CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

JEAN MISCHO

apresentadas em 7 de Outubro de 1986 ( *1 )

Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

Desde 1936, a moagem é objecto em França de uma regulamentação profissional caracterizada pela atribuição a cada moagem de um contingente anual para o trigo mole a transformar em farinha destinada ao consumo humano interno.

O aumento desta capacidade de moagem das fábricas é possível dentro de certos limites, quer através do agrupamento de fábricas de moagem, quer através da compra de direitos de moagem.

Quando uma empresa de moagem excede o seu contingente, incorre numa multa fixada em função do número de quintais de trigo que moeu indevidamente, bem como no confisco da farinha correspondente.

Em 1982 e 1983, a SA Minoterie Forest excedeu o seu contingente de moagem de trigo e, por conseguinte, esta sociedade e a sua presidente directora-geral, M.-L. Forest, foram citadas pela direction generale des impôts para comparecerem perante o tribunal de grande instance de Macon.

Tendo as arguidas afirmado que a regulamentação francesa seria contrária a certas disposições do Tratado de Roma ou dos regulamentos comunitários adoptados em sua aplicação, o tribunal de grande instance considerou que se colocava efectivamente um problema a este respeito e, em consequência disso, submeteu ao Tribunal a seguinte questão:

«A regulamentação francesa contida no decreto de 24 de Abril de 1936, modificado, nomeadamente, pelo Decreto 61-1033 de 11 de Setembro de 1961, que institui o contingente de moagem de trigo e limita as capacidades de produção das fábricas de moagem, deve ser considerada incompatível com o Regulamento n.° 2727/75/CEE do Conselho, que estabelece a organização comum de mercado no sector dos cereais ou ainda com as disposições dos artigos 30.° a 37.° do Tratado de Roma?»

Como não cabe ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias pronunciar-se no quadro do artigo 177.° sobre a compatibilidade das disposições nacionais com o direito comunitário, deve ser reformulada a questão colocada pelo tribunal de grande instance de Mâcon. Esta redunda substancialmente em saber se, quer o Regulamento n.° 2727/75 do Conselho, de 29 de Outubro de 1975, que estabelece a organização comum de mercado no sector dos cereais, quer os artigos 30.° a 37.° do Tratado devem ser interpretados no sentido de que se opõem a disposições do tipo das que integram a regulamentação nacional em causa.

No decurso das fases escrita e oral do processo não se contestou que a legislação francesa tem por objectivo facilitar a redução das capacidades de produção da indústria de moagem, que se tornaram excedentárias na sequência da diminuição do consumo de pão. Ela procura, nomeadamente, evitar o desaparecimento brutal e injustificado de empresas que, embora de pequena ou média dimensão, podem ser consideradas rentáveis ou úteis do ponto de vista do interesse geral.

Como sublinhou o advogado-geral H. Mayras a propòsito desta mesma legislação no processo Van Haaster ( 1 ), «o objectivo de tais medidas é o de sanear uma industria de transformação de produtos agrícolas, não o de limitar a produção destes produtos».

Não se contestou, além disso, que:

a)

esta regulamentação limita unicamente a capacidade de moagem das fábricas no que diz respeito ao trigo destinado ao consumo humano interno, independentemente da sua proveniência;

b)

a contingentação não se aplica ao trigo destinado à exportação ou reexportação após transformação;

c)

as importações de trigo ou de farinha em França não são limitadas; por isso, os industriais de moagem franceses são livres de comprar no estrangeiro, se o desejarem, a totalidade do trigo que pretendem transformar.

Embora as disposições do Tratado relativas à supressão dos obstáculos aduaneiros e comerciais às trocas intracomunitárias devam considerar-se parte integrante das organizações comuns de mercado ( 2 ), por razões de clareza da exposição e devido à formulação da questão colocada prefiro analisar em separado a questão da compatibilidade de uma regulamentação do tipo da que está em causa perante o juiz nacional com os artigos 30.° e seguintes do Tratado.

Assim, examinarei sucessivamente as regras que, por referência a uma legislação deste tipo, se recortam:

dos artigos 30.° e seguintes do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia;

do Regulamento n.° 2727/75 do Conselho, que estabelece a organização comum de mercado no sector dos cereais;

das disposições conjugadas dos artigos 5.° e 85.° do Tratado CEE.

