61983J0152

ACORDAO DO TRIBUNAL DE JUSTICA (QUARTA SECCAO) DE 6 DE OUTUBRO DE 1987. - MARCEL DEMOUCHE E OUTROS CONTRA FONDS DE GARANTIE AUTOMOBILE E SERVICO CENTRAL FRANCES. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICIAL APRESENTADO PELO TRIBUNAL DE GRANDE INSTANCE DE COLMAR. - SEGURO AUTOMOVEL - ACORDOS DE DIREITO PRIVADO ENTRE ASSOCIACOES DE SEGURADORES. - PROCESSO 152/83.

Colectânea da Jurisprudência 1987 página 03833


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


++++

Questões prejudiciais - Competência do Tribunal - Actos adoptados pelas instituições - Acordo entre serviços nacionais de seguros previsto pela directiva relativa ao seguro de responsabilidade civil automóvel - Exclusão

(Artigo 177.° do Tratado CEE; directiva do Conselho 72/166)

Sumário


No âmbito do artigo 177.° do Tratado, o Tribunal não é competente para interpretar um acordo celebrado entre serviços nacionais de seguros, embora tal acordo tenha sido previsto pela Directiva 72/166, relativa ao seguro de responsabilidade civil automóvel. O lugar ocupado pelo referido acordo no regime criado pela directiva não altera efectivamente em nada a sua natureza de acto emanado de associações privadas, em cuja celebração não participou nenhuma instituição comunitária.

Partes


No processo 152/83,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal, ao abrigo do artigo 177.° do Tratado CEE, pelo tribunal de grande instance de Colmar e que visa obter, no processo pendente neste tribunal nacional entre

1) Marcel Demouche,

2) Companhia de Seguros "Allianz",

3) HUK-Verband,

e

1) Fonds de garantie automobile,

2) Serviço Central francês,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do acordo-tipo interserviços, de 17 de Dezembro de 1953, e do acordo complementar entre serviços nacionais, de 16 de Outubro de 1972, relativos ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis,

O TRIBUNAL (Quarta Secção),

constituído pelos Srs. C. N. Kakouris, presidente de secção, T. Koopmans e G. C. Rodríguez Iglesias, juízes,

advogado-geral: Sir Gordon Slynn

secretário: B. Pastor, administradora

vistas as observações apresentadas:

- em representação da Companhia de Seguros "Allianz", demandante no processo principal, pelo advogado Bergmann,

- em representação do HUK-Verband, demandante no processo principal, pelo advogado C. Hootz,

- em representação do Serviço Central francês, demandado no processo principal, pelo advogado L. Funck Brentano,

- em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por J. Amphoux, membro do seu Serviço Jurídico, na qualidade de agente,

visto o relatório para audiência e após a realização desta em 1 de Julho de 1987,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência do mesmo dia,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por decisão de 6 de Julho de 1983, entrada no Tribunal em 26 de Julho seguinte, o tribunal de grande instance de Colmar apresentou, ao abrigo do artigo 177.° do Tratado CEE, uma questão prejudicial relativa à interpretação do acordo-tipo interserviços de 17 de Dezembro de 1953 e do acordo complementar de 16 de Outubro de 1972, celebrados entre os serviços nacionais dos seguradores automóveis e relativos ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis.

2 Essa questão foi suscitada no quadro de um litígio que opõe as partes no processo principal quanto à competência do tribunal de reenvio para se pronunciar sobre a imputabilidade final do ressarcimento devido à vítima de um acidente de viação, tendo em conta as cláusulas compromissórias incluídas nos acordos acima referidos.

O enquadramento jurídico

3 Na Comunidade, o seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis que têm o seu estacionamento habitual noutro Estado é objecto de convenções de direito privado e de actos comunitários.

4 O primeiro acordo desse género, designado por "acordo-tipo interserviços" assinado em 17 de Dezembro de 1953 entre os serviços centrais dos países membros, instituiu um sistema de cooperação, conhecido como "sistema da carta verde", que tem como base uma carta verde de seguro estandardizada. De acordo com este sistema, cada serviço central nacional, associação composta pela totalidade ou pela maioria das companhias de seguros, compromete-se, por um lado, a pagar no seu próprio país os prejuízos causados pelos veículos matriculados nos outros países membros, munidos da carta verde e, por outro, a reembolsar os serviços estrangeiros que pagaram os prejuízos provocados por veículos segurados no seu próprio país.

5 O artigo 13.° do referido acordo dispõe que "... os diferendos entre serviços quanto à interpretação e efeitos do presente acordo serão submetidos a árbitros..." e que "a decisão dos árbitros será definitiva e vinculará os serviços ..." (tradução provisória).

