RELATÓRIO PARA AUDIÊNCIA

apresentado no processo 148/85 ( *1 )

I — Factos e tramitação processual

1.

A indústria de moagem é objecto em França de uma regulamentação profissional que se caracteriza pela atribuição a cada empresa moageira de um contingente de moagem anual para o trigo mole a transformar em farinha destinada ao consumo humano interno. Esta regulamentação encontra-se contida, designadamente, no decreto de 24 de Abril de 1936, várias vezes alterado, que codificou textos legislativos relativos à organização e protecção do mercado do trigo.

Aquando da adopção dessa regulamentação, foi atribuído a cada empresa um contingente anual de moagem fixado em conformidade com a portaria de 27 de Junho de 1938, com as modificações nela introduzidas, relativa à contingentação das empresas moageiras e à organização profissional da indústria de moagem que dispõe que «o número de quintais de trigo que cada moagem está autorizada a moer anualmente para o consumo interno é igual à média aritmética da sua moagem efectiva máxima (não estando compreendidos os trigos em regime de admissão temporária) verificada nos anos de 1927 a 1935, e a capacidade anual de moagem da fábrica calculada sobre trezentos dias por ano, constituindo este último factor, em qualquer caso, um máximo».

O aumento dessa capacidade de moagem das fábricas apens pode ocorrer ou pelo agrupamento de empresas ou pela aquisição de direitos de moagem (artigos 19.° a 19.° ter do decreto de 24 de Abril de 1936, alterados pelos decretos 61-1033, de 11 de Setembro de 1961, e 77-1416, de 21 de Dezembro de 1977). Uma fábrica pode, assim, aumentar o seu contingente por agrupamento de fábricas (utilização dos contingentes e, sendo caso disso, dos materiais de outras fábricas) até 750000 quintais, na condição de cada uma delas, nos dois anos que antecederam a operação, ter procedido à moagem de 30 % do seu contingente, e sob reserva de um abatimento de 5 % ou de 10 % à soma dos dois contingentes reunidos, consoante a utilização efectiva dos contingentes. Um contingente pode, além disso, ser total ou parcialmente transformado em direitos de moagem negociáveis, desligados da fábrica, que podem ser vendidos a qualquer industrial moageiro que pretenda aumentar as quantidades que está autorizado a moer; essa transformação de um contingente em direitos de moagem é irreversível e sofre um abatimento inversamente proporcional à moagem realmente efectuada pela fábrica em causa durante o período de referência de dois anos.

No caso de ser excedido o contingente de moagem fixado por essa regulamentação, está prevista uma multa de 100 a 5000 FF por quintal de trigo irregularmente moído e a apreensão das quantidades indevidamente moídas.

2.

Segundo consta de dois autos levantados em 19 de Setembro de 1983 e 11 de Maio de 1984 pela direction des services fiscaux de Macon, a SA Minoterie Forest, Moulin de Courreau, de Bray, Cluny, dispunha em 1982 de um contingente de moagem de trigo de 237985 quintais e tinha procedido durante esse ano à moagem de 331779, ou seja, excedendo o contingente em 93794 quintais; em 1983, dispondo do mesmo contingente, moeu 371028 quintais, excedendo o contingente em 133043 quintais.

Em virtude desses factos, a SA Minoterie Forest e Marie-Louise Forest (em solteira, Sangoy), sua presidente directora-geral, foram acusadas, perante o tribunal de grande instance de Macon, pela direction generale des impôts, que solicitou a sua condenação em multas fiscais nos termos da regulamentação atrás mencionada e a apreensão das quantidades moídas em excesso, avaliadas, respectivamente, em 11724250 FF e 14779746 FF.

3.

As arguidas não contestaram o facto de o contingente ter sido excedido, mas contestam a validade da regulamentação francesa em questão, alegando, designadamente, que ela seria incompatível com o artigo 85.° do Tratado CEE e com o Regulamento n.° 2727/75 do Conselho, de 29 de Outubro de 1975, que estabelece a organização comum de mercado no sector dos cereais (JO L 281, p. 1; EE 03 F9 p. 3).

O tribunal de grande instance de Mâcon considerou que, no que respeita aos produtos agrícolas que, como o trigo, são objecto de uma organização comunitária de mercado, as regras de concorrência apenas seriam aplicáveis, em conformidade com o disposto no artigo 42.° do Tratado, na medida do que fosse determinado pelo Conselho, nos termos do artigo 40.° Fazendo referência aos acórdãos do Tribunal de 18 de Maio de 1977 (van den Hazel, 111/76, Recueil 1977, p. 901) e de 30 de Outubro de 1974 (van Haaster, 190/73, Recueil 1974, p. 1123), considerou, todavia, que se colocava a questão de saber se a regulamentação nacional em causa era de natureza a derrogar ou a prejudicar o funcionamento da organização comunitária de mercado ou a afectar a liberdade das trocas intracomunitárias e se, sob este prisma, seria compatível com o direito comunitário.

Por decisão de 17 de Abril de 1985, o tribunal de grande instance de Mâcon decidiu, assim, ao abrigo do artigo 177.° do Tratado CEE, submeter ao Tribunal a seguinte questão prejudicial:

«A regulamentação francesa contida no decreto de 24 de Abril de 1936, modificado, nomeadamente, pelo Decreto 61-1033 de 11 de Setembro de 1961, que institui o contingente de moagem de trigo e limita as capacidades de produção das fábricas de moagem, deve ser considerada incompatível com o Regulamento n.° 2727/75 do Conselho, que estabelece a organização comum de mercado no sector dos cereais ou ainda com as disposições dos artigos 30.° a 37.° do Tratado CEE?»

4.

A decisão de reenvio foi registada na Secretaria do Tribunal em 17 de Maio de 1985.

