61987C0003

Conclusões do advogado-geral Mischo apresentadas em 18 de Novembro de 1988. - THE QUEEN CONTRA MINISTRY OF AGRICULTURE, FISHERIES AND FOOD, EX PARTE AGEGATE LTD. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICIAL: HIGH COURT OF JUSTICE, QUEEN'S BENCH DIVISION - REINO UNIDO. - PESCA - LICENCAS - CONDICOES. - PROCESSO 3/87.

Colectânea da Jurisprudência 1989 página 04459


Conclusões do Advogado-Geral


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Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

1. Em 1983, o Governo do Reino Unido, preocupado pelo número de navios espanhóis que obtinham uma matrícula, assim como licenças de pesca no Reino Unido, publicou legislação (British Fishing Boats Act e British Fishing Boats Order) que prevê que, para poder pescar dentro dos limites de pesca do Reino Unido, pelo menos 75% dos membros da tripulação dos navios de pesca britânicos devem ter a nacionalidade britânica ou a de um outro país da Comunidade.

2. A sociedade Agegate Ltd, autora no processo principal, explora um barco de pesca, o "Ama Antxine", que, tendo sido devidamente registado no Reino Unido em 1981, arvora pavilhão britânico. Todavia, a tripulação do "Ama Antxine" continuou a ser composta essencialmente por pescadores espanhóis que, além disso, são remunerados à percentagem, isto é, com base no produto de venda das suas capturas. A própria Agegate Ltd é uma sociedade constituída no Reino Unido, com a sua sede social em Londres. O seu capital social é possuído em 95% por interesses espanhóis e em 5% por interesses britânicos.

3. Em 23 de Janeiro de 1986, a Agegate Ltd obteve, com efeitos desde 1 de Janeiro de 1986, a renovação de uma série de licenças para o "Ama Antxine". As condições a que estas licenças estão sujeitas foram todavia modificadas de forma a garantir melhor, aos olhos das autoridades britânicas, que os barcos que utilizam as quotas de pesca atribuídas ao Reino Unido tenham um "vínculo económico real" com este país.

4. Estas condições são de três ordens:

1) o barco deve exercer as suas actividades a partir do Reino Unido, da ilha de Man ou das ilhas anglo-normandas;

2) a tripulação deve ser composta por pelo menos 75% de nacionais britânicos ou nacionais da Comunidade Europeia que residam habitualmente "em terra" no Reino Unido, na ilha de Man ou nas ilhas anglo-normandas, excluindo, todavia, até 1 de Janeiro de 1988, os nacionais gregos e, até 1 de Janeiro de 1993, os nacionais espanhóis ou portugueses, com excepção dos cônjuges ou dos filhos menores de 21 anos dos trabalhadores gregos, espanhóis ou portugueses já instalados no Reino Unido;

3) o capitão e toda a tripulação devem contribuir para o regime de segurança social do Reino Unido ou para o regime equivalente da ilha de Man ou das ilhas anglo-normandas.

5. Enquanto a primeira condição, relativa às condições de exploração dos barcos de pesca, foi objecto do processo 216/87, as questões prejudiciais que o High Court de Londres colocou no presente processo conduzem em substância a interrogar o Tribunal sobre a compatibilidade com o direito comunitário das duas outras condições, a saber, as relativas à nacionalidade e à residência, assim como à inscrição da tripulação dos referidos barcos no regime de segurança social, isto nomeadamente à luz da interpretação que haverá que dar aos artigos 55.° e 56.° do acto de adesão da Espanha e de Portugal (1), assim como de algumas outras disposições de direito comunitário, incluindo as respeitantes à política comum de pesca.

6. Como questão prévia, todavia, o órgão jurisdicional nacional pergunta ao Tribunal, através da sua primeira questão prejudicial,

"quais são os critérios a aplicar para decidir se em direito comunitário um pescador remunerado à percentagem é um prestador de serviços ou um trabalhador".

Quanto à primeira questão

7. Esta questão explica-se pelo facto de, no que se refere à Espanha, o acto de adesão conter disposições transitórias em matéria de livre circulação dos trabalhadores, mas não em matéria de livre prestação de serviços.

8. Recordemos em primeiro lugar que, nos termos do artigo 60.° do Tratado CEE,

"consideram-se serviços as prestações realizadas normalmente mediante remuneração, na medida em que não sejam reguladas pelas disposições relativas à livre circulação de mercadorias, de capitais e de pessoas".

Portanto, só no caso de as normas relativas à livre circulação de trabalhadores não serem aplicáveis é que podem entrar em linha de conta as relativas à livre prestação de serviço.

9. Segundo a jurisprudência uniforme do Tribunal, citada nomeadamente no seu acórdão de 3 de Julho de 1986, Lawrie-Blum/Land Baden-Wuerttemberg (66/85, Colect., p. 2121),

"constituindo a livre circulação dos trabalhadores um dos princípios fundamentais da Comunidade, a noção de trabalhador, na acepção do artigo 48.°, não pode ser objecto de uma interpretação que varie de acordo com os direitos nacionais, revestindo, antes, um alcance comunitário".

10. No seu acórdão de 19 de Março de 1964, Unger (2), o Tribunal justificou a mesma posição precisando que, se esta noção

"devesse resultar do direito interno, cada Estado teria então a possibilidade de modificar o conteúdo do conceito de trabalhador migrante e de excluir arbitrariamente da protecção do Tratado certas categorias de pessoas" (Recueil, p. 362).

Segundo a mesma jurisprudência do Tribunal,

"na medida em que define o âmbito de aplicação desta liberdade fundamental, a noção comunitária de trabalhador deve ser interpretada extensivamente".

11. Do que antecede decorre que, no presente contexto, não nos podemos basear na qualificação jurídica que os direitos nacionais atribuem aos pescadores remunerados à percentagem.

12. O mesmo sucede com a qualificação atribuída pelas próprias partes à sua relação. Com efeito, no seu acórdão Lawrie-Blum, acima citado, o Tribunal precisa que

"a noção comunitária de trabalhador deve ser definida segundo critérios objectivos que caracterizam a relação de trabalho, considerados os direitos e deveres das pessoas envolvidas. Ora, a característica essencial da relação de trabalho é a circunstância de uma pessoa realizar, durante certo tempo, em benefício de outra e sob a sua direcção, as prestações em contrapartida das quais recebe uma remuneração" (n.° 17).

13. Se é certo que o conjunto dos elementos citados pelo Tribunal serve para determinar se uma pessoa é ou não um trabalhador, deve contudo ser atribuída uma importância particular ao facto de o trabalho se efectuar em benefício e sob a direcção de uma outra pessoa, e de revestir uma certa duração. Tal parece ser o que se passa no caso em apreço.

14. Quanto ao critério da remuneração, ele serve, antes de mais, para determinar se estamos em presença de uma actividade económica ou não.

