61986C0045

Conclusões do advogado-geral Lenz apresentadas em 29 de Janeiro de 1987. - COMISSAO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS CONTRA CONSELHO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS. - PREFERENCIAS PAUTAIS GENERALIZADAS - RECURSO DE ANULACAO - FUNDAMENTO JURIDICO - OBRIGACAO DE FUNDAMENTAR OS ACTOS COMUNITARIOS. - PROCESSO 45/86.

Colectânea da Jurisprudência 1987 página 01493
Edição especial sueca página 00055
Edição especial finlandesa página 00055


Conclusões do Advogado-Geral


++++

Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

A - Matéria de facto

1. A questão central do processo sobre a qual venho hoje apresentar as minhas conclusões é a de saber quais as disposições do Tratado em que o Conselho das Comunidades Europeias se podia basear para adoptar os regulamentos respeitantes às preferências pautais generalizadas, para o ano de 1986, relativamente a certos produtos industriais e a produtos têxteis originários de países em vias de desenvolvimento, e se, para a adopção desses regulamentos, o Conselho tinha a obrigação de especificar no preâmbulo dos ditos regulamentos as normas do Tratado em que se fundamentou.

2. Em 17 de Dezembro de 1985, o recorrido, o Conselho das Comunidades Europeias, segundo proposta da recorrente, a Comissão, e tendo em conta o parecer do Parlamento Europeu e do Comité Económico e Social, adoptou os três regulamentos seguintes:

- Regulamento n.° 3599/85, que aplica preferências pautais generalizadas, para o ano de 1986, a certos produtos industriais originários de países em vias de desenvolvimento (1);

- Regulamento n.° 3600/85, que aplica preferências pautais generalizadas, para o ano de 1986, aos produtos têxteis originários de países em vias de desenvolvimento (2); e

- Regulamento n.° 3601/85, que aplica preferências pautais generalizadas, para o ano de 1986, a certos produtos agrícolas originários de países em vias de desenvolvimento (3).

3. Por força dos regulamentos em questão - cujos predecessores remontam a 1971 - os direitos aduaneiros relativos a uma série de produtos originários de países em vias de desenvolvimento podem ser suspensos, quer na sua totalidade, quer no âmbito de contingentes ou limites pautais comunitários.

4. Esgotando-se os contingentes, a pauta aduaneira comum volta a ser automaticamente aplicável. Logo que sejam atingidos os limites individuais ao nível comunitário, pode restabelecer-se a aplicação dos direitos aduaneiros à importação dos referidos produtos. Da mesma forma, pode decidir-se restabelecer a aplicação dos direitos aduaneiros, no caso de o aumento das importações preferenciais não sujeitas a quaisquer contingentes ou limites dar origem a dificuldades económicas na Comunidade ou numa determinada região da Comunidade. Não se admite, porém, o restabelecimento dos direitos aduaneiros relativamente a produtos originários dos menos desenvolvidos dentre os países em vias de desenvolvimento.

5. Quanto a certas mercadorias provenientes dos países mais competitivos e sujeitas ao regime de contingentes pautais, as preferências são reduzidas em 50% do seu montante.

6. Os contingentes pautais são repartidos entre os Estados-membros segundo um sistema de quotas globais, que, em geral, implica a atribuição de uma quota inicial, além do direito de beneficiar de quotas suplementares provenientes de uma reserva comunitária.

7. Os mencionados regulamentos estabelecem, geralmente, diferenças consoante o grau de desenvolvimento e de competitividade dos países beneficiários, bem como consoante a "sensibilidade" das mercadorias em questão.

8. Assim, o sistema das preferências pautais generalizadas consiste, essencialmente, numa suspensão, sem obrigação jurídica da Comunidade e sem exigências de reciprocidade, dos direitos aduaneiros da pauta aduaneira comum, a fim de facilitar a importação de determinados produtos originários de certos países em vias de desenvolvimento.

9. No contexto internacional, após a Carta de Havana de 1948, que já contemplava a possibilidade de preferências regionais mas não chegara a entrar em vigor, o sistema das preferências generalizadas deve-se a uma iniciativa da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Cnuced), no ano de 1964. Vem ao encontro das exigências no sentido de se chegar a uma nova concepção das relações comerciais internacionais entre os países desenvolvidos e os países em vias de desenvolvimento, a qual deve reservar um espaço mais amplo aos objectivos da política de desenvolvimento no domínio das relações comerciais.

10. Numa declaração de 7 de Dezembro de 1961, as partes contratantes do Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio (GATT) já haviam sublinhado a íntima relação existente entre ajuda ao desenvolvimento e comércio (4). Mais tarde, a concessão de preferências pautais foi também juridicamente reconhecida; devido à contradição entre o sistema de preferências generalizadas e os princípios fundamentais do GATT, especialmente a cláusula da nação mais favorecida, foi concedida, pela primeira vez em 1971, uma isenção de direitos limitada no tempo. Em 1979, no quadro do GATT, foi tomada uma decisão em que se afirmava a compatibilidade permanente das preferências pautais em favor de países em vias de desenvolvimento com o GATT.

11. No Regulamento n.° 3601/85, que aplica preferências pautais generalizadas a certos produtos agrícolas, e que não foi impugnado no caso em apreço, o Conselho declara que se teve em conta "o Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia e, nomeadamente, o seu artigo 43.°"; nos considerandos dos preâmbulos dos regulamentos n.os 3599/85 e 3600/85, contudo, encontram-se somente os termos: "Tendo em conta o Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia".

12. Quando as preferências pautais generalizadas foram introduzidas, pela primeira vez, em 1971, a Comissão já tinha proposto que os regulamentos correspondentes (5) se fundamentassem no artigo 113.° do Tratado CEE. O Conselho, no entanto, não seguiu essa proposta, contentando-se com a referência ao "Tratado" como fundamento jurídico.

13. Além disso, tendo-se afastado também quanto ao conteúdo das propostas da Comissão, o Conselho, no processo de adopção da decisão, tomou como base o artigo 149.° do Tratado CEE, em que é igualmente exigida a unanimidade.

14. Em declaração que consta de acta, a Comissão expôs o seu ponto de vista sobre o conteúdo do sistema de preferências, divergente do do Conselho, em especial no que respeita a uma diferenciação mais pronunciada do sistema e à gestão dos contingentes e dos limites.

15. A recorrente considera ilegal o processo formal adoptado pelo recorrido, por constituir uma violação da obrigatoriedade de fundamentação prevista no artigo 190.° do Tratado CEE e, ao mesmo tempo, do artigo 113.° do Tratado CEE, única base legal a que se poderia ter recorrido.

16. Renunciando ao seu direito de réplica às alegações do recorrido, a recorrente solicitou, em Maio de 1986, que, nos termos do artigo 55.° do Regulamento Processual, o processo fosse julgado prioritariamente.

