CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

FRANCESCO CAPOTORTI

apresentadas em 10 de Novembro de 1976 ( *1 )

Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

1. 

O processo Bier/Mines de potasse d'Alsace entra na categoria dos que levantam problemas de interpretação da Convenção de Bruxelas relativa à Competência Jurisdicional e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial. Em causa o artigo 5.o, n.o 3, da convenção, nos termos do qual «o arguido com domicílio no território de um Estado contratante pode ser demandado num outro Estado contratante… em matéria extracontratual perante o tribunal do lugar onde ocorreu o facto danoso». No essencial, o Tribunal é chamado a decidir sobre o significado da expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso», expressão que no citado artigo tem o valor e funciona como um critério de competência especial.

Os factos essenciais podem ser resumidos do seguinte modo.

A sociedade anónima neerlandesa Bier, que possui nas proximidades de Roterdão importantes viveiros irrigados pelas águas do Reno, e a fundação Reinwater de Amesterdão accionaram a sociedade anónima Mines de potasse d'Alsace, com sede em Mulhouse, no «Arrondissementsrechbank» de Roterdão, pedindo o ressarcimento dos danos causados pela poluição das águas do Reno provocada pelo lançamento diário de cerca de 11000 toneladas de cloreto efectuado pela empresa alsaciana num canal que desagua naquele rio. Recordamos que a fundação Reinwater tem por objectivo estatutário favorecer qualquer possível melhoramento da qualidade da água da bacia do Reno, propondo mesmo acções cíveis para a defesa dos direitos subjectivos daqueles cuja vida apresenta relações com a qualidade destas águas e especialmente daqueles que retiram do Reno os seus meios de subsistência.

O comportamento da ré que se afirma ser o causador do dano ocorreu em França, tendo-se verificado o prejuízo nos Países Baixos. As autores propuseram a acção num tribunal neerlandês, considerando que Roterdão é, na acepção do n.o 3 do artigo 5.o da convenção, «o lugar onde ocorreu o facto danoso». Por seu lado, a ré invocou a excepção da incompetência daquele tribunal, uma vez que o eventual facto ilícito deve, em seu entender, considerar-se situado em França, na área de competência do tribunal de Mulhouse, que seria, portanto, o único competente, ainda com base no artigo 5.o, n.o 3, da convenção, para decidir o pedido de indemnização.

Por decisão de 12 de Maio de 1975, o Arrondissementsrechtbank de Roterdão acolheu a excepção da incompetência, pois «O único facto danoso que constitui objecto do mérito da causa é o lançamento de efluentes no Reno em França». O Gerechtshof de Haia, onde as autoras impugnaram esta decisão, colocou ao Tribunal, a título prejudicial e ao abrigo do artigo 3.o do Protocolo de 3 de Junho de 1971 relativo à interpretação da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à Competência Jurisdicional e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, a seguinte questão:

«A expressão 'lugar onde ocorreu o facto danoso' contida no n.o 3 do artigo 5.o da referida convenção deve ser entendida no sentido de se referir ao 'lugar onde ocorreu o facto danoso' ou ao 'lugar onde foi praticado o acto que provocou o dano'?»

2. 

Deve analisar-se, antes de mais, a questão de saber se a expressão utilizada pelo n.o 3 do artigo 5 o da convenção deve ser considerada autónoma relativamente aos ordenamentos jurídicos dos Estados-membros ou se implica um reenvio para as normas de direito material aplicáveis, em cada caso concreto, com base nas normas de direito internacional privado próprias a cada ordem jurídica do Estado onde se situa o juiz a quem a questão foi colocada. Esta é, como se recordarão, a opção prévia que o Tribunal fez sobressair no acórdão 12/76 (Società industrie tessili italiana/Dunlop), onde sublinha que a escolha adequada só pode ser feita em relação a cada uma das disposições da convenção de modo a garantir, no entanto, a sua plena eficácia na perspectiva dos objectivos previstos no artigo 220.o do Tratado.

No caso em análise, nem o órgão jurisdicional nem qualquer das partes formularam reservas quanto à possibilidade de atribuir à expressão em causa um significado autónomo.