Em conformidade com o disposto no artigo 20.° do Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça da CEE, a Sr.a Forest e a SA Minoterie Forest, patrocinadas por Dominique Voillemot, advogado no foro de Paris, o Governo da República Francesa, representado por Régis de Gouttes, na qualidade de agente, e a Comissão das Comunidades Europeias, representada por Christine Bérardis-Kayser, membro do Serviço Jurídico da Comissão, apresentaram observações escritas.

Com base no relatório do juiz relator e ouvido o advogado-geral, o Tribunal decidiu dar início à fase oral do processo e atribuiu o processo à Quinta Secção, em conformidade com o disposto no artigo 95.°, n.° 1, do Regulamento Processual. Convidou o Governo francês e a Comissão a responderem por escrito a algumas perguntas antes da audiência.

II — Observações escritas

1. Observações da Sr.a Forest e da SA Minoterie Forest

A propósito do contexto econòmico do processo e da regulamentação nacional de contingentação das fábricas de moagem em França, criada para ajudar a indústria de moagem, excedentária na época, a sair da grande crise económica, as arguidas no processo principal sublinham que essa regulamentação resulta de uma colaboração estreita entre os poderes públicos e a indústria de moagem, organizada nos termos do artigo 20.° do decreto de 24 de Abril de 1936, sob a forma de um comité profissional da indústria moageira que, segundo as arguidas, exerce uma influência preponderante nas decisões dos poderes públicos.

Inicialmente, em 1936, a regulamentação, segundo as arguidas, bloqueou a situação das moagens de tipo industrial, que compravam o trigo e revendiam os produtos moídos, como acontecia entre 1929 e 1936. Em contrapartida, as pequenas fábricas, que normalmente trabalhavam contra remuneração em espécie e cuja capacidade não ultrapassava os 3000 quintais anuais podiam proceder a moagem até esse volume sem contingentação. Em 1953, este regime foi atenuado, ao ser introduzida a possibilidade de transformar um contingente em direitos de moagem transmissíveis. Em 1962, foi criada a possibilidade de ceder temporariamente os direitos de moagem. Assim, criou-se, um mercado para a venda e para a cessão temporária dos direitos de moagem: as empresas dinâmicas aumentaram a sua capacidade, outras beneficiaram de um «rendimento de situação», resultante de contingentes atribuídos 25 anos antes. Em 1977, a possibilidade de cessão temporária dos direitos de moagem foi progressivamente suprimida, o que, segundo as arguidas, teve consequências prejudiciais para as empresas menos importantes que apenas tinham podido desenvolver a sua produção graças à cedência dos direitos de moagem. Com efeito, dado que a oferta dos direitos de moagem no mercado era insuficiente, essas empresas viram-se na contingência ou de ultrapassar o seu contingente ou de reduzir a sua produção.

No entender das arguidas, a manutenção do sistema de contingentação não se justifica por razões de saudável política económica, devendo-se antes ao apego dos operadores a um sistema corporativo e proteccionista. Essa regulamentação antiquada e nociva impede, em sua opinião, uma adaptação flexível e espontânea do sector às necessidades económicas. No contexto de um sector autogerido pela profissão, como é o caso da indústria de moagem, uma tal regulamentação tem como resultado comportamentos concertados e abusivos por parte de certas empresas.

As arguidas defendem que a legislação em questão constitui uma medida de efeito equivalente a restrições quantitativas à exportação, contrária ao artigo 30. ° do Tratado CEE. Trata-se de uma limitação da produção na fase da indústria de transformação, aplicando-se especificamente às moagens de tipo industrial que compram o trigo aos agricultores. A contingentação, afirmam as arguidas, limita a capacidade das fábricas de comprar trigo no mercado com vista à sua moagem, afectando, assim, directamente o comércio dos cereais. Essa restrição aplica-se a todos os cereais, sem distinção do local em que foram produzidos, incluindo os cereais importados de outros Es-tados-membros. Afecta, portanto, as importações de cereais para França, ao mesmo tempo que deixa intactas as possibilidades das moagens de exportarem a sua produção. Uma limitação quantitativa da produção, imposta por um Estado aos seus produtores, afecta necessariamente o comércio e, portanto, pelo menos potencialmente, as trocas entre Estados-membros, através da limitação da compra de matérias-primas a montante e da restrição da oferta a jusante. O Tribunal reconheceu esse princípio nos seus acórdãos de 30 de Outubro de 1974 (van Haaster, 190/73, Recueil 1974, p. 1123) e de 18 de Maio de 1977 (van den Hazel, 111/76, Recueil 1977, p. 901).

As arguidas são de opinião de que a regulamentação em causa é igualmente contrária às regras da organização comum de mercado e às disposições do Regulamento n.° 2727/75. Dado que o Regulamento n.° 2727/75 não contém normas expressas sobre a contingentação ou sobre a limitação da produção das moagens, há que apreciar se os Estados-membros mantêm uma competência residual para instituir esse sistema num domínio abrangido por uma organização comum de mercado. Dos acórdãos do Tribunal de 7 de Fevereiro de 1984 (Jongeneel Kaas, 237/82, Recueil, p. 483), de 22 de Junho de 1979 (Pigs and Bacon Commission/Mac Carren, 177/78, Recueil 1979, p. 2161) e de 13 de Março de 1984 (Prantl, 16/83, Recueil 1984, p. 1299) pode extrair-se o princípio de que existe uma competência residual para adoptar ou manter regulamentações nacionais, desde que os diplomas comunitários não tenham expressamente reservado à Comunidade a matéria em questão e essa competência apenas possa ser exercida desde que a regulamentação nacional não seja contrária às normas do Tratado e aos princípios da organização comum de mercado, não entrave o bom funcionamento dessa organização e se oriente no sentido prosseguido pela mesma organização. Estes requisitos, segundo as arguidas, não se encontram preenchidos no caso vertente.