17. A recorrente pede que o Tribunal se digne:

1) a título principal:

- anular os regulamentos n.os 3599/85 e 3600/85 do Conselho, de 17 de Dezembro de 1985;

- decidir que estes regulamentos continuarão a produzir efeitos até à entrada em vigor dos regulamentos que vierem a ser adoptados em execução do acórdão do Tribunal;

a título subsidiário:

- anular a deliberação do Conselho de 17 de Dezembro de 1985 pela qual este, rejeitando a proposta da Comissão de fundamentar esses regulamentos no artigo 113.°, preferiu utilizar a fórmula "tendo em conta o Tratado";

2) - condenar o recorrido nas despesas do processo.

18. O recorrido pede que o Tribunal se digne:

1) negar provimento ao recurso da Comissão, tanto relativamente aos seus pedidos principais, como aos pedidos subsidiários;

2) condenar a recorrente nas despesas do processo.

19. O recorrido, sem contestar formalmente a admissibilidade do recurso, manifesta dúvidas, antes de mais, quanto à existência real de um litígio no caso em apreço. O que a recorrente pretenderia, efectivamente, seria obter uma declaração do Tribunal sobre a interpretação do artigo 113.° do Tratado CEE.

20. O recorrido põe em dúvida igualmente o interesse em agir da recorrente, já que, em caso de anulação por violação das formalidades essenciais, os regulamentos em questão voltariam a ser adoptados, sem alteração de conteúdo.

21. O recorrido lamenta, de facto, que o fundamento jurídico dos regulamentos impugnados não tenha podido ser indicado de maneira mais precisa, mas entende que esta circunstância não constitui violação de formalidades essenciais. Devido aos objectivos de política de desenvolvimento prosseguidos com a adopção dos mencionados regulamentos, não seria possível aceitar o artigo 113.° do Tratado CEE como único fundamento jurídico. Eis a razão pela qual foi preciso recorrer também ao artigo 235.° do Tratado CEE.

22. Em resposta a uma questão formulada pelo Tribunal de Justiça, o recorrido esclareceu que, na realidade, ao utilizar a fórmula "tendo em conta o Tratado", aquando da adopção dos regulamentos litigiosos, teve presente o disposto nos artigos 113.° e 235.° do Tratado CEE.

23. Na medida do necessário, referir-me-ei pormenorizadamente aos argumentos das partes no quadro do parecer que adiante emito. Quanto ao restante, remete-se para o relatório para audiência.

B - Parecer

I - Quanto à admissibilidade

24. a) O recorrido apresentou uma série de objecções relativamente à admissibilidade do recurso. Visto que a recorrente não contesta o conteúdo dos regulamentos impugnados, mas unicamente o processo pelo qual foram adoptados e o fundamento jurídico referido, não existiria nesta caso um verdadeiro litígio. O que a recorrente pretenderia, e que não seria permitido mediante tal procedimento, seria obter uma declaração sobre a interpretação do artigo 113.° do Tratado CEE. Além disso, faltaria à recorrente interesse em agir, porquanto, mesmo em caso de eventual anulação dos dois regulamentos, o recorrido poderia adoptar outros regulamentos com o mesmo conteúdo, mediante procedimento correcto.

25. A recorrente replica que, aquando da adopção dos regulamentos impugnados, o recorrido afastou-se também das propostas apresentadas por ela quanto ao fundo. De resto, para a interposição de recursos de anulação por parte das instituições comunitárias, bem como dos Estado-membros, não se exigiria prova da existência de interesse especial em obter a tutela jurisdicional nem de legitimidade para recorrer.

26. b) Com efeito, o primeiro parágrafo do artigo 173.° do Tratado CEE, que regula a competência do Tribunal para fiscalizar a legalidade dos actos do Conselho e da Comissão, não contém nenhum ponto de referência no sentido de que os Estados-membros, o Conselho ou a Comissão devam demonstrar a existência de um interesse especial em obter a tutela jurisdicional, ao interporem recurso. Do disposto no artigo 173.° do Tratado CEE, que requer a existência de interesse em obter a tutela jurisdicional, tratando-se de pessoas singulares ou colectivas, pode concluir-se que para os recorrentes priviligiados referidos no primeiro parágrafo não se exige a existência desse interesse.

27. Em jurisprudência referente a uma disposição análoga - o artigo 33.° do Tratado CECA - num acórdão de 10 de Fevereiro de 1983, proferido no processo 230/81 (6), isto foi confirmado pelo Tribunal da seguinte forma:

28. "Diferentemente das disposições que conferem a possibilidade de recurso às empresas ou associações, como o segundo parágrafo do artigo 33.° do Tratado CECA, o exercício do direito de acção por parte de um Estado-membro ou da Alta Autoridade não é condicionado por qualquer requisito suplementar que exija a prova da existência de interesse ou de legitimidade para agir" (tradução provisória).

29. Não hesito em aplicar esse ponto de vista ao Tratado CEE, o que é natural, não só por tratar-se, no processo 230/81, de um recurso respeitante às relações jurídicas entre um Estado-membro e o Parlamento Europeu, fundamentado nos três tratados das Comunidades, mas também com base nas seguintes considerações:

30. O artigo 155.° do Tratado CEE atribui à Comissão, entre outras, a missão de velar pela aplicação das disposições do Tratado bem como das medidas tomadas pelas instituições, por força deste. Assim, para cumpri-la, a Comissão deve dispor, pelo menos, de todos os meios previstos no Tratado para a tutela do direito, especialmente o direito de interpor recurso, nos termos do artigo 173.° É justamente devido a esta missão, prevista no artigo 155.° do Tratado CEE, que não se pode interpretar restritivamente o direito de recurso da Comissão, atendendo ao teor do artigo 173.°, e tão-pouco se lhe pode impor a prova da existência de legitimidade processual ou de interesse em agir.

31. Além disso, uma interpretação restritiva do artigo 173.° do Tratado CEE dificilmente estaria em consonância com a jurisprudência do Tribunal, que vê na Comunidade uma comunidade jurídica, em que nem os Estados-membros nem as instituições comunitárias se podem subtrair à fiscalização da conformidade dos seus actos com o Tratado (7). Se a partir deste entendimento, ligado à afirmação de que existe, consoante o sistema do Tratado, a possibilidade de recurso directo segundo todos os actos das instituições destinados a produzir um efeito jurídico, se chega até à conclusão de que é possível interpor recurso inclusivamente contra instituições a que o artigo 173.° do Tratado CEE não faz qualquer referência (8), impõe-se igualmente reconhecer a admissibilidade de um recurso da Comissão em que se pede simplesmente que seja examinada a legalidade de uma decisão do Conselho sob o aspecto formal.