15. O Tribunal já teve ocasião de precisar que o nível (3) da remuneração recebida por uma pessoa não poderá opor-se à sua qualificação como trabalhador. O facto de o nível da remuneração de uma mesma pessoa variar no tempo também não poderá ter um tal efeito. Assim, em nosso entender, o carácter de trabalhador não pode ser negado a uma pessoa que é remunerada, por exemplo, em proporção da quantidade de minério extraído por si ou em função do número de pneus que fabricou durante um determinado período. Portanto, a fortiori, também não poderá ser de forma diferente no que se refere a um pescador cuja actividade, contrariamente ao que sucede nos exemplos citados, é desenvolvida em ligação muito directa com a de outras pessoas que desenvolvem uma actividade idêntica sem que a contribuição de cada um para o resultado final possa ser isolada. Com efeito, o pescador é remunerado com base no trabalho efectuado pela tripulação no seu conjunto. A sua remuneração não consiste em poder guardar os peixes que pessoalmente e só retirou do mar nem o contravalor em dinheiro de tais peixes.

16. Portanto, o simples facto de a remuneração dos pescadores remunerados à percentagem depender do volume (variável) das capturas, não retira a estes o carácter de assalariados.

17. Por conseguinte, entendemos que se deve responder à primeira questão prejudicial que

"um pescador que realiza, em benefício de outra pessoa e sob a direcção desta, prestações em contrapartida das quais recebe uma remuneração, deve ser considerado como um trabalhador na acepção do artigo 48.°, n.° 1, do Tratado CEE, mesmo se a remuneração é função do produto da venda das capturas de peixe para as quais contribuiu e seja qual for a qualificação jurídica que a lei nacional ou as próprias partes atribuem a estas relações".

Quanto à segunda questão

18. A segunda questão é a seguinte:

"Após a adesão da Espanha e de Portugal às Comunidades Europeias, pode um Estado-membro, aquando da concessão de uma licença ao proprietário ou ao fretador de um navio de pesca que arvora pavilhão deste Estado-membro e que nele está registado, invocar os artigos 55.° e 56.° do acto de adesão da Espanha e de Portugal às Comunidades Europeias (que apenas se aplicam aos trabalhadores) e exigir que:

i) 75% da tripulação de um navio de pesca registado neste Estado-membro e arvorando o seu pavilhão seja constituída por cidadãos da Comunidade Económica Europeia que residem em terra neste Estado-membro, mas excluindo, até 1 de Janeiro de 1993, todos os cidadãos espanhóis, à excepção dos cônjuges ou dos filhos de menos de 21 anos dos trabalhadores espanhóis já instalados no Estado-membro que concede a licença; e que

ii) o capitão e toda a tripulação contribuam para o regime de segurança social deste Estado-membro?

19. Recordemos, em primeiro lugar, que o artigo 55.° do acto de adesão dispõe que

"o artigo 48.° do Tratado CEE só é aplicável, no que respeita à livre circulação dos trabalhadores entre Espanha e os outros Estados-membros, com as restrições constantes das disposições transitórias previstas nos artigos 56.° a 58.° do presente acto".

20. Quanto ao artigo 56.° do acto de adesão, o seu n.° 1 estabelece que

"os artigos 1.° a 6.° do Regulamento (CEE) n.° 1612/68 relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade só são aplicáveis, em Espanha, em relação aos nacionais dos outros Estados-membros, e nos outros Estados-membros, em relação aos nacionais espanhóis, a partir de 1 de Janeiro de 1993".

21. Os artigos 1.° a 6.° do referido regulamento (4) referem-se às condições de acesso ao emprego e, a este respeito, fazem aplicação do princípio da igualdade de tratamento já contido no artigo 48.° do Tratado. Por força do acto de adesão, portanto, este princípio é colocado entre parêntesis nas relações entre a Espanha e os outros Estados-membros até 1 de Janeiro de 1993.

22. O segundo parágrafo do n.° 1 do mesmo artigo 56.° acrescenta que

"o Reino de Espanha e os outros Estados-membros têm a faculdade de manter em vigor até 31 de Dezembro de 1992, respectivamente em relação aos nacionais dos outros Estados-membros e aos nacionais espanhóis, as disposições nacionais ou resultantes de acordos bilaterais que sujeitem a autorização prévia a imigração que tenha por objectivo o exercício de um trabalho assalariado e/ou o acesso a um emprego assalariado".

23. Ora, foi alegado que se estaria perante o mesmo tipo de situação que a que foi objecto do acórdão Peskeloglou de 23 de Março de 1983 (5), onde estava em causa o artigo 45.°, n.° 1, segundo parágrafo, do acto de adesão da Grécia (6), de conteúdo idêntico ao do artigo 56.°, n.° 1, segundo parágrafo do acto de adesão da Espanha.

24. Neste acórdão, o Tribunal entendeu que, como derrogação ao princípio da livre circulação de trabalhadores estabelecido no artigo 48.° do Tratado CEE, esta disposição deve ser interpretada restritivamente e que, consequentemente, mesmo permitindo aos Estados-membros e aos aderentes manter as restrições preexistentes, não poderá, em caso algum, após a entrada em vigor do acto de adesão, permitir-lhes agravar as condições de acesso ao emprego dos seus respectivos nacionais mediante a introdução de novas medidas restritivas (n.os 12 e 13).

25. Mas, do que tratava o acórdão Peskeloglou? A legislação alemã referente ao acesso ao emprego dos nacionais dos países terceiros tinha-se tornado efectivamente mais restritiva posteriormente à adesão da Grécia, na medida em que a autorização de trabalho só podia ser concedida ao cônjuge de um trabalhador estrangeiro após uma residência legal de pelo menos dois anos no país.

26. No caso que nos ocupa, a situação é, em nossa opinião, muito diferente. Os cidadãos espanhóis estavam excluídos dos 75% da tripulação que devia ser composta por nacionais britânicos e comunitários desde 1983, ano da adopção do British Fishing Boats Act e Order, uma vez que, nessa altura, não eram nacionais comunitários.

27. Após esta data, continuavam a não beneficiar dos direitos de acesso ao emprego que os artigos 1.° a 6.° do Regulamento n.° 1612/68 concedem aos trabalhadores da Comunidade, e a sua situação permanece, portanto, comparável, a este respeito, à dos nacionais de países terceiros. Como a regra dos 75% é anterior à adesão, pode continuar a ser-lhes aplicada.

28. A comunicação à imprensa de 6 de Dezembro de 1985 e a passagem que exclui os pescadores espanhóis dos 75%, que figura em todas as licenças de pesca passadas após essa data, longe de constituir uma nova medida, limita-se, em nossa opinião, a indicar que o Reino Unido tem a intenção de se prevalecer da faculdade que lhe confere o artigo 56.°, n.° 1, do acto de adesão de manter em relação aos nacionais espanhóis o regime que lhes era anteriormente aplicável.

29. Quanto à condição de residência em terra, não se trata de uma medida que vise os nacionais dos países terceiros ou equiparados, mas sim os nacionais da Comunidade, incluindo os cidadãos britânicos. Mesmo sendo nova, esta condição, portanto, não é abrangida pela cláusula de standstill do acto de adesão. Contudo, iremos examinar mais adiante a sua compatibilidade com o direito comunitário em geral.