Em seu entender, a regulamentação francesa em questão não contribui em nada para a realização dos objectivos enunciados no artigo 39.° do Tratado: a contingentação não contribui nem para incrementar a produtividade das explorações, nem para aumentar o rendimento dos empresários, nem para preservar a estabilidade dos mercados. Uma tal medida dirigista, que sujeita as empresas a uma restrição quantitativa autoritária da liberdade de produzir, constitui um travão ao desenvolvimento das actividades, ao dinamismo das empresas e à atribuição óptima dos recursos no sistema que assenta no mercado livre e no jogo normal da concorrência, que está na base do Tratado CEE. Não se pode, por exemplo, sustentar, afirmam as arguidas, que a regulamentação em causa tenha como objectivo evitar um desaparecimento demasiado rápido das pequenas moagens: a política das organizações profissionais, dominadas pelas grandes empresas, é a de encorajar a transferência das capacidades das pequenas moagens para as empresas mais importantes: ora, os números mostram que não existe qualquer situação de concentração excessiva.

A regulamentação francesa é ainda, segundo as recorrentes, contrária aos princípios da organização comum dos mercados decorrente do artigo 40.° do Tratado CEE, a saber, ao princípio da livre circulação no mercado comum e ao princípio de um mercado aberto ao qual qualquer produtor tem livre acesso e que os Estados-membros não podem pôr em causa (acórdãos de 28 de Novembro de 1978, Pigs Marketing Board, 83/78, Recueil 1978, p. 2347; de 26 de Junho de 1979, Pigs and Bacon Commission, 177/78, Recueil 1979, p. 2161; de 26 de Fevereiro de 1980, Vriend, 94/79, Recueil 1980, p. 327). Finalmente, é contrária à proibição de discriminação entre produtores e consumidores da Comunidade consagrada pelo artigo 40.°, n.° 3, do Tratado, uma vez que coloca as empresas francesas de moagem numa situação menos favorável que as dos outras Estados-membros, e impõe uma discriminação dos industriais moageiros franceses mais dinâmicos.

As arguidas afirmam ainda que a contingentação é também contrária ao regime de preços instituído pelo Regulamento n.° 2727/75, segundo o qual os operadores económicos podem vender e comprar livremente, a preços livremente formados, cujo nível apenas é influenciado pelos preços indicativos, de intervenção e mínimos fixados a nível comunitário, no quadro dos mecanismos de intervenção. Este livre jogo da oferta e da procura no mercado do trigo é afectado pela limitação quantitativa da produção das fábricas e pelo consequente efeito sobre a procura de trigo. A contingentação afecta, além disso, as trocas, tanto com os Estados-membros como com os países terceiros, contrariando o disposto no artigo 18.°, n.° 2, do Regulamento n.° 2727/75.

Embora o órgão jurisdicional de reenvio não tenha explanado o seu raciocínio sobre o problema da compatibilidade da regulamentação em causa com as regras de concorrência do Tratado, as arguidas consideram desejável que o Tribunal se pronuncie quanto à aplicação dos artigos 85.°, n.° 1, 90.°, n.° 1, bem como dos artigos 3.°, alínea f), e 5.° do Tratado CEE.

Afirmam as arguidas que, contrariamente à leitura que o órgão jurisdicional nacional parece ter feito do artigo 42.° do Tratado CEE, as regras de concorrência são aplicáveis no caso presente, por força do Regulamento n.° 26 do Conselho, de 4 de Abril de 1962, relativo à aplicação de determinadas regras de concorrência à produção e ao comércio de produtos agrícolas (JO 1962, p. 993; EE 08 FI p. 29). Os requisitos para a derrogação prevista no artigo 2.° desse regulamento não se encontram reunidos, uma vez que não existe, para os cereais, uma organização nacional de mercado, e a contingentação é contrária aos objectivos enunciados no artigo 39.° do Tratado. Por força do artigo 90.°, n.° 1, do Tratado CEE, os Estados-membros não podem eximir-se ao cumprimento das regras de concorrência refugiando-se no comportamento aparentemente espontâneo de empresas que possuem um estatuto ou prerrogativas especiais. Quaisquer medidas estatais que obriguem as empresas a adoptar um comportamento contrário ao disposto nos artigos 85.° e 86.° caem sob o alçada do artigo 90.°, o mesmo acontecendo com as medidas que, embora não impondo um comportamento anticoncorrencial, o favorecem ou permitem. Isto decorre igualmente dos artigos 3.°, alínea f),e 5.° do Tratado.

Segundo as arguidas, a regulamentação francesa em questão deve ser entendida como uma repartição do mercado francês entre os diversos produtores, sendo atribuída a cada um uma parte do mercado em causa. Trata-se de restrições expressamente mencionadas nas alíneas b) e c) do artigo 85.°, n.° 1. Além disso, as arguidas entendem que a referida regulamentação é de natureza a incitar os titulares dos contingentes e dos direitos de moagem a adoptar comportamentos anticoncorrenciais, ao encorajar as concertações no seio da indústria de moagem a fim de condicionar a evolução da estrutura de produção e influenciar a repartição dos contingentes e dos direitos de moagem. Assim, algumas empresas teriam feito acordos para recusar a venda dos direitos de moagem não explorados a empresas que deles necessitavam após ter deixado de existir, em 1983, o regime da cessão temporária; aparentemente, uma parte dos industriais de moagem teria criado um organismo, o CASIM, com o objectivo de «congelar» uma parte importante dos direitos de moagem disponíveis, provocando, dessa forma, um aumento importante dos preços desses direitos. Em virtude da estrutura existente, os industriais de moagem desempenham um papel importante na adopção e na gestão das medidas em causa, que resultam de acordos celebrados no seio de organismos profissionais. No acórdão de 30 de Janeiro de 1985 (Bureau national interprofessionnel du cognac, 123/83, Recueil 1985, p. 391), o Tribunal considerou que um sistema idêntico era incompatível com o artigo 85.°, n.° 1.

