61986J0188

ACORDAO DO TRIBUNAL DE JUSTICA (TERCEIRA SECCAO) DE 2 DE JULHO DE 1987. - MINISTERIO PUBLICO CONTRA REGIS LEFEVRE. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICIAL APRESENTADO PELA COUR D'APPEL DE PARIS. - MARGEM MAXIMA DE COMERCIALIZACAO PARA A VENDA A RETALHO DA CARNE DE BOVINO. - PROCESSO 188/86.

Colectânea da Jurisprudência 1987 página 02963


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


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1. Questões prejudiciais - Competência do Tribunal - Limites

(Tratado CEE, artigo 177.°)

2. Concorrência - Regras comunitárias - Legislação nacional de controlo dos preços de venda a retalho da carne de bovino -Compatibilidade

((Tratado CEE, artigos 3.°, alínea f), e 85.° ))

3. Livre circulação das mercadorias - Restrições quantitativas - Medidas de efeito equivalente - Regimes de preços - Legislação nacional de controlo dos preços de venda a retalho da carne de bovino - Insuficiente tomada em consideração das despesas de importação ou de abastecimento - Inadmissibilidade - Incompatibilidade com a organização comum de mercado

(Tratado CEE, artigo 30.°; Regulamento do Conselho n.° 805/68, artigo 22.°)

Sumário


1. No âmbito de um processo nos termos do artigo 177.° do Tratado, o Tribunal não pode pronunciar-se sobre a compatibilidade de uma disposição legislativa ou regulamentar nacional com o direito comunitário. Pode, no entanto, fornecer ao órgão jurisdicional nacional todos os elementos de interpretação resultantes do direito comunitário e que permitam a esse órgão decidir da compatibilidade dessas normas com a norma comunitária invocada.

2. Os artigos 3.°, alínea f), e 85.° do Tratado não obstam a que a legislação nacional de um Estado-membro preveja a fixação dos preços de venda a retalho da carne de bovino pelas autoridades públicas.

3. Uma legislação nacional de controlo dos preços de venda a retalho da carne de bovino que proíba os retalhistas de vender os seus produtos aos consumidores por um preço que exceda o preço médio de compra, acrescido de uma margem de comercialização fixa e de um montante de despesas de transporte antecipadamente fixadas,

- constitui uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa, contrária ao artigo 30.° do Tratado CEE, bem como ao artigo 22.° do Regulamento n.° 805/68, que estabelece a organização comum de mercado no sector da carne de bovino, quando a margem fixa e o montante das despesas de transporte fixado antecipadamente não tiverem suficientemente em conta as despesas de importação efectivamente suportadas pelos retalhistas,

- é incompatível com o Regulamento n.° 805/68 do Conselho, no caso de as despesas de transporte fixadas antecipadamente se revelarem insuficientes para cobrir as despesas de abastecimento no mercado nacional que os retalhistas tenham efectivamente suportado, afectando, por conseguinte, a rede de distribuição das carnes de bovino em determinadas regiões.

Partes


No processo 188/86,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal pela cour d' appel de Paris, ao abrigo do artigo 177.° do Tratado CEE, e destinado a obter, no processo pendente nesse órgão jurisdicional entre

Ministério Público

e

Régis Lefèvre, residente em Melun,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação de algumas disposições do Tratado CEE, para efeito de apreciação de uma legislação nacional que fixa uma margem de comercialização para a venda a retalho da carne de bovino,

O TRIBUNAL (Terceira Secção),

constituído pelos Srs. Y. Galmot, presidente de secção, U. Everling e J. C. Moitinho de Almeida, juízes,

advogado-geral: M. Darmon

secretário f. f.: H. A. Ruehl, administrador principal

vistas as observações apresentadas:

- em representação de Régis Lefèvre, por P. Baudoin, advogado em Paris,

- em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por D. Sorasio, membro do seu Serviço Jurídico, na qualidade de agente,

visto o relatório para audiência e após a realização desta em 5 de Fevereiro de 1987,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 10 de Março de 1987,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por acórdão de 25 de Junho de 1986, que deu entrada no Tribunal a 24 de Julho, a cour d' appel de Paris, ao abrigo do artigo 177.° do Tratado CEE, colocou uma questão prejudicial, relativa à interpretação de algumas disposições do Tratado CEE, a propósito da apreciação de uma legislação nacional que fixa uma margem de comercialização para a venda a retalho da carne de bovino.