6 Com a finalidade de facilitar mais o trânsito de viajantes entre os Estados-membros, a Directiva 72/166 do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (JO L 103, p. 1; EE 13 F2 p. 113), instituiu um sistema que se baseia nos seguintes pontos: previsão, na legislação de todos os Estados-membros, do seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante dos veículos automóveis (artigo 3.°), e, portanto, a presunção de que qualquer veículo automóvel comunitário que circule no território da Comunidade está coberto por um seguro; supressão da fiscalização da carta verde, na passagem das fronteiras intracomunitárias, para os veículos que tenham o seu estacionamento habitual num Estado-membro (n.° 1 do artigo 2.°).

7 O funcionamento do referido sistema pressupunha que cada serviço nacional garantiria a indemnização dos danos ressarcíveis causados no seu território por um veículo, segurado ou não, que tivesse o seu estacionamento habitual num Estado-membro e disporia de direito de regresso contra o serviço do país do estacionamento habitual do veículo ou contra o segurador. Em função desta necessidade, o n.° 2 do artigo 2.° da directiva dispõe o seguinte:

"No que respeita aos veículos que tenham o seu estacionamento habitual no território de um dos Estados-membros, as disposições da presente directiva, com excepção do previsto nos artigos 3.° e 4.°, produzem os seus efeitos:

- a partir do momento em que tenha sido concluído um acordo entre os seus serviços nacionais de seguros, nos termos do qual cada serviço nacional se responsabiliza pela regularização, nas condições fixadas pela respectiva legislação nacional do seguro obrigatório, dos sinistros ocorridos no seu território e provocados pela circulação de veículos que tenham o seu estacionamento habitual no território de um outro Estado-membro, estejam ou não seguros;

- a partir da data fixada pela Comissão, após esta ter verificado, em estreita colaboração com os Estados-membros a existência do referido acordo;

- pelo período de duração do mesmo acordo."

8 Tendo em conta a referida directiva, os serviços nacionais dos Estados-membros, bem como de dois países terceiros, celebraram em 16 de Outubro de 1972 um acordo complementar ao de 1953 que entraria em vigor "na data prevista no segundo travessão do n.° 2 do artigo 2.° da directiva...", ou seja, na data fixada pela Comissão. A alínea c) do artigo 1.° do acordo em questão declara que as partes contratantes se fundamentam na directiva, e a alínea d) do mesmo artigo prevê que "os diferendos entre serviços relativos à interpretação do conceito de estacionamento habitual que não se encontre acima definido serão submetidos a um colectivo de três árbitros..."

9 Pela Recomendação 73/185, de 13 de Maio de 1973 (JO L 194 p. 13), a Comissão declarou, com fundamento no segundo travessão do n.° 2 do artigo 2.° da directiva do Conselho já referida, que o referido acordo complementar preenchia as condições previstas no primeiro travessão da mesma disposição, e fixou a data a partir da qual os Estados-membros se deviam abster de efectuar, na fronteira, a fiscalização do seguro de responsabilidade civil para veículos com o seu estacionamento habitual no território de outro Estado-membro.

10 Na sequência da adesão posterior de países terceiros ao sistema acima referido, pela celebração de novos acordos complementares entre serviços nacionais, a Comissão actuou sempre através da adopção de decisões com a mesma base legal e com a mesma formulação da sua primeira recomendação, fixando de cada vez a data a partir da qual deveria ser suprimida a fiscalização na fronteira. Um dos acordos complementares,o de 12 de Dezembro de 1973, foi anexado à Decisão 74/167 da Comissão, de 6 de Fevereiro de 1974 (JO L 87, p. 14; EE 13 F3 p. 211), e publicado no Jornal Oficial.

O litígio no processo principal

11 O litígio no processo principal teve origem num acidente de viação ocorrido em França em Agosto de 1973, no qual M. Demouche, cidadão francês, foi ferido por um veículo matriculado na República Federal da Alemanha, segurado por uma companhia de seguros alemã, e cujo condutor não era titular de carta de condução.

12 O Serviço Central francês, chamado ao processo para indemnizar a vítima, chamou à autoria a companhia de seguros alemã e o Serviço Central alemão. Este arguiu a incompetência do tribunal francês baseando-se na cláusula compromissória do artigo 13.° do acordo interserviços, de 17 de Dezembro de 1953, já mencionado, nos termos da qual "os diferendos entre serviços quanto à interpretação e efeitos do presente acordo serão submetidos a árbitros...". O Serviço Central francês sustentou que esta cláusula foi alterada pelo acordo complementar interserviços de 16 de Outubro de 1972 ((alínea c) do artigo 2.°)) já referido, que teve como efeito limitar para o futuro a aplicação da cláusula compromissória apenas ao caso de o diferendo incidir sobre a interpretação do conceito de "estacionamento habitual".