32. De resto, há que referir que, mesmo que se quisesse, não se poderia negar seriamente que a recorrente tenha um interesse jurídico no recurso. Em consequência das diferentes normas processuais previstas no artigo 113.° do Tratado CEE - decisão do Conselho por maioria qualificada - e no artigo 235.° do mesmo Tratado - decisão do Conselho por unanimidade -, é diferente o peso da Comissão no processo legislativo, conforme seja aplicada uma ou outra destas disposições. De acordo com o processo previsto no artigo 235.° do Tratado CEE, a Comissão deve apresentar ao Conselho uma proposta que deve ser aceite unanimemente por todos os Estados-membros - antes dez, actualmente doze -, para poder assumir a forma de acto jurídico. Segundo o processo previsto no artigo 113.° do Tratado CEE, basta que a proposta apresentada pela Comissão seja aprovada por maioria qualificada do Conselho e, portanto, não necessariamente pela totalidade dos Estados-membros. Sendo assim, a margem de actuação de que a recorrente dispõe para fazer prevalecer os seus pontos de vista - na sua opinião, em proveito da Comunidade - é maior no caso de ser utilizado o processo previsto no artigo 113.° do Tratado CEE e, consequentemente, também é maior a sua influência no processo legislativo, especialmente se se tiver em conta que, a qualquer momento, pode alterar as suas propostas legislativas, adaptando-as, deste modo, à evolução dos debates no Conselho; assim, pode apresentá-las numa formulação que se torne aceitável para uma maioria qualificada dos membros do Conselho.

33. Visto que a questão de determinar qual o fundamento jurídico correcto dos regulamentos impugnados, se o artigo 113.° ou o artigo 235.° do Tratado CEE, incide igualmente sobre o exercício da competência da Comissão, não pode ser negada a existência de interesse em agir.

34. Por essa razão, também não se pode admitir o argumento do recorrido de que o litígio carece de existência real. Apesar de a recorrente não ter contestado o conteúdo dos regulamentos impugnados, sempre se trata de saber, no caso vertente, qual a influência e as competências das diferentes instituições comunitárias aquando da adopção de regulamentos relativamente aos quais as opiniões são divergentes. Isto faz com que a situação no presente recurso seja fundamentalmente distinta da que deu origem aos acórdãos do Tribunal de Justiça de 11 de Março de 1980 e de 16 de Dezembro de 1981 nos processos 104/79 e 244/80 (9). No caso em apreço, estamos em presença de um verdadeiro litígio, e não de uma "construção" de "natureza artificial". Tão-pouco se trata de exprimir uma opinião sobre questões gerais ou hipotéticas, mas, pelo contrário, de definir concretamente a competência de duas instituições comunitárias no processo legislativo.

35. O facto de conflitos de competência interinstitucionais constituírem litígios é confirmado pelo exame dos ordenamentos jurídicos dos Estados-membros que dispõem de tribunais constitucionais. Assim, nos ordenamentos jurídicos da República Federal da Alemanha, Espanha, França e Itália são contemplados processos de recurso a um tribunal constitucional - embora se apresentem sob formas diferentes - relativos à esfera dos direitos e deveres dos órgãos do Estado. Semelhantes conflitos, por isso, não devem ser unicamente considerados como conflitos políticos, mas também como litígios jurídicos.

36. Por último, resta ainda examinar um aspecto que foi focado na audiência. Colocou-se a questão de saber qual seria o efeito decorrente de uma eventual anulação dos regulamentos em questão por acórdão do Tribunal. No que respeita ao passado, alegou-se que nenhum se produziria, uma vez que a própria Comissão havia solicitado que, nos termos do segundo parágrafo do artigo 174.° do Tratado CEE, os regulamentos anulados continuassem a produzir efeitos até à adopção dos regulamentos que os viriam substituir; da mesma forma, não poderia produzir-se nenhum efeito quanto ao futuro, porquanto a vigência desses regulamentos estava prevista apenas até 31 de Dezembro de 1986 e, deste modo, já teriam, entrementes, deixado de vigorar.

37. O pedido da recorrente no sentido de que os regulamentos impugnados continuassem a produzir efeitos materiais não permite concluir, necessariamente, pela inadmissibilidade do recurso, já que não compete de modo nenhum à recorrente julgar da aplicação do disposto no segundo parágrafo do artigo 174.° pelo Tribunal de Justiça. Por conseguinte, ainda nada se pode dizer a respeito da forma pela qual o Tribunal decidirá, nem tão-pouco se o seu acórdão terá efeito retroactivo.

38. Quanto ao significado do referido acórdão para o futuro, há que assinalar dois aspectos distintos: por um lado, é certo que se trata de anular regulamentos que já não se encontram em vigor; mas, por outro, coloca-se também a questão da ordenação da competência das instituições comunitárias. Na medida em que o Tratado CEE não prevê um processo especial para resolver os conflitos de competência entre instituições comunitárias, tais diferendos devem ser decididos no quadro de recursos de anulação ou de acções por omissão. Isto aplica-se também ao caso de conflitos de competência relativos a actos jurídicos cujo período de validade é limitado, porquanto não convém que a possibilidade de resolução do conflito de competência fique na dependência do tempo da tramitação do processo no Tribunal de Justiça.

39. Além disso, em Maio de 1986 a Comissão renunciou à apresentação de réplica, a fim de acelerar o processo, e requereu, nos termos do artigo 55.° do Regulamento Processual, que o processo fosse julgado prioritariamente. O facto de esse pedido ter sido recusado pelo presidente do Tribunal não pode ser causador de um prejuízo para a recorrente.

40. Deste modo, é admissível o recurso que tenha por fim a anulação, a posteriori, de um regulamento que já não esteja em vigor. Nesta matéria, não há praticamente distinção entre a anulação de um regulamento que já não está em vigor e a de uma decisão individual já executada. De facto, no seu acórdão de 24 de Junho de 1986 no processo 53/85 (10), o Tribunal considerou admissível um recurso de anulação de uma decisão já executada e, a este propósito, declarou que a anulação de semelhante decisão era susceptível, por si própria, de produzir efeitos jurídicos, evitando nomeadamente a reutilização do mesmo procedimento, no futuro, por parte da recorrida.

41. No caso em apreço, a recorrente tem em vista precisamente o efeito preventivo, isto é, as consequências de uma eventual decisão de anulação do Tribunal de Justiça sobre o processo legislativo que anualmente se repete.

42. O recurso é, pois, admissível.

II - Quanto ao mérito

43. Como base do recurso, a recorrente invoca dois fundamentos que, substancialmente, não se distinguem de maneira clara: violação de uma formalidade essencial, ou seja, a obrigação de fundamentação prevista no artigo 190.° do Tratado CEE, e violação do próprio Tratado, pelo facto de o recorrido não se ter baseado exclusivamente no artigo 113.° do Tratado CEE, mas, pelo menos, também no artigo 235.° do mesmo Tratado.