A — Os artigos 30.° a 37° 0 do Tratado

As arguidas no processo principal alegam que «na medida em que impede as fábricas de moagem francesas de adquirirem livremente trigo, nomeadamente trigo produzido noutros Estados-membros e colocado no mercado francês, quando a farinha produzida a partir desse trigo se destine a ser comercializada no mercado francês, a regulamentação francesa que impõe a contingentação da capacidade de moagem das fábricas afecta, pelo menos potencialmente, o regime de troca intracomunitária e deve, assim, ser considerada como uma medida de efeito equivalente a restrições quantitativas na acepção do artigo 30.° do Tratado CEE».

A Comissão considera, pelo contrário, que «nenhuma restrição nem à importação nem à exportação de farinha, susceptível de infringir os artigos 30.° e 34.° do Tratado (que são parte integrante da organização do mercado), parece resultar, directa ou indirectamente, de tais medidas...». Analisando de seguida os efeitos deste regime ao nível do trigo, a Comissão concluiu que «segundo os dados na posse da Comissão, a regulamentação francesa não tem nem objectivos nem efeitos restritivos».

O Governo da República Francesa observa que «a liberdade de trocas intracomunitárias... também não é posta em causa, uma vez que o sistema não instaura qualquer restrição quantitativa, nem às importações, nem às exportações, tanto para a farinha como para o trigo. Também não pode ser alegado qualquer efeito restritivo indirecto ou potencial sobre as importações provindas da CEE».

Notemos, em primeiro lugar, que o disposto nos artigos 34.° (restrições à exportação) e 37.° (monopólios nacionais) não pode entrar em linha de conta no presente processo.

Observemos, em seguida, que resulta do exame dos objectivos da regulamentação em causa, acima efectuado, que ela «não pretende reger os fluxos de trocas» ( 3 ). Esta legislação também não comporta qualquer discriminação formal. Ela é aplicável indistintamente ao trigo francês ou ao trigo importado.

Partindo destes dados, trata-se agora de apreciar se a regulamentação em causa é, todavia, «susceptível de entravar directa ou indirectamente, actual ou potencialmente, o comércio intracomunitário» ( 4 ) e, se tal for o caso, se os eventuais obstáculos que dela possam resultar devem ser aceites por esta regulamentação ser necessária à satisfação de «exigências imperativas».

A este respeito, é-se levado a verificar uma vez mais que qualquer moageiro ou comerciante é livre de importar em França trigo ou farinha em quantidades ilimitadas.

Não há, pois, qualquer entrave actual ou directo ao comércio intracomunitário.

Resta saber se o sistema de contingentação dos direitos de moagem é, todavia, susceptível indirecta e potencialmente de impedir importações que poderiam ter lugar caso ele não existisse, ou de as tornar mais difíceis ou mais onerosas.

Ora, supondo que todos os moageiros franceses estejam dispostos a abastecer-se na totalidade dos seus contingentes de trigo nos outros países concorrentes da Comunidade (decisão que é deixada ao seu critério), é-se levado à conclusão de que todas as importações de trigo necessárias para cobrir o consumo humano interno de farinha podiam fazer-se sem dificuldade, pois o conjunto dos direitos de moagem ultrapassa largamente o volume deste consumo ( 5 ).

Se se considerar, seguidamente, a situação individual de cada moageiro, chega-se às seguintes conclusões.

Cada fábrica de moagem tem uma capacidade anual de produção bem determinada que é função das suas instalações técnicas.

Ora, não se afigura despropositado admitir que o contingente de moagem de muitas fábricas deve, desde há muito, ser idêntico à sua capacidade anual de produção de farinha.

A portaria de 27 de Junho de 1938 que fixa os contingentes dispõe, com efeito, que «o número de quintais de trigo que cada moagem está autorizada a moer anualmente para o consumo interno é igual à média aritmética da sua moagem efectiva máxima (não estando compreendidos os trigos em regime de admissão temporária) verificada nos anos de 1927 a 1935, e a capacidade anual de moagem da fábrica calculada sobre trezentos dias por ano, constituindo este último factor, em qualquer caso, um máximo».

Muitas fábricas cujo contingente originário não atingia a capacidade anual de moagem tiveram, desde então, de adquirir os direitos de moagem que lhes faltavam para atingir esse nível.

As fábricas de moagem que, por via da modernização, aumentaram a sua capacidade de produção desde 1938, tiveram também a possibilidade de adquirir direitos de moagem suplementares.

Tal como resulta das estatísticas anexadas às respostas do Governo francês às questões do Tribunal, só entre 1968 e 1984 o número das fábricas de moagem diminuiu em 1528 unidades, o que levou à colocação no mercado de uma quantidade importante de direitos de moagem.

