CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

JEAN MISCHO

apresentadas em 17 de Junho de 1986 ( *1 )

Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

Pela presente acção, a Comissão tem como objectivo, no essencial, obter a declaração de que a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 48.°, 52.° e 59.° do Tratado CEE, ao manter em vigor disposições legislativas que não respeitam o princípio da igualdade de tratamento entre os nacionais italianos e os de outros Estados-membros das Comunidades, relativamente ao acesso a certas profissões.

Por força das disposições em causa:

1)

A equiparação dos nacionais de outros Estados-membros aos nacionais italianos quanto ao acesso a diversas actividades profissionais ligadas ao turismo encontra-se dependente da condição de reciprocidade (artigo 11.° da lei-quadro sobre o turismo e as iniciativas orientadas para o reforço e a melhoria da oferta turística) ;

2)

A inscrição de nacionais estrangeiros nas listas especiais anexas ao quadro de jornalistas profissionais e colaboradores encontra-se sujeita à condição de reciprocidade e a inscrição de jornalistas estagiários no respectivo registo é exclusivamente reservada aos nacionais italianos (artigos 28.°, 29.°, 31.°, 33.°, 35.°, 36.° e 38.° da Lei n.° 69, de 3 de Fevereiro de 1963, relativa ao estatuto da profissão de jornalista);

3)

A admissão aos concursos para atribuição de lugares de farmacêutico disponíveis para o exercício privado dessa profissão é exclusivamente reservada aos nacionais italianos (artigo 3.° da Lei n.° 475, de 2 de Abril de 1968, que contém «disposições relativas à actividade farmacèutica»).

No decurso da segunda metade do ano de 1983, na sequência de pedidos de explicação solicitados pela Comissão, o Governo italiano fez chegar às mãos desta entidade diversos documentos dos quais ressaltava que, através de circulares administrativas dirigidas ao Conselho Nacional da Ordem dos Jornalistas, bem como aos representantes do Governo nas diferentes regiões, tinha dado instruções às autoridades competentes no sentido de procederem à equiparação, de acordo com o direito comunitário, dos nacionais de outros Estados-membros aos nacionais italianos no que se refere, respectivamente, à inscrição nas listas de jornalistas e ao acesso aos concursos para atribuição de farmácias.

A Comissão não renunciou, no entanto, a intentar a presente acção por incumprimento.

Em apoio do seu pedido, apresenta basicamente dois fundamentos:

1)

A ilegalidade das cláusulas de reciprocidade, confirmada pelos acórdãos do Tribunal de 22 de Junho de 1972 (Frilli, 1/72, Recueil 1972, p. 457), de 28 de Junho de 1977 (Patrick, 11/77, Recueil 1977, p. 1199) e de 25 de Outubro de 1979 (Comissão/Itália, 159/78, Recueil 1979, p. 3247);

2)

A insuficiência das circulares administrativas como forma de solucionar a incompatibilidade de uma disposição legislativa nacional com o direito comunitário, resultante de todo um conjunto de acórdãos ( 1 ).

O Governo italiano, pelo contrario, considera que:

1)

a condição de reciprocidade é irrelevante pois é sempre e automaticamente preenchida pelos nacionais dos outros Esta-dos-membros em virtude das disposições directamente aplicáveis do Tratado;

2)

as circulares administrativas constituem meios adequados, não de revogação formal das disposições legislativas em causa, mas de confirmação que elas não poderão prevalecer sobre as disposições de direito comunitário directamente aplicáveis.

Aquele Governo não contesta, portanto, a incompatibilidade formal com o direito comunitário das referidas normas, antes pretende que esses textos legais não representem um verdadeiro obstáculo à livre circulação de pessoas e serviços, dado, em particular, o caracter directamente aplicável dos artigos 48.°, 52.° e 59.° do Tratado CEE.

Será que o Governo italiano tem razão ao considerar que, em tais condições, não se está em presença de um incumprimento do Tratado? Penso bem que não.

No que se refere à ilegalidade da cláusula de reciprocidade, basta-me remeter para o acórdão 159/78, já citado, no qual o Tribunal julgou incompatível com o artigo 52.° do Tratado CEE uma disposição legislativa de um Estado-membro que continha uma condição de reciprocidade de que se não encontravam dispensados os nacionais dos outros Estados-membros (n.° 23, Recueil 1979, p. 3247, 3264). E acrescentou que a manutenção sem modificações na legislação de um Estado-membro de um texto legal incompatível com uma disposição do Tratado, ainda que directamente aplicável na ordem jurídica dos Estados-membros, dá origem a uma situação de facto ambígua ao manter os sujeitos de direito a que diz respeito num estado de incerteza quanto às possibilidades que lhes são concedidas de fazer apelo ao direito comunitário e que uma tal situação representa, em si mesma, e relativamente a esse Estado, um incumprimento das obrigações que lhe incumbem por força do Tratado CEE (sumário, n.° 3, Recueil 1979, p. 3247, 3248; ver também n.° 22, p. 3264).

