No caso em apreço, há que aplicar este princípio tal como se encontra configurado nos artigos 7.° e 59.° do Tratado CEE. O artigo 59.° do Tratado CEE constitui, na medida em que estabelece uma proibição especial de discriminação, uma manifestação da proibição geral da discriminação consagrada no artigo 7.° do Tratado CEE, constituindo uma concretização deste último, sem no entanto o substituir.
41. A regra que visa restringir o benefício da indemnização exclusivamente aos nacionais do Estado-membro, aos estrangeiros titulares de um "cartão de residente" ou aos nacionais de um Estado que tenha concluído um acordo de reciprocidade com o Estado-membro, pode ser contrário ao direito comunitário, caso constitua uma "restrição" à liberdade assim concedida. Esta restrição pode traduzir-se numa desigualdade de tratamento em razão da nacionalidade.
42. No acórdão proferido no processo 63/86 (26), o Tribunal definiu os artigos 52.° e 59.° do Tratado CEE como manifestação específica do princípio da igualdade de tratamento consagrado no artigo 7.°. Segundo o Tribunal de Justiça, as referidas disposições implicam para os Estados-membros a obrigação de conceder o benefício do tratamento nacional aos cidadãos comunitários que exerçam uma actividade não assalariada, bem como a proibição de qualquer discriminação baseada na nacionalidade e que represente um obstáculo ao acesso ou ao exercício de tal actividade.
43. Relativamente à questão da restrição, gostaria de começar por me debruçar sobre o segundo elemento, ou seja, o facto de se impedir o acesso ou o exercício da actividade. Para retomar ainda a ideia já desenvolvida: o objecto de tutela é a liberdade de circulação das pessoas, enquanto destinatárias de serviços. A recusa de indemnização às vítimas no país de acolhimento não prejudica, em minha opinião, o acesso, mas sim o exercício da liberdade. O cidadão comunitário que não pertença a uma categoria privilegiada em direito comunitário vê de facto enfranquecida a tutela jurídica relativamente a bens jurídicos de natureza eminentemente pessoal.
44. A indemnização das vítimas deve ser entendida como um complemento da obrigação de garantir a ordem e a segurança públicas. Constitui a compensação pela violação de bens jurídicos que o Estado, apesar de para tal estar vocacionado, não conseguiu tutelar no caso concreto.
45. Também não poderá invocar-se contra este entendimento o argumento de que o direito penal se integra exclusivamente, na sua totalidade e enquanto complexo normativo, na esfera de competência do legislador nacional. Só o princípio não deve ser posto em causa (27). É que, por um lado, a apreciação de uma norma não depende do critério formal de origem, mas apenas do conteúdo da norma, e por outro lado, o único aspecto que aqui releva é o da aplicação não discriminatória de uma regra adoptada.
46. O cidadão comunitário que deseje beneficiar do mesmo nível de protecção que os nacionais, vê-se obrigado, quando depara com o regime de indemnização das vítimas em causa, a celebrar um contrato de seguro que cubra esse risco. Os montantes destinados a essa finalidade representam uma diminuição do rendimento disponível, o que pode perfeitamente ser considerado como obstáculo ao direito de estada.
47. Este obstáculo ao direito de estada, constituído pela recusa de conceder a determinadas categorias de cidadãos comunitários a indemnização prevista para as vítimas de infracções, é igualmente discriminatório. O grupo que mais se assemelha aos cidadãos comunitários que não possuem nem a nacionalidade francesa nem o cartão de residente e que não são nacionais de um Estado com o qual tenha sido celebrado um acordo de reciprocidade, é representado pelos nacionais franceses que vivem no estrangeiro. Ora, é sabido que estes últimos têm direito a indemnização ao abrigo do regime de indemnização das vítimas.
48. Existe discriminação quando, relativamente a categorias análogas de interessados, a desigualdade de tratamento não se justifica por razões objectivas. Nos termos do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça no processo 152/73 (28), as razões objectivas da diferenciação devem resultar da situação do interessado. Deste ponto de vista, na minha opinião, não se vislumbram no caso concreto critérios distintivos.
49. No presente processo, foi utilizado o argumento de que constitui razão objectiva de desigualdade de tratamento o facto de os meios financeiros afectados à indemnização das vítimas serem provenientes dos orçamentos públicos e o de as pessoas que não contribuíram para os fundos da solidariedade social não poderem igualmente deles beneficiar. Este argumento deve ser rejeitado por diversas razões.
