61986C0144

Conclusões do advogado-geral Mancini apresentadas em 11 de Junho de 1987. - GUBISCH MASCHINENFABRIK AG CONTRA GIULIO PALUMBO. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICIAL APRESENTADO PELA CORTE SUPREMA DI CASSAZIONE DE ROMA. - CONVENCAO DE BRUXELAS - NOCAO DE LITISPENDENCIA. - PROCESSO 144/86.

Colectânea da Jurisprudência 1987 página 04861
Edição especial sueca página 00271
Edição especial finlandesa página 00273


Conclusões do Advogado-Geral


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Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

1. A Corte di cassazione italiana solicita-vos a interpretação do conceito de litispendência, referido no primeiro parágrafo do artigo 21.° da Convenção de Bruxelas relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial (27 de Setembro de 1968).

Por citação efectuada em 12 de Dezembro de 1974, Giulio Palumbo, cidadão italiano, instaurou uma acção no Tribunal de Roma contra a sociedade Gubisch Maschinenfabrik KG, com sede em Flensburg (República Federal da Alemanha) para obter a declaração de nulidade da proposta de aquisição de uma máquina que lhe havia dirigido. Para tal, Giulio Palumbo alegou que revogara a proposta antes de esta ter sido recebida pela Gubisch para aceitação. Para o caso de o Tribunal considerar que o contrato de venda se chegara a concluir, requeria a título subsidiário a sua anulação por vício de consentimento e, de qualquer modo, a sua resolução por inobservância do prazo peremptório previsto para a entrega.

Fazendo-se representar em juízo, a Gubisch excepcionou in limine litis a incompetência do juiz italiano, salientando que já tinha apresentado no Tribunal de Comércio de Flensburg um pedido decondenação de Giulio Palumbo no pagamento da máquina por este adquirida através de um contrato válido. Entre as duas acções existia portanto uma situação de litispendência que, nos termos do primeiro parágrafo do artigo 21.° da Convenção de Bruxelas, deve ser resolvida em favor do juiz alemão previamente demandado.

O Tribunal de Roma considerou improcedente a excepção. Os dois processos - salientou - têm pedidos diversos, o que impossibilita a declaração de incompetência prevista naquela norma. A empresa recorreu então à Corte de cassazione com vista a obter uma solução para o conflito de competências; este Tribunal Supremo, por seu lado, considerou necessário submeter-vos a seguinte questão prejudicial:

"A noção de litispendência, referida no artigo 21.° da Convenção de Bruxelas... abrange a hipótese em que, relativamente a um mesmo contrato, uma parte intenta no tribunal de um outro Estado contratante ma acção de anulação (ou, pelo menos, de resolução) do contrato, enquanto que a outra propõe no tribunal de outro Estado contratante uma acção de execução do mesmo contrato?"

No processo perante o Tribunal, apresentaram observações escritas a sociedade Gubisch, a Comissão das Comunidades Europeias, os governos da República Federal da Alemanha e da República Italiana.

2. É opinião comum que o conceito de litispendência a que se refere o artigo 21.° deve ser interpretado autonomamente, abstraindo-se da definição que dela dá a lei nacional do tribunal demandado. No querespeita às condições de que depende a aplicabilidade da norma, verifica-se, pelo contrário, um desacordo. Para o Governo italiano, ela deve ser interpretada literalmente: para que haja litispendência é necessário que as acções propostas pelas partes tenham "o mesmo pedido e a mesma causa de pedir". Fora desta hipótese, a eventual relação entre as acções pendentes em tribunais de Estados diferentes é definida e regulada pela convenção em termos de conexão. Sendo assim, e pelo fundamentos invocados pelo Tribunal de Roma, a questão prejudicial deve ser respondida negativamente.

A excepção de litispendência - alegam, por sua vez, as outras partes do processo - visa evitar que o mesmo litígio seja sujeito à apreciação de tribunais de Estados diferentes, com o risco de decisões contraditórias e, portanto, insusceptíveis de reconhecimento (n.° 3 do artigo 27.°). A disposição em questão aplica-se, assim, não apenas quando exista uma total coincidência entre o pedido e a causa de pedir dos processos, mas também quando estes, embora com um conteúdo diverso, se baseiem na mesma situação jurídica.