Uma medida como a regulamentação em causa afecta o comercio entre Estados-membros, dado que é de natureza a consolidar compartimentações do territorio nacional. Além disso, acrescentam as arguidas, um industrial moageiro nacional de outro Estado-membro, se pretender penetrar no mercado francês nas fases de produção e comercialização, é obrigado a adquirir direitos de moagem. Ora, o volume global dos direitos de moagem e o modo como eles são repartidos e explorados não permitem garantir que esse operador possa obter os direitos de moagem necessários, o que constitui um entrave ao comércio entre os Esta-dos-membros.

Em conclusão, as arguidas no processo principal consideram que a regulamentação francesa em causa é simultaneamente contrária ao artigo 30.° do Tratado CEE, às regras comunitárias em matéria de organizações comuns de mercado no sector agrícola e, mais especialmente, ao Regulamento n.° 2727/75, bem como às regras de concorrência do Tratado CEE, em especial o artigo 85.°, n.° 1.

2. Observações do Governo da República Francesa

O Governo francês descreve, primeiramente, a regulamentação francesa em matéria de contingentes de moagem e respectiva execução. Salienta que existem sempre quantidades suplementares de contingentes ou de direitos de moagem à disposição de um industrial moageiro cuja clientela no mercado interno tenha aumentado. As transacções de direitos de moagem são operações habituais e banais. Dada a existência de um excedente de contingentes e de direitos de moagem e o reduzido custo da sua aquisição, o sistema não constituiria um travão ao desenvolvimento da produção nacional ou à expansão da actividade de uma fábrica. Os contingentes e os direitos de moagem totalizaram, em 1984, 55 milhões de quintais, ao passo que o consumo interno foi de apenas 43 milhões de quintais. De uma quantidade total de 313 milhões de quintais de trigo disponível em França em 1983/1984, a indústria moageira apenas utilizou 14% (ou seja, 43 milhões de quintais) para o mercado do consumo humano interno, sendo 18 milhões de quintais utilizados pela indústria moageira de exportação, 165 milhões de quintais para a exportação de trigo não transformado e 45 milhões de quintais para a alimentação animal. O interesse do sistema seria de ordem social e econômica, uma vez que o contingente constitui um capital para a empresa e permitiria a reestruturação progressiva num contexto de crise de mercados causada pela diminuição do consumo de pão.

Segundo o Governo francês, o sistema em questão não estabelece propriamente uma contingentação da produção, uma vez que esta, na realidade, não é limitada em quantidade, dado que a totalidade das autorizações para moagem é largamente superior às necessidades do consumo nacional e os direitos de moagem são rapidamente amortizados pelo comprador. Portanto, trata-se simplesmente de uma forma de organização da indústria de moagem e não de uma limitação à produção de um produto sujeito à organização comum de mercado.

O regime de preços e de intervenção da organização comum de mercado no sector dos cereais, criada pelo Regulamento n.° 2727/75, abrange unicamente os cereais em grão; a farinha apenas está sujeita ao regime das trocas com os países terceiros, havendo a obrigação de apresentar um certificado para as importações e exportações, bem como direitos niveladores na importação e restituições à exportação. Ora, o sistema francês de contingentação das fábricas de moagem não afecta as trocas de farinhas destinadas a países terceiros, tal como não afecta, aliás, as trocas com outros Estados-membros, uma vez que apenas incide sobre a produção de farinha destinada ao consumo humano interno. Diversamente do que se passava no processo «van Haaster» (190/73, acórdão de 30 de Outubro de 1974, Recueil 1974, p. 1123), não existe limitação da produção, mas unicamente uma contingentação da produção de farinhas destinadas ao consumo humano nacional. Do mesmo modo, o presente processo não apresenta, no entender do Governo francês, qualquer semelhança com o processo «van den Hazel» (111/76, acórdão de 18 de Maio de 1977, Recueil 1977, p. 901), no qual a inexistência de medidas comunitárias de intervenção resultava de uma opção deliberada de política económica. A contingentação em questão não tem repercussões no regime de preços e de intervenções comunitárias, uma vez que as quantidades autorizadas ultrapassam largamente as necessidades do consumo, não existindo, portanto, perturbações no escoamento do trigo no mercado nacional. Não se verificam igualmente perturbações regionais ou temporárias, uma vez que os direitos de moagem são ainda vendidos no conjunto do território nacional, podendo os industriais de moagem cobrir os seus excessos de produção até ao fim do ano. Finalmente, o regime das trocas de trigo com países terceiros não é afectado, uma vez que a legislação não se opõe ao fabrico de farinha «fora do contingente» com trigos importados.

O artigo 37.° do Tratado CEE é, no entender do Governo francês, inaplicável, dado não existir um «monopólio nacional de natureza comercial». Uma vez que a regulamentação não institui qualquer restrição quantitativa, nem às importações nem às exportações, tanto para a farinha como para o trigo, não é possível alegar qualquer efeito, ainda que indirecto ou potencial, na acepção dos artigos 30.° a 36.° do Tratado.

Em conclusão, o Governo francês propõe que se responda que o Regulamento n.° 2727/75 e os artigos 30.° a 37.° do Tratado CEE não proíbem a manutenção de uma regulamentação nacional de contingentacão para as fábricas de moagem, quando esse regime não implique limitações à produção de farinha e apenas abranja a farinha destinada ao consumo humano nacional, e não tenha influência nas importações ou exportações.

3. Observações da Comissão

A Comissão assinala que a farinha de trigo é regulada pela organização comum de mercado, por força do artigo 1.°, alínea c), do Regulamento n.° 2727/75. Essa organização assenta num mecanismo de preços e de intervenção para os cereais de base. Nada disso acontece relativamente à farinha, para a qual apenas estão previstas certas medidas respeitantes às trocas com países terceiros: fixação de um preço-limiar, apresentação de um certificado de importação ou de exportação, cobrança de um direito nivelador na importação, possibilidade de uma restituição à exportação, possibilidade de aplicar a cláusula de salvaguarda quando as trocas com países terceiros ameacem fazer perigar os objectivos do artigo 39.° do Tratado.