30. Resta-nos dizer uma palavra sobre a "declaração comum relativa aos trabalhadores dos Estados-membros actuais estabelecidos em Espanha ou em Portugal e os trabalhadores espanhóis ou portugueses estabelecidos na Comunidade, bem como aos seus familiares (7)". Não cremos que esta seja susceptível de modificar a conclusão que acabamos de tirar.

31. Os termos desta declaração são os seguintes:

"1. Os Estados-membros actuais e os novos Estados-membros comprometem-se a não aplicar aos nacionais dos outros Estados-membros que residam ou trabalhem legalmente no seu território qualquer nova medida restritiva que eventualmente adoptem a partir da data da assinatura do presente acto no domínio da permanência e do emprego de estrangeiros.

2. Os Estados-membros actuais e os novos Estados-membros comprometem-se a não introduzir na sua legislação, após a assinatura do presente acto, novas restrições no que diz respeito ao acesso ao emprego de familiares desses trabalhadores."

32. Ora, a regra segundo a qual os nacionais espanhóis continuam excluídos dos 75% não constitui, como vimos, uma nova medida restritiva. Portanto, tal regra não poderá ser abrangida por esta declaração comum (aliás, anexa à acta final e não ao acto de adesão).

33. Além disso, verifica-se que, por força do n.° 1 da referida declaração, o compromisso dos Estados-membros actuais e dos novos Estados-membros de não aplicarem novas medidas restritivas que eventualmente adoptem a partir de 12 de Junho de 1985 no domínio da permanência e do emprego dos estrangeiros apenas vale para os nacionais dos outros Estados-membros "que residam ou trabalhem legalmente no seu território". O seu próprio título confirma que ela apenas abrange os trabalhadores espanhóis já "estabelecidos" no território de um Estado-membro da Comunidade.

34. Todavia, também em relação a estes, a condição que figura nas novas licenças de pesca não constitui uma nova restrição, pois não faz mais do que confirmar que eles continuarão, como dantes, a não poder ser incluídos nos 75% da tripulação que deve ser composta de nacionais comunitários.

35. Antes da data de 12 de Junho de 1985, nenhum nacional espanhol podia, aliás, ser considerado como "trabalhando legalmente" nesses 75%.

36. Em nossa opinião, as considerações antecedentes não podem ser postas em causa pelo facto de o artigo 57.°, n.° 1, do acto de adesão conceder, nas condições que fixa, o direito de acesso ao emprego a certos membros da família de um trabalhador, a saber, o cônjuge e os descendentes de menos de 21 anos ou a seu cargo (ver o artigo 10.°, n.° 1, alínea a)), do Regulamento n.° 1612/68)), "legalmente instalados com ele no território de um Estado-membro" quer à data da assinatura (alínea a)), quer após a data da assinatura (alínea b)) do acto de adesão.

37. É certo que é provavelmente em razão desta disposição que o Reino Unido concede agora o direito de figurar entre os 75% aos cônjuges e aos filhos de menos de 21 anos dos trabalhadores espanhóis já instalados no Reino Unido em 12 de Junho de 1985. Todavia, se a nossa interpretação está correcta, o Reino Unido não era obrigado a fazê-lo, porque antes dessa data nenhum nacional espanhol tinha o direito de figurar entre os 75%. Portanto, não podia transmitir esse direito aos membros da sua família.

38. Mas, uma vez que o Reino Unido concede agora o direito em causa aos membros da família de um nacional espanhol, que estavam já instalados no Reino Unido antes da assinatura do acto de adesão, deveria concedê-lo também ao próprio trabalhador que preenche esta condição. Além disso, como referiremos mais adiante, as quotas de pesca destinam-se a beneficiar a parte da população de cada Estado-membro que tira os seus recursos de pesca. Na medida em que um cidadão espanhol já vivia em território do Reino Unido antes de 12 de Junho de 1985, não há razão para não lhe permitir exercer, após esta data e a partir deste território, a profissão de pescador e de o incluir nos 75%.

39. Finalmente, no que se refere à condição relativa à segurança social, verifica-se que a única medida transitória do acto de adesão nesta matéria é o artigo 60.° (8), que, todavia, apenas respeita às prestações e subsídios familiares. A compatibilidade da acima referida condição com o direito comunitário, portanto, também não deve ser apreciada em relação ao acto de adesão, mas sim em relação ao direito "comum" comunitário, isto tanto mais que se impõe à totalidade da tripulação.

40. Com base nas considerações que antecedem, propomos que seja respondido à segunda questão prejudicial da seguinte forma:

"Os artigos 55.°, 56.° e 57.° do acto de adesão da Espanha e de Portugal devem ser interpretados no sentido de que permitem a um Estado-membro manter, em relação aos nacionais espanhóis, as mesmas restrições quanto ao acesso no seu território a uma actividade assalariada que lhes eram aplicáveis antes da entrada em vigor do acto de adesão."

Quanto à terceira questão

41. Enquanto a segunda questão prejudicial se reporta expressamente apenas aos artigos 55.° e 56.° do acto de adesão da Espanha e de Portugal e, pela sua formulação, visa exclusivamente a situação dos nacionais espanhóis, a terceira questão diz respeito, de forma mais geral, à compatibilidade com o direito comunitário, incluindo a política comum da pesca, das condições relativas à nacionalidade, à residência e à inscrição num regime de segurança social impostas, nos termos das licenças controvertidas, a 75% da totalidade dos membros da tripulação dos barcos de pesca britânicos.

42. A terceira questão é a seguinte:

"Em qualquer circunstância, após a adesão da Espanha e de Portugal às Comunidades Europeias, a concessão por um Estado-membro de uma licença ao proprietário ou ao fretador do navio de pesca registado neste Estado-membro e arvorando o seu pavilhão, sob reserva das seguintes condições:

i) que 75%, pelo menos, da sua tripulação seja i) constituída por cidadãos do Estado-membro que concede a licença ou da Comunidade Económica Europeia (mas excluindo até 1 de Janeiro de 1993 todos os cidadãos espanhóis, à excepção dos cônjuges ou dos filhos menores de 21 anos dos trabalhadores espanhóis já instalados no Estado-membro que concede a licença em conformidade com as medidas transitórias relativas à livre circulação dos trabalhadores na sequência da adesão da Espanha às Comunidades Europeias previstas no Tratado de Adesão) e ii) residentes habitualmente no Estado-membro que concede a licença (significando residência a residência em terra excluindo o serviço a bordo de um barco deste Estado-membro)

ii) que o capitão e toda a tripulação contribuam para o regime de segurança social do Estado-membro que concede a licença

é compatível com o direito comunitário incluindo a política comum em matéria de pesca?"

A - As condições de nacionalidade e de residência

43. No que respeita ao ponto i) da terceira questão do High Court, deve-se começar, evidentemente, por recordar o vosso acórdão de 19 de Janeiro de 1988, Pesca Valentia (223/86, Colect., p. 83).

