GERHARD REISCHL
apresentadas em 12 de Dezembro de 1978 ( *1 )
Senhor Presidente,
Senhores Juízes,
O artigo 4o, n.o 1, da lei neerlandesa sobre o estabelecimento das empresas (Vesti-gingswet bedrijven) de 1954 prevê que o exercício de certas actividades sem autorização da câmara de comércio e indústria competente (Kamer van Koophandel en Fabriken) pode ser proibida por decreto. Para as actividades de canalizador e instalador de condutas de água, tal proibição de exercício sem autorização encontra-se prevista nos artigos 19o e 27.o do decreto relativo ao estabelecimento de empresas no sector da construção (Vestigingsbesluit bouwnijverheidsbedrijven) de 1958, e para a profissão de instalador de aquecimento central encontra-se prevista no artigo 7.o do decreto relativo ao estabelecimento de empresas de aquecimento e empresas afins (Vestigingsbesluit verwarmings- en aanverwante bedrijven) de 1960. O artigo 15.o, n.o 1, alínea c), da lei supramencionada dispõe:
«O ministro dos Assuntos Económicos concede, a pedido do interessado, isenção de uma proibição, prevista por decreto de estabelecimento, de exercer uma profissão indicada nesse decreto, quando:
a) |
… |
b) |
… |
c) |
as disposições de uma directiva do Conselho das Comunidades Europeias em matéria de estabelecimento de pessoas singulares e de sociedades no território de um dos Estados-membros da CEE ou em matéria de prestação de serviços por pessoas singulares ou sociedades nesse território impliquem a concessão de uma isenção». |
O demandante no processo principal, que nasceu em Urmond nos Países Baixos em 1939 e é de nacionalidade neerlandesa, casou em 30 de Abril de 1962, em Dilsen (Stokkem) na Bélgica, com uma nacional belga e reside desde então nessa localidade. Até 13 de Março de 1970, esteve empregado como assalariado numa empresa de instalação de aquecimento central, de canalizações e de instalação e reparação de condutas de água e gás pertencente ao sogro. De acordo com os dois certificados passados ao interessado pelo Ministério belga das Classes Médias em 21 de Julho de 1976, em conformidade com o artigo 4.o, n.o 2 da Directiva 64/427/CEE do Conselho, de 7 de Julho de 1984, relativa às modalidades de medidas transitórias no domínio das actividades não assalariadas dependentes da indústria transformadora abrangidas pelas classes 23-40 CITI (indústria e artesanato) (JO 1964, p. 1803), o demandante exerceu sem interrupção desde 13 de Março de 1970, na qualidade de empresário, as actividades de instalador de aquecimento central e de instalador-canalizador de equipamento sanitário.
Posteriormente, como o demandante pretendesse exercer a profissão de instalador de aquecimento central, canalizador e instalador e reparador de condutas de água, como empresário independente na região de Urmons em que nasceu, introduziu em 24 de Junho de 1976, na Câmara de Comércio e Indústria da região mineira com sede em Heerlen, um pedido de isenção com fundamento no artigo 15.o, n.o 1 da lei de 1954 sobre o estabelecimento de empresas. Por decisão de 31 de Janeiro de 1977, o secretário de Estado dos Assuntos Económicos, que é o demandado no processo principal, rejeitou aquele pedido com base no facto de que, tendo a nacionalidade neerlandesa, o demandante não podia ser considerado nos Países Baixos como beneficiário nos termos do artigo 4.o, n.o 1, alínea a), da Directiva 64/429/CEE do Conselho. Após o indeferimento da reclamação apresentada pelo demandante contra esta decisão, que o demandado lhe notificou por decisão de 15 de Março de 1977 — decisão essa que, na medida que informava que o pedido tinha sido remetido para análise ao Conselho Económico e Social neerlandês, nos termos do artigo 15.o, n.o 1, alínea b), da lei sobre o estabelecimento de empresas, não constitui objecto do processo principal — , o demandante interpôs, em 14 de Abril de 1977, um recurso no College van Beroep voor het Bedrijfsleven, pedindo a anulação da decisão impugnada e a concessão das exonerações solicitadas.
Por despacho de 9 de Maio de 1978, o College van Beroep voor het Bedrijfsleven decidiu suspender a instância e colocou ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:
«A Directiva 64/427/CEE do Conselho da Comunidade Económica Europeia, de 7 de Julho de 1964, deve ser interpretada no sentido de serem também considerados “beneficiários”, nos termos do artigo 1.o, n.o 1, da directiva, as pessoas que possuem exclusivamente a nacionalidade do Estado-membro de acolhimento e que sempre a possuíram?»