Entre 1981 e 1984, 492 fábricas compraram direitos de moagem que atingiram o total de 550982 toneladas de trigo.

Por outro lado, nem sempre é necessário que uma fábrica disponha de direitos de moagem correspondentes à sua capacidade total de produção. E frequente que empresas de toda a espécie funcionem abaixo da sua capacidade màxima. O que conta é que os direitos de moagem sejam suficientes para cobrir as encomendas obtidas.

Ora, tais direitos podem ser comprados mesmo a posteriori, no fim do ano, a um preço que não se afigura proibitivo ( 6 ). Ficam definitivamente adquiridos.

É verdade que, se no decurso de um dado ano determinado moageiro tivesse que decidir não aceitar todas as encomendas que lhe fossem feitas, com receio de não dispor no final do ano de todos os direitos de moagem necessários, seria então levado a renunciar à compra das quantidades de trigo correspondentes a essas encomendas.

Esta limitação parcial das compras seria susceptível de afectar quer o trigo de origem francesa, quer o trigo importado, consoante o moageiro tivesse encarado a possibilidade de se abastecer em França ou no estrangeiro.

Assim, este «risco de não compra» não pesa mais sobre os produtos susceptíveis de serem importados do que sobre os produtos susceptíveis de serem comprados no mercado interno francês.

Ou ainda, parafraseando a fórmula utilizada pelo advogado-geral Sir Gordon Slynn nos processos apensos 60 e 61/84 relativos às videocassetes (conclusões de 20 de Março de 1985, Recueil 1985, p. 2605), «o factor que levará o moageiro francês a não comprar o seu trigo a um produtor francês é idêntico ao que o levaria a não comprar a um produtor de trigo noutro Estado-membro». Estas duas categorias de produtores de trigo encontram-se, portanto, na mesma situação.

Assim, o regime posto em causa não tem por efeito o favorecimento da produção nacional relativamente à produção dos outros Estados-membros (segundo a fórmula utilizada nomeadamente no acórdão «videocassetes», de 11 de Julho de 1985, n.° 21) nem, simetricamente, o desfavorecimento dos produtos importados de outros Estados-membros relativamente aos produtos nacionais (ver o acórdão de 10 de Julho de 1980, «publicité des alcools», 152/78, Recueil 1980, p. 2299, n.° 14).

Todavia, tal como acabo de demonstrar, a aplicação do regime pode levar, em certas situações concretas, um moageiro individual a renunciar quer a uma compra no mercado nacional, quer a uma importação. Pode, portanto, de modo potencial, constituir obstáculo a certas trocas.

Nestas condições, a limitação do direito de moer o trigo prevista por este regime apenas é compatível com o princípio da livre circulação das mercadorias previsto pelo Tratado na condição de os eventuais entraves que causa às trocas intracomunitárias não irem além do que é necessário para assegurar o objectivo visado e de que este objectivo se justifique perante o direito comunitário (ver o n.° 22 do acórdão «videocassetes» supracitado).

Em minha opinião, essa justificação não pode ser recusada a um regime que limite os direitos de moagem das fábricas no que diz respeito ao trigo destinado ao consumo interno de farinha de um Estado-membro, quando o conjunto desses direitos de moagem ultrapassar o volume do consumo interno e quando o regime em causa tenha por objectivo permitir uma reestruturação ordenada do sector da moagem e garantir a manutenção de moagens em todas as regiões do Estado-membro em causa.

Tratar-se-á, nesse caso, de uma «opção de política económica e social legítima, conforme com os objectivos de interesse geral prosseguidos pelo Tratado» ( 7 ).

B — A organização comum de mercado no sector dos cereais

1. O princípio da competência residuai

Deve, antes de mais, clarificar-se a questão de saber se um Estado-membro tem o direito de manter em vigor uma legislação deste tipo após a entrada em vigor da regulamentação que estabelece a organização comum de mercado no sector dos cereais ė dos produtos de primeira transformação.

As arguidas no processo principal reconhecem aos Estados-membros essa competência residual mas consideram que a regulamentação controvertida vai além do quadro desta competência, pois, em sua opinião, ela não é necessária à realização dos objectivos do artigo 39.° e é contrária a princípios que regem a organização comum de mercado e a disposições do Regulamento n.° 2727/75.

