ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

29 de Junho de 1978 ( *1 )

No processo 77/77,

1)

Benzine en Petroleum Handelsmaatschappij BV, Amsterdão,

2)

British Petroleum Raffinaderij Nederland NV, Rozenburg,

3)

British Petroleum Maatschappij Nederland BV, Amsterdão,

representadas e assistidas por G. Van Hecke, advogado na Cour de cassation de Bruxelas, L. P. van den Blink, advogado no foro de Amsterdão, I. van Bael, advogado no foro de Bruxelas, e D. J. Gijlstra, advogado no foro de Amsterdão, com domicílio escolhido no Luxemburgo no gabinete de J. C. Wolter, 2, me Goethe,

recorrentes,

contra

Comissão das Comunidades Europeias, representada pelo seu consultor jurídico B. van der Esch, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo junto do consultor jurídico M. Cervino, bâtiment Jean Monnet, Kirchberg,

recorrida,

que tem por objecto a anulação da decisão da Comissão das Comunidades Europeias de 19 de Abril de 1977 relativa a um processo de aplicação do artigo 86.o do Tratado CEE (IV/28.841 — ABG/Entreprises pétrolières opérant aux Pays-Bas; JO 1977, L 117),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: H. Kutscher, presidente, M. Sørensen e G. Bosco, presidentes de secção, A. M. Donner, J. Mertens de Wilmars, P. Pescatore, A. J. Mackenzie Stuart, A. 0'Keeffe e A. Touffait, juízes,

advogado-geral: J.-P. Warner

secretário: A: Van Houtte

profere o presente

Acórdão

(A parte relativa à matéria de facto não é reproduzida)

Fundamentos da decisão

1

Por requerimento que deu entrada na Secretaria do Tribunal em 1 de Julho de 1977, as sociedades neerlandesas Benzine en Petroleum Handelsmaatschappij BV, British Petroleum Raffinaderij Nederland NV e British Petroleum Maatschappij Nederland BV (a seguir «BP») requereram a anulação da Decisão 77/327/CEE, adoptada pela Comissão em 19 de Abril de 1977 após parecer do Comité Consultivo em matéria de acordos de empresas e de posições dominantes, relativa a um processo de aplicação do artigo 86.o do Tratado CEE, iniciado por pedido apresentado à Comissão em 4 de Janeiro de 1974 pelas sociedades neerlandesas Aardolie Belangen Gemeenschap BV (ABG) e AVIA Nederland CV (AVIA).

2

Esta decisão foi notificada aos destinatários, que exercem a actividade de produção e comercialização de produtos petrolíferos nos Países Baixos, em 25 de Abril de 1977, e foi publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias L 117 de 9.5.1977, p. 1.

3

Na decisão impugnada, a Comissão acusa as referidas sociedades de terem cometido, durante o período de crise de Novembro de 1973 a Março de 1974, um abuso de posição dominante face à ABG, que intervém como central de compras dos dezanove membros do grupo AVIA.

4

O período visado pela decisão impugnada é o da crise de abastecimento de produtos petrolíferos que, causado pela limitação de produção ocorrida em Novembro de 1973 num grande número de países produtores, se fez sentir particularmente nos Países Baixos, em virtude do embargo de que foi objecto este Estado a partir de Dezembro de 1973, e que teve por efeito uma importante diminuição das importações de petróleo bruto.

5

Ao acusar a BP de ter violado as disposições do artigo 86.o do Tratado, a Comissão considerou, todavia, que a intervenção do Rijksbureau voor Aardolie Produkten (Secretariado Nacional dos Produtos Petrolíferos), instituído pela Decisão ministerial n.o 573 /814 de 13 de Novembro de 1973, podia ter criado dúvidas junto das companhias petrolíferas quanto às suas obrigações perante os compradores, e que a BP poderia ter entendido que os adiantamentos de gasolina contra petróleo bruto podiam libertá-la, parcialmente, das suas obrigações de entrega à ABG durante o período de crise.

6

De modo mais geral, a BP pôde ter entendido que as incertezas que dominavam o mercado neerlandês dos produtos petrolíferos, causadas pelo desconhecimento dos possíveis desenvolvimentos da crise, tornavam difícil a apreciação das reduções das entregas a realizar.

7

Devido a estes elementos, a decisão impugnada concluiu que, no caso em apreço, não havia fundamento para aplicar multas à BP, nos termos do n.o 2 do artigo 15.o, do Regulamento n.o 17.