Também nós consideramos que não podem subsistir dúvidas a este propósito.

Não nos parece que as dificuldades que o Tribunal, no processo 12/76 atrás referido, considerou subsistirem para uma definição autónoma do lugar de execução da obrigação resultante de um contrato se coloquem quanto à definição do lugar no qual o facto danoso ocorreu. Com efeito, a determinação deste lugar não está ligada a nenhum quadro contratual e também não é, de nenhum modo, influenciada pelas diferenças existentes entre vários tipos de contrato: o conceito de facto danoso extracontratual, ainda que englobe um certo número de casos, reveste uma natureza muito mais unitária do que o de obrigação contratual. Por outro lado, as divergências que existem entre as várias ordens jurídicas nacionais no domínio da regulamentação material da responsabilidade extracontratual não podem constituir obstáculo a uma definição autónoma da noção utilizada pelos autores da convenção no n.o 3 do artigo 5.o; não esqueçamos que já no acórdão 12/76 o Tribunal pôs em evidência a independência da interpretação das noções contidas na convenção relativamente às normas materiais aplicáveis à situação em litígio.

Podemos ainda acrescentar que uma definição autónoma das expressões utilizadas na convenção para determinar a competência jurisdicional contribui indubitavelmente, sempre que possível, para facilitar o reconhecimento e a execução das decisões judiciais dos Estados signatários em conformidade com os objectivos essenciais da convenção e com as finalidades do artigo 220.o do Tratado CEE, preceito na origem desta convenção.

Finalmente, é também em vão que a ideia de uma definição autónoma se oporia à circunstância de os autores da convenção terem intencionalmente dado uma formulação imprecisa a determinadas normas, entre outras o artigo em discussão. Mesmo perante normas deste tipo, cabe ao intérprete determinar o seu alcance utilizando para o efeito todos os meios que a lógica e o sistema jurídico em que se situam põem à sua disposição.

3. 

A imprecisão que acabámos de sublinhar não é fortuita.

Com efeito, resulta dos trabalhos preparatórios que, ao utilizarem a expressão contida no artigo 5.o, n.o 3, a fim de permitir àquele que se considera vítima de um acto ilícito extracontratual o recurso a um critério alternativo de competência além do critério geral contido no artigo 2.o, os autores da convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968 não quiseram prejudicar a solução da questão relativa ao significado a atribuir a esta noção, preferindo, evidentemente, confiar à interpretação jurisprudencial a tarefa de operar tal definição. O relatório Jenard refere, a este propósito, que «O comité» não considerou oportuno dever regular expressamente a questão de saber se deve ter-se em conta o lugar onde foi praticado o facto que provocou o dano ou o lugar onde o dano se verificou; considerou preferível adoptar uma formulação consagrada por várias legislações (Alemanha, França). A Comissão e os dois Estados intervenientes no presente processo confirmaram esta asserção.

A mesma expressão «facto danoso» contida no artigo 5.o, n.o 3, da convenção foi retomada posteriormente pelo artigo 10.o do projecto prévio de convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais e extracontratuais elaborado em 1972 no âmbito da Comunidade. No relatório que acompanha esse projecto, o Professor Giuliano, considerando a hipótese de o facto que originou o dano ter ocorrido num Estado diferente daquele onde o efeito danoso se manifestou, afirma que o projecto não prejudica a questão de saber se por «lugar do facto danoso» deve entender-se um ou o outro país e isso com o objectivo de não entravar o desenvolvimento da jurisprudência actualmente em curso.

Encontramo-nos, portanto, perante um caso em que a natureza complementar da decisão do Tribunal relativamente às normas convencionais se apresenta especialmente evidente.

4. 

A referência que o relatório Jenard faz à coincidência que existe entre a expressão utilizada no n.o 3 do artigo 5.o da convenção e as formulações adoptadas por determinadas legislações nacionais atribui um interesse especial às investigações destinadas a determinar o significado que cada uma das ordens jurídicas dos Estados referidos dá à expressão em questão. No entanto, queremos advertir que a coincidência terminológica com uma norma jurídica típica de um dos Estados signatários não é, em nosso entender, suficiente para impor uma interpretação das normas da convenção à luz das orientações interpretativas que prevalecem nesse Estado. A interpretação é uma operação estritamente ligada ao contexto do acto e ao sistema em cujo âmbito o acto deve produzir os seus efeitos. Afigura-se, portanto, evidente que, uma vez inserida numa convenção internacional multilateral, a expressão retirada de uma ou de várias ordens jurídicas nacionais deve ser entendida em função do alcance e dos objectivos dessa convenção e não do direito estadual do qual eventualmente emane.