Ora, uma circular administrativa, como o próprio Governo italiano aliás reconhece, não pode certamente determinar a alteração de uma norma com força de lei.

Ainda que os acórdãos relativos às circulares administrativas, citados pela Comissão, digam todos respeito à execução incompleta ou à não execução de directivas, não se deve duvidar de que os princípio que o Tribunal neles consigna devam ser aplicáveis por analogia ao caso presente ( 2 ). Resulta que, no caso de a adaptação do direito nacional às disposições directamente aplicáveis do direito comunitário implicar a alteração de disposições legais pré-existentes, tal adaptação não pode deixar de ser feita por intermédio de «disposições internas com carácter obrigatório» (acórdão 96/81, n.° 12, Recueil 1982, p. 1791) e «com o mesmo valor jurídico» (acórdão 102/79, n.° 10, Recueil 1980, p. 1473, 1486).

Tal não é, decerto, o caso das circulares administrativas que, como o Tribunal tem entendido em toda urna série de acordãos, são «por natureza susceptíveis de modificação por simples vontade unilateral da administração e carecem de publicidade adequada».

Eis, porém, que o Governo italiano pede ao Tribunal que vá para além do seu acórdão 159/78 e, por assim dizer, dispense os Esta-dos-membros, «face a situações límpidas e claras que não dão lugar a qualquer risco de confusão ou incerteza jurídica», da obrigação de tornar as legislações nacionais formalmente conformes com as disposições comunitárias directamente aplicáveis.

Para aquele Governo, com efeito, a questão fundamental do presente litígio não é de natureza jurídica mas de ordem prática: dado que as disposições directamente aplicáveis do Tratado prevalecem sobre as normas jurídicas nacionais contrárias, seria inútil e fastidioso ter de proceder à sua revogação ou alteração formal, tanto mais que com o decurso do tempo, os cidadãos comunitários iriam adquirindo certezas quanto aos direitos que podem invocar nos outros Estados-membros, além daquele de que são nacionais (contestação, p. 7). Em especial, depois dos primeiros acórdãos do Tribunal sobre a aplicabilidade directa dos artigos 48.° ( 3 ), 52.° ( 4 ), e 59.° ( 5 ), a incerteza jurídica teria vindo a decrescer, de tal forma que os direitos que resultam para os cidadãos comunitários de tais artigos estariam suficientemente garantidos, mesmo em caso de inexistência de uma revogação formal das normas nacionais a eles contrárias, cuja manutenção já não constituiria um incumprimento.

Note-se, antes de mais, que no presente processo não se trata apenas da manutenção, mas também da criação de uma disposição incompatível com o Tratado.

Está fora de dúvida que as «certezas adquiridas pelos cidadãos comunitários relativamente aos seus direitos em outros Estados--membros» foram, pelo menos, abaladas senão inteiramente postas em causa, pelo facto de ter sido em 1983, ou seja, mais de treze anos após o final do período de transição e cerca de dez anos depois dos acórdãos Van Duyn, Reyners e Van Binsberghen, que o Parlamento italiano aprovou a lei-quadro sobre turismo.

Em segundo lugar, será arriscado presumir que a maioria dos cidadãos da Comunidade tenha já um conhecimento preciso dos direitos que lhes advêm do Tratado. O raciocínio do Tribunal no processo 159/78 mantém-se válido ainda hoje. Um texto legal que contenha uma cláusula de nacionalidade, ou uma condição de reciprocidade, pode exercer um efeito dissuasor nos particulares que pretendam exercer a sua profissão no país em questão, uma vez que não conhecem necessariamente a jurisprudência do Tribunal, nem têm, certamente, conhecimento das circulares administrativas dos Es-tados-membros. A manutenção de uma disposição contrária ao direito comunitário constitui, pois, um incumprimento, também pela razão de que é susceptível de prejudicar a realização dos fins do Tratado (artigo 5.° do Tratado CEE).

O princípio segundo o qual uma disposição directamente aplicávelnão dispensa os Esta-dos-membros da obrigação de pôr a sua legislação de acordo com o direito comunitário foi, aliás, muito recentemente reafirmado pelo Tribunal — a propósito dos regulamentos — em 20 de Março de 1986 (processo 72/85, Comissão/Países Baixos, n.° 20, Recueil 1986, p. 1219, 1229).

Relembremos, enfim, o carácter específico do processo contido no artigo 169.° que tem por objectivo declarar e fazer cessar todo e qualquer comportamento de um Es-tado-membro contrário a qualquer das obrigações que lhe incumbem por força do Tratado.

O Tribunal concluiu daí, como acaba de relembrar no seu acórdão de 18 de Março de 1986 (processo 85/85, Comissão/Bélgica, Recueil 1986, p. 1149), que «a existência de meios de acção junto dos tribunais nacionais não pode impedir a dedução da acção a que se refere o artigo 169.° do Tratado, uma vez que as duas vias processuais prosseguem finalidades e têm efeitos diferentes» (n.° 24). Nesta decisão, o Tribunal remete, expressamente, para o acórdão de 17 de Fevereiro de 1970 (processo 31/69, Comissão//Itália, Recueil, p. 25) em que rejeitou, pela mesma razão, o argumento da demandada de que a sanção da não execução por um Estado das normas comunitárias, directamente aplicáveis, não estaria abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 169.°, sendo antes da competência dos tribunais nacionais a que os interessados recorreram (n.° 7, Recueil 1970, p. 33).

