ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

9 de Novembro de 1978 ( *1 )

No processo 23/78,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do Protocolo de 3 de Junho de 1971 relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial, pelo Bundesgerichtshof, destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

Nikolaus Meeth, comerciante, proprietário da empresa Nikolaus Meeth, fábrica de janelas e de produtos em madeira, com sede em Piesport/Mosela (República Federal da Alemanha)

e

Glacetal, sociedade de responsabilidade limitada, com sede em Vienne/Estressin (França),

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 17o, primeiro parágrafo, da Convenção de 27 de Setembro de 1968,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: H. Kutscher, presidente, J. Mertens de Wilmars e A. J. Mackenzie Stuart, presidentes de secção, P. Pescatore, M. Sørensen, A. 0'Keeffe e G. Bosco, juízes,

advogado-geral: F. Capotorti

secretário: A. Van Houtte

profere o presente

Acórdão

(A parte relativa à matéria de facto não é reproduzida)

Fundamentos da decisão

1

Por despacho de 1 de Fevereiro de 1978, que deu entrada no Tribunal em 27 de Fevereiro seguinte, o Bundesgerichtshof submeteu, ao abrigo do Protocolo de 3 de Junho de 1971 relativo à interpretação da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial (a seguir «Convenção»), algumas questões sobre a interpretação do artigo 17.o da Convenção.

2

Resulta do processo, que a empresa Nikolaus Meeth, fábrica de janelas e de produtos em madeira, com sede em Piesport/Mosela (República Federal da Alemanha), ré no processo principal e autora no processo de revisão, está vinculada por contrato à sociedade de responsabilidade limitada Glacetal, com sede em Vienne/Estressin (França), autora no processo principal e ré no processo de revisão, relativamente a fornecimentos de vidro, efectuados pela empresa francesa à empresa alemã.

As partes convencionaram entre si que o contrato é regido pelo direito alemão, que o lugar de cumprimento do contrato é Piesport e que «qualquer acção judicial intentada pela Meeth contra a Glacetal deve ser submetida aos tribunais franceses; inversamente, qualquer acção judicial intentada pela Glacetal contra a Meeth deve ser submetida aos tribunais alemães».

Como a Meeth não pagou determinados fornecimentos feitos pela Glacetal, a empresa francesa intentou uma acção de cobrança dos seus créditos no tribunal de Trier — competente em razão do domicílio da ré —, que condenou a empresa alemã ao pagamento da sua dívida.

3

No âmbito desta instância, a Meeth opôs ao pedido da Glacetal um crédito relativo aos danos que alega ter sofrido em virtude do cumprimento tardio ou defeituoso, pela empresa francesa, das suas obrigações contratuais.

A compensação do referido crédito com o preço de venda reclamado pela empresa francesa foi, contudo, indeferida pelos juízes de primeira instância, por considerarem que a Meeth não apresentou qualquer prova convincente em apoio do seu pedido de indemnização de perdas e danos.

Tendo o processo transitado em via de recurso para o Oberlandesgericht Koblenz, este órgão jurisdicional, por sua vez, reconheceu o crédito da empresa francesa, sem prejuízo, contudo, dos efeitos de uma concordata preventiva de falência entretanto celebrada.

No que diz respeito à compensação do preço de venda com o crédito exigido pela Meeth, o Oberlandesgericht indeferiu a excepção deduzida pela ré, com o fundamento de o pacto atributivo de jurisdição inserido no contrato celebrado entre as partes não permitir invocar a referida reclamação perante os órgãos jurisdicionais alemães.

Tendo sido interposto recurso de revisão contra tal acórdão para o Bundesgerichtshof, este órgão jurisdicional, considerando que a solução desta questão depende da interpretação do artigo 17.o da Convenção, submeteu ao Tribunal, a este propósito, duas questões prejudiciais.

Quanto à primeira questão

4

Na primeira questão pergunta-se se:

«A cláusula contratual nos termos da qual cada uma das duas partes num contrato de compra e venda, com domicílio em Estados diferentes, só pode ser demandada perante os tribunais do seu Estado é compatível com o artigo 17.o, primeiro parágrafo, da Convenção de 1968?»

5

Nos termos do artigo 17.o, primeiro parágrafo, «se as partes… convencionarem que um tribunal ou tribunais de um Estado contratante têm competência para decidir dos litígios surgidos ou a surgir em conexão com uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou os tribunais desse Estado terão competência exclusiva».

A interpretação da referida disposição, tendo em consideração uma atribuição recíproca de competência, tal como consta do contrato cujo cumprimento é objecto do litígio, suscita uma dificuldade devido ao facto de o artigo 17.o se referir, na sua letra, à designação, pelas partes no contrato, de um único tribunal ou dos tribunais de um único Estado.