8

As recorrentes sustentam, em contrapartida, que a Comissão se fundou, no caso em apreço, num conceito de posição dominante que decorreria duma análise errada do artigo 86.o do Tratado e que acusou a BP de ter abusado desta posição, partindo de uma apreciação insuficiente dos dados de facto e de direito sobre o mercado.

9

Além do mais, sustentam as mesmas recorrentes que uma intervenção da Comissão ao abrigo do artigo 86o do Tratado seria, no caso em apreço, particularmente inadmissível «face à Directiva 73/238/CEE do Conselho, de 24 de Julho de 1973, relativa às medidas destinadas a atenuar os efeitos das dificuldades de abastecimento em petróleo bruto e produtos petrolíferos» (JO 1973, L 228, p. 1), que teria encarregue os governos, e não as companhias petrolíferas, da repartição do petróleo bruto e dos produtos petrolíferos disponíveis.

10

O período de abastecimento limitado de 1973-1974 teria, precisamente, feito surgir a necessidade duma definição mais clara das responsabilidades, tal como das directivas a tomar nos termos do artigo 103 o do Tratado e destinadas simultaneamente às grandes companhias petrolíferas encarregues do abastecimento e aos governos.

11

As recorrentes sustentam, enfim, que o facto de a decisão impugnada lhes não ter aplicado qualquer multa não deverá pôr em causa o seu interesse em obter do Tribunal o reconhecimento do carácter não fundado da censura, que lhes foi dirigida naquela decisão, que, a ser mantida, poderia inclusivamente legitimar, perante os órgãos jurisdicionais nacionais, a interposição duma acção de indemnização contra a BP.

12

Os artigos 15.o, n.o 1 e 16, n.o 1, do Regulamento n.o 17 prevêem que a Comissão «pode», através de decisão, aplicar às empresas e associações de empresas multas ou adstrições.

13

A ausência de sanções pecuniárias, numa decisão que aplica os artigos 85.o e 86.o do Tratado, não exclui o interesse do destinatário em fazer controlar, pelo Tribunal de Justiça, a legalidade da referida decisão e em interpor, assim, um recurso de anulação ao abrigo do artigo 173 o do Tratado.

14

Além disso, o artigo 103 o do Tratado, ao prever que «os Estados-membros consideram a sua política de conjuntura uma questão de interesse comum», se oferece à Comunidade a possibilidade de enfrentar, através de medidas adequadas e na observância dos objectivos comunitários, as dificuldades de conjuntura, situa-se no contexto das disposições relativas à política económica comum, e, por conseguinte, num estádio diferente do das disposições do Tratado relativas às regras de concorrência, tais como os artigos 85.o e 86.o

15

Assim, se a ausência de uma regulamentação adequada, fundada nomeadamente no artigo 103 o do Tratado, permitindo a adopção de medidas apropriadas à conjuntura, revela um desconhecimento do princípio da solidariedade comunitária, inscrito entre os fundamentos da Comunidade, e uma carência tanto mais grave quanto o n.o 4 do artigo 103.o refere, expressamente, que «os procedimentos previstos no presente artigo aplicam-se igualmente caso sobrevenham dificuldades no abastecimento de certos produtos», tal não deverá, contudo, dispensar a Comissão do cumprimento da sua obrigação de fiscalizar, em todas as circunstâncias, tanto em condições normais quanto em condições caracterizadas de mercado, em que a posição concorrencial dos operadores é particularmente ameaçada, a observância escrupulosa da proibição prevista no artigo 86.o do Tratado.

16

A decisão impugnada conclui pela existência, no caso em apreço, de uma posição dominante detida não só pela BP em relação aos seus compradores, mas também por cada uma das grandes companhias petrolíferas internacionais, que refinam ou mandam refinar o petróleo nos Países Baixos, face às suas respectivas clientelas.

17

Os motivos desta conclusão fundam-se, essencialmente, em considerações de carácter geral atinentes às condições globais do mercado neerlandês, durante a crise, no que respeita ao abastecimento de produtos petrolíferos e ao estado das relações comerciais que, num mercado idêntico ao do caso em apreço, se instaurariam inevitavelmente entre «os vendedores, que detêm partes importantes do mercado e têm disponibilidades, e os seus compradores».

18

Em primeiro lugar, importa examinar, supondo que condições caracterizadas de mercado, análogas às do caso em apreço, tenham efectivamente assegurado às grandes companhias petrolíferas implantadas nos Países Baixos uma posição dominante face às respectivas clientelas, no território deste Estado-membro, se os elementos de facto e de direito invocados pela Comissão, para caracterizar mais particularmente o comportamento individual da BP ao longo da crise, permitem que se considere abusivo este comportamento, na acepção do artigo 86.o do Tratado.