44. Por outras palavras, a recorrente critica o recorrido por, em todo o caso, não ter mencionado e utilizado a base jurídica correcta para fundamentar os regulamentos impugnados e, ao mesmo tempo, por ter adoptado a sua decisão através do processo objectivamente inadequado e dificultoso do artigo 235.°, em que se requer a unanimidade.

45. Na exposição que se segue, tratarei de examinar, em primeiro lugar, as disposições do Tratado CEE em que se poderiam ter fundamentado os regulamentos impugnados, para só depois me ocupar da questão de saber se a circunstância de o recorrido não ter indicado nenhum fundamento jurídico preciso nos considerandos do preâmbulo dos dois regulamentos deve ser considerado igualmente uma ilegalidade.

III - Quanto ao fundamento jurídico

46. No que diz respeito à determinação do fundamento jurídico que poderia ter sido utilizado na adopção dos regulamentos impugnados, convém recapitular brevemente o teor essencial desses regulamentos: redução de direitos aduaneiros, suspensão de direitos aduaneiros, fixação de contingentes e de limites máximos, restabelecimento dos direitos aduaneiros ao serem atingidos os limites máximos e em caso de dificuldades económicas na Comunidade, repartição e gestão dos contingentes pautais comunitários e dos limites máximos pautais comunitários. Em todas estas operações, estabelecem-se diferenças segundo o grau de desenvolvimento dos países exportadores favorecidos bem como em função das várias espécies de mercadorias, tendo-se igualmente em conta tanto a evolução das importações provenientes dos países em vias de desenvolvimento como as possibilidades de absorção do mercado comum.

47. Como possíveis fundamentos jurídicos, podem apontar-se as seguintes disposições: o artigo 28.°, o artigo 113.° e o artigo 235.° do Tratado CEE. A este respeito, há que observar que só se pode recorrer ao artigo 235.° do Tratado CEE no caso de se não dispor de nenhuma outra disposição do Tratado que seja adequada.

Quanto ao artigo 28.° do Tratado CEE

48. Nos termos do artigo 28.° do Tratado CEE, o Conselho, deliberando por unanimidade, decidirá quaisquer modificações ou suspensões autónomas dos direitos da pauta aduaneira comum.

49. Segundo o seu sentido literal, o artigo 28.° do Tratado CEE certamente abrange a redução ou a suspensão de direitos aduaneiros, assim como a fixação de contingentes e de limites máximos. A questão de saber se esta disposição pode ser invocada como fundamento jurídico dos regulamentos impugnados pode ficar em suspenso. Com efeito, não há necessidade de examinar exaustivamente o mencionado artigo, pois ambas as partes estão de acordo quanto ao facto de ele não ter sido utilizado na adopção dos regulamentos impugnados.

50. Acrescente-se que a recorrente observou, sem contestação por parte do recorrido, relativamente à distinção entre o artigo 28.° e o artigo 113.° do Tratado CEE - o qual também diz respeito à modificação de direitos aduaneiros, prevendo, contudo, um processo distinto, simplificado -, que somente uma interpretação restritiva do artigo 28.° estaria em conformidade com a prática comercial internacional. Deste modo, o artigo 28.° do Tratado CEE apenas seria aplicável na hipótese de os direitos aduaneiros serem modificados por motivos puramente internos da Comunidade, sem qualquer relação com a política comercial, como, por exemplo, no caso de a procura relativa a determinados bens não poder ser satisfeita pela oferta no plano comunitário.

Quanto ao artigo 113.° do Tratado CEE

51. O artigo 113.° do Tratado CEE dispõe no seu n.° 1:

"Findo o período de transição, a política comercial comum assentará em princípios uniformes, designadamente no que diz respeito às modificações pautais, à conclusão de acordos pautais e comerciais, à uniformização das medidas de liberalização, à política de exportação, bem como às medidas de protecção do comércio, tais como as medidas a tomar em caso de dumping e de subvenções."

52. Em conformidade com o n.° 4 do mesmo artigo, no exercício da competência que lhe é atribuída pelo artigo 113.° do Tratado CEE, o Conselho deliberará por maioria qualificada.

53. a) É incontestável que a concessão de preferências pautais cabe no conceito de "modificações pautais". O único ponto que é objecto de divergência entre as partes é o de saber se as modificações pautais deixam de pertencer ao domínio da política comercial comum no caso de, por meio delas, se prosseguirem objectivos adicionais, como, por exemplo, no domínio da política de desenvolvimento.

54. Esta é a tese do recorrido, que sustenta que o âmbito de aplicação do artigo 113.° se cinge unicamente às actuações autónomas ou convencionais da Comunidade que tenham como objectivo obter uma modificação do volume comercial ou das correntes comerciais. Em todos os demais casos, em que este objectivo não é prosseguido, ou apenas o é ao lado de outro ou de vários outros objectivos, o artigo 113.° do Tratado CEE não seria aplicável.

55. A recorrente discorda dessa tese, argumentado que todas as medidas objectivamente aptas para serem utilizadas na regulamentação do comércio internacional são do domínio da política comercial comum, independentemente dos objectivos suplementares eventualmente prosseguidos por meio delas.

56. b) Ao examinar concretamente a questão de saber se os regulamentos impugnados podem fundamentar-se no artigo 113.° do Tratado CEE, não me deterei em demasia na análise das teorias expostas pelas duas partes no processo.

57. Segundo a teoria subjectivista defendida pelo recorrido, pertencem ao domínio da política comercial todas as medidas destinadas - exclusivamente e não apenas de par com outro ou vários outros objectivos - a influir sobre o volume ou as correntes comerciais e, ao mesmo tempo, a modificar estes dois factores (tese subjectivista/finalista).

58. Pelo contrário, no entender da recorrente, tratar-se-á de uma medida de política comercial sempre que haja incidência sobre as trocas comerciais (tese objectivista/instrumentalista).

59. Estas duas teorias já foram copiosamente desenvolvidas pelas partes do presente processo nas suas observações apresentadas acerca do parecer 1/78 (11). Não tenho a intenção de entrar na discussão de aspectos teóricos, o que não seria adequado, neste caso. Como foi admitido pelas partes na audiência, ambas se servem das duas diferentes teorias em função dos seus interesses numa dada situação. Assim, a recorrente faz uso de uma teoria objectivista/instrumentalista para fundamentar a sua tese sobre a interpretação do artigo 113.° do Tratado CEE, ao passo que se vê obrigada a apelar para uma concepção subjectivista/finalista no tocante à distinção entre o artigo 113.° e o artigo 28.° do Tratado CEE. E, vice-versa, o recorrido utiliza uma teoria subjectivista/finalista para fundamentar a sua tese sobre a interpretação do artigo 113.° do Tratado CEE, quando, por outro lado, havia sido obrigado a invocar a teoria objectivista/instrumentalista para adoptar sanções comerciais (12).