44. Segundo este acórdão, resulta das disposições do Regulamento (CEE) n.° 101/76 do Conselho, de 19 de Janeiro de 1976, que estabelece uma política comum de estruturas no sector da pesca (9) que,

"aguardando a adopção das medidas comunitárias relativas ao exercício da pesca previstas no artigo 4.° daquele regulamento, os Estados-membros podem aplicar o seu próprio regime de exercício da pesca nas águas marítimas sob a sua jurisdição ou soberania (artigo 2.°) e definir a sua política de estrutura nesse sector (artigo 1.°)".

Acrescentou o Tribunal:

"Além disso, há que observar que as disposições do regulamento se referem a barcos de pesca "com pavilhão" de um dos Estados-membros ou "nele matriculados", deixando a definição dessas noções às legislações dos Estados-membros". (N.° 13)

O Tribunal concluiu que

"nem o artigo 1.° nem o artigo 2.°, n.° 1, do Regulamento, proíbem aos Estados-membros a adopção de uma medida, como aquela em questão, relativa à composição das tripulações dos barcos de pesca que arvoram o seu pavilhão e exercem a pesca nas águas marítimas sob a sua jurisdição" (N.° 14).

45. Lembramos que a medida irlandesa em causa no processo Pesca Valentia era idêntica à medida britânica, apenas não contendo a condição de residência.

46. Após ter assim confirmado a competência dos Estados-membros para adoptar uma medida deste tipo, o Tribunal declarou igualmente (n.° 21 do acórdão) que a condição relativa à proporção mínima de nacionais da Comunidade não é contrária ao artigo 7.° do Tratado CEE.

47. Uma parte da questão do High Court pode assim encontrar resposta com base no acórdão Pesca Valentia, pelo que apenas nos resta apreciar a condição de residência.

48. Antes de abordar este ponto, queríamos, todavia, sublinhar que resulta da passagem do acórdão Pesca Valentia relativa à competência dos Estados-membros para definir a sua política de estrutura que estes últimos têm o poder de limitar a capacidade da sua frota de pesca, a fim de evitar que através de um aumento inconsiderado do número dos navios, as possibilidades de captura dos navios já existentes diminuam a ponto de pôr em perigo a sua rentabilidade e o nível de vida dos pescadores que trabalham a bordo destes.

49. O Regulamento n.° 101/76 prevê, aliás, que os Estados-membros (artigo 8.°) ou a Comunidade (artigo 9.°) podem conceder ajudas com vista a aumentar a produtividade da actividade piscatória, nomeadamente através da reestruturação das frotas. O Regulamento (CEE) n.° 2908/83 do Conselho, de 4 de Outubro de 1983, que diz respeito a uma acção comum de reestruturação, de modernização e de desenvolvimento do sector da pesca, e do desenvolvimento do sector de aquicultura (JO L 290, p. 1; EE 04 F2 p. 171), e se baseia no artigo 9.°, n.° 2, do Regulamento n.° 101/76, visa também estabelecer, no âmbito de programas plurianuais, um equilíbrio satisfatório entre a capacidade de pesca e os recursos do mar disponíveis (ver, nomeadamente, o terceiro considerando e os artigos 3.°, 4.° e 11.°).

50. Finalmente, a directiva do Conselho de 4 de Outubro de 1983, relativa a certas acções de adaptação das capacidades no sector da pesca (JO L 290, p. 15; EE 04 F2 p. 185) visa incentivar os Estados-membros a implementarem acções específicas de adaptação estrutural das suas frotas de pesca, através dos seus próprios meios legislativos, regulamentares e administrativos (ver nomeadamente os quinto, sexto e sétimo considerandos). Esta directiva permite aos Estados-membros conceder prémios diários de imobilização para os navios cuja rentabilidade não está assegurada devido a limitações da captura, prémios de paragem, com vista à redução definitiva da capacidade de pesca das frotas cujas características técnicas as tornam dificilmente adaptáveis às possibilidades de captura previsíveis a médio prazo.

51. Todos estes diplomas legais provam que os Estados-membros conservaram a competência para tomar, no âmbito dos parâmetros definidos pela Comunidade, todas as medidas necessárias a uma reestruturação nacional da sua frota de pesca. Esta competência inclui necessariamente a de recusar a matrícula de novos barcos de pesca se as autoridades competentes entenderem que um aumento da tonelagem global da sua frota é incompatível com a manutenção de um nível de vida equitativo para as pessoas que obtêm os seus recursos da pesca (ver quinto considerando do Regulamento n.° 101/76).

52. A mesma preocupação de manter uma certa relação entre as possibilidades de captura e o número de navios de pesca presidiu à redacção dos artigos 156.° a 164.° do tratado de adesão de 12 de Junho de 1985. Sem prejuízo da fixação anual de quotas, estas disposições prevêem, no que se refere à Espanha, uma lista nominativa de navios que são autorizados a pescar escaladamente nas águas dependentes da jurisdição dos antigos Estados-membros e, no que se refere a estes últimos, a fixação anual do número de navios, em função das possibilidades de pesca concedidas a estes Estados-membros nas águas dependentes da jurisdição de Espanha.

53. Finalmente, a observação que se encontra no acórdão Pesca Valentia relativamente à competência dos Estados-membros para definirem eles próprios os conceitos de navio de pesca "com pavilhaõ" ou "matriculado" implica designadamente, em nossa opinião, o poder destes estados de tomarem as medidas apropriadas para que o seu pavilhão não se torne naquilo a que se convencionou chamar um "pavilhão de conveniência".

54. Resta saber se um Estado-membro que entende não dever ir até à recusa de registo de qualquer novo barco pode, não obstante, tomar medidas com vista a garantir que as capturas efectuadas por esses novos barcos beneficiem de forma preponderante os pescadores embarcados que residem no seu território?

55. Vejamos, em primeiro lugar, qual é a norma de direito comunitário aplicável ao caso concreto. Uma vez que, aquando da apreciação da primeira questão, chegámos à conclusão que os pescadores remunerados à percentagem são trabalhadores assalariados, só pode tratar-se dos artigos 48.° e seguintes, e do Regulamento n.° 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade (JO L 257, p. 2; EE 05 F1 p. 77). O artigo 1.°, n.° 1, deste regulamento dispõe que

"os nacionais de um Estado-membro, independentemente do local da sua residência, têm o direito de aceder a uma actividade assalariada e de a exercer no território de outro Estado-membro, em conformidade com as disposições legislativas, regulamentares e administrativas que regem o emprego dos trabalhadores nacionais desse Estado".

56. Examinemos agora a disposição britânica objecto do litígio à luz destes princípios.

57. A primeira constatação a fazer é que, no âmbito de aplicação da regra dos 75%, o Reino Unido assimilou completamente os nacionais dos outros Estados-membros aos seus próprios nacionais. Para poderem ser incluídos nestes 75%, os cidadãos britânicos devem, eles também, residir no Reino Unido. A condição da residência é indistintamente aplicável aos cidadãos nacionais e aos dos outros Estados-membros.