19

A decisão impugnada acusa a BP de ter explorado abusivamente a posição dominante, que ela deteria no referido mercado, ao reduzir as suas entregas à ABG de forma substancial e numa proporção claramente mais marcada do que a aplicada às entregas a todos os seus outros clientes, sem para tal poder recorrer a justificações objectivas.

20

Deste modo, esta decisão censura a referida sociedade por ter infligido à ABG uma desvantagem certa, imediata e substancial na sua posição no mercado, e por ter assumido um comportamento susceptível de pôr em causa a existência da ABG.

21

Embora admitindo a possibilidade de as empresas em posição dominante tomarem em consideração certas particularidades e diferenças na situação dos seus clientes, a referida decisão afirma que, para evitar abusos na acepção do artigo 86.o do Tratado, uma empresa em posição dominante deve repartir «equitativamente» as quantidades disponíveis por todos os seus compradores.

22

Para realizar esta repartição, foi precisado que, em caso de crise generalizada de abastecimento, todas as sociedades independentes estão obrigadas a recorrer em primeiro lugar aos seus fornecedores habituais, e que, em período de escassez, as reduções no abastecimento dos compradores deveriam ser feitas com base num período de referência fixado no ano anterior à crise.

23

Tendo em conta todos estes elementos, a decisão conclui que a BP teria efectuado uma discriminação em relação à ABG, não justificando, no caso em apreço, os adiantamentos em gasolina contra petróleo bruto consentidos pela BP à ABG um tratamento «diferente» desta última em relação aos outros clientes.

24

É certo que, em 21 de Novembro de 1972, a BP denunciou o acordo estabelecido com a ABG desde 1968, pondo assim termo às suas relações comerciais com esta sociedade no que respeita ao seu abastecimento de gasolina.

25

Na sequência da denúncia deste acordo, confirmada por uma troca de cartas entre a BP e a ABG em 17 de Janeiro de 1973, esta última sociedade procurou, nomeadamente a conselho do Governo neerlandês, comprar petróleo bruto no mercado internacional a fim de o mandar refinar.

26

Além disso, foi combinado entre a BP e a ABG que esta última poderia utilizar as instalações de refinação da BP para poder obter gasolina a partir do seu próprio petróleo bruto.

27

Tendo em conta este acordo, e tendo a ABG experimentado, já antes da crise, dificuldades em abastecer-se de petróleo bruto, a BP concedeu-lhe adiantamentos de gasolina até ao limite de 250000 m 3 do seu petróleo bruto, que a ABG deveria restituir antes de 1 de Janeiro de 1974.

28

Decorre da decisão impugnada que a denúncia pela BP, em Novembro de 1972, das suas relações comerciais com a ABG se insere no quadro do reagrupamento das actividades operacionais da BP, tornado necessário pela nacionalização dum grande número de interesses desta sociedade no sector da produção, assim como pela tomada de participação dos Estados produtores nas suas actividades de extracção, e explica-se, por isso, por razões estranhas às suas relações com a ABG.

29

Daí decorre que na altura da crise, e já a partir de Novembro de 1972, a posição da ABG perante a BP já não era, quanto ao abastecimento de gasolina, a de um cliente contratual, mas a de um cliente ocasional.

30

O princípio defendido pela decisão impugnada, segundo o qual as reduções de abastecimento deveriam ser realizadas com base num período de referência fixado no ano anterior à crise, pode ser explicado nos casos em que se tenham mantido, ao longo daquele período, relações contínuas de abastecimento entre vendedor e comprador, já se não deverá aplicar quando o fornecedor tenha deixado de manter, no decurso do mesmo período, tal tipo de relações com o seu comprador, tendo em conta, nomeadamente, que os planos das empresas se baseiam normalmente em previsões razoáveis.

31

Por outro lado, os adiantamentos de gasolina contra petróleo bruto feitos pela BP, ao abrigo do acordo de «processing», não deverão servir de argumento válido para assimilar, no caso em juízo, a posição da ABG perante a BP à dum cliente tradicional desta última, durante o já citado período de referência, uma vez que tais adiantamentos se inseriam no âmbito dum acordo que tinha por objecto unicamente a refinação do petróleo bruto fornecido pela ABG, e não o abastecimento em gasolina desta última.

32

Por todos estes motivos, sendo a posição da ABG face à BP a de um comprador ocasional, desde há vários meses antes do desencadear da crise, não se deverá censurar a BP por lhe ter aplicado, durante a crise, um tratamento menos favorável do que o reservado à sua clientela tradicional.