60. Em primeiro lugar, é preciso admitir que o próprio Tratado CEE não define o conceito de política comercial. Entretanto, a jurisprudência e os pareceres do Tribunal de Justiça têm concretizado progressivamente esse conceito. Nos seus acórdãos de 12 de Julho de 1973, processo 8/73 (13), e de 15 de Dezembro de 1976, processo 41/76 (14), o Tribunal já reconhecia que tinha sido conferida competência à Comunidade para adoptar uma regulamentação coerente das relações comerciais exteriores, quer através de medidas unilaterais, quer por meio de acordos. Além do mais, no seu parecer 1/75, de 11 de Novembro de 1975 (15), o Tribunal especificou que o conteúdo do conceito de política comercial é o mesmo, quer se aplique ao domínio da actuação internacional de um Estado quer ao da Comunidade.

61. Com esta indicação, no entanto, não se pretende estabelecer um conceito estático de política comercial, como o que talvez existisse aquando da instituição da Comunidade Económica Europeia. Assim o reconheceu o Tribunal no seu parecer 1/78, de 4 de Outubro de 1979, ao declarar que o artigo 113.° do Tratado CEE não devia ser interpretado de modo que pudesse conduzir a limitar a política comercial comum à utilização de instrumentos destinados a influir exclusivamente sobre os aspectos tradicionais do comércio externo. Ora, uma política comercial assim compreendida estaria condenada a perder paulatinamente o seu significado (16).

62. Em vista do que ficou seguramente estabelecido, parece difícil de admitir a aplicação dos factores subjectivos como únicos critérios determinantes, tal como propõe o recorrido, ao exigir a fixação de um objectivo exclusivamente de política comercial como critério único para a aplicabilidade do artigo 113.° do Tratado CEE. Tanto as medidas unilaterais de política comercial como os acordos comerciais quase sempre estão igualmente ao serviço de outras políticas. Medidas de política comercial como os acordos comerciais ou mesmo os embargos comerciais são frequentemente ditadas também por considerações de política externa geral, e inclusivamente de política de segurança. Não existe, por isso, um motivo visível para abrir uma excepção justamente no caso de medidas de política comercial que prossigam também um objectivo de política de desenvolvimento.

63. Neste contexto, deve observar-se que o Tribunal de Justiça, no referido parecer 1/78, de 4 de Outubro de 1979, já chamava a atenção para o facto de que, após o impulso dado pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Cnuced), deixaria de ser possível levar utilmente a cabo uma política comercial comum se a Comunidade não pudesse dispor igualmente dos respectivos meios de acção mais elaborados, postos em prática com vista ao desenvolvimento do comércio internacional. Deste modo, o Tribunal de Justiça confirmou que o conceito de política comercial era susceptível de evoluir e podia ser interpretado à luz da prática comercial internacional. Desta forma, os princípios da "nova ordem económica mundial" propagados por muitos países em vias de desenvolvimento têm a possibilidade de integrar-se na política comercial comunitária.

64. Nesses princípios e objectivos fixados também se incluem, com certeza, os estatutos da Cnuced, adoptados na resolução 1995 (XIX) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 30 de Dezembro de 1964, nos termos dos quais se visa "fomentar o comércio internacional, especialmente tendo em vista a aceleração do desenvolvimento económico, e sobretudo o comércio entre países com níveis de desenvolvimento diferente, entre os países em vias de desenvolvimento, e entre países com sistemas distintos de organização económica e social". Depreende-se deste texto que o comércio com os países em vias de desenvolvimento é visto como parte do "comércio internacional". Expressões similares, designadamente "comércio mundial" e "trocas internacionais" encontram-se igualmente numa disposição do Tratado CEE referente à política comercial, ou seja, o artigo 110.°, primeiro parágrafo.

65. Conclui-se do que precede que a regulamentação do comércio com os países em vias de desenvolvimento também pode estar abrangida pelo artigo 113.° do Tratado CEE, ainda que se justifique também por razões de política de desenvolvimento.

66. Em consequência, o facto de a adopção dos regulamentos litigiosos ter eventualmente tido em vista objectivos de política de desenvolvimento não pode ser considerado um obstáculo à utilização do artigo 113.° do Tratado CEE como fundamento jurídico.

67. Além disso, ainda há um outro aspecto a considerar. Resulta da análise dos regulamentos impugnados que a sua adopção e a forma concreta pela qual foram adoptados de nenhum modo se deveram exclusivamente a considerações de política de desenvolvimento. Logo no preâmbulo desses regulamentos se declara que foi tomada em consideração igualmente a capacidade de absorção do mercado comum relativamente a determinadas mercadorias. Por outro lado, a recorrente - sem contestação por parte do recorrido - alegou que a importância "nevrálgica" de determinadas mercadorias para o mercado comum tinha sido também um factor determinante para estabelecer o alcance concreto das preferências pautais.

68. Finalmente, resta fazer uma observação de ordem absolutamente geral: conquanto, mediante a fixação das preferências pautais generalizadas para certos produtos originários de determinados países em vias de desenvolvimento, se concedesse a esses Estados, de modo temporário, uma vantagem eventualmente unilateral, esta mesma vantagem serviria também os interesses comerciais da Comunidade. Graças às vantagens comerciais que podem retirar das normas preferenciais, os países em questão vêem-se, por seu turno, colocados em situação de obter as divisas necessárias para se poderem reintroduzir no mercado mundial na qualidade de compradores. Uma vez que, muito provavelmente, a procura dos países beneficiários se estenderá igualmente a bens e serviços originários da Comunidade, dada a preponderância desta no comércio mundial (17), o sistema das preferências tem uma utilidade directa para as exportações daquela e também, por conseguinte, para as suas relações comerciais clássicas.

69. Em suma, deve observar-se, pois, que uma relação a tal ponto estreita entre o sistema de preferências pautais e a própria política comercial clássica faz com que não pareça razoável excluir o referido sistema do âmbito do artigo 113.° do Tratado CEE, contrariamente ao teor dessa mesma disposição.

70. Para concluir a minha análise do artigo 113.° do Tratado CEE, gostaria ainda de acrescentar que a "nova ordem económica mundial", postulada na Cnuced e entretanto igualmente aceite pelo GATT, a despeito do abandono da cláusula da nação mais favorecida, na verdade não constitui, de modo algum, uma novidade.

71. No preâmbulo do Tratado CEE, já se faz referência à solidariedade que existe entre a Europa e os países ultramarinos e ao desejo de assegurar o desenvolvimento da prosperidade destes, em conformidade com os princípios da Carta das Nações Unidas. A formulação concreta destas ideias encontra-se na quarta parte do Tratado CEE, que trata da associação dos países e territórios ultramarinos.