Este aspecto reveste uma importância ainda maior no caso que nos ocupa, dado que a expressão em análise figura no número das utilizadas no interior de um Estado, tanto no direito relativo à responsabilidade extracontratual como no direito internacional privado ou em direito jurisdicional privado; além disso, no quadro do direito judiciário privado, pode ter como objectivo quer a repartição das competências territoriais quer a determinação da competência jurisdicional relativa a estrangeiros. Ainda que se atenda apenas a esta última utilização da expressão, não se deve esquecer que os órgãos jurisdicionais nacionais revelam uma certa tendência para interpretar os critérios de competência de forma a poderem reconhecer-se competentes para resolver a controvérsia cuja análise lhes foi submetida. Esta exigência de atracção nacional, que por vezes é susceptível de conduzir a conflitos positivos de competência, não poderá, obviamente, desempenhar qualquer papel na interpretação de uma convenção do tipo da convenção de Bruxelas, por esta prever normas uniformes para todos os Estados signatários e se destinar a prevenir os conflitos de competência.

Dito isto, deve observar-se que nem as orientações que podem retirar-se da ordem jurídica francesa nem as que se manifestaram na República Federal da Alemanha resolvem a questão de forma clara. Em França, a competência do juiz do «lugar onde ocorreu o facto danoso» estava prevista no artigo 59.o, último parágrafo, do Código de Processo Civil em vigor até 31 de Dezembro de 1975. A jurisprudência encontrava-se dividida quanto à interpretação deste preceito; alguns viam nele uma referência ao lugar da situação do facto causador do dano, enquanto para outros se tratava do lugar onde o dano se verificou [v. acórdãos da Cour da cassation de 8 de Março de 1937 (Dalloz 1938, I, 76; de 6 de Dezembro de 1939, Dalloz 1940, I, 40) e de 28 de Março de 1968(Bull. Arrêts Cass. civ. 1968, n.o 100)]. A possibilidade de o autor escolher entre o tribunal do lugar onde se situa o comportamento e o do lugar do dano foi expressamente prevista pelo legislador no artigo 46.o do novo Código de Processo Civil que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro passado. Este preceito faz uma distinção entre o lugar do «facto danoso» e o lugar onde o dano é sofrido. A ré no processo principal tentou basear-se nesta distinção sustentando que o facto de o artigo 46.o ter acrescentado uma referência expressa ao dano significa que a noção de «facto danoso» se limita ao comportamento que provocou o dano. Contudo, apesar de esta dedução ser exacta no que respeita à nova regra também não deixa de ser verdade que, se se quiser procurar a intenção dos autores da convenção com base na experiência jurídica francesa, deve, obviamente, ter-se em conta a lei e a jurisprudência vigentes na época em que a convenção foi redigida.

Na República Federal da Alemanha, a jurisprudência e a doutrina pronunciaram-se igualmente no sentido da possibilidade de o autor optar entre o lugar do comportamento («Tatort») e o lugar onde se verificaram os efeitos do acto («Erfolgsort»), quer em matéria de competência interna quer em matéria de competência internacional [quanto à contaminação do meio ambiente, v. acórdão do Oberlandesgericht de Sarrebruck de 22 de Outubro de 1957(Neue Juristische Wochenschrift, 1958, p. 752) e acórdão do Oberlandesgericht de Hamm, de 3 de Julho de 1958 (publicado na mesma revista, 1958, p. 1831)]. De resto, observe-se que, ao determinar os critérios atributivos de competência que, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, são os mesmos quer no plano interno quer em relação a estrangeiros, o artigo 32.o do Código de Processo Civil alemão se refere ao lugar onde o acto («die unerlaubte Handlung») foi praticado. Não existe, portanto, coincidência textual com a fórmula utilizada na convenção uma vez que o n.o 3 do artigo 5.o do texto alemão determina que uma pessoa pode ser demandada «vor dem Gericht des Ortes, an dem das schädigende Ereignis eingetreten ist» (perante o tribunal do lugar onde o facto danoso ocorreu).