A regulamentação francesa de contingentação aplica-se apenas à farinha produzida para fazer face às necessidades do consumo humano interno, pelo que não abrange a exportação ou a importação de farinha. As trocas intracomunitárias não podem, portanto, ser afectadas na acepção dos artigos 30.o a 34.o do Tratado, e ainda menos se se atender a que a França é o país produtor e, portanto, exportador de cereais por excelência.

A montante da cadeia de produção, ao nível do próprio trigo mole, segundo os dados em poder da Comissão, a regulamentação francesa não tem nem como objectivo nem como consequência limitar as possibilidades de escoamento dos cereais ou aumentar as reservas de intervenção em detrimento da organização comum de mercado. O total dos direitos de moagem é superior ao consumo nacional (5,6 milhões de toneladas de contingentes e 4,2 milhões de toneladas de produção). Portanto, a contingentação não provoca a rarefacção da produção de farinha, mas antes tenta adaptá-la ao consumo. De resto, não foi comunicado à Comissão qualquer problema de abastecimento do mercado. Cada industrial moageiro tem a possibilidade de comprar direitos de moagem a outros industriais. O seu preço de aquisição situa-se actualmente nos 24 FF por quintal de trigo, para um preço de venda da farinha de cerca de 285 FF por quintal. Dado que a aquisição é definitiva, o seu valor é rapidamente amortizável. A regulamentação francesa não é, por conseguinte, incompatível com a organização de mercado.

Não é igualmente contrária aos objectivos do artigo 39. ° do Tratado. Trata-se de uma medida estrutural que tem como objectivo absorver o excesso de capacidade de moagem e limitar as concentrações de fábricas de moagem, permitindo, designadamente, a manutenção das pequenas empresas mais perto do produtor e do consumidor.

Uma legislação desta natureza, estabelecendo a organização a nível nacional da indústria moageira, apenas se pode manter enquanto o legislador comunitário não adoptar medidas comuns para todos os Es-tados-membros. Como afirmou o Tribunal no seu acórdão de 7 de Fevereiro de 1984 (Jongeneel Kaas, 237/82, Recueil 1984, p. 483), não se pode inferir do silencio da regulamentação comunitaria que a Comunidade tenha decidido impor aos Estados-membros o respeito de um sistema de liberdade absoluta da produção. De facto, uma proposta da Comissão relativa ao saneamento do mercado dos produtos resultantes da moagem dos cereais panificáveis (JO 124, de 24. 6. 1967, p. 2442) não chegou a ser aprovada pelo Conselho. Não se pode, por conseguinte, impedir um Estado-membro de manter uma legislação nacional de reestruturação ordenada da indústria de moagens.

Em conclusão, a Comissão propõe que se responda que o Regulamento n.° 2727/75 e os artigos 30.° e seguintes do Tratado devem ser interpretados no sentido de que não excluem uma regulamentação nacional que regule a capacidade de moagem do trigo das empresas, desde que essa regulamentação não tenha um efeito restritivo sobre a produção de trigo, não afecte o comércio de farinha entre Estados-membros ou com os países terceiros e, além disso, não se oponha (por exemplo, pela severidade excessiva das sanções) aos objectivos da Política Agrícola Comum.

III — Respostas às perguntas formuladas pelo Tribunal

1. Respostas do Governo francês

a) Quanto ao artigo 2. °, n. ° 1, do Regulamento n. ° 26

No entender do Governo francês, o Regulamento n.° 26 tem por objecto, em conformidade com o artigo 42.° do Tratado, fixar as condições de aplicação das regras de concorrência do Tratado aos produtos agrícolas. O princípio, segundo o artigo 1.°, é o da aplicabilidade dessas regras, que pode ser afastada por acordos que façam parte de uma organização de mercado ou que sejam necessários para a realização dos objectivos do artigo 39.° do Tratado.

Todavia, enquanto regime resultante de uma regulamentação pública e não de um acordo entre empresas, o sistema de contingentação em questão não é, enquanto tal, susceptível de ser apreciado no quadro do Regulamento n.° 26. Além disso, não afecta o comércio entre Estados-membros e não é restritivo da concorrência, uma vez que não limita a produção.

Por outro lado, o sistema não faz parte de uma organização nacional de mercado (que não existe), mas é necessário para a realização dos objectivos do artigo 39.° do Tratado. A este propósito, o Governo francês explica o objectivo por si prosseguido de reestruturação do sector da moagem através da absorção da capacidade excedentária de produção, no respeito pelas regras económicas. O sistema alcançou o resultado, compatível com o artigo 39.°, n.° 1, alínea a), de manter um grande número de pequenas e médias unidades de produção repartidas de forma equilibrada pelo território, ao mesmo tempo que adaptou a capacidade de produção à procura, permitindo um bom abastecimento da população.

b) Quanto à situação da concorrência no mercado das transacções dos direitos de moagem

Os «direitos de moagem» negociáveis sob a sua forma actual criam um sistema flexível: a detenção desses direitos não fornece qualquer garantia de conquista de uma parte do mercado; o industrial moageiro pode cobrir posteriormente, no final do ano, a sua produção em excesso pela compra de direitos de moagem.

As cessões de direitos de moagem efec-tuam-se através de transacções livremente acordadas entre industriais moageiros, que apenas têm de ser comunicadas ao Serviço Nacional Interprofissional dos Cereais para fins estatísticos. Os dados estatísticos sobre o mercado dos direitos de moagem mostram que se trata de um mercado aberto, activo e acessível a todos. O Governo francês não teve conhecimento de comportamentos de «retenção de direitos de moagem». Se se verificassem tais comportamentos, e resultassem de uma concertação entre vendedores, caberia a quem deles se queixa actuar com base no direito francês da concorrência ou, eventualmente, no artigo 85.° do Tratado.