72. Não ignoro que a quarta parte do Tratado CEE carece de relevância no caso vertente e entrementes também perdeu muito do seu significado, pelo facto de os países em questão, na sua maior parte, se terem tornado independentes. Mesmo assim, refiro-me a essa parte do Tratado, porque nela se reconhece a existência de uma relação estreita entre a promoção do desenvolvimento económico e social dos mencionados países e o estabelecimento de íntimas relações económicas entre esses países e a Comunidade, no seu conjunto. No artigo 133.° do Tratado CEE, em especial, fala-se também de uma eliminação progressiva dos direitos aduaneiros, não necessariamente condicionada à reciprocidade, ou seja, de preferências pautais.

73. O facto de o próprio Tratado CEE ter já previsto e consagrado a conexão entre comércio e desenvolvimento vem reforçar a conclusão de que as medidas tomadas no quadro da política comercial, e cuja execução está prevista no artigo 113.° do Tratado CEE, são reguladas por este mesmo artigo, mesmo quando se prossigam simultaneamente objectivos de política de desenvolvimento. Assim, a concepção aqui defendida acerca da interpretação do artigo 113.° do Tratado CEE corresponde em larga medida à teoria objectivista/instrumentalista sustentada pela recorrente, somente sendo possível a sua limitação pela tese subjectivista/finalista em caso de uso manifestamente abusivo de poderes, no sentido de um détournement de pouvoir (desvio de poder). No caso em apreço, porém, nada existe que pareça apontar nessa direcção.

Quanto ao artigo 235.° do Tratado CEE

74. O artigo 235.° do Tratado CEE está assim redigido:

"Se uma acção da Comunidade for considerada necessária para atingir, no curso de funcionamento do mercado comum, um dos objectivos da Comunidade, sem que o presente Tratado tenha previsto os poderes de acção necessários para o efeito, o Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta da Comissão, e após consulta da Assembleia, adoptará as disposições adequadas."

75. Infere-se do seu próprio teor que o artigo 235.° do Tratado CEE não pode ser tomado como fundamento para o sistema das preferências pautais generalizadas, uma vez que pressupõe que não estejam previstos no Tratado CEE os poderes de acção necessários. Ora, dado que as preferências pautais podem, no entanto, basear-se no artigo 113.° do Tratado CEE, o artigo 235.° do Tratado CEE não é, portanto, aplicável.

76. Sendo assim, resta examinar, apenas a título subsidiário, para o caso de o Tribunal não estar de acordo com o meu ponto de vista relativamente ao artigo 113.° do Tratado CEE, se de alguma forma o artigo 235.° do Tratado CEE pode ser utilizado como fundamento jurídico para a introdução do sistema das preferências pautais generalizadas.

77. A aplicação do artigo 235.° exigiria o reconhecimento de que a ajuda aos países em vias de desenvolvimento deve ser considerada um dos objectivos do Tratado. Para esse efeito, poder-se-ia invocar o sétimo parágrafo do preâmbulo e a alínea k) do artigo 3.°, no caso de ser dada a estas disposições uma interpretação que ultrapasse o seu sentido literal, considerando-as referentes não apenas aos países e territórios ultramarinos anteriormente dependentes de determinados Estados-membros, mas também a todos os países em vias de desenvolvimento, incluindo os que nunca tiveram qualquer relação de dependência com nenhum Estado-membro. Isto seria um exemplo de interpretação extensiva do Tratado.

78. Uma outra condição para a aplicação do artigo 235.° seria a de não estarem previstos no Tratado os poderes de acção necessários para alcançar o objectivo visado. Para isso seria preciso interpretar o artigo 113.° no sentido de que não abarca todo o comércio internacional e que, de qualquer maneira, não diz respeito ao comércio com países em vias de desenvolvimento, com base em preferências pautais, tal como se efectua no domínio em questão no caso vertente. Isto seria um exemplo de interpretação restritiva do Tratado. Tenho fortes dúvidas de que semelhante método de interpretação - interpretação extensiva dos objectivos da Comunidade e, consequentemente, da sua competência, a par de uma interpretação restritiva dos meios e com isso da sua acção - possa ser compatível com o sistema dos Tratados CEE, que pretendiam alcançar objectivos limitados através de meios eficazes. Em todo o caso, este seria um modo inusitadamente complicado de chegar a um objectivo susceptível de ser alcançado muito mais facilmente por meio de uma interpretação objectiva do artigo 113.°, em conformidade com a anterior jurisprudência do Tribunal.

79. Em consequência, entendo que, de qualquer forma, o artigo 235.° do Tratado CEE não oferece fundamento jurídico seguro para a adopção dos regulamentos impugnados. Assim, o único efeito que se obtém com a utilização do artigo 235.° do Tratado CEE é a necessidade de a decisão do Conselho ser tomada por unanimidade, isto é, uma maior complicação do processo, sem contudo conseguir um aumento da segurança jurídica.

80. Sob este aspecto, o caso em apreço diferencia-se do processo 8/73, que o Tribunal declarou, no seu acórdão de 12 de Julho de 1973, em que se justificava recorrer ao processo previsto no artigo 235.° do Tratado CEE no interesse da segurança jurídica (18). Uma das questões consideradas nesse acórdão era a de saber se era lícito fundamentar no artigo 235.° do Tratado CEE o Regulamento n.° 803/68, de 27 de Junho de 1968, relativo ao valor aduaneiro das mercadorias (19). O Tribunal de Justiça declarou que, tendo em vista o funcionamento eficaz da união aduaneira, justificar-se-ia uma interpretação ampla dos artigos 9.°, 27.°, 28.°, 111.° e 113.° do Tratado, bem como dos poderes atribuídos por estas disposições às instituições comunitárias, a fim de permitir-lhes regular de modo coerente as relações comerciais internacionais, através de medidas unilaterais; não obstante, como já foi referido, o Conselho podia legitimamente considerar que a utilização do processo previsto no artigo 235.° se justificava no intersse da segurança jurídica, tanto mais que o regulamento em questão tinha sido adoptado no decurso do período de transição, ao passo que a política comercial não devia estruturar-se segundo princípios uniformes senão depois de terminado o período de transição, ou seja, depois de 31 de Dezembro de 1969 (20).

81. É precisamente a última parte da frase que acaba de ser mencionada que fornece a verdadeira explicação da decisão do Tribunal quanto a esse ponto específico, uma vez que, aquando da adopção do regulamento em causa, relativo ao valor aduaneiro das mercadorias, ainda não existia a pauta aduaneira comum, o período de transição ainda não tinha decorrido e o artigo 113.° era um dos artigos do Tratado CEE que ainda não era aplicável, não permitindo as restantes disposições, no entanto, que a Comunidade adoptasse a regulamentação em questão sob a forma de regulamento. Por isso, foi necessário recorrer ao artigo 235.° do Tratado CEE. De resto, convém notar que o regulamento subsequente (21), que veio substituir o regulamento de 1968, findo o período de transição, fundamentou-se já no artigo 113.° do Tratado CEE.