Assim, uma coincidência textual plena entre a expressão contida no n.o 3 do artigo 5.o e os termos utilizados em função do critério de atribuição de competência no plano de um direito interno só existiu no âmbito do direito francês anterior a 1976, sendo difícil deduzir daí uma solução segura, mesmo prescindindo das considerações segundo as quais não é oportuno tomar como base as orientações interpretativas que prevalecem num único Estado. Na realidade, a expressão é propícia «in se e per se» pelo menos a três interpretações: lugar do acto, lugar do dano e alternativa entre um e outro consoante opção do autor. Todavia, para se ser completo, deve fazer-se referência ao direito de alguns Estados signatários e ainda aos direitos dos dois Estados-membros que ainda não fazem parte da convenção: o resultado desta investigação confirmará a impossibilidade de justificar uma escolha com base nas tendências consolidadas ao nível do direito interno.

5. 

Antes de analisar as indicações que a jurisprudência e a doutrina italianas podem fornecer quanto ao aspecto em discussão, deve chamar-se a atenção para o facto de a redacção do n.o 3 do artigo 5. o da convenção atribuir competência ao juiz «del luogo in cui l'evento dannoso è avvenuto». Interpretada literalmente, a noção de «evento dannoso» identifica-se com a noção de dano, de prejuízo, e, com efeito, na doutrina italiana, a questão da localização do facto ilícito é apresentada por alguns autores em termos de escolha entre o lugar do comportamento e o lugar «dell'evento». No entanto, não cremos que a presença de uma fórmula redigida desta maneira numa das versões da convenção seja suficiente para resolver a ambiguidade das restantes; este aspecto confirma apenas a impossibilidade de considerar a noção de «facto danoso» pura e simplesmente equivalente à noção de comportamento causador do dano. Quanto à ordem jurídica italiana, o ponto de partida encontra-se no conceito de «luogo in cui é sorta l'obligazione» (lugar onde nasceu a obrigação) que figura nos artigos 20.o e 4.o, n.o 2, do «Codice di procedura civile» (respectivamente para a competência interna e para a competência internacional) fazendo igualmente referência às obrigações extracontratuais. A jurisprudência e a doutrina inclinam-se predominantemente no sentido de localizar o surgimento da obrigação não contratual no lugar onde o dano se produziu [v., especialmente, na jurisprudência da Corte di cassazione italiana, o acórdão proferido pela sua sessão plenária, em 27 de Fevereiro de 1962, n.o 390, British Petroleum Co./EPIMO (Foro italiano, 1962, I, p. 1810), e o acórdão de 25 de Junho de 1971, n.o 2011 (Riv. Internaz. Priv. e Proc, 1972, p. 292)]. Contudo, não faltam os autores com prestígio, como Morelli, que sugerem que a competência poderia igualmente basear-se no lugar do acto e no lugar do dano («l'evento»).

Na Bélgica, a situação legislativa é semelhante à de Itália. Com efeito, o artigo 624.o do «Code judiciaire» determina a competência territorial do juiz do lugar onde as obrigações em litígio surgiram ou onde devem ser cumpridas. Aplicada igualmente às obrigações decorrentes de actos ilícitos e extracontratuais, esta norma suscitou controvérsias quer na doutrina quer na jurisprudência, tendo a primeira manifestado certa preferência pelo lugar do acto, enquanto que a segunda se baseia principalmente do lugar do dano. O artigo 635.o do Code judiciaire regula a competência dos juízes belgas em relação aos estrangeiros e, aparentemente, reconhece-a nos casos em que a obrigação sobre a qual o pedido assenta surgiu e foi ou deve ser cumprida na Bélgica.

