ACÓRDÃO DO TRIBUNAL

5 de Junho de 1986 ( *1 )

No processo 103/84,

Comissão das Comunidades Europeias, representada pelo seu consultor jurídico Gianluigi Campogrande e Thomas van Rijn, membro do seu Serviço Jurídico, na qualidade de agente, tendo escolhido como domicílio no Luxemburgo o escritório de Manfred Beschel, membro do Serviço Jurídico da Comissão, edifício Jean Monnet, Kirchberg,

recorrente,

contra

República Italiana, representada por Luigi Ferrari Bravo, chefe do Serviço de Contencioso Diplomático, na qualidade de agente, assistido por Pier Giorgio Ferri, avvocato dello Stato, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo, na sede da embaixada da Italia,

recorrida,

que tem por objecto declarar que a República Italiana, ao exigir que as empresas municipais que gerem serviços de transporte público adquiram veículos de produção nacional para beneficiarem dos auxílios financeiros previstos no artigo 13.° da Lei n.° 308 de 29 de Maio de 1982, faltou às obrigações que lhe incumbem por força do artigo 30.° do Tratado CEE,

O TRIBUNAL,

constituído pelos Srs. Mackenzie Stuart, presidente, T. Koopmans, U. Everling e R. Joliét, presidentes de secção, G. Bosco, Y. Galmot e T. F. O'Higgins, juízes,

advogado-geral: C. O. Lenz

secretário: P. Heim

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiencia de 28 de Janeiro de 1986,

profere o presente

ACÓRDÃO

(A parte relativa aos factos não é reproduzida)

Fundamentos da decisão

1

Por requerimento que deu entrada na Secretaria do Tribunal em 13 de Abril de 1984, a Comissão das Comunidades Europeias propôs, nos termos do artigo 169.° do Tratado CEE, uma acção com vista a que seja declarado que a República Italiana, ao exigir às empresas municipais que asseguram serviços públicos de transporte que, para beneficiar dos auxílios financeiros previstos no artigo 13.° da Lei n.° 308 de 29 de Maio de 1982, comprem veículos de produção nacional, faltou às obrigações que lhe incumbem por força do artigo 30.° do Tratado CEE.

2

Depreende-se dos autos que a Lei n.° 308 de 29 de Maio de 1982, publicada no Jornal Oficial da República Italiana n.° 154 de 7 de Junho de 1982 prevê, no seu artigo 13.°, uma dotação de 6 mil milhões de LIT, à razão de 2 mil milhões de LIT para o ano de 1982 e 4 mil milhões de LIT para o ano de 1983, para a concessão de um auxílio financeiro correspondente a 20 % do custo do veículo e de instalações fixas às empresas que gerem serviços de transporte público para as municipalidades das comunas em que a população é superior a 300000 habitantes, no caso de estas empresas comprarem veículos para o serviço urbano com tracção eléctrica ou mista fabricados em Itália.

3

Após ter recebido uma queixa da «Unione nazionale rappresentanti autoveicoli esteri» de Roma, a propòsito desta disposição, a Comissão, por ofício de 29 de Novembro de 1982, convidou o Governo italiano a apresentar as suas observações a propòsito da medida impugnada, por considerar que a condição à qual a referida lei subordinava a concessão dos auxilios previstos violava o artigo 30.° do Tratado CEE.

4

O Governo italiano respondeu, por oficio de 10 de Fevereiro de 1983 da representação permanente da Italia junto das Comunidades Europeias, que a Lei n.° 308 prosseguia objectivos em matéria de política energética, bem como em matéria de investigação e desenvolvimento. A lei teria por finalidade ajudar as empresas municipais a comprar veículos que consumissem menos energia e, desta forma, orientar os construtores italianos para o fabrico de veículos deste tipo. O Governo italiano contestou, além disso, que o artigo 13.° da mencionada lei constituísse uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa, argumentando que o objectivo deste artigo não era o de realizar a renovação total do parque de veículos de transporte público.

5

As observações do Governo italiano não modificaram a opinião da Comissão que, em 2 de Agosto de 1983, emitiu um parecer fundamentado, no qual a República Italiana era convidada a adoptar as medidas necessárias para agir em conformidade com o referido parecer no prazo de um mês a contar da sua notificação. O parecer fundamentado ficou sem resposta. No entanto, no decurso das reuniões efectuadas entre as autoridades italianas e os representantes da Comissão em Julho e Outubro de 1983, as autoridades italianas comprometeram-se a eliminar da legislação italiana a condição relativa à «nacionalidade» dos veículos destinados aos transportes em geral. Não tendo recebido qualquer informação a respeito da modificação formal da disposição impugnada, a Comissão propôs a presente acção.