A situação específica da empresa Forest pode explicar-se pelo facto de pertencer a um agrupamento cujos membros pretendem obter o restabelecimento do sistema de cessão temporária dos direitos e recusam a obtenção de direitos fora do agrupamento ou tentam obtê-los a preço inferior ao preço de mercado.

c) Quanto ao efeito útil das regras de concorrência

No que toca a questão de saber se uma regulamentação como a que está em causa é susceptível de prejudicar o efeito útil das regras de concorrência, ao tornar possível ou ao favorecer a celebração de acordos entre industriais moageiros para a repartição do mercado, o Governo francês sublinha que o sistema resulta de uma regulamentação pública e não de acordos celebrados no seio de organismos profissionais. As regras de concorrência dizem respeito ao comportamento das empresas e não às medidas legislativas ou regulamentares dos Estados-membros. A regulamentação em causa não tem como objectivo nem como efeito possibilitar ou favorecer comportamentos proibidos pelo artigo 85.° do Tratado. O regime de contingentação, pelo contrário, contribuiu para conservar uma estrutura desfavorável a acordos, pela manutenção de um número suficiente de fábricas de moagem.

2. Respostas da Comissão

a) Quanto ao artigo 2.°, n.° 1, do Regulamento n.° 26

A apreciação dos requisitos desta disposição deve ser feita relativamente a concertações. Ora, a legislação em questão não tem como objecto as concertações. Os únicos acordos que prevê — as transacções de direitos de moagem, a um preço livremente acordado — não restringem a concorrência, mas, pelo contrário, atenuam as limitações resultantes da contingentação legal da produção.

b) Quanto à situação de concorrência no mercado dos direitos de moagem

A Comissão não tem informações acerca da existência de acordos ou abusos nesse mercado.

No plano jurídico, os acordos entre industriais moageiros destinados a limitar a liberdade de negociação individual são, evidentemente, susceptíveis de restringir a concorrência. Do mesmo modo, o facto de uma fábrica detentora de uma posição dominante se recusar a vender a determinados compradores ou praticar condições discriminatórias pode ser contrário ao artigo 86.°

c) Quanto ao efeito útil das regras de concorrência

Uma legislação como a que está em causa não é, segundo a Comissão, contrária ao efeito útil das regras de concorrência. Os artigos 85.° e 86.° do Tratado proíbem as empresas de adoptarem certos comportamentos. A obrigação de lealdade a que se encontram sujeitos os Estados-membros im-põe-lhes que adoptem uma atitude negativa relativamente a tais comportamentos; não devem criar incertezas quanto à proibição desses comportamentos nem devem, impondo ou encorajando um comportamento proibido, tentar contrariar os imperativos comunitários.

No caso vertente, não se impõe, autoriza ou encoraja qualquer prática concertada; pelo contrário, eventuais concertações entre vendedores ou compradores perturbariam o bom funcionamento da regulamentação, que, portanto, só teria a ganhar com uma aplicação rigorosa das regras de concorrência (nacionais ou comunitárias).

Para pôr em causa o efeito útil das regras de concorrência, é necessário que uma regulamentação torne juridicamente possível ou legitime comportamentos proibidos ou que os encoraje. Não é suficiente que os torne materialmente possíveis, como, por exemplo, no caso em análise, pela criação de um mercado de direitos de moagem em que podem ser celebrados acordos.

A Comissão interroga-se em seguida sobre se a questão colocada se refere às informações que os interessados podem recolher no seio da comissão consultiva da indústria de moagem quanto às transacções no mercado dos direitos de moagem, eventualmente respeitantes a dados como os preços ou as partes de mercado. Quanto a este aspecto, que considera delicado, a Comissão não toma posição, uma vez que, segundo as informações de que dispõe, o comité consultivo da indústria de moagem apenas se reúne raramente, nem mesmo uma vez por ano, não existindo troca de informações dessa natureza.

De qualquer modo, a regulamentação tem efeitos meramente nacionais e é improvável que seja susceptível de afectar o comércio intracomunitário.

d) Quanto à existência de regimes comparáveis noutros Estados-membros

Existem em Espanha e na Bélgica, estando em estudo em Itália, regimes de direito público que podem ser considerados, como o regime francês, medidas nacionais de adaptação gradual das estruturas da indústria moageira, de acordo com um determinado conceito de implantação geográfica.

e) Estatísticas

A Comissão apresentou também dados estatísticos sobre a produção de trigo e sobre as importações e exportações intracomunitárias de farinha relativamente à França, República Federal da Alemanha, Bélgica, Luxemburgo e Países Baixos.

U. Everling

Juiz relator


( *1 ) Lingua do processo: francês.


ACÓRDÃO DO TRIBUNAL (Quinta Secção)

25 de Novembro de 1986 ( *1 )

No processo 148/85,

que tem como objecto um pedido dirigido ao Tribunal ao abrigo do artigo 177.° do Tratado CEE pelo tribunal de grande instance de Macon, e destinado a obter no litígio pendente nesse órgão jurisdicional entre

Direction generale des impôts, direction des services fiscaux de Saône-et-Loire,

e

procureur de la République, por um lado,

e

Marie-Louise Forest, em solteira Sangoy,

e

SA Minoterie Forest, Moulin de Courreau, de Bray, Cluny, por outro lado,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação dos artigos 30.° a 37.° do Tratado CEE e do Regulamento n.° 2727/75 do Conselho, de 29 de Outubro de 1975, que estabelece a organização comum de mercado no sector dos cereais (JO L 281, p. 1; EE 03 F9 p. 13) face à regulamentação francesa que fixa contingentes de moagem de trigo e limita as capacidades de produção das empresas moageiras,