A Comissão considera que «enquanto a Comunidade não tiver tomado medidas comuns, não pode impedir-se um Estado-membro de manter uma legislação nacional de reestruturação ordenada da moagem na medida em que ela não seja incompatível com a organização comum de mercado no sector dos cereais e não se aplique nem às importações nem às exportações de farinha» ( 8 ).

Uma vez que o Regulamento n.° 2727/75 não integra qualquer disposição que se refira directa ou indirectamente à actividade das moagens e que, até hoje, não foi adoptada pelo Conselho nenhuma proposta de regulamentação da Comissão «relativa ao saneamento do mercado dos produtos resultantes da moagem dos cereais panificáveis», sou também de opinião de que os Estados-membros conservam, em princípio, o direito de legislar neste domínio.

Porém, resta examinar se uma legislação que revista as características da legislação francesa é, de facto, de natureza a afectar os objectivos do artigo 39.° do Tratado CEE ou as disposições da organização comum de mercado no sector considerado.

2. O exercício da competência residual

a) Os objectivos do artigo 39.° do Tratado CEE

A este respeito, posso ser extremamente breve. Não foi, com efeito, demonstrado em que é que uma regulamentação do tipo da que está em vigor em França poderia contrariar o aumento da produtividade da agricultura, uma utilização óptima dos factores de produção, ou pôr em perigo o nível de vida da população agrícola, a estabilização dos mercados ou a segurança dos abastecimentos ou impedir a formação de preços razoáveis nas entregas aos consumidores.

Pelo contrário, pode considerar-se que, ao permitir a redução, de uma forma ordenada, do excesso de capacidade existente no sector da moagem, uma regulamentação deste tipo contribui para uma utilização óptima dos factores de produção e, portanto, para uma diminuição dos custos de transformação. Ao salvaguardar a existência de moagens de pequena ou média capacidade ( 9 ) próximas dos produtores de trigo e dos consumidores de farinha, contribui igualmente para a segurança dos abastecimentos.

b) Os princípios da organização comum de mercado no sector dos cereais

Na introdução às presentes conclusões, pude comprovar que o regime em vigor em França não comportava qualquer restrição quantitativa nas trocas de farinha ou de trigo entre a França e os outros Estados-membros ou países terceiros, nem à importação ou à exportação.

Expus em A as razões pelas quais considero que um regime do tipo do que está em vigor em França não pode ser considerado como abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 30.° do Tratado CEE, o qual deve ser considerado parte integrante da organização comum de mercado.

Este regime deve, assim, ser também considerado compatível com o artigo 18.°, n.° 2, do Regulamento n.° 2727/75, que torna extensivos os princípios do artigo 30.° às trocas com os países terceiros.

Uma tal regulamentação também não implica uma limitação da produção de farinha ou de trigo.

E sem razão que as arguidas no processo principal invocam os acórdãos Van Haaster e Van den Hazel.

Nas suas conclusões supracitadas de 2 de Outubro de 1974, relativas ao processo 190/73, Van Haaster, o advogado-geral H. Mayras já tinha assinalado que não havia qualquer analogia entre uma legislação que subordina a cultura dos jacintos a uma limitação quantitativa e o regime francês da moagem.

Pode fazer-se o mesmo raciocínio a propósito da contingentação do abate de aves para consumo, em causa no processo Van den Hazel (111/76, acórdão de 18 de Maio de 1977, Recueil 1977, p. 901).

E forçoso constatar que a produção francesa de farinha pode desenvolver-se livremente enquanto o montante total dos direitos de moagem exceder o consumo interno francês e, simultaneamente, a fabricação de farinha destinada à exportação não for sujeita a qualquer restrição.

Ora, não se alegou que o total dos direitos de moagem tivesse alguma vez sido inferior à quantidade de trigo necessária para cobrir o consumo interno francês de farinha, nem que o Governo francês tenha a intenção de modificar esta situação no futuro. (Em 1984, os direitos de moagem elevavam-se a 55 milhões de quintais de trigo e o consumo humano interno de farinha correspondia a 43 milhões de quintais.)

O regime de contingentação também não constitui um freio à produção de trigo. Com efeito, as sementeiras não se fazem somente em função do consumo interno de farinha ou dos direitos de moagem da indústria, mas também, e sobretudo, em função dos solos aráveis aptos para essa produção e das possibilidades que os agricultores consideram ter de exportação do trigo, seja em estado puro (165 milhões de quintais em 1984), seja sob forma de farinha (18 milhões de quintais de trigo), ou de o vender para alimentação de animais (45 milhões de quintais).