O direito neerlandês não contém qualquer indicação útil quanto ao assunto em discussão. Afasta todo e qualquer critério especial em matéria de factos ilícitos baseando-se unicamente no critério geral do domicílio: domicílio do réu ou, quando este não tem domicílio ou residência conhecidos no país, domicílio do autor (artigo 126.o do «Wetboek van burgerlijke rechtsvordering», n. os 2 e 3).

A jurisprudência inglesa, em certos casos, dá preferência expressa ao critério do lugar onde foi praticado um acto por negligência [v. George Monro Ltd/American Cyanamid and Chemical Corporation (1944, KB 432)]; noutros casos, parece inclinar-se a favor do critério do lugar onde o dano ocorreu [Bata v. Bata. (1948, WN 366)]. Observe-se, no entanto, que, neste caso, se tratava de uma acção instaurada por difamação e que se atribuiu a competência ao juiz do lugar onde as expressões difamatórias tinham sido publicadas. Desta última tendência são encontrados precedentes igualmente na jurisprudência escocesa [v. Smith v. Rosenbloom (1915, 2 SLT 18)].

Finalmente, em matéria de competência territorial interna, o direito dinamarquês admite a possibilidade de escolha entre o lugar do acto e o lugar do dano, por força do n.o 244 da «retsplejelov» (Código de Processo); quanto à competência internacional, os tribunais nacionais reconheceram-se competentes mesmo que o acto na origem do prejuízo tenha sido praticado no estrangeiro, desde que o dano se tenha manifestado na Dinamarca (v. UfR 1940.454 H e UfR 1947.187 O).

6. 

É legítimo questionarmo-nos se se deve pensar noutras soluções diferentes das três soluções atrás indicadas como possíveis. A questão justifica-se tanto mais que, contrariamente ao tribunal de reenvio, que acolheu a alternativa indicada no relatório Jenard, o Governo dos Países Baixos e a Comissão consideram que a redacção do n.o 3 do artigo 5.o permite igualmente recorrer ao critério da «relação dominante» («most significant relationship») que a situação decorrente do facto danoso tem com um Estado, o qual poderia eventualmente ser diferente quer do Estado onde foi praticado o acto quer do Estado onde se verificou o efeito danoso. Não é claro se, na ideia da Comissão, isso se deveria verificar de modo alternativo ou cumulativo.

Entrar nesta ordem de ideias significaria ter em conta uma concepção flexível, elaborada sobretudo em função da escolha do direito material e, neste âmbito, conhecida como a teoria da «proper law of the tort». Esta doutrina, originária de países cuja tradição jurídica remonta à Common Law, foi preconizada, como observa um acórdão da «House of Lords» de 1951, com o objectivo de permitir ao juiz escolher o direito material que «on policy grounds, seems to have the most significant connection with the chain of acts and circunstances in the particular situation» (citado por Cheshire, «Private International Law», 1974, p. 264).

Esta doutrina não pretende substituir o critério tradicional do «locus delicti commissi», mas apenas integrá-lo e corrigi-lo sempre que, em casos especiais, a sua aplicação conduza a resultados pouco razoáveis. Assim entendida, esta doutrina encontrou igualmente expressão quer no artigo 3 o da resolução sobre as obrigações «ex delicto» em direito internacional privado, aprovada pelo Instituto de Direito Internacional durante a sessão de Edimburgo (1969), quer no segundo parágrafo do artigo 10.o do já mencionado projecto prévio de convenção sobre a lei aplicável às obrigações elaborado em 1972 no âmbito da CEE. Este carácter supletivo mantém-se mesmo que se tente que o critério seja extensivo à escolha do órgão jurisdicional competente a fim de o fazer coincidir com o órgão jurisdicional do Estado cujo direito material é considerado aplicável (v., sobre esta matéria, no direitos dos Estados Unidos, os n.os 36 e 37 do Restatement of the Law Second, Conflict of Law, adoptado pelo American Law Institute em Washington, em 23 de Maio de 1969).

Todavia, no nosso caso, tornar extensivo, ainda que a título susidiário, à determinação da competência jurisdicional um critério deste tipo, que pode levar a prescindir quer do lugar do comportamento quer do lugar do dano, equivaleria a afastar completamente a redacção do n.o 3 do artigo 5 o , correndo-se o risco de se alcançarem resultados incompatíveis com esta norma jurídica.