No caso em apreço, por exemplo, é evidente que para poder examinar quanto ao mérito a acção de condenação proposta pela Gubisch, o juiz alemão deverá em primeiro lugar averiguar se existe entre as partes uma relação contratual válida, sendo exactamente o que o tribunal italiano deve verificar a título principal. A interpretação literal do artigo 21.° conduz à apreciação do mesmo problema por tribunais diferentes, ao passo que este inconveniente é evitado através de uma interpretação extensiva que obrigue o tribunal demandado em segundo lugar a considerar-se incompetente. Acrescenta-se que só esta última leitura é conforme ao espírito da convenção podendo proporcionar processos rápidos e simples com vista a uma melhor circulação das decisões judiciais nacionais.

3. Ambas as teses são plausíveis e apoiadas em argumentos eficazes. Parece-me, no entanto, que a primeira é mais convincente.

Recorde-se que, segundo o primeiro parágrafo do artigo 21.°, há litispendência "quando acções com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir penderem entre as mesmas partes perante órgãos jurisdicionais de distintos Estados contratantes"; preenchidas estas condições, "o órgão jurisdicional demandado em segundo lugar deve, mesmo oficiosamente, declarar-se não competente" em favor do tribunal primeiramente demandado. Por outro lado, o terceiro parágrafo do artigo 22.° estabelece que consideram-se conexas, na acepção do presente artigo, as acções ligadas entre si por um nexo tão estreito que haja interesse em serem instruídas e julgadas simultaneamente para evitar soluções que poderiam ser incompatíveis se as causas fossem julgadas separadamente". Nestes casos o tribunal demandado em segundo lugar "pode sobrestar na decisão".

Como já referi, da leitura de ambas as disposições resulta antes de mais que os autores da convenção quiseram regular de forma autónoma a litispendência e a conexão, cuidando de especificar os respectivos elementos constitutivos e efeitos. Na verdade, as suas normas destinam-se a impedir, na medida do possível, um conflito de decisõesjudiciais no espaço jurídico comunitário. Donde a necessidade de uma definição uniforme dos fenómenos a que se referem.

Relativamente ao fundo da regulamentação, devo salientar que as soluções por ela previstas divergem claramente. De facto, a do artigo 22.° exige que entre os dois processos exista um "nexo tão estreito" que a sua junção se torne conveniente. Por outro lado, é necessário que as acções "estejam pendentes no mesmo grau de jurisdição, porque doutro modo, não sendo o pedido idêntico nos dois processos, seria de recear que uma das partes ficasse privada de um grau de jurisdição" ((relatório Jenard, JO C 59 de 5.3.1979, p. 41, n.° 22 (sublinhado meu) )). Por sua vez, na litispendência, mais do que um "nexo", as acções devem ser idênticas quanto aos sujeitos, ao pedido e á causa de pedir. Assim se explica a natureza imperativa da correspondente norma que impõe ao tribunal demandado em segundo lugar a obrigação de, mesmo oficiosamente, se declarar incompetente.

O primeiro parágrafo do artigo 21.° é pois bastante estrito: certamente mais estrito (e, devo acrescentar, bastante mais inovador) que as correspondentes regulamentações do direito interno e do direito convencional. Na verdade, a maior parte dos Estados contratantes ignora a excepção de litispendência internacional e as convenções que a consagram sujeitam-na à condição adicional de a decisão do primeiro tribunal ser susceptível de reconhecimento no Estado em causa. Por outro lado, do ponto de vista das consequências, a regra é que o tribunal demandado em segundo lugar tenha a faculdade de se declarar incompetente, e que possa escolher entre esta declaração e a suspensão da instância (ver em geral Droz, Compétence judiciaire et effets desjugements dans le marché commun, Paris, 1972, p. 179 e seguintes; relativamente às regras internacionais, ver artigo 20.° da Convenção de Haia de 1 de Fevereiro de 1971, sobre o reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras em matéria civil e comercial).