Assim, apesar de o consumo humano interno só ter absorvido 43 milhões de quintais de trigo, a França produziu, no decurso da campanha 1983/1984, 313 milhões de quintais.

c) O regime dos preços instituído no quadro da organização do mercado

A organização comum de mercado no sector dos cereais não instituiu um regime de preços comuns no que diz respeito à farinha de trigo.

Por outro lado, não consigo vislumbrar de que modo a regulamentação em causa possa afectar a formação do preço do trigo.

Em 1984, o regime de contingentação teria permitido transformar em farinha destinada ao consumo interno uma quantidade de 55 milhões de quintais de trigo. Na realidade, a procura justificou a transformação de apenas 43 milhões de quintais. Assim, é lícito supor que, na ausência desta regulamentação, nenhum quintal suplementar de trigo teria sido transformado em farinha.

A regulamentação em vigor não pôde, pois, exercer o menor efeito perturbador sobre o livre jogo da oferta e da procura de trigo, nem sobre o mecanismo de preços e o regime de intervenção instituídos pela organização comum de mercado.

Por outro lado, é evidente que num país como a França, em que o trigo utilizado para o consumo interno de farinha apenas representa cerca de 14 % da produção total daquela mercadoria, é o volume dessa produção total que determina o preço do trigo.

C — As regras de concorrência do Tratado

Embora o tribunal a quo não tenha colocado qualquer questão relativa à compatibilidade de uma regulamentação do tipo visado com as disposições do Tratado em matéria de concorrência, as arguidas no processo principal abordaram longamente esta questão. As suas observações estão enunciadas de modo bastante pormenorizado no relatório para audiência e não tenho, por isso, necessidade de as relembrar aqui.

Apenas o artigo 85.° do Tratado poderia entrar em linha de conta neste contexto. Este artigo visa os acordos entre empresas, as decisões de associações entre empresas e as práticas concertadas, e não as medidas legislativas ou regulamentares dos Estados-membros. Mas, como já várias vezes foi declarado pelo Tribunal, «os Estados-membros são todavia obrigados, por força do artigo 5.°, segundo parágrafo, do Tratado, a não pôr em perigo através da sua legislação nacional a aplicação plena e uniforme do direito comunitário e o efeito dos actos de execução deste, e a não adoptar ou manter em vigor medidas, mesmo de natureza legislativa ou regulamentar, susceptíveis de eliminar o efeito útil das regras de concorrência aplicáveis às empresas» ( 10 ).

Ora, considero que a Comissão e o Governo francês demonstraram de maneira convincente que a legislação em questão não impõe às empresas de moagem comportamentos vedados pelo artigo 85.° e que também não encoraja ou autoriza tais comportamentos.

O facto de, ao instituir os direitos de moagem, a regulamentação em causa ter tornado materialmente possível a celebração de acordos a esse respeito, não me parece afectar o efeito útil das regras de concorrência. Tal como a Comissão, sou da opinião de que só se a legislação francesa tornasse esses acordos juridicamente possíveis, no sentido de os tornar legítimos, é que ela seria criticável perante os artigos 3.°, alínea f), 5.°, segundo parágrafo, e 85.° do Tratado.

Existe uma segunda razão pela qual o artigo 85.° não pode ser considerado no presente processo. Trata-se do facto de a regulamentação em análise não ser susceptível de afectar o comércio entre Estados-membros.

No seu acórdão de 5 de Abril de 1984 (Van de Haar e Kaveka de Meern, processos apensos 177 e 178/82, Recueil, p. 1797), o Tribunal relembrou que «esta disposição só entra em linha de conta relativamente aos acordos, decisões ou práticas restritivas da concorrência que afectem de maneira sensível o comércio intracomunitário» (n.° 11) enquanto o artigo 30.° do Tratado não distingue entre medidas que podem ser qualificadas como medidas de efeito equivalente a uma restrição quantitativa consoante o grau em que afectem o comércio entre Estados-membros» (n.° 13).

Ora, não me parece possível a conclusão de que o regime francês de contingentação dos direitos de moagem possa afectar de maneira sensível o comércio intracomunitário.

Expus acima que, caso todos os moageiros decidissem comprar ao estrangeiro o trigo necessário para cobrir o consumo interno de farinha, poderiam fazê-lo sem qualquer dificuldade.