Violação de formalidades essenciais - Violação do artigo 190.° do Tratado CEE

82. Segundo o que até aqui foi exposto, está assente que o recorrido, nos considerandos do preâmbulo dos regulamentos impugnados, não se referiu a um fundamento jurídico concreto, mas, aquando da sua adopção, tinha presentes os artigos 113.° e 235.° do Tratado CEE. Para a sua decisão, serviu-se então do processo previsto pelo artigo 235.° do Tratado CEE e, tendo-se afastado das propostas de regulamento da recorrente, serviu-se também do processo previsto no artigo 149.° do Tratado CEE, fazendo-o, portanto, por unanimidade.

83. A referência global ao Tratado CEE na sua totalidade poderia constituir uma violação do artigo 190.° do Tratado CEE, nos termos do qual os regulamentos do Conselho devem ser fundamentados, e assim também, eventualmente, uma violação de formalidades essenciais.

84. Em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o artigo 190.° do Tratado CEE exige que sejam expostos os motivos determinantes da adopção dos actos pelas instituições, de modo a "permitir que o Tribunal proceda à sua fiscalização e que os Estados-membros bem como os nacionais interessados tomem conhecimento das condições em que as instituições comunitárias aplicaram o Tratado" (22).

85. De qualquer maneira, o alcance da obrigação de fundamentação consagrada no artigo 190.° do Tratado CEE depende da natureza do acto jurídico de que se trate. No caso de actos de âmbito de aplicação geral, estarão preenchidos os requisitos do artigo 190.° do Tratado CEE quando nos considerandos do preâmbulo sejam explicados os elementos essenciais da medida adoptada (23).

86. Muito embora isto não seja formulado explicitamente na jurisprudência, o facto de o Tribunal examinar o fundamento jurídico indicado em cada caso tem que levar, necessariamente, à conclusão de que deve ser possível, pelo menos, discernir nos considerandos do preâmbulo de um regulamento qual o fundamento jurídico em que se apoia. Os pontos de vista de ambas as partes não são muito divergentes, a esse respeito: a recorrente entende que é necessária uma referência expressa ao fundamento jurídico, enquanto, na opinião do recorrido, bastaria uma caracterização material do fundamento jurídico, quando, de facto, não haja indicação de um artigo determinado.

87. Além disso, deve observar-se que o próprio Regulamento Interno do Conselho, de 24 de Julho de 1979, dispõe, no seu artigo 11.°, que os regulamentos do Conselho devem conter a indicação das disposições por força das quais são adoptados (24).

88. Tendo em conta o acórdão do Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 1981 no processo 112/80 (25), entendo estar devidamente cumprida a obrigação de fundamentação quando o fundamento jurídico seja identificável através dos termos do preâmbulo de um regulamento.

89. Este requisito, porém, não está preenchido no preâmbulo dos dois regulamentos impugnados. Os considerandos, efectivamente, indicam de modo muito claro o que se pretende alcançar por intermédio do sistema das preferências pautais generalizadas e a forma pela qual esses sistema deve ser aplicado. No entanto, nada dizem justamente quanto à questão litigiosa no caso em apreço, relativa ao fundamento jurídico. A este propósito, deve observar-se que o fundamento jurídico deve constar dos próprios termos do preâmbulo, não bastando que seja simplesmente do conhecimento das instituições comunitárias que participam no processo legislativo. Finalmente, como foi declarado pelo Tribunal de Justiça, os nacionais dos Estados-membros eventualmente interessados devem ter também a possibilidade de fazer uma ideia das condições em que as instituições comunitárias aplicaram o Tratado. Os nacionais não têm conhecimento, contudo, das deliberações do Conselho de Ministros, porquanto estas não são públicas e as suas actas, em geral, não são acessíveis.

90. Sendo assim, será suficiente esta falta de fundamentação dos dois regulamentos para justificar a sua anulação por violação de formalidades essenciais, apesar de a recorrente não os ter impugnado directamente quanto ao fundo, podendo, por isso, ser novamente adoptados pelo recorrido, com o mesmo conteúdo, mediante procedimento correcto?

91. Em princípio, a violação da obrigação de fundamentação tem como consequência a irregularidade do acto jurídico no seu todo; nos termos do primeiro parágrafo do artigo 173.° do Tratado CEE, constitui causa de anulação, por violação de formalidades essenciais. Na minha opinião, todavia, a expressão "violação de formalidades essenciais" não deve ser entendida no sentido de que qualquer imprecisão ou insuficiência constitui uma falta de fundamentação de que resulte a anulabilidade do acto jurídico no seu todo. Nesse sentido também se deve, provavelmente, interpretar a posição tomada na audiência pelo recorrido, ao declarar que estava disposto a admitir a existência de vícios de forma, mas não a de uma violação de formalidades essenciais do processo.

92. Num caso como este, em que o acto jurídico não sofreu contestação quanto ao seu conteúdo e em que, de resto, a respectiva fundamentação é suficiente, abstraindo-se da falta de indicação do fundamento jurídico correcto, proponho que se faça a seguinte distinção.

93. Na hipótese de faltar a indicação do fundamento jurídico correcto e de tal falta ser susceptível de afectar a adopção da decisão, dever-se-á falar de violação de formalidades essenciais. Este seria o caso, em especial, quando, em consequência da invocação de uma disposição inadequada ou da omissão da indicação da disposição correcta, se adopte um processo de decisão diferente do previsto no Tratado. Com efeito, a indicação do fundamento jurídico correcto é indispensável justamente para a utilização do processo de decisão adequado.

94. Como já foi exposto acima, no n.° 32, o processo de adopção de uma medida - por unanimidade ou por maioria qualificada - tem muita influência no decorrer das reuniões do Conselho. A propósito, a utilização do processo de decisão previsto no artigo 113.° não significa, evidentemente, que a unanimidade seja proibida, mas tão somente que nenhum Estado-membro, por si só, pode obstar à adopção da decisão.

95. A Comissão declarou que os seus pontos de vista quanto ao conteúdo dos regulamentos em causa divergiam dos do Conselho. Se tivesse sido escolhido o processo de decisão adequado, ela teria tido maior oportunidade de fazer com que as suas ideias prevalecessem. Por conseguinte, o processo utilizado foi decisivo para o conteúdo da decisão. Logo, deve concluir-se tanto pela existência de violação de formalidades essenciais como de violação do Tratado CEE.