2 Esta questão foi suscitada no âmbito de um processo penal instaurado contra Régis Lefèvre, comerciante retalhista de carnes em Melun, acusado de, durante o mês de Junho de 1983, ter praticado preços ilegais, ao colocar à venda carne de bovino a preços superiores aos fixados pela legislação francesa nessa matéria. Essa legislação, que, na altura em que os factos em discussão se verificaram, era constituída essencialmente pelas portarias n.os 82-89/A e 83-20/A, completadas por regulamentos do prefeito, prevê o controlo dos preços de venda a retalho da carne de bovino e traduz-se sobretudo na fixação de uma margem de venda a retalho, de montante fixo, com exclusão de IVA, e um montante antecipadamente fixado para as despesas de transporte até ao estabelecimento.

3 Por força desta legislação, os comerciantes de carne devem fixar todos os meses preços de compra médios, calculados com exclusão de IVA e com base nas compras de carne que tenham efectuado no mês anterior. A esse elemento variável acrescentam-se os dois montantes fixos atrás mencionados, a saber: a margem de venda a retalho, que na altura era de 5,65 FF por quilograma para os departamentos da região parisiense, e as despesas de transporte antecipadamente fixadas, de 0,35 FF por quilograma. Os retalhistas não devem, sob pena de lhes serem aplicadas sanções, ultrapassar os preços autorizados que resultam destas disposições.

4 Por decisão de 11 de Dezembro de 1985, o tribunal correctionnel de Melun absolveu R. Lefèvre, por considerar que a regulamentação de preços atrás descrita era contrária ao direito comunitário e, por conseguinte, inaplicável. O Ministério Público recorreu desta decisão para a cour d' appel de Paris, tendo esta considerado que se impunha colocar ao Tribunal a seguinte questão prejudicial:

"Os diplomas legais e regulamentares franceses (supracitados)... são compatíveis com o disposto nos artigos 30.°, n.° 3, alínea b), e 85.° do Tratado CEE?"

5 No que diz respeito aos pormenores da legislação nacional em causa, bem como às observações apresentadas ao Tribunal, remete-se para o relatório para audiência. Apenas se recorrerá a esses elementos do processo na medida em que forem necessários para a fundamentação da decisão do Tribunal.

6 Convém, desde já, recordar que, no âmbito de um processo desencadeado ao abrigo do artigo 177.° do Tratado CEE, o Tribunal não pode pronunciar-se sobre a compatibilidade de uma disposição legislativa ou regulamentar nacional com o direito comunitário. Pode, no entanto, fornecer ao órgão jurisdicional nacional todos os elementos de interpretação resultantes do direito comunitário e que permitam a esse órgão decidir da compatibilidade dessas normas com a norma comunitária invocada.

7 Além disso, uma vez que está em causa a aplicação dos artigos 3.°, alínea f), e 85.° do Tratado CEE, a uma legislação sobre preços, como a que é referida pelo tribunal nacional, convém salientar que tal legislação não tem como objectivo impor a celebração de acordos entre os operadores económicos ou outros comportamentos proibidos pelo n.° 1 do artigo 85.° do Tratado, mas, pelo contrário, atribui às autoridades públicas a responsabilidade em matéria de preços. Como já foi decidido pelo Tribunal no acórdão de 29 de Janeiro de 1985 (Cullet, processo 231/83, Recueil, p. 305), estes preceitos não obstam a que a legislação nacional de um Estado-membro preveja a fixação dos preços de venda a retalho pelas autoridades públicas.

8 Consequentemente, deve considerar-se que a questão colocada tem como finalidade saber se as disposições do Tratado CEE relativas à livre circulação de mercadorias e, em especial, o artigo 30.°, se opõem a uma legislação nacional de controlo dos preços de retalho da carne de bovino, que proíbe aos retalhistas a venda destes produtos a um preço que ultrapasse o preço médio de compra, acrescido de uma margem de comercialização de montante fixo e de uma quantia para as despesas de transporte antecipadamente fixada.