O TRIBUNAL (Quinta Secção),

constituído pelos Srs. Y. Galmot, presidente de secção, F. Schockweiler, U. Everling, R. Joliét e J. C. Moitinho de Almeida, juízes,

advogado-geral : J. Mischo

secretário: K. Riechenberg, f. f. administrador

vistas as observações apresentadas:

em representação de Marie-Louise Forest e da SA Minoterie Forest, por D. Voillemot, advogado no foro de Paris,

em representação do Governo da República Francesa, por R. de Gouttes, na fase escrita do processo, e por R. Abraham, na fase orai,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por C. Bérardis-Kayser, na fase escrita do processo, e por C. Bérardis-Kayser e G. Marenco, na fase orai,

visto o relatório para audiência e após a realização desta em 24 de Junho de 1986,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 7 de Outubro de 1986,

profere o presente

ACÓRDÃO

1

Por decisão de 17 de Abril de 1985, que deu entrada no Tribunal em 17 de Maio do mesmo ano, o tribunal de grande instance de Mâcon submeteu ao Tribunal, ao abrigo do artigo 177.° do Tratado CEE, uma questão prejudicial relativa à interpretação dos artigos 30.° a 37.° do Tratado CEE e do Regulamento n.° 2727/75 do Conselho, de 29 de Outubro de 1975, que estabelece a organização comum de mercado no sector dos cereais (JO L 281, p. 1).

2

Essa questão foi suscitada no âmbito de um processo promovido pela direction generale des impôts e pelo procureur de la République contra Marie-Louise Forest e a sociedade anònima Minoterie Forest, por violação da regulamentação francesa que fixou contingentes de moagem de trigo para as fábricas de moagem.

3

A regulamentação francesa em questão, que resulta, designadamente, de um decreto de 24 de Abril de 1936 e de uma portaria de 27 de Junho de 1938, posteriormente alterados, prevê a atribuição a cada fábrica de um contingente de moagem anual para o trigo mole a transformar em farinha destinada ao consumo humano interno, com base na sua produção anual durante os anos de referência de 1927 a 1935. Se o contingente de moagem for excedido, a sanção consiste numa multa e na apreensão das quantidades indevidamente moídas. Uma fábrica apenas pode aumentar a capacidade de moagem resultante dessa contingentação sob certas condições e, designadamente, obtendo no mercado direitos de moagem. Esses direitos de moagem negociáveis, destacados da empresa, podem ser vendidos por um industrial moageiro a qualquer outro industrial que pretenda aumentar as quantidades que está autorizado a moer.

4

Em 1983 e 1984, a Minoterie Forest excedeu o seu contingente de moagem sem se encontrar coberta pela aquisição de direitos de moagem. A Forest alegou que a regulamentação nacional era incompatível com o direito comunitário, especialmente com o artigo 85.° do Tratado CEE e com a organização comum de mercado dos cereais.

5

Considerando que se suscitava assim um problema de interpretação do direito comunitário, o tribunal de grande instance de Mâcon suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal a seguinte questão prejudicial:

«A regulamentação francesa contida no decreto de 24 de Abril de 1936, modificado, nomeadamente pelo Decreto 61-1033, de 11 de Setembro de 1961, que institui o contingente de moagem de trigo e limita as capacidades de produção das fábricas de moagem, deve ser considerada incompatível com o Regulamento n.° 2727/75 do Conselho, que estabelece a organização comum de mercado no sector dos cereais ou ainda com as disposições dos artigos 30.° a 37.° do Tratado CEE?»

6

Decidindo no quadro do artigo 177.° do Tratado CEE, o Tribunal não se pode pronunciar sobre a compatibilidade de disposições legislativas ou regulamentares nacionais com o direito comunitário. Todavia, pode fornecer ao órgão jurisdicional nacional os elementos de interpretação que se prendem com o direito comunitário e que permitam a esse órgão resolver o problema jurídico que lhe foi submetido.

7

Assim entendida, a questão colocada pelo tribunal de grande instance de Mâcon destina-se a saber se o Regulamento n.° 2727/75 do Conselho, e os artigos 30.° a 37.° do Tratado CEE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a medidas nacionais de contingentação da capacidade de moagem das fábricas do tipo das que estão em causa no processo principal.

Quanto ao alcance da organização comum de mercado dos cereais

8

Para se responder à primeira parte desta questão, há que examinar o funcionamento da organização comum de mercado no sector dos cereais, tal como se encontra previsto pelo Regulamento n.° 2727/75 atrás citado. Essa organização comporta, como resulta do artigo 1.° do Regulamento n.° 2727/75, um regime de trocas e de preços. A farinha de trigo figura entre os produtos por ela regulados.

9

No que respeita às trocas, o Regulamento n.° 2727/75 prevê certas medidas para as importações ou exportações provenientes ou destinadas a países terceiros, a saber, a emissão de certificados de importação ou de exportação, a cobrança de um direito nivelador, a possibilidade de atribuição de uma restituição e de aplicação de cláusulas de salvaguarda. Uma contingentação da moagem do trigo não é de natureza a entravar, seja de que modo for, o funcionamento desses mecanismos.

10

A propósito do regime de preços, sublinhe-se que o Regulamento n.° 2727/75 apenas prevê a fixação de preços para os cereais e não para as farinhas, cujo preço está sujeito à oferta e à procura no mercado interno da Comunidade. Embora sendo certo, portanto, que um sistema de contingentação da moagem de trigo não afecta directamente a aplicação do regime de preços do trigo, a Forest alegou que esse efeito resultaria indirectamente do sistema em causa, uma vez que a limitação da capacidade de moagem das fábricas diminuiria a procura de trigo.

11

A este propósito, convém assinalar que resulta das indicações estatísticas fornecidas pelo Governo francês, não contestadas pela Forest, que a totalidade dos direitos de moagem no sistema em causa sempre excedeu largamente a quantidade de trigo necessária para cobrir o consumo humano interno do Estado-membro em questão. Acresce que a legislação em causa não diz respeito à produção de farinha destinada à exportação ou à alimentação de animais. Assim, o regime dos contingentes de moagem não constitui uma limitação da produção de farinha e não restringe as possibilidades de escoamento do trigo. Nenhum elemento do processo permite, portanto, concluir que o regime em questão tenha influência sobre a formação dos preços do trigo no quadro da organização comum de mercado.