Quanto à admissibilidade

6

Segundo o Governo italiano, a Comissão não teria legitimidade no caso concreto e a acção deveria, portanto, ser considerada como inadmissível. Argumentou que o artigo 13.° da Lei n.° 308 apenas tinha um efeito temporário e que a autorização de despesas só era válida por dois anos, 1982 e 1983. Durante esse período, nenhuma subvenção teria sido concedida e uma concessão após terminado o período de vigência da lei não seria possível, pelo que se poderia afirmar que a lei ficou praticamente inoperante. Por outro lado, teria sido elaborado um novo projecto, que já não comportaria a disposição em causa. Não haveria, assim, razões para que essa medida se viesse a repetir.

7

A Comissão observa que não está provado que o artigo 13.° da Lei n.° 308 tenha verdadeiramente esgotado todos os seus efeitos. Não estaria excluído que, com base neste artigo, ainda pudessem ser concedidas subvenções no caso de pedidos que tivessem dado entrada em 1982 ou 1983.

8

O argumento avançado pelo Governo italiano não pode ser admitido. Com efeito, há que notar, em primeiro lugar, que o parecer fundamentado foi emitido durante o período a que se referia o artigo 13.° da Lei n.° 308 e que o Governo italiano não tomou medidas para agir em conformidade no prazo fixado. O lapso de tempo transcorrido entre o fim do período a que se referia a mencionada lei e a presente acção não pode levar à conclusão de que a Comissão já não tem legitimidade para propor a acção. Como resulta do acórdão do Tribunal de 7 de Fevereiro de 1973 (Comissão/República Italiana, processo 39/72, Recueil, p. 101), o objecto de uma acção proposta nos termos do artigo 169.° é fixado pelo parecer fundamentado da Comissão e, mesmo no caso de o incumprimento ter sido sanado depois de terminado o prazo fixado de acordo com o segundo parágrafo do mesmo artigo, o prosseguimento da acção mantém o seu interesse.

9

Em segundo lugar, não é possível assegurar que a Lei n.° 308 continuará inoperante. O Governo italiano afirma nas suas respostas às questões colocadas pelo Tribunal, que dos onze pedidos de concessão do auxílio previsto no artigo 13.° da Lei n.° 308 que foram recebidos, nove foram formulados como simples declaração de intenção de comprar os veículos e não tiveram seguimento, devendo os dois outros ser considerados como «arquivados» por não ter sido apresentada a documentação completa exigida para a concessão do auxílio. Na audiência, todavia, o Governo italiano não pôde excluir a possibilidade de o artigo 13.° ainda vir a produzir efeitos no que respeita a estes dois últimos pedidos, os quais, por isso, ainda não podem ser considerados como rejeitados. Por conseguinte, não se pode concluir que a Lei n.° 308 não terá qualquer efeito e, assim, o interesse em declarar a sua incompatibilidade com o Tratado também subsiste neste aspecto. Como resulta da jurisprudência do Tribunal, este interesse pode consistir em demonstrar uma base de responsabilidade que eventualmente possa ser atribuída a um Estado-membro devido a um incumprimento, nomeadamente em relação àqueles que façam valer direitos decorrentes do mencionado incumprimento (acórdãos de 7 de Fevereiro de 1973, já citado e de 20 de Fevereiro de 1986, Comissão/República Italiana, processo 309/84, Recueil 1986, p. 599).

10

A excepção apresentada pela parte recorrida não deve, portanto, merecer acolhimento.

Quanto ao fundo da questão

11

A Comissão considera que o artigo 13.° da Lei n.° 308 deve ser considerado como medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa, uma vez que incentiva a compra de veículos de produção nacional. Com efeito, as empresas que gerem serviços de transporte público de interesse regional apenas poderiam beneficiar do auxílio se comprassem veículos fabricados em Itália. Os veículos de origem não italiana seriam, assim, objecto de discriminação'. A Comissão recorda igualmente, neste contexto, a Directiva 70/50 de 22 de Dezembro de 1969 (JO 1970 L 13, p. 29), cujo artigo 2.°, n.° 3, k), qualifica de medidas de efeito equivalente a uma restrição quantitativa as disposições que «levantam obstáculos à compra pelos particulares unicamente no caso de produtos importados ou incentivam a compra apenas de produtos nacionais, ou ainda impõem essa compra ou lhe concedem uma preferência», precisando o segundo considerando da directiva que «são considerados incentivos todos os actos que emanam de uma autoridade pública que, mesmo sem vincular juridicamente os seus destinatários, lhes determinam um certo comportamento».