58. Após 1 de Janeiro de 1993, os cidadãos espanhóis beneficiarão, por seu turno, desta assimilação. Nesta parte do nosso raciocínio, devemos, pois, fazer abstracção da situação criada a título transitório aos nacionais espanhóis (problema que foi objecto da segunda questão do High Court) e limitar-nos a analisar os argumentos em presença no que se refere à condição de residência enquanto que imposta aos nacionais dos outros Estados-membros, seja qual for a sua nacionalidade.

59. Em terceiro lugar, o Reino Unido não se opõe, de forma geral, à livre circulação dos pescadores dos outros Estados-membros, uma vez que estes podem em qualquer momento estabelecer a sua residência neste país e aí exercer a sua profissão. A restrição em questão assemelha-se mais a uma proibição de exercer esta profissão, por assim dizer a título de trabalhador fronteiriço ou sazonal, sem que estas expressões devam ser entendidas no sentido técnico.

60. Notemos de passagem que podemos perguntar-nos se um trabalhador que embarca num Estado-membro, num barco matriculado num outro Estado-membro, para pescar em águas que se situam para lá da zona de soberania das 12 milhas deste outro Estado-membro sem nunca desembarcar em terra, que não está inscrito na segurança social deste país, que é pago na moeda do seu país de origem, que no fim da campanha de pesca regressa directamente a um porto do seu próprio país, utiliza realmente o direito de se deslocar livremente no território de um outro Estado (artigo 48.°, n.° 3, alínea b)) ou de residir num outro Estado-membro a fim de nele exercer uma actividade laboral (mesma disposição, alínea c)). Com efeito, a maioria dos países consideram que os barcos não constituem uma parcela do território do país cuja "nacionalidade" possuem.

61. Todavia, vamos abster-nos de aprofundar esta questão, pois não podemos fazer depender a solução do nosso problema de uma situação de facto que pode variar de caso para caso.

62. Na declaração que o ministro britânico da Agricultura, Pescas e Alimentação fez no Parlamento britânico, em 6 de Dezembro de 1985, para apresentar as novas condições que devem constar das licenças de pesca a partir de 1 de Janeiro de 1986, este afirmou que "os objectivos da política comum da pesca e, em particular, o princípio da estabilidade relativa das actividades de pesca são manifestamente postos em perigo se barcos de outros países poderem artificialmente ligar-se a um Estado-membro para aproveitar as quotas de pesca deste último".

63. Portanto, a posição britânica conduz, em substância, a afirmar que o próprio conceito de quotas nacionais constitui a "justificação objectiva" em que qualquer Estado-membro se pode apoiar para tomar as medidas que visam garantir que são na maior parte pessoas que, no seu território, vivem da pesca, que benificiam destas quotas.

64. A Agegate, por seu turno, sustenta (ponto 56 do relatório para audiência) que "o regime de quotas instituído pela Comunidade não poderá constituir um meio dissimulado para abolir o princípio de igualdade de acesso às águas territoriais dos Estados-membros".

65. Ora, no que respeita a este último argumento, importa sublinhar que, se o regime de quotas não vem abolir este princípio, limita todavia o seu alcance de forma bastante substancial, sem que o Tribunal tenha entendido dever declará-lo ilegal.

66. Como todas as políticas comuns, a política comum da pesca funda-se, também ela, no princípio da não discriminação. Concretamente, este princípio foi expresso da forma seguinte no artigo 2.° do Regulamento n.° 101/76:

"O regime aplicado por cada Estado-membro para o exercício da pesca, nas águas marítimas sob a sua jurisdição ou soberania, não pode provocar diferenças de tratamento para os restantes Estados-membros.

Os Estados-membros asseguram, especialmente, a igualdade de condições de acesso e de exploração dos fundos, situados nas águas referidas no parágrafo anterior, a todos os navios de pesca com bandeira de um dos Estados-membros e matriculados no território comunitário."

67. O princípio da "igualdade das condições de acesso" constitui, assim, a expressão, no domínio muito específico da pesca de alto mar, do princípio geral da não discriminação estabelecido no artigo 7.° do Tratado CEE e cujas outras expressões se encontram nos artigos 48.° (livre circulação dos trabalhadores), 52.° (liberdade de estabelecimento) e 59.° (livre prestação de serviços).

68. Mas como, no domínio da pesca, a sobrexploração dos stocks das principais espécies de peixes colocou em perigo o nível de vida das pessoas que obtêm os seus recursos desta actividade, foram introduzidas excepções muito importantes ao princípio da igualdade das condições de acesso, a título transitório, pelo tratado de adesão de 1972, por diversos regulamentos do Conselho, assim como pelo tratado de adesão de 1985.

69. Assim, numa zona de 6 milhas, os Estados-membros estão autorizados a limitar o exercício da pesca aos navios cuja actividade piscatória se exerce tradicionalmente nessas águas e a partir dos portos da zona geográfica ribeirinha. A mesma regra se aplica no que respeita às águas situadas entre 6 a 12 milhas, com excepção de que a este respeito o anexo I do Regulamento (CEE) n.° 170/83 concede, em certas zonas, aos pescadores dos outros Estados-membros direitos definidos espécie por espécie (por vezes, estes direitos podem também ser exercidos na zona entre 3 ou 4 e 12 milhas). Nas águas dependentes da jurisdição dos Estados-membros, isto é, as situadas entre as 12 e as 200 milhas, os Estados-membros só podem dedicar-se à pesca respeitando as quotas de captura definidas cada ano espécie por espécie e Estado-membro por Estado-membro. Os direitos de captura obtidos pela Comunidade nas águas dependentes da jurisdição de países terceiros e nas águas internacionais são paritariamente repartidos, sob a forma de quotas, entre os Estados-membros. Finalmente, o acto de adesão da Espanha e de Portugal, que conferiu valor de tratado às quotas, restringiu o número de navios autorizados a pescar.

70. A repartição do total das capturas admitidas faz-se segundo a regra definida no artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento n.° 170/83, isto é,

"o volume das capturas disponíveis para a Comunidade referido no artigo 3.° é repartido entre os Estados-membros de modo a assegurar a cada Estado-membro uma estabilidade relativa das actividades exercidas em relação a cada uma das unidades populacionais (' stocks' ) consideradas".

71. Para cada espécie de peixe, a percentagem do volume das capturas disponíveis atribuída a cada Estado-membro é calculada tendo em conta as quantidades pescadas em média pelas frotas dos diversos Estados-membros durante o período 1973-1978.

72. "Tal método", declarou o Tribunal no n.° 23 do acórdão Romkes (10),

"não é contrário ao princípio da não discriminação que resulta do artigo 7.° do Tratado, já que impõe aos pescadores de cada Estado-membro esforços de limitação proporcionais ao que eles pescavam antes da entrada em vigor do regime comunitário de conservação dos recursos de pesca".