Acolher um critério como o da «most significant connection» dificilmente seria conciliável com a intenção dos autores da convenção que consiste em permitir uma fácil determinação do foro competente a partir de critérios claros, precisos, fornecidos com um grau suficiente de objectividade e, consequentemente, susceptíveis de serem aplicados uniformente em todos os Estados que aderiam à convenção. A este propósito, um critério como o que acabámos de evocar, que, em abstracto, não é claro e que, ao invés, confia numa avaliação discricionária do juiz, não poderia fornecer garantias suficientes.

Finalmente, estabelecer um paralelismo estreito entre a questão do direito material aplicável e a questão da competência seria contrário ao objectivo prosseguido pela Convenção de Bruxelas, o qual consiste em simplificar os problemas relacionados com a determinação do foro nacional competente. A convenção submetida à vossa interpretação, tal como não se destina, de modo nenhum, a influenciar a aplicação das regras de direito internacional privado dos Estados signatários também não tem por objectivo fazer depender a determinação da competência do direito material.

7. 

Afastada a teoria da «most significant connection», devemos admitir que a solução cumulativa, aquela que permitiria ao autor a escolha entre o tribunal do lugar do acto e o tribunal do lugar do dano, pode parecer, pela sua própria amplitude, a mais justa, a que melhor tem em conta as características dos vários tipos de factos ilícitos. Com efeito, verificámos que esta solução é, actualmente, largamente acolhida a nível do direito interno. Apesar disso, tal solução não nos parece conforme nem com o espírito nem com a letra da convenção. Não é conforme com a letra da convenção na medida em que o n.o 3 do artigo 5.o se refere ao tribunal do lugar onde o facto danoso ocorreu — um único tribunal, um único lugar — e parece, portanto, excluir a eventualidade de uma pluralidade quer de lugares susceptíveis de entrar em consideração quer de tribunais que podem considerar-se competentes com base no que aí se determina em relação ao mesmo facto danoso. Não é conforme com o espírito da convenção — e este é certamente o aspecto mais importante — na medida em que o objectivo prosseguido por este acordo consiste em operar uma repartição da competência internacional entre vários Estados, de acordo com um critério distributivo, de modo a reduzir e não a aumentar a extensão da competência de cada um nos caos em que existe uma razão objectiva para atribuir competência a um outro. No acórdão do Tribunal de Justiça 14/76, De Bloos/Bouyer, foi afirmado, com razão, que os objectivos da convenção «implicam a necessidade de evitar, na medida do possível, a multiplicação de critérios de competência jurisdicional em relação ao mesmo contrato». Em nossa opinião, esta orientação deve igualmente ser válida, uma vez que nos encontramos perante um facto ilícito e não um contrato.

O Governo francês e a ré parecem partir da ideia de que deve ver-se no artigo 5 o uma disposição excepcional que afasta o princípio geral da competência do tribunal do domicílio do réu e, como tal, de interpretação restrita. Não partilhamos este ponto de vista. Consideramos que este artigo constitui uma regra que, para os casos aí previstos, acrescenta ao critério geral de competência contido no artigo 2.o, outros critérios de natureza específica relacionados com casos derterminados e afigura-se-nos que isso pode deduzir-se da situação do artigo 5.o da convenção, uma vez que figura numa secção diferente daquela em que figura a regra geral prevista no artigo 2.o Apesar disso, parece-nos de boa norma evitar interpretar de modo amplo uma norma jurídica que institui uma competência especial adicional, a não ser que argumentos positivos nesse sentido possam ser retirados da convenção, mas não nos parece que existam.

8. 

Para o Governo francês e a ré, a expressão utilizada no artigo 5.o, n.o 3, destina-se a indicar exclusivamente o lugar onde se situa o acto na origem do dano e isso devido, sobretudo, ao facto de, caso se reconhecesse competência ao juiz do lugar onde o dano se produziu, não ser possível atingir o objectivo prosseguido pela convenção, que consiste em evitar decisões contraditórias sempre que um só acto cause danos em vários Estados. Em tais hipóteses, localizar a competência em cada um dos Estados onde os danos se produziram implicaria uma multiplicação de competências susceptível de criar uma situação contrária à equidade, prejudicando quer autores, que poderiam ser tratados diversamente consoante o lugar onde suportaram o dano, quer réus, que, pela mesma razão, se veriam expostos a uma multiplicidade de processos, com a possibilidade de soluções contraditórias.