12

A sociedade Forest sustentou ainda que um sistema nacional de contingentes de moagem para o sector da indústria é incompatível com a organização comum de mercado porque é contrário aos objectivos e princípios da política agrícola comum estabelecidos pelo artigo 39.° do Tratado CEE e porque, num domínio abrangido por uma organização comum de mercado, os Estados-membros não conservaram qualquer competência residual para adoptar medidas que a legislação comunitária não lhes reservou, nem expressa nem implicitamente.

13

Convém a este propósito observar que um sistema de contingentação da moagem do trigo que apenas abranja o consumo humano interno do Estado-membro em questão, e no âmbito do qual a quantidade total dos contingentes é, de facto, claramente superior à quantidade necessária para cobrir esse consumo, não é um factor limitativo da produção de trigo e não tem efeitos desfavoráveis na produtividade agrícola. Tal medida nacional não é, portanto, em si, contrária aos objectivos da política agrícola comum ou aos objectivos de interesse geral prosseguidos pelo Tratado.

14

Como o Tribunal já afirmou no seu acórdão de 7 de Fevereiro de 1984 (Jongeneel Kaas/Países Baixos, 237/83, Recueil 1984, p. 483), os Estados-membros devem, perante um regulamento que estabeleça uma organização comum de mercado num determinado sector, abster-se de adoptar qualquer medida que seja de molde a derrogá-la ou afectá-la. Resulta desse acórdão que não se pode, no entanto, inferir do simples silêncio da regulamentação em causa que os Estados-membros deixaram de poder tomar medidas nesse sector. O facto de o legislador comunitário não ter regulado o sector específico da indústria moageira deixa, pelo contrário, aos Estados-membros o poder de adoptarem as medidas que considerem aptas a melhorar as estruturas desse sector, respeitando os mecanismos e os princípios que regem a organização comum de mercado.

15

Do que acaba de se dizer resulta que as disposições do Regulamento n.° 2727/75 não se opõem à adopção, por parte de um Estado-membro, de um sistema de contingentes de moagem de trigo que apenas abranja o consumo humano interno do Estado-membro em questão, e no âmbito do qual a quantidade total dos contingentes é, de facto, claramente superior à quantidade necessária para cobrir esse consumo.

Quanto ao alcance dos artigos 30.° a 37.° do Tratado CEE

16

Esta parte da questão tem, em suma, como objectivo, obter uma interpretação do artigo 30.° do Tratado. Com efeito, o artigo 37.° do Tratado CEE não está em discussão, uma vez que a regulamentação em causa não cria qualquer monopólio nacional de natureza comercial. Quanto ao artigo 34.°, basta observar que os contingentes de moagem em questão apenas se aplicam à transformação de trigo mole em farinha destinada ao consumo humano interno, e não à exportação.

17

No que toca à questão de saber se uma tal regulamentação deve ser considerada uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à importação, na acepção do artigo 30.° do Tratado CEE, há que observar, em primeiro lugar, que o regime em questão não afecta as possibilidades de importação de farinha destinada ao consumo humano proveniente de outros Estados-membros.

18

Sobre os efeitos que esse regime, indistintamente aplicável à moagem de trigo de origem nacional e de trigo importado, produz a montante sobre o mercado do trigo, a Forest entende que ele afecta os fluxos de trocas de cereais, uma vez que, ao limitar a capacidade das fábricas de comprar trigo para moagem, é susceptível de restringir as importações de trigo.

19

A este propósito, cabe dizer que ainda que a limitação das quantidades de trigo que é permitido moer possa impedir os industriais de comprar trigo, qualquer industrial moageiro é livre de se abastecer, parcial ou totalmente, de trigo importado. Assim, verifica-se que tal medida de contingentação ao nível da produção de farinha não tem, na realidade, qualquer ligação com a importação de trigo, e não é de molde a entravar o comércio entre Estados-membros.

20

Daqui resulta que não se pode considerar uma regulamentação como a que está em causa como uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à importação, na acepção do artigo 30.° do Tratado CEE.

21

Assim, há que responder à questão colocada pelo tribunal de grande instance de Mâcon que nem as disposições do Regulamento n.° 2727/75 do Conselho, de 29 de Outubro de 1975, que estabelece a organização comum de mercado no sector dos cereais (JO L 281, p. 1), nem os artigos 30.° a 37.° do Tratado CEE obstam a que um Estado-membro adopte um sistema de contingentes de moagem de trigo para a industria limitado ao fabrico de farinha destinada ao consumo humano interno, no quadro do qual o quantitativo total dos contingentes é, de facto, claramente superior ao necessário para cobrir esse consumo.

Quanto às despesas

22

As despesas efectuadas pelo Governo francês e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não podem ser reembolsadas. Dado que o processo reveste, relativamente às partes no processo principal, a natureza de incidente suscitado perante o tribunal nacional, cabe a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL (Quinta Secção),

pronunciando-se sobre a questão que lhe foi submetida por decisão de 17 de Abril de 1985 do tribunal de grande instance de Macon, declara:

 

Nem as disposições do Regulamento n.° 2727/75 do Conselho, de 29 de Outubro de 1975, que estabelece a organização comum de mercado no sector dos cereais (JO L 281, p. 1), nem os artigos 30.° a 37.° do Tratado CEE obstam a que um Estado-membro adopte um sistema de contingentes de moagem de trigo para a indústria limitado ao fabrico de farinha destinada ao consumo humano interno, no quadro do qual o quantitativo total dos contingentes é, de facto, claramente superior ao necessário para cobrir esse consumo.

 

Galmot

Schockweiler

Everling

Joliét

Moitinho de Almeida

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, a 25 de Novembro de 1986.

O secretário

P. Heim

O presidente da Quinta Secção

Y. Galmot


( *1 ) Lingua do processo: francês.