50. Em primeiro lugar, é quase impossível distinguir claramente entre as categorias de pessoas que contribuiram para as receitas globais do orçamento nacional e aquelas que não o fizeram. É possível, por exemplo, que um cidadão francês que exerça uma actividade profissional no estrangeiro pague o seu imposto sobre o rendimento no Estado de emprego. Diversamente, também um comerciante que não se encontre em permanência no território de outro Estado-membro pode ser obrigado a pagar, por exemplo, o imposto sobre sociedades, o imposto sobre o capital, etc. a um Estado-membro em que não está domiciliado. Mesmo que nos atenhamos exclusivamente aos destinatários de serviços, é possível verificar que estes não apenas dinamizam a conjuntura económica, pelo facto de recorrerem a serviços, como contribuem para alimentar os orçamentos dos Estados-membros, por exemplo, através dos impostos sobre o consumo.
51. De resto, na sua jurisprudência, o Tribunal já reconheceu às pessoas que não se integram na categoria de trabalhadores migrantes (em relação aos quais, portanto, não se verifica uma intenção de se integrarem completamente no Estado de emprego) o direito de beneficiar de vantagens sociais. A República Italiana foi condenada no âmbito de uma acção por incumprimento por reservar exclusivamente aos cidadãos italianos o acesso à propriedade e ao arrendamento de habitações sociais, bem como ao crédito imobiliário com juros bonificados (29).
52. Por último, entendo que a indemnização das vítimas de infracções não constitui uma prestação social, na acepção tradicional do termo, entendida como subsídio concedido pela administração prestadora. O mero facto de a indemnização das vítimas ser custeada pelos fundos públicos não é suficiente para lhe atribuir tal qualificação. Deve ser considerada como compensação de um prejuízo sofrido, fazendo lembrar as acções de ressarcimento de danos ou de indemnização tanto do direito civil como do direito público. Os direitos de indemnização oponíveis às autoridades públicas são igualmente custeados pelos fundos públicos sem que essas prestações se tornem prestações sociais. O facto de o Estado não ser o causador do prejuízo não prejudica este ponto de vista. Ao estabelecer uma legislação relativa à indemnização das vítimas, o Estado adoptou de algum modo a posição de garante da compensação de um prejuízo (de outro modo, não indemnizável), resultante de violação de bens jurídicos cuja tutela cabia aos poderes públicos, que não a puderam no entanto assegurar.
53. Em resumo, há que concluir o seguinte: o direito comunitário opõe-se a um regime que condicione a indemnização de vítimas de infracções que tenham a nacionalidade de outro Estado-membro, ao facto de possuírem cartão de residente, ou à celebração de um acordo de reciprocidade com o país da respectiva nacionalidade, sempre que estas mesmas condições não sejam exigidas aos nacionais residentes noutros Estados-membros.
54. Para terminar, há ainda que analisar o argumento de que as alterações legislativas verificadas em relação ao regime anterior, de 1977, que deram lugar a uma situação menos favorável para as vítimas estrangeiras de infracções penais, constituem uma violação da regra de standstill consagrada no artigo 62.° do Tratado CEE. Como acertamente observou o agente da Comissão durante a audiência, os artigos 59.° e 60.° do Tratado CEE são, desde o final do período de transição, directamente aplicáveis, de forma que qualquer "obstáculo" à livre prestação de serviços é contrária ao direito comunitário. Não se torna pois necessário invocar, em especial, o artigo 62.° do Tratado CEE, uma vez que qualquer nova restrição constitui já um obstáculo, na acepção do artigo 59.° do Tratado CEE.
55. Em consequência, um turista é protegido, enquanto destinatário de serviços, contra qualquer discriminação baseada na nacionalidade, para efeito da indemnização concedida às vítimas de agressões. Não é assim necessário responder à questão de saber se o benefício de tal protecção deve ser reconhecido aos nacionais de um Estado-membro independentemente da sua qualidade de destinatário de serviços.
56. As despesas efectuadas pelo Governo francês e pela Comissão não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o tribunal nacional, compete a este decidir quanto às despesas.
C - Conclusões
Tendo em conta as considerações precedentes, proponho que se responda à questão prejudicial da seguinte forma:
57. A desigualdade de tratamento entre cidadãos comunitários, baseada na nacionalidade, no quadro de um regime de indemnização das vítimas de infracções, pode constituir um obstáculo discriminatório, contrário ao direito comunitário, ao exercício do direito de estadia reconhecido pelo direito comunitário. Deve ter-se em conta que os destinatários de serviços gozam originariamente do direito de estadia. A qualidade de destinatário de serviços reconhecida a uma pessoa resulta de uma análise valorativa dos serviços de que esta última pretende beneficiar no decurso da estada.