33

Tendo em vista a escassez generalizada de produtos petrolíferos durante o período considerado e a situação de restrição em que se encontrava todo o mercado neerlandês, a aplicação à ABG pela BP duma taxa de redução idêntica ou muito próxima à aplicada aos clientes tradicionais traduzir-se-ia numa importante diminuição das entregas esperadas por estes clientes.

34

A obrigação do fornecedor aplicar, em período de escassez, uma taxa de redução similar nas entregas a todos os seus compradores, sem respeito dos compromissos assumidos face à clientela tradicional, só poderia decorrer de medidas adoptadas no âmbito do Tratado, particularmente do seu artigo 103 o, ou, na sua ausência, de medidas adoptadas pelas autoridades nacionais.

35

Na ausência de tais medidas comunitárias, as autoridades nacionais neerlandesas instituíram em 13 de Novembro de 1973, no âmbito da Distributiewet de 1939, o Rijksbureau voor Aardolie Produkten (RBAP), já referido, para fazer face às dificuldades sentidas pelos compradores de produtos petrolíferos ao longo da crise.

36

Segundo uma comunicação oficial publicada no Staatscourant neerlandês de 14 de Novembro de 1973, o RBAP tinha por função a regulamentação do abastecimento de produtos petrolíferos e, caso a evolução da situação o exigisse, a preparação duma eventual distribuição destes produtos e, chegado o momento adequado, a sua execução.

37

Decorre da descrição feita pelas autoridades neerlandesas e reproduzida pela decisão impugnada que, quer durante o período de 12 de Janeiro a 4 de Fevereiro de 1974, quer fora dele, o RBAP apoiou os consumidores ou os negociantes em dificuldades.

38

Com este fim, o RBAP estabeleceu, desde o início, um programa especial de repartição, para prover às necessidades da ABG, sem para tanto obrigar as grandes companhias petrolíferas, incluindo a BP, a aplicar uma taxa de redução similar nas suas entregas a todos os compradores.

39

Por intermédio do RBAP, a ABG pôde, durante o período de escassez, ter acesso, quanto ao seu abastecimento de gasolina, a outras grandes sociedades petrolíferas reunidas na Olie Contact Commissie (OCC).

40

Além do mais, se a intervenção do RBAP não teve um carácter coercitivo, mas antes se limitou a um apelo às contribuições voluntárias das companhias petrolíferas, também é certo que a ABG encontrou junto das autoridades nacionais, agindo primeiro por intermédio do RBAP e depois directamente pelo ministro dos Assuntos Económicos, um apoio constante que, à medida que as suas dificuldades se agravavam, se traduziu numa intervenção cada vez mais marcada, que incluiu a assunção pelo RBAP das necessidades de gasolina por parte dos clientes não contratuais da ABG, a constituição dum «pool» destinado ao abastecimento exclusivo da ABG e, quando a situação da ABG se tornou crítica, decisões coercitivas de abastecimento dirigidas às grandes companhias petrolíferas.

41

Além disso, o anexo 1 da decisão permite concluir que ao longo do período de escassez, com excepção do mês de Fevereiro de 1974, a ABG pôde receber, sem contar com as companhias petrolíferas reunidas no seio da OCC, quantidades de gasolina de treze outras sociedades que representaram, durante os três primeiros meses de crise, 32,5 % a 37 % do seu abastecimento normal.

42

Enfim é certo que, graças a este apoio e às possibilidades de abastecimento oferecidas pelo mercado, com excepção dos abastecimentos provenientes da BP, a ABG pôde, ao longo da crise, dispor dum abastecimento que, embora limitado pela escassez generalizada dos produtos, lhe permitiu, contudo, ultrapassar as dificuldades da crise.

43

Dadas estas circunstâncias, não parece pois que a BP tenha cometido, no caso sub judice, uma exploração abusiva de posição dominante face à ABG, na acepção do artigo 86.o do Tratado.

44

Nestas condições, deve ser anulada a decisão impugnada.

Quanto às despesas

45

Nos termos do n.o 2 do artigo 69 o do Regulamento Processual, a parte vencida é condenada nas despesas. Tendo a Comissão sido vencida, há que condená-la nas despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA

decide:

 

1)

A Decisão 77/327/CEE da Comissão, de 19 de Abril de 1977, publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias L 117 de 9-5-1977, p. 1, é anulada.

 

2)

A Comissão é condenada nas despesas do processo.

 

Kutscher

Sørensen

Bosco

Donner

Mertens de Wilmars

Pescatore

Mackenzie Stuart

O'Keeffe

Touffait

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 29 de Junho de 1978.

O secretário

A. Van Houtte

O presidente

H. Kutscher


( *1 ) Língua do processo: neerlandês.