73. O regime das quotas, mesmo constituindo uma derrogação fundamental do princípio do livre acesso, justificada pela penúria de peixe, não viola, pois, o princípio da não discriminação, dado que reparte numa base objectiva os sacrifícios a fazer pelos pescadores de cada um dos Estados-membros.

74. Portanto, se os pescadores de um destes estados, aos quais foram atribuídas quotas com base nas suas capturas no período de 1973-1978, se vêem repentinamente confrontados com a concorrência de navios anteriormente matriculados num outro país e que têm a bordo pescadores residentes noutros Estados-membros ou em países terceiros, são os pescadores do primeiro Estado que se podem considerar discriminados, porque o equilíbrio dos sacrifícios pretendido pelo legislador comunitário foi rompido em seu desfavor.

75. Com efeito, a isto não se poderá objectar que a finalidade da regulamentação comunitária sobre as quotas é simplesmente a de "assegurar a cada Estado-membro uma estabilidade relativa das actividades exercidas em relação a cada uma das unidades populacionais (' stocks' ) consideradas" e que pouco importa que esta actividade seja exercida por 1OO ou 150 barcos, por pessoas residentes nesse Estado ou por pessoas que apenas passam pelas águas dependentes da jurisdição do mesmo Estado.

76. Com efeito, resulta claramente dos considerandos e das disposições da maioria dos regulamentos adoptados no sector da pesca que o objectivo de toda esta regulamentação é assegurar um "nível de vida equilibrado às pessoas que obtêm os seus recursos" da pesca marítima (quinto considerando do Regulamento n.° 101/76 do Conselho, de 19 de Janeiro de 1976, que estabelece uma política comum de estruturas no sector da pesca).

77. É evidente que só se pode tratar das pessoas que vivem efectivamente num determinado Estado-membro, pois se as pessoas que apenas passam pelas águas dependentes da jurisdição deste pudessem aproveitar uma parte das quotas nacionais, o nível de vida dos primeiros seria posto em causa.

78. O nível de vida dos pescadores que vivem nos outros Estados-membros deve ser assegurado pelas quotas atribuídas a estes.

79. É às comunidades de pescadores de cada Estado-membro que o sistema comunitário de quotas impõe esforços de limitação proporcionados ao que estes pescavam antes da entrada em vigor do regime comunitário de conservação dos recursos da pesca; é às mesmas comunidades de pescadores que o sistema de quotas nacionais é destinado a garantir o prosseguimento das suas actividades de pesca numa base estável a longo prazo.

80. Este regime excepcional justifica-se porque, como o Conselho constatou no segundo considerando do Regulamento n.° 101/76,

"o sector da pesca marítima (...) apresenta não só uma estrutura social original como condições específicas próprias para a exploração do mar".

81. É em razão destas características particulares do sector da pesca e da necessidade de permitir ao regime das quotas atingir os seus objectivos que a condição de residência prescrita pelo Reino Unido deve ser considerada como compatível com o direito comunitário.

82. Esta condição de residência constitui, por assim dizer, o corolário da derrogação de certas regras do direito comunitário que o regime das quotas em si próprio comporta.

83. A condição relativa à composição da tripulação pode, além disso, ser considerada como uma modalidade de utilização das quotas nacionais na acepção do artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 170/83 do Conselho, de 25 de Janeiro de 1983, que institui um regime comunitário de conservação e de gestão dos recursos de pesca (JO L 24, p. 8; EE 04 F2 p. 56).

84. Esta disposição diz o seguinte:

"Os Estados-membros determinam, em conformidade com as disposições comunitárias aplicáveis, as regras de utilização das quotas que lhes foram atribuídas."

85. No acórdão De Boer (acórdão de 3 de Outubro de 1985, De Boer/Produktschap voor Vis en Visprodukten, 207/84, Recueil, p. 3203, 3218) o Tribunal declarou que

"na medida em que uma regulamentação nacional controla o número de navios que podem partir para a pesca do arenque, fixando como critério de admissão à quota a capacidade do pescador requerente para transformar a bordo o arenque pescado (...) a referida regulamentação constitui uma regra de utilização da quota na acepção do artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 170/83 que é da competência dos Estados-membros..." (n.° 28).

86. Portanto, não se poderá pôr em dúvida que este artigo confere, pela sua parte, aos Estados-membros o poder de subordinar a determinadas condições o direito dos seus barcos de pescar espécies de peixes sujeitas a quota.

87. No caso em apreço, um Estado-membro controla o número de navios que podem partir para a pesca, fixando como critério de admissão à quota que a tripulação destes barcos seja composta até 75% por nacionais comunitários que residam em terra nesse país. Uma vez que entendemos que esta regra é compatível com o direito comunitário, ela pode ter sido adoptada com base no citado artigo 5.°, n.° 2.

88. Não cremos que o argumento extraído pela Comissão do acórdão de 20 de Abril de 1978, Ramel (11), seja susceptível de pôr em causa estas conclusões.

89. Baseando-se, designadamente, neste acórdão, a Comissão sustentou que mesmo no caso de, quando da atribuição aos Estados-membros da competência para fixar as regras de utilização das quotas, o legislador comunitário ter pretendido autorizá-los a derrogar ao mesmo tempo algumas das disposições do Tratado, em particular as que respeitam às liberdades fundamentais, não estaria certamente habilitado a fazê-lo.

90. É certo que, como o Tribunal por várias vezes decidiu em matéria de livre circulação de mercadorias (12), na ausência de uma excepção, aliás de interpretação estrita, claramente prevista, as competências, mesmo alargadas, de que dispõem as instituições comunitárias não lhes permite interrogar ou autorizar os Estados-membros a derrogar disposições do Tratado, particularmente aquelas que respeitam aos princípios fundamentais do mercado comum.

91. Verificamos, todavia, que, mesmo afirmando este princípio, o Tribunal admitiu, no acórdão Ramel, que tais derrogações são possíveis se existir uma disposição do Tratado que as preveja ou autorize não apenas "formalmente", mas também "por uma implicação necessária" (n.° 26, Recueil 1978, p. 946). Ora, após o acto de adesão da Espanha e de Portugal, o regime de quotas tem o valor de tratado.

92. Da mesma forma, no seu acórdão de 2 de Fevereiro de 1988, Reino Unido/Comissão (61/86, Colect., p. 431), o Tribunal admitiu expressamente que

"um obstáculo à livre circulação dos produtos no mercado comum (...) pode, no entanto, justificar-se numa organização de mercado cuja unificação ainda não foi completada, sempre que se destine a compensar as desigualdades resultantes da situação de realização incompleta da organização comum de mercado, com vista a permitir aos produtos abrangidos por esta a circulação em igualdade de circunstâncias, sem que a concorrência entre os produtores das diferentes regiões seja artificialmente falseada" (n.os 10 e 11).