Por outro lado, o facto de em determinadas circunstâncias um moageiro individual poder ser levado a ter de, renunciar à compra de uma quantidade adicional de trigo, quer a um fornecedor francês, quer junto a um fornecedor estrangeiro, não é de natureza a pôr em causa «a liberdade do comércio entre Estados-membros num sentido que pudesse prejudicar a realização dos objectivos de um mercado único entre Estados» ( 11 ).

Caso determinado número de moagens viesse a celebrar um acordo de não comercialização dos direitos de moagem não utilizados de que dispusessem, caberia então às autoridades francesas competentes apreciar esse acordo à lur da legislação nacional.

O direito comunitário só poderia entrar em jogo se as quantidades «esterilizadas» tivessem como resultado a diminuição do total dos direitos de moagem utilizáveis abaixo do nível do consumo interno, o que parece puramente teórico.

Em conclusão, proponho que se responda nos seguintes termos à questão colocada pelo tribunal de grande instance de Mâcon:

«O artigo 30.° do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia e as disposições do Regulamento n.° 2727/75 do Conselho, de 29 de Outubro de 1975, que estabelece a organização comum de mercado no sector dos cereais, não devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional que limite as capacidades de produção das empresas de moagem no que diz respeito à farinha destinada ao consumo humano interno do Estado-membro em questão sempre que o volume total dos direitos de moagem de trigo resultante dessa regulamentação excede as quantidades de trigo necessárias para cobrir o referido consumo humano interno de farinha, e sempre que os eventuais entraves às trocas intracomunitárias que a aplicação dessa regulamentação possa acarretar não vão além do que é necessário para assegurar uma reestruturação ordenada do sector da moagem nesse Estado-membro.»


( *1 ) Tradução do francês.

( 1 ) Processo 190/73. Recueil 1974. p. 1129, e em especial p. 1143, segunda coluna, último número.

( 2 ) Ver acórdão do Tribunal de 29 de Novembro de 1978 no processo 83/78, Pigs Marketing Board/Remond, Recueil 1978, p. 2347, n.os 52 a 55.

( 3 ) Ver acórdão de 11 de Jutho de 1985, processos apensos 60 e 61/84, «videocassetes», Recueil 1985, p. 2605, n.° 21.

( 4 ) Ver, por exemplo, o processo 8/74, Dassonville, Recueil 1974, p. 837, ou o processo 35/76, Simmenthal, Recueil 1976, p. 1871, n.os 11 e 12.

( 5 ) Acresce a isto o facto de a importação do trigo destinado a ser reexportado sob a forma de farinha não ser abrangida pela legislação em causa.

( 6 ) 13 % do valor do produto acabado segundo a Comissão, 16 % segundo as arguidas no processo principal

( 7 ) Ver o n.° 12 do acórdão de 14 de Julho de 1981, processo 155/80, Oebel, Recueil 1981, p. 1993, 2008.

( 8 ) Ver as observações da Comissão, p. 8, primeiro parágrafo.A Comissão chega a esta conclusão a partir do acórdão do Tribunal de 7 de Fevereiro de 1984, Jongeneel Kaas, processo 237/83, p. 483, e em especial a partir do seu n.° 13, p. 484, cujo teor é o seguinte: «Na falta de qualquer regra comunitária sobre a qualidade dos produtos de queijo, os Estados-membros conservam o poder de impor essas regras aos produtores de queijo estabelecidos no seu território. Este poder alarga-se não somente às regras consideradas necessárias para a protecção do consumidor ou da saúde pública, mas também às regras que o Estado-membro pretenda instituir a fim de promover a qualidade da produção nacional. Tais regras não podem, contudo, criar discriminações em detrimento dos produtos importados, nem entravar a importação de produtos provenientes de outros Estados-membros».

( 9 ) Em 1984, subsistiam 238 moagens com um contingente de moagem inferior a 500 toneladas e 491 moagens com um contingente inferior a 1000 toneladas, num total de 1267 moagens.

( 10 ) Ver acórdãos de 10 de Janeiro de 1985, Association des centres distributeurs Edouard Leclerc/SA Thouars e. o., 229/83, Recueil 1985, p. 1, de 13 de Fevereiro de 1969, Walt Wilhelm e. o., M/68, Recueil 1969, p. 1, e de 16 de Novembro de 1977, INNO/ATAB, 13/77, Recueil 1977, p. 2115.

( 11 ) Acórdão de 13 de Julho de 1966, Consten e Grundig//Comissão, processos apensos 57 e 58/64, Recueil 1966, p. 495.