13 O tribunal de grande instance de Colmar suspendeu a instância quanto à intervenção provocada e submeteu ao Tribunal a questão de saber

"se o acordo complementar de 16 de Outubro de 1972 limitou a aplicação da cláusula compromissória, que o acordo de 17 de Dezembro de 1953 tinha previsto como geral, apenas ao caso de existir um diferendo entre serviços quanto à interpretação do conceito de estacionamento habitual".

14 Para uma mais ampla exposição dos factos e do enquadramento jurídico bem como da tramitação do processo e das observações apresentadas ao Tribunal, remete-se para o relatório para audiência. Esses elementos do processo apenas serão retomados adiante na medida do necessário à fundamentação do Tribunal.

Quanto à competência do Tribunal

15 O Serviço Central francês, demandado no processo principal, o Governo do Reino Unido, o Governo dinamarquês e a Comissão sustentam nas suas observações escritas que o Tribunal de Justiça é incompetente para interpretar as disposições a que se refere a questão submetida pelo tribunal nacional, pelo facto de os acordos entre serviços centrais, sendo celebrados entre organismos de direito privado, terem a natureza de acordos privados, não sendo, pois, actos adoptados pelas instituições da Comunidade, na acepção do artigo 177.° do Tratado CEE.

16 O Serviço Central alemão "HUK-Verband", demandante, sustenta, pelo contrário, que o Tribunal de Justiça é competente para interpretar os acordos em questão, opinião a que o Serviço Central francês veio a aderir na audiência. Segundo eles, a Directiva 72/166 faz depender a sua entrada em vigor da celebração de um acordo complementar, entre serviços centrais dos Estados-membros, cuja duração condiciona a duração da aplicabilidade da directiva; assim, a finalidade dessa directiva não poderia ser atingida sem a ajuda do acordo em questão. Além disso, o facto de o acordo complementar de 1973 ter sido anexado à Decisão 74/167 da Comissão, já referida, provaria a ligação dos acordos em questão aos actos comunitários que regulam essa matéria.

17 É de notar neste contexto que, por força do artigo 177.°, "o Tribunal de Justiça é competente para decidir, a título prejudicial,... b) sobre a validade e interpretação dos actos adoptados pelas instituições da Comunidade...". Por isso, há que examinar se o acordo complementar de 16 de Outubro de 1972, cuja interpretação é solicitada pelo tribunal nacional, deve ser considerado como um acto adoptado por uma instituição da Comunidade, na acepção daquela disposição.

18 Não se contesta que o acordo complementar foi elaborado e celebrado por associações nacionais de seguradores, que são organismos regidos pelo direito privado, actuando no âmbito da missão que lhes é conferida pelos seus estatutos e pela legislação nacional a que estão sujeitos.

19 O acordo não poderá, por conseguinte, ser considerado um acto adoptado por uma instituição comunitária, uma vez que nenhuma instituição ou órgão comunitário participou na aprovação desse acto. O facto de a celebração desse acordo ter sido prevista como condição para a entrada em vigor da Directiva 72/166 do Conselho e de a duração da aplicabilidade da referida directiva ser condicionada pela duração do acordo complementar em nada altera a natureza do acordo como acto emanado de associações privadas.

20 Esta consideração não poderia ser prejudicada pelo facto de a Comissão, através de uma recomendação e de decisões sucessivas, ter declarado a conformidade dos acordos complementares em causa com as exigências da directiva, nem pelo facto de um desses acordos (já referidos) ter sido anexado a uma dessas decisões da Comissão e publicada com ela no Jornal Oficial. Trata-se aí apenas de uma declaração da Comissão de que a condição prevista no n.° 2 do artigo 2.° da directiva do Conselho estava preenchida, declaração que de forma alguma equivale à integração do acordo no texto da decisão nem à sua conversão em acto comunitário.

21 Tendo em conta as considerações que antecedem, há que declarar que o Tribunal não tem competência para decidir, a título prejudicial, sobre a questão submetida pelo tribunal nacional.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

22 As despesas efectuadas pelo Governo do Reino Unido, pelo Governo dinamarquês e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não podem ser reembolsadas. Tendo o processo, em relação às partes no processo principal, o carácter de incidente suscitado perante o tribunal nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL (Quarta Secção),

decidindo sobre a questão que lhe foi submetida pelo tribunal de grande instance de Colmar, por decisão de 6 de Julho de 1983, declara:

O Tribunal não é competente para decidir sobre a questão submetida pelo tribunal nacional.