93. Como a livre circulação de pessoas faz parte dos fundamentos da Comunidade ao mesmo título que a das mercadorias, parece-nos que esta jurisprudência se deve aplicar igualmente às regras do Tratado que a garantem, de forma que, mesmo sendo de interpretação restritiva, podem ser admitidas excepções às regras do Tratado nesta matéria, mesmo não expressamente previstas, na medida em que não ultrapassem o que é necessário para garantir que outras disposições de direito comunitário, aliás, perfeitamente justificadas e conformes aos objectivos do Tratado, possam atingir o efeito pretendido pelo legislador.

94. No sector da pesca, o Tribunaljá foi confrontado, no processo Kramer, com uma situação semelhante. Numa altura em que ainda não existiam normas comunitárias em matéria de conservação e de gestão de recursos, tinha sido posta em causa a compatibilidade das quotas nacionais com a regulamentação comunitária no domínio da política das estruturas e da organização comum dos mercados no sector da pesca.

95. No seu acórdão de 14 de Julho de 1976 (13), o Tribunal reconheceu que tais medidas podem ter uma incidência sobre o funcionamento de determinados elementos do sistema de conjunto estabelecido na matéria, e designadamente sobre o regime dos preços, e impôs aos Estados-membros a obrigação de zelar para que a limitação das capturas seja aplicada de forma a reduzir ao mínimo essas incidências. O Tribunal também concluiu que, ao adoptar tais medidas, um Estado-membro não põe em perigo os objectivos ou o funcionamento do regime comunitário (n.os 50 a 52).

96. No seu raciocínio, o Tribunal baseou-se expressamente no sistema global e nos objectivos da regulamentação comunitária instituída no sector da pesca, e nomeadamente na natureza e nas condições de "produção" de peixe (pontos n.os 56 e 57).

97. Não há dúvida que, no caso em apreço, também se deve considerar que as medidas nacionais que visam proporcionar à população do Estado-membro que obtém os seus recursos da pesca o benefício, pelo menos parcial, das quotas nacionais, são conformes com o sistema global e com os objectivos da regulamentação comunitária instituída neste domínio.

98. Outros acórdãos do Tribunal admitiram a possibilidade de derrogar uma regra do Tratado. Assim, resulta do acórdão "claw-back", de 2 de Fevereiro de 1988 (61/86) que o estado incompleto de uma organização comum dos mercados pode justificar derrogações.

99. Da mesma forma, no seu acórdão de 27 de Setembro de 1988, SPG (51/87), a que a Comissão se referiu amplamente na audiência, o Tribunal admitiu

"que, na situação actual da política comercial comum, esse sistema (de quotas-partes nacionais que é susceptível de provocar distorções e desvios de tráfego) pode ser compatível com os artigos 9.° e 113.° do Tratado quando a repartição em quotas-partes nacionais se justificar por circunstâncias imperativas de natureza administrativa, técnica ou económica que cria obstáculos à gestão comunitária do contingente" (n.° 8).

100. Finalmente, no seu acórdão Pigs Marketing Board (Recueil 1978, p. 2347), citado em audiência pelo Reino Unido, o Tribunal declarou que

"resulta do artigo 38.°, n.° 2, do Tratado CEE, que as disposições de Tratado relativas à política agrícola comum prevalecem, em caso de divergência, sobre as outras normas relativas ao estabelecimento do mercado comum" (n.° 37).

Acrescentou o Tribunal

"as disposições específicas, constitutivas de uma organização comum de mercado, são, à partida, prioritárias, no respectivo sector, em relação ao regime previsto no artigo 37.° contemplando os monopólios nacionais de natureza comercial" (n.° 38).

101. No seu acórdão "Seguros" de 4 de Dezembro de 1986, Comissão/Alemanha (205/84), o Tribunal declarou que,

"se a exigência de uma autorização constitui uma restrição à livre prestação dos serviços, a exigência de um estabelecimento permanente, é, de facto, a própria negação dessa liberdade. Tem como consequência retirar qualquer efeito útil ao artigo 59.° do Tratado cujo objecto é, precisamente, eliminar as restrições à livre prestação de serviços por parte de pessoas não estabelecidas no Estado em cujo território a prestação deva ser fornecida".

Todavia, isso não impediu o Tribunal de acrescentar que,

"para que uma tal exigência seja aceite, importa verificar se constitui uma condição indispensável para atingir o objectivo procurado" (n.° 52).

No caso concreto, o objectivo procurado era a protecção do tomador do seguro e do segurado, que o Governo alemão pretendia só poder garantir eficazmente mediante fiscalização num estabelecimento fixo onde se encontrassem todos os documentos necessários.

102. Nos processos Agegate e Jaderow, o objectivo procurado é o de reservar as quotas nacionais àqueles para quem as mesmas foram instituídas, a saber, os pescadores de cada Estado-membro. Como dissemos, só se pode tratar dos pescadores que vivem nesse Estado-membro, seja qual for a sua nacionalidade.

103. Citamos, ainda, para terminar, o acórdão do Tribunal de 15 de Janeiro de 1987, Ainsworth e outros (217/83, 15, 36, 113, 158, 203/84 e 13/85, Colect., p. 167), no qual o Tribunal admitiu que os investigadores científicos que efectuam um trabalho idêntico ao efectuado no mesmo local por outros investigadores podiam auferir uma remuneração inferior porque a situação muito específica em que se encontrava a agência de energia atómica do Reino Unido, da qual dependiam, contrariamente aos outros investigadores, constituía uma justificação objectiva desta diferença de tratamento.

104. Fazemos notar, finalmente, que no caso em apreço os nacionais comunitários, e mesmo os de países terceiros, que não preencham a condição de residência não são, por esse facto, necessariamente excluídos da tripulação dos barcos de pesca britânicos. Com efeito, podem sempre ser abrangidos pelos 25% dos membros da tripulação que não estão sujeitos a tal condição.

105. B - Resta-nos apreciar a condição de inscrição no regime de segurança social, que é aplicável a toda a tripulação e não apenas aos membros da tripulação que devem obrigatoriamente residir no Reino Unido, na ilha de Man ou nas ilhas anglo-normandas. A este respeito, deve-se notar, em primeiro lugar, que resulta de uma jurisprudência uniforme que as disposições do título II do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, alargado aos trabalhadores não assalariados pelo Regulamento (CEE) n.° 1390/81 do Conselho,

"constituem um sistema de normas de conflito cujo carácter completo tem como efeito retirar ao legislador de cada Estado-membro o poder para determinar o alcance e as condições de aplicação da sua legislação nacional relativamente às pessoas que a elas estão sujeitas e o território no qual as disposições nacionais produzem os seus efeitos. Com efeito, como o Tribunal salientou nos acórdãos de 23 de Setembro de 1982, G. T. Kuijpers, acima citado, e G. F. Kocks (275/81, Recueil, p. 3013), 'os Estados-membros não dispõem da faculdade de determinar em que medida é aplicável a sua própria legislação ou a de um outro Estado-membro' , sendo 'obrigados a respeitar as disposições de direito comunitário em vigor' (ver acórdão de 12 de Junho de 1986, Ten Holder (302/84)" (n.° 14) (14).