Desde o acórdão Van Gend et Loos, de 5 de Fevereiro de 1963 (processo 26/62, Recueil 1963, p. 1), que estabeleceu as bases da jurisprudência relativa à aplicabilidade directa do direito comunitário, que o Tribunal decidira que «a vigilância dos particulares interessados na salvaguarda dos seus direitos constitui um controlo eficaz que acresce ao que os artigos 169.° e 170.° confiam à iniciativa da Comissão e dos Estados--membros» (Recueil 1963, p. 25).

Resulta logicamente do exposto que um Es-tado-membro não pode invocar a existência de uma disposição directamente aplicável do direito comunitário como pretexto para se abster de adaptar a legislação nacional contrária.

E não poderia ser de outro modo se atentarmos nas razões profundas que levaram o Tribunal a reconhecer a directa aplicabilidade de certas disposições do Tratado, a estabelecer a obrigação de o tribunal nacional não aplicar as disposições da lei nacional contrárias ao direito comunitário, sejam elas anteriores ou posteriores à norma comunitária ( 6 ), e a salientar que em certas circunstâncias especiais ( 7 ) algumas disposições das directivas podem produzir «efeitos directos» ( 8 ).

Trata-se, em todos os casos, de assegurar aos particulares, a título de «garantia mínima» ( 9 ), a possibilidade de fazer reconhecer os seus direitos perante os tribunais nacionais, independentemente do não cumprimento pelos Estados-membros das suas obrigações.

Ora, seria, pelo menos, paradoxal que uma jurisprudência, definida pelo Tribunal com a finalidade de proteger os particulares contra a inércia dos seus governos, pudesse agora ser invocada por esses mesmos governos, no intuito de prolongar a sua inércia ou de serem totalmente dispensados de adaptar o seu direito às exigências do direito comunitário.

Por todas as razões apresentadas, proponho que o Tribunal declare, de acordo com as alegações da Comissão, que, ao manter em vigor as disposições legislativas censuradas, a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 48.°, 52.° e 59.° do Tratado CEE e condene, nos termos do n.° 2 do artigo 69.° do Regulamento Processual, a República Italiana ao pagamento das despesas do processo.


( *1 ) Tradução do francês.

( 1 ) Acórdãos proferidos em 6 de Maio de 1980, no processo 102/79, Comissão/Bélgica, Recueil 1980, p. 1473; em 25 de Maio de 1982, no processo 96/81, Comissão/Países Baixos, Recueil 1982, p. 1791; em 25 de Maio de 1982, no processo 97/81, Comissão/Países Baixos, Recueil 1982, p. 1819; em 15 de Dezembro de 1982, no processo 160/82, Comissão/Países Baixos, Recueil 1982, p. 4637; em 1 de Março de 1983 no processo 300/81, Comissão//Itália, Recueil 1983, p. 449; e em 15 de Março de 1983, no processo 145/82, Comissão/Itália, Recueil 1983, p. 711.

( 2 ) No processo 159/78, o Governo italiano tinha já igualmente invocado a existência de uma circular administrativa que equiparava os nacionais de outros Estados-membros aos seus próprios nacionais.

( 3 ) Acórdão 167/73, de 4 de Abril de 1974, Comissão/França, Recueil 1974, p. 359, c cm especial acórdão Van Duyn, dc 4 de Dezembro de 1974, processo 41/74, Recueil 1974, p. 1337.

( 4 ) Acórdão Reyners, de 21 de Junho de 1974, processo 2/74, Recueil 1974, p. 631.

( 5 ) Acórdão Van Binsberghen, de 3 de Dezembro de 1974, processo 33/74, Recueil 1974, p. 1299.

( 6 ) Acórdão de 9 de Março de 1978, processo 106/77, Simmenthal, Recueil, p. 629, n.° 21.

( 7 ) «Designadamente no caso de um Estado-mcmbro ter deixado de adoptar as medidas de execução necessárias ou ter adoptado medidas não conformes com uma directiva» — ver acórdão de 6 de Maio de 1980, processo 102/79, Co-missão/Bélgica, Recueil 1980, p. 1473, 1487, n.° 12.

( 8 ) Ver o capítulo especial consagrado ao «efeito directo» das directivas cm geral no acórdão de 19 de Janeiro de 1982, processo 8/81, Ursula Becker/Finanzamt Münster-Innenstadt, Recueil, p. 53.

( 9 ) Ver, quanto aos regulamentos, o acórdão, já citado, proferido no processo 72/85, n.° 20, e, quanto às directivas, o acórdão, já citado, proferido no processo 102/79, n.° 12.