Em minha opinião, estes dados são determinantes. De facto, é evidente que, sujeitos ao peso de tradições normativas pouco favoráveis à litispendência, os tribunais dos Estados contratantes apenas podiam respeitar a obrigação de se declararem incompetentes se esta obrigação estivesse subordinada a critérios simples e categóricos. Não é pois por excesso de formalismo que o primeiro parágrafo do artigo 21.° estabelece como fundamento da excepção a existência de "acções com o mesmo pedido e a mesma causa de pdir" entre as "mesmas partes". A dupla ou tripla utilização do adjectivo "mesmo" ("même", "derselbe", "dezelfde", "stesso", "same", "samme", "idios") demonstra, pelo contrário, que aquela escolha corresponde a uma determinada intenção política. E se isto é exacto, a interpretação extensiva, nos termos da qual a disposição devia aplicar-se igualmente no caso de acções distintas apesar de baseadas na mesma situação jurídica, acaba por confundir o que a convenção quis separar: precisamente, a conexão e a litispendência das acções.

Além disso, esta interpretação não proporciona, mesmo no plano prático, todas as vantagens que os seus defensores invocam. No domínio das obrigações, por exemplo, bastaria contestar a validade do contrato para paralisar, através da excepção de litispendência, qualquer nova acção proposta com base neste perante o tribunal de outro Estado. Ora,este não é certamente o objectivo visado pelo primeiro parágrafo do artigo 21.°

4. Dito isto, voltemos ao caso em apreço. A decisão de reenvio revela que está pendente perante o Tribunal de Roma uma acção em que é pedida a declaração de nulidade de um contrato de venda por ter sido revogada a proposta, ao mesmo tempo que a acção proposta no tribunal alemão se baseia na validade do contrato, visando obter a condenação no pagamento do preço. Ora, como salientou a Comissão, as duas acções não têm em comum nem o pedido nem a causa de pedir. É certo que em ambas se discute a questão de saber se o contrato existe e é gerador de efeitos; mas, na acção pendente no Tribunal de Flensburg, esta questão apenas se coloca a título incidental ou, mais precisamente, prejudicial em relação à apreciação do mérito do pedido de condenação. Numa situação deste tipo, não é possível dizer-se, como faz o Governo alemão, que, nos termos do primeiro parágrafo do artigo 21.°, no pedido destinado a obter o cumprimento da prestação está substancialmente contido o pedido de declaração de nulidade; de facto, do ponto de vista processual, os demandantes requerem medidas de conteúdo e de efeitos radicalmente diversos.

Entre dois litígios existe no entanto um "nexo" (de natureza prejudicial) "tão estreito que há interesse em serem instruídos e julgados simultaneamente" (terceiro parágrafo do artigo 22.°). Estamos assim perante um caso de conexão; e dado que esta não autoriza a devolução de competência prevista no primeiro parágrafo do artigo 21.°, alguns dos intervenientes, como a República Federal da Alemanha e a Comissão, receiam que dessa questão possa resultar um conflito.

No entanto, este receio é, no mínimo, exagerado. Nos termos do segundo parágrafo do artigo 22.°, o órgão jurisdicional demandado em segundo lugar "pode", a requerimento das partes, declarar-se incompetente "desde que a sua lei permita a apensação de acções conexas e que o tribunal demandado em primeiro lugar seja competente para conhecer dos dois pedidos" ou, de qualquer modo, suspender a instância. Devo acrescentar que as duas faculdades não implicam a de ignorar a excepção invocada pela parte; compete, pelo contrário, ao segundo tribunal apreciá-la. Isto é, como já referi, as regras estabelecidas em matéria de conexão visam também impedir que sejam proferidas decisões contraditórias, através de processos certamente não automáticos, como os previstos no domínio da litispendência, mas que nem por isso são privados de eficácia.

5. Com base nas considerações precedentes, sugiro que o tribunal responda à questão submetida pela Corte di cassazione italiana, através da decisão de 28 de Maio de 1986, relativa à acção proposta pela Gubisch Maschinenfabrik KG contra Giulio Palumbo, da seguinte forma:

"O primeiro parágrafo do artigo 21.° da Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968, relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial deve ser interpretado no sentido de que apenas existe litispendência quando acções com o mesmo pedido e a mesma causa de pdir estão pendentes entre as mesmaspartes em órgãos jurisdicionais de distintos Estados contratantes. Não é abrangida por esta noção a hipótese em que uma parte requer a um tribunal de um Estado contratante a declaração de nulidade (ou a resolução) de um contrato, ao mesmo tempo que a parte contrária propõe no tribunal de outro Estado contratante uma acção em que é pedida a execução do mesmo contrato".

(*) Tradução do italiano.