São os seguintes os nossos comentários sobre esta questão.
1. |
Referindo-nos aos termos da Directiva 64/427/CEE, verifica-se que o artigo 1o, n.o 1, define o grupo dos beneficiários por referência ao título I dos programas gerais do Conselho de 18 de Dezembro de 1961 para a supressão das restrições à livre prestação de serviços (JO 1962, p. 32) e para a supressão das restrições à liberdade de estabelecimento (JO 1962 p. 36). Cada um destes programas designa como beneficiários — no que respeita às pessoas singulares, pois só estas aqui relevam — os nacionais dos Estados-membros da Comunidade, com a única condição de que residam na Comunidade ou pretendam estabelecer-se no território de um Estado-membro para aí exercer uma actividade não assalariada. Assim como a Comissão justamente salientou, esta definição lata do grupo de beneficiários exclui qualquer interpretação do título I dos dois programas que pretendia que os nacionais dos Estados-membros que queiram estabelecer-se ou efectuar prestações de serviços no Estado-membro de que são nacionais, não fazem parte dos beneficiários. O facto de os dois programas tratarem em primeiro lugar, como é demonstrado pelo título III de cada um deles, da supressão progressiva das restrições à livre prestação de serviços e à liberdade de estabelecimento aplicáveis a estrangeiros, isto é, o facto de pretenderem essencialmente garantir aos nacionais dos Estados-membros o mesmo tratamento que é reservado aos nacionais, não altera em nada este raciocínio. A definição do conceito de beneficiários que consta do título I não contém qualquer limitação nesse sentido nem de resto podia ser utilizada, mesmo admitindo que tal limitação tivesse sido querida, para definir os beneficiários da Directiva, 64/427/CEE, visto que esta não respeita, como demonstram os seus artigos 3 o e 4o, ao «tratamento nacional» dos cidadãos de outros Estados-membros, mas à tomada em consideração, por derrogação do direito nacional, de determinados conhecimentos e capacidades adquiridos pelo exercício prático de uma profissão durante um certo tempo noutro Estado-membro, o que constitui uma condição suficiente para o exercício da mesma actividade profissional no Estado de acolhimento. |
2. |
A interpretação extensiva do conceito de «beneficiário»que se destaca do texto do artigo 1.o, n.o 1, da Directiva 64/427/CEE, conjugada com o título I do programa geral para a supressão de restrições à livre prestação de serviços, não está também em contradição com as disposições sobre a matéria e os objectivos gerais do Tratado CEE. O princípio da livre circulação que o Tratado visa realizar tão completamente quanto possível, tem por objectivo permitir a todos os cidadãos de cada Estado-membro exercerem a sua actividade económica em qualquer lugar da Comunidade em que se estabeleçam ou ofereçam as suas prestações de serviços. Assim, o princípio da livre circulação é um dos fundamentos do mercado comum, como revela o artigo 3. o , alínea c), do Tratado CEE. Qualquer discriminação entre cidadãos dos Estados-membros em razão da nacionalidade é pura e simplesmente incompatível com este princípio. Entre as disposições do Tratado que são decisivas para a realização da livre circulação, os artigos 48.o (livre circulação de trabalhadores) e 59 o (livre prestação de serviços) correspondem também, de acordo com a sua letra, a este objectivo do Tratado. Estas duas disposições atribuem cada uma aos nacionais dos Estados-membros uma total liberdade de circulação no que respeita à ocupação de um emprego e desenvolvimento de prestação de serviços em todo o mercado comum, sem distinção de nacionalidade ou do local em que a actividade é exercida. O texto do artigo 52.o, primeiro parágrafo, em contrapartida, cria uma certa dúvida na medida em que prevê a supressão das restrições ao direito de estabelecimento unicamente para o estabelecimento dos nacionais de um dos Estados-membros no território de outro Estado-membro. Tal como a Comissão, somos, todavia, de opinião que esta formulação diferente da dos artigos 48.o e 59 o não deve ser considerada como implicando uma derrogação relativamente aos princípios de base do Tratado. O artigo 52.o, n.o 1, que de resto não exclui de modo nenhum uma garantia do direito de estabelecimento que ultrapasse os seus termos, não deve em todo o caso ser interpretado como autorizando discriminações entre nacionais dos Estados-membros quaisquer que sejam as circunstâncias. Semelhante interpretação ofenderia com efeito um princípio de base do Tratado CEE. Foi o que o advogado-geral Mayras afirmou muito claramente nas suas conclusões no processo 71/76, Thieffy (Colect. 