9 Ainda que o tribunal nacional apenas mencione na sua questão os artigos do Tratado acima referidos, convém, apesar disso e a fim de lhe fornecer todos os elementos de interpretação úteis, assinalar que a apreciação da compatibilidade das medidas nacionais de controlo dos preços, tratando-se de produtos sujeitos a uma organização comum de mercados agrícolas, deve ser feita, antes de mais, à luz dessa mesma organização (ver acórdão de 6 de Novembro de 1979, Danis, processos 16 a 20/79, Recueil, p. 3327). Assim, é igualmente necessário apurar se uma legislação nacional em matéria de preços, como a que está em discussão no caso presente, é compatível com o Regulamento n.° 805/68 do Conselho, de 27 de Junho de 1968, que estabelece a organização comum de mercado no sector da carne de bovino (JO L 148, p. 24 ; EE 03 F2 p. 157).

10 A fim de fazer uma apreciação do sistema de fixação de preços em causa, convém primeiro recordar que, segundo a jurisprudência constante do Tribunal, as legislações nacionais sobre preços, indistintamente aplicáveis aos produtos nacionais e aos importados, não constituem, em si mesmas, medidas de efeito equivalente a uma restrição quantitativa, na acepção do artigo 30.° do Tratado, mas podem produzir esse efeito, desde que os preços se situem a um nível tal que os produtos importados sejam prejudicados em relação aos produtos nacionais idênticos (ver acórdãos de 26 de Fevereiro de 1976, Tasca, processo 65/75, Recueil, p. 291; de 24 de Janeiro de 1978, Van Tiggele, processo 82/77, Recueil, p. 25; de 29 de Janeiro de 1985, Cullet, supracitado; de 13 de Novembro de 1986, EDAH, processos 80 e 159/85, Recueil, p. 3359, 3376). O mesmo princípio é válido no que diz respeito à proibição de medidas de efeito equivalente a uma restrição quantitativa, enunciada no artigo 22.° do Regulamento n.° 805/68, atrás mencionado.

11 Em segundo lugar convém observar que o Tribunal decidiu no acórdão de 17 de Janeiro de 1980 (Kefer e Delmelle, processos 95 e 96/79, Recueil, p. 103) que as disposições de um regulamento agrícola comunitário que fixam um regime de preços aplicável às fases de produção e comercialização por grosso, deixam intacto o poder dos Estados-membros quanto à adopção de medidas específicas em matéria de formação de preços na fase do comércio a retalho e do consumo, com a condição de que tais medidas não ponham em perigo os objectivos ou o funcionamento da organização comum de mercado. Por conseguinte, a fixação de uma margem de comercialização, a respeitar pelo retalhista na venda ao consumidor, não é, em princípio, susceptível de fazer perigar os objectivos e o funcionamento dessa organização, desde que seja, no essencial, calculada a partir dos preços de compra tal como são praticados na fase de produção e de comércio por grosso, de forma a não afectar o funcionamento do regime de preços, sobre o qual assenta a organização comum de mercado em causa.

12 As exigências atrás referidas feitas pela jurisprudência do Tribunal não se encontram preenchidas nos casos em que a margem de comercialização tenha em conta as despesas de abastecimento realmente efectuadas pelos retalhistas. Uma margem de comercialização que não preenchesse esses requisitos teria por efeito limitar as possibilidades de os retalhistas se abastecerem junto do produtor ou do comerciante da sua escolha, afectando assim o funcionamento da organização comum de mercados, e, mais precisamente, as trocas intracomunitárias.

13 Assim sendo, a legislação de um Estado-membro, destinada a controlar os preços de retalho das carnes de bovino, e que consiste em impedir os retalhistas de vender os seus produtos aos consumidores a um preço que ultrapasse o preço de compra praticado na fase de comercialização por grosso, acrescido de uma margem máxima de comercialização, destinada a cobrir, entre outras, as despesas de importação eventualmente efectuadas pelos retalhistas, constitui uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa, contrária ao artigo 30.° do Tratado CEE e ao artigo 22.° do Regulamento n.° 805/68 (ver o acórdão de 5 de Junho de 1985, Roelstraete, processo 116/84, Recueil, p. 1713).