12

A Comissão acrescenta que a condição a que está subordinada a concessão de auxílios não é necessária nem ao objecto nem ao funcionamento dos próprios auxílios. Observa que o objectivo que consiste na constituição de um parque de veículos que consumam menos energia pode ser alcançado, sem que seja necessário condicionar a concessão do auxílio à aquisição de veículos de produção nacional. O segundo objectivo, ou seja, o desenvolvimento do fabrico pelos construtores italianos de veículos que consumam menos energia, também não tornaria necessária a mencionada condição. Com efeito, se fosse oferecida às empresas de transporte a possibilidade de comprar igualmente veículos fabricados noutros Estados-membros, nas mesmas condições de financiamento, isto apenas poderia incentivar os produtores italianos a desenvolver o fabrico de veículos susceptíveis de fazer concorrência aos fabricados fora de Itália.

13

No decurso da audiência, o Governo italiano desenvolveu numerosos argumentos em sua defesa.

14

Em primeiro lugar, sustentou que os destinatários da medida de incentivo constituem uma categoria restritiva de operadores e que as compras a incentivar não dizem respeito a mercadorias existentes no mercado, mas a produtos experimentais. O montante do financiamento total mostraria que as subvenções não têm em vista a renovação do parque dos veículos das empresas de transporte geridas pelas municipalidades, mas a realização pelas empresas fabricantes, por encomenda das empresas de transporte, de verdadeiros protótipos de veículos.

15

Em segundo lugar, o Governo italiano considera que as condições que acompanham a compra de protótipos de veículos nacionais possuem, em si mesmas, características objectivas de um auxílio, o que implicaria uma apreciação nos termos dos artigos 92.° e 93.° do Tratado e não à luz do artigo 30.° do Tratado.

16

O Governo italiano sustenta, por fim, que o supracitado artigo 2° , n.° 3, k), da directiva de 22 de Dezembro de 1969, invocado pela Comissão, se refere exclusivamente aos particulares, quando pressupõe que todos os operadores do mercado são visados. Esta disposição, por conseguinte, não teria aplicação no caso concreto, visto que, em primeiro lugar, os destinatários seriam limitados a um máximo de vinte, ou seja, apenas as empresas de transporte público urbano que exercem a sua actividade nas cidades com mais de 300000 habitantes e, em segundo lugar, os produtos abrangidos seriam produtos experimentais e não mercadorias existentes no mercado.

17

Esta argumentação merece as seguintes observações.

18

O primeiro argumento, que essencialmente pretende demonstrar que a medida nacional em questão teria um alcance econômico relativamente reduzido e, por isso, não constituiria verdadeiramente um entrave à livre circulação de mercadorias, não pode ser acolhido. De acordo com uma jurisprudência constante do Tribunal, toda a regulamentação comercial dos Estados-membros que seja susceptível de entravar directa ou indirectamente, efectiva ou potencialmente, o comércio intracomunitário deve ser considerada como uma medida de efeito equivalente a restrições quantitativas. Ainda que o artigo 13.° da Lei n.° 308 pudesse ser considerado como uma medida de importância económica relativamente diminuta, o que não é o caso, uma vez que a subvenção é concedida até ao limite de 20 % do custo do veículo e é susceptível de produzir efeitos sobre as trocas entre Estados-membros, tendo em conta os consideráveis montantes disponíveis, cabe recordar, como o Tribunal já afirmou inúmeras vezes, que uma medida nacional não escapa à proibição do artigo 30.°, pelo simples facto de o entrave criado à importação ser reduzido e de existirem outras possibilidades de escoar os produtos importados (acórdãos de 5 de Abril de 1984, van de Haar e outros, processos 177 e 178/82, Recueil, p. 1797, e de 14 de Março de 1985, Comissão/República Francesa, processo 269/83, Recueil 1985, p. 837).

