ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

23 de Novembro de 1978 ( *1 )

No processo 7/78,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, pela Court of Appeal (Criminal Division), destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

A Rainha

e

Ernest George Thompson, Brian Albert Johnson e Colin Alex Norman Woodiwiss,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do termo «capitais», na acepção da parte II, título III, capítulo IV, do Tratado CEE,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: H. Kutscher, presidente, Mackenzie Stuart, presidente de secção, A. M. Donner, P. Pescatore, M. Sørensen, A. 0'Keeffe e G. Bosco, juízes,

advogado-geral: H. Mayras

secretário: A. Van Houtte

profere o presente

Acórdão

(A parte relativa à matéria de facto não é reproduzida)

Fundamentos da decisão

1

Por despacho de 15 de Dezembro de 1977, que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 16 de Janeiro de 1978, a Court of Appeal of England and Wales (Criminal Division) submeteu ao Tribunal, ao abrigo do artigo 177.o do Tratado CEE, várias questões relativas à interpretação dos artigos 30o a 37.o e 67.o a 73o do Tratado.

2

Estas questões foram suscitadas no âmbito de um recurso interposto em processo penal por três nacionais britânicos (a seguir «os recorrentes») declarados culpados pela Crown Court of Canterbury por terem iludido consciente e fraudulentamente a proibição relativa à importação de moedas de ouro para o Reino Unido, bem como a proibição relativa à exportação de moedas de liga de prata do Reino Unido cunhadas antes de 1947.

3

A importação de moedas de ouro para o Reino Unido é proibida por força da Import of Goods (Control) Order 1954, adoptada pelo Board of Trade no exercício dos poderes que lhe foram conferidos pelo Import, Export and Customs Powers (Defence) Act 1939.

4

Por força de uma Open General Licence (licença global de importação) concedida pelo Secretary of State for Trade and Industry e datada de 5 de Julho de 1973, era autorizada a importação de todas as mercadorias, salvo certas excepções que não incluíam as moedas de ouro, mas que, por força de uma alteração à referida licença, intitulada «Amendment n.o 10», datada de 15 de Abril de 1975 e que entrou em vigor em 16 de Abril de 1975, as moedas de ouro eram incluídas no elenco das mercadorias cuja importação se proibia, salvo licença concedida pelo Board of Trade.

5

Nos termos da Export of Goods (Control) Order 1970, adoptada no exercício dos poderes conferidos pelo referido Act 1939, é proibido — salvo concessão de uma licença — exportar, na razão de mais de dez de cada vez, moedas de liga de prata do Reino Unido cunhadas antes de 1947, e que não tenham, à data da sua exportação, mais de cem anos.

6

A exportação de tais moedas para outro Estado-membro da CEE foi autorizada por uma Open General Licence concedida pelo Secretary of State e datada de 20 de Dezembro de 1972, que foi revogada e substituída, no que toca a tais moedas, por outra Open General Licence, datada de 25 de Junho de 1973.

7

Esta segunda Open General Licence foi revogada por uma nova Open General Licence datada de 5 de Julho de 1974, que entrou em vigor a 15 de Julho de 1974, cujo efeito era o de excluir tais moedas da autorização da Open General Licence, de tal forma que, a partir de 15 de Julho de 1974, estas só poderiam ser exportadas ao abrigo de uma licença.

8

Os recorrentes fizeram entrar no Reino Unido, entre 24 de Abril de 1975 e 30 de Junho de 1975, 3400Krugerrands sul-africanos provenientes da firma Agosi, de Pforzheim, na República Federal da Alemanha.

9

Além disso, exportaram entre 7 de Agosto de 1974 e 26 de Maio de 1975, para aquela mesma firma alemã, 40,39 toneladas de moedas de liga de prata cunhadas no Reino Unido antes de 1947, isto é, moedas de six pence, shillings, florins e meias-coroas.

10

Os interessados, tendo-se considerado «culpados» perante o juiz de primeira instância, interpuseram recurso para a Court of Appeal (Criminal Division), alegando aí que as disposições da legislação britânica que proíbem as importações e as exportações em causa violam os artigos 30.o e 34.o do Tratado.

11

O artigo 30.o, tal como foi completado pelo artigo 42.o do acto de adesão, proibiria, o mais tardar a partir de 1 de Janeiro de 1975, relativamente ao Reino Unido, qualquer medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à importação proveniente dos outros Estados-membros.

12

O artigo 34.o, tal como foi completado pelo referido artigo 42.o, proibiria, o mais tardar a partir de 1 de Janeiro de 1975, relativamente ao Reino Unido, qualquer medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à exportação para os outros Estados-membros.