A estes argumentos pode objectar-se que também o critério do lugar do acto pode dar origem ao mesmo inconveniente da dispersão de competências e do risco de decisões contraditórias na hipótese de o mesmo efeito danoso ter sido provocado por uma série de actos levados a cabo por vários sujeitos em vários Estados. Tal pode ser o caso em matéria de poluição do meio ambiente e mesmo em casos idênticos ao em discussão. Efectivamente, além da ré, empresas alemãs lançam no Reno poluentes análogos. Neste caso, a justiça imporia que todos os autores do mesmo dano fossem julgados segundo critérios idênticos. Este resultado poder-se-ia alcançar reconhecendo a competência do juiz do lugar do dano, que, mais do que os juízes dos outros países, estaria em melhor posição para determinar o nexo de causalidade entre os vários actos e o dano invocado e para avaliar em que medida cada uma das empresas que contribuíram para a contaminação é responsável pelo prejuízo daí resultante para o autor.

Ao longo dos debates orais foram invocadas circunstâncias atinentes ao mérito da causa, em especial o facto de os escoamentos de cloro no Reno terem sido autorizados pelas autoridades das prefeituras francesas e deduzidas daí considerações oportunas quanto à escolha do tribunal efectuada pelo autor (o tribunal de Mulhouse — afirmou-se —, melhor do que o tribunal neerlandês, estaria em posição para avaliar a importância que deve ser dada ao acto administrativo que autorizou o escoamento).

Todavia, estamos convencidos de que, na interpretação de uma norma puramente de competência, é necessário que não nos deixemos influenciar pelas particularidades relacionadas com o mérito do caso em discussão. A mesma convicção leva-nos a recusar qualquer relevância às dificuldades com que poderia debater-se a execução em França de uma decisão neerlandesa que condenasse a ré sem ter devidamente em conta a circunstância atrás recordada.

Na realidade, compete àquele que suportou o prejuízo avaliar a oportunidade da escolha de um dos tribunais (o foro geral do domicílio do réu ou o especial que aqui discutimos) perante os quais tem a faculdade de demandar o autor do dano. Sabemos, por outro lado, que, no âmbito da aplicação de uma convenção relativa à competência jurisdicional do tipo da que hoje analisamos, as dificuldades susceptíveis de surgir em matéria de execução das decisões nunca poderiam dizer respeito a questões de competência. É certo que eventuais dificuldades em matéria de execução poderiam decorrer da reserva de ordem pública prevista no n.o 1 do artigo 27.o da Convenção de Bruxelas, mas isso é outra questão. Limitar-nos-emos a desejar que a competência atribuída a este Tribunal em matéria de interpretação possa igualmente servir para clarificar o alcance desta cláusula, evitando interpretações divergentes e riscos de abusos.

Não cremos que seja necessário atribuir grande relevo ao argumento de que o critério do lugar do acto seria mais conforme com uma administração correcta da justiça por garantir a segurança jurídica para o autor do acto ilícito, para quem seria suficiente conhecer o direito em vigor no lugar onde se encontra a fim de disciplinar o seu próprio comportamento. Este argumento corre o risco de criar confusão entre o aspecto da competência, o único que aqui entra em linha de conta, e o direito material aplicável. O reconhecimento da competência do juiz do lugar onde se produziu o dano não implica necessariamente a determinação do direito material aplicável. Na realidade, ainda que este lugar se encontre num Estado diferente daquele onde o acto foi praticado, a aplicabilidade do direito material do lugar do acto, para efeitos da determinação da responsabilidade, não resulta, só por isso, excluída. Por outro lado, a priori, não se poderá determinar se, em caso de reconhecimento da competência do juiz do lugar do acto, este, com base em normas de direito internacional privado do seu próprio Estado, não será levado a aplicar o direito material de um outro Estado onde o dano eventualmente se verificou ou com o qual o litígio apresenta laços mais estreitos com base no critério da «proper law of the tort» atrás mencionado.