106. Ora, o artigo 13.°, n.° 2, do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 (15) dispõe que

"sem prejuízo do disposto nos artigos 14.° a 17.°:...

...

c) o trabalhador que exerça a sua actividade profissional a bordo de um navio com pavilhão de um Estado-membro está sujeito à legislação deste Estado;

...".

107. Daqui resulta que uma condição que impõe a toda a tripulação de um barco de pesca com pavilhão britânico contribuir para o regime de segurança social do Reino Unido é, em princípio, compatível com o direito comunitário.

108. A este respeito, é indiferente que os membros da tripulação devam ser considerados, pela actividade que exercem a bordo desse barco, como trabalhadores assalariados ou não assalariados. O artigo 13.°, n.° 2, alínea c), acima citado, refere-se de forma geral a uma "actividade profissional", contrariamente às alíneas a) e b) que distinguem entre actividades assalariadas e não assalariadas.

109. É certo que a versão inglesa usa o termo "employed", o que ((por oposição à alínea b) ("self-employed") e conforme à alínea a) ("employed") da mesma disposição)) poderia ser entendido como apenas visando as pessoas que exercem uma actividade assalariada. Mas as outras versões linguísticas estão conformes com a versão francesa e utilizam respectivamente, por exemplo, "Berufstaetigkeit", "beroepswerkzaamheden", "attività professionale". Além do mais, resulta claramente da versão inglesa do artigo 14.°-B, aplicável apenas ao pessoal do mar, que o artigo 13.°, n.° 2, alínea c), abrange igualmente aqueles que exercem uma actividade não assalariada a bordo de um navio. Também se deve constatar que neste caso se está perante um erro de tradução e que a vontade real do legislador era de determinar a legislação aplicável ao pessoal do mar a partir do pavilhão do barco no qual exercem a sua actividade quer ela seja ou não assalariada.

110. O artigo 14.° B prevê, todavia, certas hipóteses nas quais é a legislação de um outro Estado-membro que se aplica. Portanto, só no caso de a condição segundo a qual o capitão e toda a tripulação devem contribuir para o regime de segurança social britânico revestir um alcance de tal forma absoluto que não pudesse comportar excepções nas hipóteses definidas pelo artigo 14.°-B, é que esta disposição seria incompatível com o direito comunitário. Nada permite contudo supor que as autoridades britânicas não estejam dispostas a aplicar este artigo nos casos, provavelmente excepcionais, em que as circunstâncias nele previstas estejam preenchidas.

111. Em conclusão do que antecede, propomos ao Tribunal que responda à terceira questão prejudicial da forma seguinte:

"a) O direito comunitário não se opõe a que um Estado-membro sujeite a concessão de uma licença de pesca a um barco de pesca registado neste Estado-membro e arvorando o seu pavilhão à condição de pelo menos 75% da tripulação ser composta por nacionais do Estado-membro que concede a licença ou nacionais da Comunidade Económica Europeia nem a que se exija que, para a pesca de espécies de peixe sujeitas a quotas, os membros da tripulação em causa residam habitualmente no seu território.

b) Sem prejuízo dos casos especiais previstos no artigo 14.°-B do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, o direito comunitário não se opõe a que este Estado-membro exija que o capitão e toda a tripulação de tal barco contribuam para o seu próprio regime de segurança social".

Quanto à quarta questão

112. Na quarta questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se

"o titular de tal licença pode invocar perante um órgão jurisdicional nacional a incompatibilidade com o direito comunitário de uma ou outra ou das duas condições mencionadas na terceira questão, para fins de obter a declaração de que a decisão de impor tais condições ou uma de entre elas é ilegal e que deverá ser anulada".

113. O High Court coloca assim a questão da natureza directamente aplicável das disposições de direito comunitário aqui analisadas e que garantem, nos limites das disposições transitórias do acto de adesão da Espanha e de Portugal, a livre circulação de trabalhadores na Comunidade.

114. No seu acórdão de 4 de Dezembro de 1974, Van Duyn (41/74, Recueil, p. 1337), o Tribunal declarou que o artigo 48.° do Tratado tem essa natureza e "confere aos particulares direitos que os órgãos jurisdicionais nacionais devem tutelar".

115. O mesmo se passa em relação às disposições dos regulamentos n.os 1612/68 (16) e 1408/71 que, pela sua própria natureza, podem ser invocados perante um órgão jurisdicional nacional.

116. Verificámos, todavia, que a condição relativa à composição da tripulação não é incompatível com o direito comunitário, de forma que sob este aspecto a questão fica sem objecto.

117. Quanto à condição relativa à inscrição na segurança social, vimos que a mesma é compatível com o direito comunitário, excepto no caso de se verificar uma das hipóteses previstas no artigo 14.°-B do Regulamento n.° 1408/71.

118. Por conseguinte, propomos ao Tribunal que responda à quarta questão prejudicial da forma seguinte:

"O disposto no artigo 14.° B do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 pode ser invocado pelos particulares perante uma jurisdição nacional para se oporem à aplicação de disposições de direito interno que lhe sejam contrárias."

(*) Língua original: francês.

(1) JO L 302 de 15.11.1985.

(2) 75/63 (Recueil 1964, p. 347).

(3) Ver neste sentido os acórdãos de 23 de Março de 1982, Levin (53/81, Recueil, p. 1035, e de 3 de Junho de 1986, Kempf (139/85, Recueil, p. 1741).

(4) Regulamento (CEE) n.° 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade (JO L 257, p. 2; EE 05 F1 p. 77).

(5) 77/82 (Recueil 1983, p. 1085).

(6) JO L 291 de 19.11.1979.

(7) JO L 302 de 15.11.1985, p. 480.

(8) No que respeita a Portugal, trata-se do artigo 220.°

(9) JO L 20 de 28.1.1976, p. 19.

(10) Acórdão de 16 de Junho de 1987, Albert Romkes/Officier van Justitie do arrondissement de Zwolle (46/86, Colect., p. 2671).

(11) 80 e 81/77, Les Commissionnaires réunis et les fils de Henri Ramel/Receveur des douanes (Recueil 1978, p. 927).

(12) Ver, além do acórdão Ramel, acima citado, os acórdãos de 7 de Outubro de 1985, Procuratore della Republica/Migliorini et Fischl (199/84, p. 3317), de 2 de Fevereiro de 1988, Reino Unido/Comissão (61/86, Colect., p. 431).

(13) 3, 4 e 6/76 (Recueil 1976, p. 1279).

(14) Ver, nomeadamente, acórdão de 10 de Julho de 1986, M. E. S. Luijten et Raad van Arbeid de Breda, n.° 14 (60/85, Colect., p. 2368, 2372 e 2373).

(15) Para uma versão codificada, ver o Regulamento (CEE) n.° 2001/83 do Conselho, de 2 de Junho de 1983 (JO L 230, p. 6).

(16) Ver a este respeito, nomeadamente, o acórdão de 4 de Abril de 1974, Comissão/França, ponto 35 (167/73, Recueil, p. 359).