96. A invocação do artigo 235.° do Tratado CEE não foi, efectivamente, o único motivo pelo qual o Conselho deliberou por unanimidade. Para além disso, uma vez que se distanciou das propostas de regulamento da Comissão, não apenas quanto ao fundamento jurídico invocado, mas também quanto ao conteúdo, só restava ao Conselho, por força do disposto no primeiro parágrafo do artigo 149.° do Tratado CEE, a possibilidade de deliberar por unanimidade. De facto, se se tivesse invocado como fundamento jurídico o artigo 113.° do Tratado CEE, a Comissão poderia ter apresentado as suas propostas de uma forma que poderia ser aceitável para uma maioria qualificada do Conselho. Neste caso, no entanto, não haveria justificação para a utilização do processo previsto no parágrafo primeiro do artigo 149.° do Tratado CEE.

97. Sendo assim, visto não ser possível excluir que o conteúdo dos regulamentos impugnados viesse a ser diferente se o fundamento jurídico correcto tivesse sido indicado e aplicado, deverá considerar-se a indicação insuficientemente precisa do fundamento jurídico e a invocação incorrecta do artigo 235.° do Tratado CEE na adopção dos regulamentos em questão como uma violação de formalidades essenciais bem como uma violação material do Tratado CEE.

III - Quanto ao pedido de decisão no sentido de que os regulamentos continuem a produzir efeitos

98. Visto que as partes estão de acordo em considerar que não há motivo para discutir o conteúdo material dos regulamentos impugnados no decurso deste processo e que o princípio da segurança jurídica determina, especialmente no interesse dos operadores económicos e no dos países em vias de desenvolvimento beneficiados, que não sejam postos em causa os efeitos dos regulamentos, proponho que o Tribunal declare, nos termos do disposto no segundo parágrafo do artigo 174.° do Tratado CEE, que os regulamentos impugnados continuarão em vigor até à adopção pelas instituições competentes das medidas impostas pelo acórdão a proferir no presente processo.

99. Uma das questões discutidas no decurso da fase oral do processo foi a de saber se o segundo parágrafo do artigo 174.° se não limita a efeitos jurídicos particulares. A este propósito, cabe observar que nada existe nessa disposição que possa impedir o Tribunal de Justiça de considerar subsistentes os efeitos que julgue necessário manter; por outras palavras, no caso de o Tribunal entender necessário manter na totalidade os efeitos de uma medida que tenha sido anulada, o disposto no segundo parágrafo do artigo 174.°, longe de colocar-lhe obstáculos, concede-lhe poderes para tanto, o que é confirmado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, especialmente nos seus acórdãos de 5 de Junho de 1973, no processo 81/72, e de 20 de Março de 1985, no processo 264/82 (26).

C - Conclusões

100. A luz do que ficou exposto, proponho-vos que seja dado provimento ao recurso e que o recorrido seja condenado nas despesas do processo.

(*) Tradução do alemão.

(1) - JO L 352 de 30.12.1985, p. 1; EE 11 F23 p. 37.

(2) - JO L 352 de 30.12.1985, p. 107; EE 11 F23 p. 143.

(3) - JO L 352 de 30.12.1985, p. 192; EE 11 F23 p. 228.

(4) - "Aid can be no substitute for trade."

(5) - Regulamentos n.os 1308/71 a 1314/71 (JO L 142 de 21.6.71, p. 1 e seguintes).

(6) - Acórdão de 10 de Fevereiro de 1983 no processo 230/81, Grão-Ducado do Luxemburgo/Parlamento Europeu, Recueil, p. 255, mais particularmente p. 284.

(7) - Acórdão de 23 de Abril de 1986 no processo 294/83, Partido Ecologista "Les Verts"/Parlamento Europeu, Colect., p. 1339, n.° 23.

(8) - Acórdão de 23 de Abril de 1986, ibidem, n.° 24, e acórdão de 31 de Março de 1971 no processo 22/70, Comissão/Conselho, Recueil, p. 263, mais particularmente p. 277.

(9) - Acórdão de 11 de Março de 1980 no processo 104/79, Foglia/Novello, Recueil, p. 745, e acórdão de 16 de Dezembro de 1981 no processo 244/80, Foglia/Novello, Recueil, p. 3405.

(10) - Acórdão de 24 de Junho de 1986 no processo 53/85, AKZO Chemie BV/Comissão das Comunidades Europeias, Colect., p. 1965 a p. 1990, n.° 21.

(11) - Parecer de 4 de Outubro de 1979, emitido nos termos do n.° 1, segundo parágrafo, do artigo 228.° do Tratado CEE, Recueil, p. 2871.

(12) - Ver Regulamento n.° 596/82 do Conselho, de 15 de Março de 1982, que modifica o regime de importação de certos produtos originários da União Soviética (JO 1982, L 72, p. 15); Regulamento n.° 877/82 do Conselho, de 16 de Abril de 1982, que suspende a importação de todos os produtos originários da Argentina (JO 1982, L 102, p. 1).

(13) - Acórdão de 12 de Julho de 1973 no processo 8/73, Hauptzollamt Bremerhafen/Massey-Ferguson GmbH, Recueil, p. 897.

(14) - Acórdão de 15 de Dezembro de 1976 no processo 41/76, processos-crime, especialmente Suzanne Donckerwolke e Henri Schou/Procureur de la République no Tribunal de grande instance de Lille e directeur général des douanes et droits indirects, Recueil, p. 1921.

(15) - Parecer emitido em 11 de Novembro de 1975, nos termos do n.° 1, segundo parágrafo, do artigo 228.° do Tratado, Recueil, p. 1355.

(16) - Loc. cit., n.° 43, alínea f).

(17) - Ver Eurostat, Estatísticas de base da Comunidade, 23.a edição, p. 35.

(18) - Loc. cit., p. 907.

(19) - JO L 148 de 28.6.1986, p. 6.

(20) - Artigo 119.°, n.° 1, do Tratado CEE.

(21) - Regulamento n.° 1224/80 do Conselho, de 28 de Maio de 1980 (JO L 134 de 31.5.1980, p. 10; EE 02 F6 p. 224).

(22) - Ver acórdão de 7 de Julho de 1981 no processo 158/80, Rewe Handelsgesellschaft Nord mbH e Rewe Markt Steffen/Hauptzollamt Kiel, Recueil, p. 1805, mais particularmente p. 1833.

(23) - Ver acórdão de 29 de Fevereiro de 1984 no processo 37/83, Rewe Zentrale/Landwirtschaftskammer Rheinland, Recueil, p. 1229.

(24) - JO L 268 de 25.10.1979, p. 1; EE 01 F3 p. 12.

(25) - Acórdão de 5 de Maio de 1981 no processo 112/80, Anton Duerbeck/Hauptzollamt Frankfurt am Main-Flughafen, Recueil, p. 1095, mais particularmente p. 1113.

(26) - Acórdão de 5 de Junho de 1973 no processo 81/72, Comissão/Conselho, Recueil, p. 575, e acórdão de 20 de Março de 1985 no processo 264/82, Timex e outros/Conselho e Comissão, Recueil, p. 851).