1977, p. 286), em que, a propósito de um acórdão da cour d'appel de Paris que tinha sustentado a opinião de que as regras do Tratado CEE sobre o direito de estabelecimento não eram aplicáveis a um francês que pretende estabelecer-se em França, criticou essa decisão nos seguintes termos (p. 792): «Este acórdão parece-nos aberrante. Ele desconhece completamente os objectivos do Tratado, nomeadamente do artigo 52.o, que faz da liberdade de estabelecimento um dos princípios fundamentais do mercado comum. Recusar a um nacional francês — ainda que ele seja naturalizado — o direito de se estabelecer no país do qual se tornou cidadão parece-nos ser uma violação manifesta do artigo 52.o, cuja finalidade é permitir a cada cidadão de qualquer Estado-membro exercer a sua actividade profissional em qualquer Estado da Comunidade e, em primeiro lugar, no Estado do qual adquiriu a nacionalidade». Não podemos deixar de nos associar a esta opinião e chegar assim àconclusão de que o artigo 52.o do Tratado CEE não se opõe a uma interpretação da Directiva 64/427/CEE no sentido de que os beneficiários referidos no artigo 1.o, n.o 1, compreendem também as pessoas que possuem a nacionalidade do Estado de acolhimento. |
3. |
A circunstância de que uma outra interpretação não seria exacta e que conduziria, em violação de um dos princípios fundamentais do Tratado, a uma discriminação flagrante do demandante, é ainda demonstrado pela seguinte observação. Após ter aprendido nos Países Baixos a profissão de mecânico, o demandante casou aos 23 anos com uma belga e reside desde então em Dilsen (Stokkem) na Bélgica. Primeiro esteve empregado como assalariado na empresa do sogro, que era uma empresa de instalação de aquecimento central, de canalizações e de instalação e reparação de condutas de água e gás, depois, a partir de Março de 1970, exerceu sem interrupção em Dilsen, na qualidade de empresário independente, as actividades de instalador de aquecimento central e instalador de canalizações sanitárias. Quando em Junho de 1976 solicitou uma licença nos Países Baixos para poder exercer a profissão de instalador-canalizador como empresário independente, o seu centro de interesse situava-se há mais de 15 anos na Bélgica, sendo que foi também nesse país que aprendeu o ofício que exercia então há mais de 6 anos na qualidade de empresário independente e que pretende agora exercer nos Países Baixos. Encontrava-se e encontra-se, portanto, na mesma situação que um belga com o mesmo passado. Seria completamente absurdo que, pelo simples facto da sua nacionalidade neerlandesa, o demandante fosse tratado de modo diferente de um belga ou de um nacional de outro Estado-membro que se encontrasse na mesma situação. Uma atitude deste tipo constituiria claramente uma discriminação do demandante efectuada exclusivamente em razão de nacionalidade, o que seria muito simplesmente incompatível com os princípios do Tratado CEE. Foi com toda a razão que a Comissão assinalou que, se se quisesse seguir a interpretação defendida pelo Governo neerlandês, a livre circulação de todos os que fizeram uso do seu direito de livre circulação e que aprenderam ou exerceram outra profissão no Estado-membro em que se estabeleceram seria na prática restringida na medida em que essas pessoas já não podiam regressar ao seu Estado de origem sem correr o risco de encontrar dificuldades no exercício da sua nova profissão. O mesmo aconteceria com os filhos que se tivessem estabelecido com os pais noutro Estado-membro e que tivessem aprendido o seu ofício neste Estado. |
4. |
O receio manifestado pelo Governo neerlandês de que a aplicação das regras do artigo 3.o e 4.o da Directiva 64/427/CEE também aos nacionais do Estado de acolhimento levasse a iludir as prescrições especiais desse Estado sobre o exercício de certas profissões não nos parece justificado. Os requisitos para o reconhecimento de um exercício profissional equivalente num outro Estado-membro não são fáceis de preencher, e certamente não por qualquer pessoa, do ponto de vista das exigências de duração e das datas desse exercício, de modo que não há razões para esperar que um número significativo de nacionais do Estado de acolhimento estejam em condições de utilizar esta via para se subtrair às regras de formação e de exame nacionais. |
5. |
Consequentemente, propomos que se responda à questão colocada do seguinte modo: «A Directiva 64/427/CEE do Conselho da Comunidade Económica Europeia, de 7 de Julho de 1964, deve ser interpretada no sentido de que são igualmente “beneficiários”, na acepção do artigo 1.o, n.o 1, da directiva, as pessoas que possuem exclusivamente a nacionalidade do Estado de acolhimento e que sempre a possuíram.» |
( *1 ) Língua original: alemão.