19

Quanto à questão de saber se as subvenções previstas pela Lei n.° 308 poderiam eventualmente ser consideradas como um auxílio, na acepção do artigo 92.° do - Tratado, convém assinalar, em primeiro lugar, que esta medida nunca foi notificada como tal à Comissão. Em segundo lugar, como o Tribunal salientou no acórdão de 7 de Maio de 1985 (Comissão/República Francesa, processo 18/84, Recueil 1985, p. 1339), o artigo 92.° não pode, em nenhum caso, pôr em causa as regras do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias. De acordo com uma jurisprudência constante do Tribunal, as normas relativas à livre circulação de mercadorias e as relativas aos auxílios prosseguem um objectivo comum, que é garantir a livre circulação de mercadorias entre Estados-membros em condições normais de concorrência (acórdão de 22 de Março de 1977, Iannelli & Volpi, processo 74/76, Recueil, p. 557, e de 7 de Maio de 1985, acima refendo). Como observa ainda o Tribunal neste ùltimo acórdão, o facto de uma medida nacional poder ser eventualmente qualificada como auxílio na acepção do artigo 92.° não é razão suficiente para a excluir da proibição do artigo 30.° Assim, o argumento da República Italiana, extraído do regime comunitário de auxílios, não pode ser aceite.

20

No que respeita a aplicabilidade dos critérios da Directiva 70/50, convém notar, como resulta do próprio texto do n.° 3 do artigo 2.° da referida directiva, que as medidas de efeito equivalente aí referidas são exemplificativas. Além disso, a Directiva 70/50 deve ser interpretada à luz do artigo 30.° do Tratado, não podendo ser invocada em oposição ao objectivo enunciado neste artigo e cuja realização igualmente prossegue. Deste modo, o argumento da República Italiana, baseado na directiva de 22 de Dezembro de 1969, deve ser afastado.

21

No que respeita à eventual aplicabilidade do artigo 36.° do Tratado, a Comissão observa que este artigo não é aplicável no caso concreto para justificar a medida impugnada mediante argumentos de política energética ou de política de investigação e desenvolvimento, uma vez que esta norma se refere a medidas de natureza não econômica. A República Italiana não contesta este argumento, ressalvando apenas a consideração de que o sistema de concessão das subvenções em causa deve ser apreciado, primeiramente, à luz do artigo 92.° do Tratado.

22

Sobre este ponto há que lembrar que, de acordo com uma jurisprudência constante do Tribunal, o artigo 36.° do Tratado, antes de mais nada, deve ser interpretado restritivamente e que as excepções que enumera não podem ser alargadas a situações diferentes das que taxativamente estão previstas e que, além disso, este artigo tem em vista hipóteses de natureza não económica (acórdãos de 19 de Dezembro de 1961, Comissão/República Italiana, processo 7/61, Recueil, p. 633 e de 7 de Fevereiro de 1984, Duphar/Estado neerlandês, processo 238/82, Recueil, p. 523).

23

Ora, de acordo com as explicações dadas pela República Italiana, durante o processo perante o Tribunal, o artigo 13.° da Lei n.° 308 prossegue dois objectivos de ordem económica, tanto em matéria de política energética como em matéria de política de investigação e desenvolvimento. Por conseguinte, o artigo 36.° do Tratado não seria aplicável.

24

Por tudo quanto acaba de se expor e de acordo com a jurisprudência do Tribunal, especialmente do acórdão de 11 de Dezembro de 1985 (Comissão/República Helénica, processo 192/84, Recueil 1985, p. 3967), conclui-se que a disposição italiana em causa, uma vez que incentiva a compra de veículos de produção nacional, deve ser qualificada como medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa, proibida pelo artigo 30.° do Tratado.

25

Assim, deve declarar-se que, ao exigir que as empresas municipais que gerem serviços de transporte público adquiram veículos de produção nacional para beneficiarem dos auxílios financeiros previstos no artigo 13.° da Lei n.° 308 de 29 de Maio de 1982, a República Italiana faltou às obrigações que lhe incumbem por força do artigo 30.° do Tratado CEE.

Quanto às despesas

26

Nos termos do n.° 2 do artigo 69.° do Regulamento Processual, a parte vencida deve ser condenada nas despesas. A República Italiana, tendo sucumbido na sua argumentação, é condenada nas despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL

decide:

 

1)

Ao exigir que as empresas municipais que gerem serviços de transporte público adquiram veículos de produção nacional, para beneficiarem dos auxílios financeiros previstos no artigo 13.° da Lei n.° 308 de 29 de Maio de 1982, a República Italiana faltou às obrigações que lhe incumbem por força do artigo 30.° do Tratado CEE.

 

2)

A República Italiana é condenada nas despesas do processo.

 

Mackenzie Stuart

Koopmans

Everling

Joliét

Bosco

Galmot

O'Higgins

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, a 5 de Junho de 1986.

O secretario

P. Heim

O presidente

A. J. Mackenzie Stuart


( *1 ) Lingua do processo: italiano.