(*) Língua original: alemão.
(1) Acórdão de 21 de Fevereiro de 1974 no processo 162/73, Birra Dreher SpA/ Amministrazione delle finanze dello Stato, Recueil, p. 201.
(2) Por exemplo, acórdão de 29 de Novembro de 1978 no processo 83/78, Pigs Marketing Board/Raymond Redmond, Recueil, p. 2347, e acórdão de 20 de Abril de 1988 no processo 204/87, G. Bekaert, Colect. p. 2029.
(3) Acórdão de 31 de Janeiro de 1984 nos processos apensos 286/82 e 26/83, Graziana Luisi e Giuseppe Carbore/Ministero del Tesoro, Recueil, p. 377, n.° 9 da fundamentação.
(4) Acórdão de 18 de Março de 1980 no processo 52/79, acção penal/Debauve, Recueil, p. 833; acórdão de 18 de Março de 1980 no processo 62/79, Coditel e outros/Ciné Vog Films e outros, Recueil p. 881; acórdão de 6 de Outubro de 1982 no processo 262/81, Coditel e outros/Ciné Vog Films e outros, Recueil, p. 3381, e acórdão de 26 de Abril de 1988 no processo 351/85, Bond van Adverteerders/Reino dos Países Baixos, Colect. p. 2085.
(5) Acórdão de 4 de Dezembro de 1986 no processo 205/84, Comissão/República Federal da Alemanha, Colect. p. 3755.
(6) JO de 15.1.1962, p. 32.
(7) JO de 15.1.1962, p. 36.
(8) JO 1975, L 167, p. 1; EE 06 F1 p. 186.
(9) JO 1973, L 172, p. 14; EE 06 F1 p. 132.
(10) JO 1975, L 14, p. 10; EE 06 F1 p. 183.
(11) Directiva de 25 de Fevereiro de 1964, para a coordenação de medidas especiais relativas aos estrangeiros em matéria de deslocação e estada justificadas por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública, JO de 4.4.1964, p. 850; EE 05 F1 p. 36 e Directiva 75/35/CEE de 17 de Dezembro de 1974, que alarga o âmbito de aplicação da Directiva 64/221/CEE, JO 1975 L 14 p. 14; EE 05 F2 p. 45.
(12) Sublinhado nosso.
(13) Sublinhado nosso.
(14) Directiva 73/148/CEE, JO 1973, L 172, p. 14; EE 06 F1 p. 132.
(15) Sublinhado nosso.
(16) Acórdão de 7 de Julho de 1976 no processo 118/75, Lynne Watson e Alessandro Belmann, Recueil, p. 1185, n.° 16 da fundamentação.
(17) Supracitados, n.° 16 da fundamentação.
(18) Processos apensos 286/82 e 26/83, supracitados, n.° 16 da fundamentação.
(19) Sondagem efectuada por conta da Comissão pela European Omnibus Survey em Junho de 1986, in Stichwort Europa, n.° 9/87.
(20) Acórdão de 22 de Maio de 1985 no processo 13/83, Parlamento Europeu/Conselho das Comunidades Europeias, Recueil, p. 1513.
(21) Acórdão de 27 de Setembro de 1988 no processo 263/86, Estado belga/Humbel, Colect. p. 0000.
(22) Processo 263/86, supracitado, n.° 17 da fundamentação.
(23) Processo 263/86, supracitado, n.° 18 da fundamentação.
(24) Acórdão de 27 de Outubro de 1982 nos processos apensos 35 e 36/82, Morson/Estado neerlandês; Sevradijie Jhanjhan/Estado neerlandês, Recueil, p. 3723.
(25) Sobre a aplicabilidade deste princípio, ver acórdão de 14 de Julho de 1977 no processo 8/77, Sagulo e outros, Recueil, p. 1495.
(26) Acórdão de 14 de Janeiro de 1988 no processo 63/86, Comissão contra Itália, Colect. p. 29, n.os 12 e 13 da fundamentação.
(27) Sobre a repartição de competências em direito penal e em direito processual penal, ver acórdão de 11 de Novembro de 1981 no processo 203/80, processo penal/Guerrino Casati, Recueil, p. 2595.
(28) Acórdão de 12 de Fevereiro de 1974 no processo 152/73, G.M. Sotgiu/Deutsche Bundespost, Recueil, p. 153.
(29) Processo 63/86, já citado.