14 É certo que no sistema de controlo de preços descrito na questão prejudicial, as despesas de transporte são enumeradas separadamente em relação à margem de comercialização fixa para a venda a retalho. Em todo o caso, estas despesas estão incluídas no preço máximo de venda a retalho, num montante antecipadamente fixado e calculado com base nas despesas de transporte desde o mercado de abastecimento de Rungis até aos estabelecimentos de retalho. Dado que as despesas de importação realmente efectuadas pelos retalhistas ultrapassam este montante, tal fixação antecipada tem um efeito restritivo da importação, uma vez que a diferença vai diminuir o lucro do retalhista em causa.

15 No que respeita às despesas de abastecimento no mercado nacional, convém notar que a sua incorporação na margem máxima de comercialização é incompatível com o Regulamento n.° 805/68, uma vez que essa incorporação afecta os circuitos de distribuição das carnes de bovino em certas regiões (ver o acórdão de 5 de Junho de 1985 atrás citado).

16 O mesmo se verifica nos casos em que as despesas de transporte fixadas antecipadamente se revelam insuficientes para cobrir as despesas de abastecimento no mercado nacional realmente efectuadas pelos retalhistas, o que, consequentemente, afecta os circuitos de distribuição de carnes de bovino em determinadas regiões.

17 Compete à jurisdição nacional apreciar em que medida o sistema previsto pela legislação nacional, que é sua missão aplicar, produz tal efeito.

18 Assim, há que responder à questão colocada pela cour d' appel de Paris, que uma legislação nacional de controlo dos preços de venda a retalho da carne de bovino que impede os retalhistas de vender os seus produtos aos consumidores a um preço que ultrapassa o preço médio de compra, acrescido de uma margem de comercialização fixa e das despesas de transporte antecipadamente fixadas:

- constitui uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa, contrária ao artigo 30.° do Tratado CEE, bem como ao artigo 22.° do Regulamento n.° 805/68 do Conselho, que estabelece a organização comum de mercado no sector da carne de bovino, quando a margem fixa e o montante das despesas de transporte antecipadamente fixado não tiverem suficientemente em conta as despesas de importação efectivamente suportadas pelos retalhistas,

- é incompatível com o Regulamento n.° 805/68 do Conselho, no caso de as despesas de transporte antecipadamente fixadas se revelarem insuficientes para cobrir as despesas de abastecimento no mercado nacional que os retalhistas tenham efectivamente suportado, afectando, assim, a rede de distribuição das carnes de bovino em determinadas regiões.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

19 As despesas efectuadas pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentou observações escritas perante o Tribunal, não podem ser reembolsadas. Dado que o processo reveste, relativamente às partes no processo principal, a natureza de um incidente suscitado perante a jurisdição nacional, é a esta que cabe decidir quanto às despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL (Terceira Secção) ,

pronunciando-se sobre a questão que lhe foi colocada por acórdão de 25 de Junho de 1986, pela cour d' appel de Paris, declara:

Uma legislação nacional de controlo dos preços de venda a retalho da carne de bovino que proíba os retalhistas de vender os seus produtos aos consumidores por um preço que exceda o preço médio de compra, acrescido de uma margem de comercialização fixa e de um montante de despesas de transporte antecipadamente fixadas:

- constitui uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa, contrária ao artigo 30.° do Tratado CEE, bem como ao artigo 22.° do Regulamento n.° 805/68 do Conselho, que estabelece a organização comum de mercado no sector da carne de bovino, quando a margem fixa e o montante das despesas de transporte antecipadamente fixadas não tiverem suficientemente em conta as despesas de importação efectivamente suportadas pelos retalhistas;

- e é incompatível com o Regulamento n.° 805/68 do Conselho, no caso de as despesas de transporte fixadas antecipadamente se revelarem insuficientes para cobrir as despesas de abastecimento no mercado nacional que os retalhistas efectivamente tenham suportado, afectando, por conseguinte, a rede de distribuição das carnes de bovino em determinadas regiões.