13

Os recorrentes alegaram igualmente que as restrições à exportação e à importação constantes da legislação britânica não podiam justificar-se por razões de ordem pública, com fundamento no artigo 36.o do Tratado.

14

Em compensação, o Governo do Reino Unido continuou a sustentar que as moedas importadas, bem como as exportadas, constituiriam «capitais», na acepção do artigo 67.o e seguintes do Tratado, sendo-lhes portanto inaplicável o disposto nos artigos 30o e 34.o

15

Ainda que as moedas em causa se devessem considerar como mercadorias que caem sob a alçada do disposto no artigo 30.o e seguintes do Tratado, as restrições à importação e à exportação seriam autorizadas, por força do artigo 36.o do Tratado, por se justificarem por razões de ordem pública.

16

Quanto às restrições à importação, a proibição de importar certas moedas de ouro para o Reino Unido teria sido adoptada para

i)

impedir as perdas na balança de pagamentos, e

ii)

impedir a especulação e o entesouramento de valores improdutivos.

17

Quanto às restrições à exportação, a proibição de exportar moedas de liga de prata do Reino Unido, cunhadas antes de 1947, teria sido adoptada para

i)

garantir que não haja penúria de moedas correntes destinadas ao uso do público,

ii)

garantir que o lucro resultante de qualquer aumento do valor do metal contido na moeda beneficie antes o Estado-membro que um particular, e

iii)

impedir que a destruição destas moedas do Reino Unido — que, se ocorresse no âmbito da sua jurisdição, constituiria um delito — se produza fora da sua jurisdição.

18

Nestas condições, a Court of Appeal submeteu as questões seguintes:

«1.

As moedas seguintes devem, em princípio, ser consideradas como “capitais”, na acepção da parte II, título III, capítulo IV, do Tratado de Roma:

a)

moedas de ouro, tais como os Krugerrands, produzidas num país terceiro mas que circulam livremente no interior de um Estado-membro;

b)

moedas de liga de prata com curso legal num Estado-membro;

c)

moedas de liga de prata de um Estado-membro que nele tiveram curso legal mas que, embora já o não tenham, são, enquanto moedas, protegidas contra a destruição nesse Estado?

2.

No caso de a resposta ser afirmativa, a quantidade, a forma e os fins para que tais moedas são negociadas podem ter como efeito excluir essas moedas do conceito de “capitais”, referido na parte II, título III, capítulo IV?

3.

As disposições da parte II, título III, capítulo IV, do Tratado de Roma são aplicáveis às moedas, de entre as que foram acima referidas, que são consideradas como “capitais”, com exclusão da aplicação da parte II, título I, capítulo II, do Tratado?

4.

No caso de as respostas a todas ou a qualquer uma das questões acima colocadas serem de molde a determinar que os objectos em causa no presente processo estão sujeitos às disposições da parte II, título I, capítulo II, o termo “ordem pública”, mencionado no artigo 36.o do Tratado de Roma, deve ser entendido de modo a permitir que um Estado-membro possa esforçar-se por justificar restrições:

a)

à importação de moedas de ouro, com base num ou nos dois motivos seguintes:

i)

impedir as perdas na balança de pagamentos,

ii)

impedir a especulação e o entesouramento de valores improdutivos,

b)

à exportação das suas próprias moedas de liga de prata, com base num ou em todos os motivos seguintes:

i)

garantir que não haja penúria de moedas correntes destinadas ao uso do público,

ii)

garantir que o lucro resultante de qualquer aumento do valor do metal contido na moeda beneficie antes o Estado-membro que um particular,

iii)

impedir que a destruição das suas moedas — que, se ocorresse no âmbito da sua jurisdição, constituiria um delito — se produza fora da sua jurisdição?»

19

A análise das questões colocadas revela que, embora sejam formuladas de forma a evidenciar a qualificação das moedas em causa como «capitais», têm em vista na realidade saber se tais moedas têm a natureza de mercadorias, que caem sob a alçada do disposto nos artigos 30.o a 37.o do Tratado, ou de meios de pagamento que cabem no âmbito de outras disposições.

20

Tais questões, assim entendidas, devem ser encaradas no âmbito do sistema geral do Tratado.

21

Resulta de uma análise deste sistema que as normas relativas à livre circulação de mercadorias, e, mais especialmente, as do artigo 30.o e seguintes, respeitantes à eliminação das restrições quantitativas e de todas as medidas de efeito equivalente, devem ser encaradas não só em relação às regras específicas relativas às transferências de capitais, mas também em relação a todas as disposições do Tratado respeitantes às transferências monetárias, as quais se podem na verdade efectuar para os fins mais diversos, e de que as transferências de capitais não constituem senão uma categoria particular.