9. 

O que atrás foi afirmado demonstra que os argumentos avançados a favor de uma interpretação do artigo 5.o, n.o 3, no sentido de identificar o «facto danoso» com o comportamento do autor do acto não são convincentes. Ao invés, existem boas razões para nos inclinarmos a favor do critério do lugar onde se produziu o dano, razões que justificam a sua aplicação exclusiva.

Observaremos, antes de mais, que a obrigação legal de reparação, consequência do facto ilícito civil, pressupõe necessariamente, pela sua própria existência, a verificação do dano, enquanto no caso de um facto ilícito de natureza penal o dever de o réu suportar a pena nasce simultaneamente com o comportamento contrário à norma penal, uma vez que esta tem uma finalidade punitiva. Em contrapartida, no caso do facto ilícito civil, a obrigação só surge se e a partir do momento em que existe um prejuízo, uma vez que a norma civil, diversamente da norma penal, tem essencialmente por objectivo a reparação do dano causado. Uma negligência que não cause danos, ainda que constitua um facto social e pessoalmente censurável, não cria uma obrigação de reparação e, portanto, não dá lugar a qualquer acção perante os tribunais.

Daqui resulta que um critério de competência que assenta no facto gerador da obrigação legal de reparação tal como o que resulta do n.o 3 do artigo 5 o não poderá prescindir de ter em conta o dano, sem o qual tal facto não apresenta todos os elementos necessários para poder ser invocado no plano jurídico. O critério em questão só pode, portanto, ser localizado no lugar onde o facto jurídico tem todos os seus elementos constitutivos, isto é, no lugar onde o prejuízo produziu efeitos na esfera jurídica do sujeito passivo. No momento em que isso se verifica nasce o direito à indemnização, fundamento da acção judicial.

Esta solução apresenta também a vantagem de se harmonizar com a solução adoptada por outras normas da mesma convenção, do ponto de vista da exigência, em que indubitavelmente se inspiraram os seus autores, que resulta expressamente de várias das suas disposições e que consiste em proteger a parte mais desfavorecida de uma relação jurídica. Estamos a pensar no artigo 5.o, n.o 2, quanto à obrigação de prestação de alimentos, em relação à qual a convenção reconhece a competência do tribunal do lugar onde o credor de alimentos (que, portanto, normalmente será o autor) tem o seu domicílio ou a sua residência habitual; nos artigos 7.o e seguintes, que, em matéria de seguros, atribuem igualmente competência ao juiz do lugar onde o segurado estiver domiciliado; no artigo 14.o, que, em matéria de venda e de empréstimos a prestações, prevê a competência do tribunal do Estado em cujo território o vendedor ou o consumidor estiverem domiciliados. A parte lesada, em relação à qual o acto ilícito foi praticado, é, sem mais, considerada a parte mais fraca e, enquanto tal, afigura-se digna de protecção na escolha do foro competente.

Mesmo abstraindo do caso em análise, consideramos que, de ambos os critérios, o do lugar do acto e o do lugar do dano, é o segundo que, em geral, melhor poderá satisfazer a parte lesada, dado que tem tendência para coincidir com o Estado onde esta parte normalmente reside, ao passo que o lugar do comportamento, na grande maioria dos casos, coincidirá com o lugar do domicílio do autor do dano (com excepção dos casos de acidentes de automóvel, em que, de resto, o lugar do acto e o lugar do dano normalmente coincidem). Consequentemente, se se considerasse que o critério enunciado no artigo 5.o, n.o 3, se refere ao lugar do acto, este critério especial, na maioria dos casos, traduzir-se-ia numa dupla aplicação do critério geral contido no artigo 2.o e a norma jurídica em questão acabaria por ter pouca utilidade.

10. 

Pelo exposto, concluiremos propondo ao Tribunal que, respondendo à questão que lhe é colocada pelo Gerechtshof de Haia por decisão de 27 de Fevereiro de 1976, interprete o disposto no artigo 5 o, n.o 3, da Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968 no sentido de que a expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso» se refere ao lugar onde se produziu o dano cuja reparação é pedida.


( *1 ) Língua original: italiano.