Tal formulação, inspirada pela prática mais corrente da vida económica, não pode contudo ser interpretada no sentido de pretender excluir a possibilidade de as partes designarem dois ou mais tribunais a fim de dirimirem eventuais litígios.

Esta interpretação justifica-se em virtude de o artigo 17.o se basear no reconhecimento da autonomia da vontade das partes em matéria de atribuição de competência aos órgãos jurisdicionais chamados a decidir de litígios que caibam no âmbito de aplicação da Convenção e que não sejam os que são expressamente exceptuados por força do artigo 17.o, segundo parágrafo.

Assim deve ser, de modo muito especial, no caso de, mediante tal cláusula, as partes terem atribuído competência, reciprocamente, aos órgãos jurisdicionais designados pela norma geral do artigo 2o da Convenção.

Apesar desta coincidência, tal cláusula terá sempre um efeito útil, na medida em que tem como consequência a exclusão, nas relações entre as partes, de outras atribuições de competência de carácter facultativo, tais como as que constam dos artigos 5.o e 6.o da Convenção.

6

Deve, por conseguinte, responder-se à primeira questão no sentido de que o artigo 17.o, primeiro parágrafo, da Convenção, não pode ser interpretado como excluindo uma cláusula contratual nos termos da qual cada uma das duas partes num contrato de compra e venda, com domicílio em Estados diferentes, só pode ser demandada perante os tribunais do seu Estado.

Quanto à segunda questão

7

Na segunda questão pergunta-se se:

«Uma cláusula contratual deste teor, na hipótese de ser lícita na acepção do artigo 17.o, primeiro parágrafo, da Convenção de 1968, exclui qualquer possibilidade, para uma parte num contrato, de invocar contra o pedido da outra parte, perante o tribunal competente para decidir deste pedido, a compensação fundada num crédito ao qual a cláusula é aplicável?»

8

Nos termos do artigo 17.o, primeiro parágrafo, a atribuição de competência realiza-se tendo em vista a solução de litígios surgidos ou a surgir «em conexão com uma determinada relação jurídica».

A questão de saber em que medida um órgão jurisdicional, chamado a decidir por força de um pacto de atribuição recíproca de jurisdição, do tipo daquele que consta do contrato entre as partes, é competente para decidir de uma compensação invocada por uma das partes em virtude da obrigação litigiosa, deve ser resolvida tendo em conta não só as exigências do respeito da autonomia privada inspirada, como acima foi dito pelo artigo 17.o, mas também as necessidades da economia processual, que são a base de toda a Convenção em que este artigo se insere.

À luz desta dupla finalidade, não pode interpretar-se o artigo 17.o no sentido de impedir que o juiz, chamado a decidir por força de uma cláusula atributiva de competência do tipo da que foi acima referida, tome em consideração uma compensação conexa com a relação jurídica litigiosa, se entender que tal tomada em consideração é compatível com a letra e o espírito da cláusula atributiva de jurisdição.

9

Deve, por conseguinte, responder-se à segunda questão no sentido de que o artigo 17.o, primeiro parágrafo, da Convenção, não pode ser interpretado como excluindo, no caso de uma cláusula de atribuição de competência tal como foi caracterizada na resposta à primeira questão, a possibilidade de o juiz, chamado a decidir de um litígio por força de tal cláusula, tomar em consideração uma compensação conexa com a relação jurídica litigiosa.

Quanto às despesas

10

As despesas efectuadas pelo Governo da República Federal da Alemanha e pela Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis.

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o Bundesgerichtshof, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões que lhe foram submetidas pelo Bundesgerichtshof, por despacho de 1 de Fevereiro de 1978, declara:

 

1)

O artigo 17.o, primeiro parágrafo, da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial, não pode ser interpretado no sentido de excluir uma cláusula contratual nos termos da qual cada uma das duas partes num contrato de compra e venda, com domicílio em Estados diferentes, só pode ser demandada perante os tribunais do seu Estado.

 

2)

O artigo 17.o, primeiro parágrafo, da Convenção de 27 de Setembro de 1968, não pode ser interpretado no sentido de excluir, no caso de uma cláusula de atribuição de competência tal como foi caracterizada na resposta à primeira questão, a possibilidade de o juiz, chamado a decidir de um litígio por força de tal cláusula, tomar em consideração uma compensação conexa com a relação jurídica litigiosa.

 

Kutscher

Mertens de Wilmars

Mackenzie Stuart

Pescatore

Sørensen

O'Keeffe

Bosco

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 9 de Novembro de 1978.

O secretário

A. Van Houtte

O presidente

H. Kutscher


( *1 ) Língua do processo: alemão.