22

Se os artigos 67.o a 73 o do Tratado, relativos à liberalização dos movimentos de capitais, se revestem de particular importância no que toca a um dos objectivos enunciados no artigo 3 o do Tratado, isto é, à abolição dos obstáculos à livre circulação de capitais, as disposições dos artigos 104.o a 109.o, que têm por objecto a balança global de pagamentos e que são, por este motivo, relativas a todos os movimentos monetários, devem ser consideradas essenciais para atingir a liberalização das trocas de mercadorias, de serviços e de capitais, que é fundamental para a realização do mercado comum.

23

Em particular, o artigo 106o determina que «Cada Estado-membro compromete-se a autorizar que se efectuem, na moeda do Estado-membro em que reside o credor ou o beneficiário, os pagamentos referentes às trocas de mercadorias, serviços e capitais, bem como as transferências de capitais e de salários, na medida em que a circulação de mercadorias, de serviços, de capitais e de pessoas entre os Estados-membros tenha sido liberalizada, por força do presente Tratado».

24

Esta disposição tem em vista assegurar as transferências monetárias necessárias tanto para a liberalização dos movimentos de capitais como para a livre circulação de mercadorias, de serviços e de pessoas.

25

Deve concluir-se daqui que, no sistema do Tratado, os meios de pagamento não devem ser considerados como mercadorias que caem sob a alçada dos artigos 30.o a 37.o do Tratado.

26

As moedas de liga de prata com curso legal num Estado-membro devem, pela sua natureza, ser consideradas como meios de pagamento, o que implica que a sua transferência não caia sob a alçada do disposto nos artigos 30.o a 37.o do Tratado.

27

Se pode haver dúvidas quanto à questão de saber se os Krugerrands devem ser considerados como meios legais de pagamento, pode no entanto concluir-se que, nos mercados monetários dos Estados-membros que admitem a sua negociação, os Krugerrands são considerados como equivalentes a uma moeda.

28

Por conseguinte, a sua transferência deve, desde já, ser qualificada como uma transferência monetária, que não cai sob a alçada do disposto nos já referidos artigos 30.o a 37.o

29

Tendo em conta as considerações acima tecidas, não é necessário entrar na questão de saber em que condições é que a transferência destas duas categorias de moedas poderia ser eventualmente qualificada, quer como movimento de capitais, quer como pagamento corrente.

30

A alínea c) da primeira questão refere-se às moedas de liga de prata de um Estado-membro que nele tiveram curso legal mas que, embora já o não tenham, são, enquanto moedas, protegidas contra a destruição.

31

Tais moedas não podem ser consideradas como meios de pagamento no sentido acima exposto, de modo que podem qualificar-se como mercadorias que caem sob a alçada dos artigos 30.o a 37.o do Tratado.

32

Cabe aos Estados-membros cunhar a sua própria moeda e protegê-la contra a destruição.

33

Resulta das peças do processo que existe no Reino Unido uma proibição de fundição ou de destruição de moedas nacionais, ainda que já não tenham curso legal.

34

A proibição de exportar tais moedas, adoptada no intuito de impedir que a fundição ou a destruição venha a ter lugar noutro Estado-membro, justifica-se por razões de ordem pública, na acepção do artigo 36.o do Tratado, porque se prende com a protecção do direito de cunhagem, tradicionalmente considerado susceptível de pôr em causa interesses essenciais do Estado.

Quanto às despesas

35

As despesas efectuadas pelo Governo italiano, pelo Governo do Reino Unido e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis.

36

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões que lhe foram submetidas pela Court of Appeal (Criminal Division), por despacho de 15 de Dezembro de 1977, declara:

 

1)

As disposições dos artigos 30.o a 37.o do Tratado CEE não são aplicáveis

a)

a moedas de liga de prata com curso legal num Estado-membro;

b)

a moedas de ouro, tais como os Krugerrands, produzidas num país terceiro, mas que circulem livremente no interior de um Estado-membro.

 

2)

A proibição de exportar moedas de liga de prata de um Estado-membro que, tendo tido curso legal nesse Estado, já o não têm, mas cuja fundição ou destruição é proibida no território nacional, que tenha sido adoptada no intuito de impedir que a fundição ou a destruição venha a ter lugar noutro Estado-membro, justifica-se por razões de ordem pública, na acepção do artigo 36.o do Tratado.

 

Kutscher

Mackenzie Stuart

Donner

Pescatore

Sørensen

O'Keeffe

Bosco

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 23 de Novembro de 1978.

O secretário em exercício J. Pompe

secretário adjunto

O presidente em exercício J. Mertens de Wilmars

presidente da Primeira Secção


( *1 ) Língua do processo: inglês.