ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

20 de Maio de 1976 ( *1 )

No processo 104/75,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, pelo Kantongerecht de Roterdão, destinado a obter, no procedimento criminal pendente neste órgão jurisdicional contra

Adriaan de Peijper, director da sociedade Centrafarm BV,

uma decisão a título prejudicial relativa à interpretação, designadamente, do artigo 36.o do Tratado CEE,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: R. Lecourt, presidente, H. Kutscher e A. O'Keeffe, presidentes de secção, A. M. Donner, J. Mertens de Wilmars, M. Sørensen, A. J. Mackenzie Stuart, juízes,

advogado-geral: H. Mayras

secretário: A. Van Houtte

profere o presente

Acórdão

(A parte relativa aos factos não é reproduzida)

Fundamentos da decisão

1

Por decisão de 29 de Setembro de 1975, entrada na Secretaria do Tribunal em 2 de Outubro de 1975, o Kantonrechter (juiz de paz) de Roterdão colocou ao Tribunal, ao abrigo do artigo 177.o do Tratado CEE, duas questões destinadas a obter a interpretação dos artigos 30.o e seguintes, designadamente do artigo 36.o

2

Estas questões foram suscitadas no âmbito de um procedimento criminal instaurado pelo procurador do círculo de Roterdão contra um operador neerlandês a quem acusa de, por um lado, ter violado a legislação dos Países Baixos em matéria sanitária, ao fornecer, sem o consentimento das autoridades neerlandesas, a farmácias estabelecidas neste Estado-membro, medicamentos que tinha importado do Reino Unido e, por outro, por não possuir determinados documentos relativos a estes medicamentos, a saber, o «processo» e os «protocolos» previstos na citada legislação.

3

Entende-se por «processo» um documento que o importador é obrigado a possuir «em relação a qualquer acondicionamento farmacêutico de um preparado farmacêutico por ele importado» e onde devem constar indicações pormenorizadas quanto ao referido acondicionamento, designadamente no que respeita à composição quantitativa e qualitativa bem como ao modo de preparação, indicações que devem ser assinadas e conter a expressão «visto e aprovado» aposta pela «pessoa que, no estrangeiro, é responsável pelo fabrico».

4

Segundo a prática corrente, o importador submete o «processo» às autoridades competentes para efeitos de «legalização» que simultaneamente vale como autorização para comercializar nos Países Baixos o acondicionamento em questão, pelo que tal autorização só pode ser obtida por um importador, que disponha do «processo».

5

Por «protocolos», a legislação neerlandesa entende os documentos que o importador deve ter em sua posse quando entrega um preparado farmacêutico que importou e dos quais resulte que o produto foi efectivamente fabricado e controlado em conformidade com as indicações que figuram no referido «processo» relativas à fórmula de fabrico bem como os dispositivos de controlo utilizados na preparação e as substâncias que o compõem.

6

Resulta que o «processo» parece dizer respeito ao produto em geral, enquanto os «protocolos» parece referirem-se a cada lote concreto do produto que o importador deseja introduzir no mercado.

7

O acusado no processo principal não contesta a realidade dos factos que lhe são reprovados mas argumenta que se encontrava impossibilitado de cumprir as normas em questão por não lhe ter sido possível obter os documentos em causa.

8

Isso explica-se por os medicamentos em questão terem sido fabricados por um fabricante britânico que faz parte de um grupo cujo centro de actividade se situa na Suíça. O acusado comprou esses medicamentos a um comerciante grossista estabelecido no Reino Unido e seguidamente procedeu à sua importação «paralela» para os Países Baixos, mas não conseguiu obter do fabricante ou do representante do grupo nos Países Baixos os referidos documentos.

9

As questões colocadas pelo juiz nacional destinam-se, no essencial, a saber se uma legislação ou uma prática do tipo das aqui referidas são contrárias ao direito comunitário por constituírem uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa proibida pelo artigo 30.o do Tratado, não podendo beneficiar da derrogação prevista no artigo 36.o em relação a medidas restritivas justificadas por razões de protecção da saúde e da vida das pessoas.

Quanto à primeira questão

10

Na primeira questão perspectiva-se uma situação de facto que o juiz de paz descreve invocando os seguintes elementos:

um produto farmacêutico preparado segundo um processo uniforme e com uma composição qualitativa e quantitativa bem definida encontra-se regularmente em circulação em vários Estados-membros, no sentido de que foram concedidas as autorizações exigidas pelas legislações destes Estados, no que respeita quer ao referido produto, ao fabricante «ou ao responsável pela comercialização» do produto no Estado considerado;

a concessão destas autorizações em cada um dos Estados-membros considerados tornou-se do domínio público através de publicações oficiais ou de outros meios;

este produto é idêntico, em todos os aspectos, a outro produto relativamente ao qual as autoridades sanitárias do Estado-membro importador dispõem já de documentos relativos ao processo de preparação bem como à sua composição quantitativa e qualitativa, documentos fornecidos anteriormente pelo fabricante ou pelo seu importador autorizado, em apoio um pedido de autorização de comercialização.

11

Pede-se ao Tribunal que determine se, perante tal situação, as autoridades nacionais tomaram uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa proibida pelo Tratado ao subordinarem a autorização de comercialização solicitada pelo importador paralelo à exibição de documentos idênticos aos já remetidos pelo fabricante ou pelo seu importador autorizado.

12

1.

Medidas nacionais do tipo das em análise produzem um efeito equivalente a uma restrição quantitativa e caem, por isso, no domínio da proibição contida no artigo 30.o do Tratado quando forem susceptíveis de entravar, directa ou indirectamente, actual ou potencialmente, as importações entre Estados-membros.

13

É o que se verifica quando uma regulamentação ou prática canalizam as importações, permitindo-as apenas a alguns operadores económicos e excluindo-as a outros.

14

2. A —

Porém, nos termos do artigo 36o, «as disposições dos artigos 30.o a 34.o… são aplicáveis sem prejuízo das proibições ou restrições à importação… justificadas por razões… de protecção da saúde e da vida das pessoas» e não devem constituir «nem um meio de discriminação arbitrária nem qualquer restrição dissimulada ao comércio entre Estados-membros».

15

Entre os bens ou interesses tutelados pelo artigo 36.o, a saúde e a vida das pessoas encontram-se em primeiro lugar, cabendo aos Estados-membros estabelecer, dentro dos limites impostos pelo Tratado, a que nível pretendem assegurar essa protecção, em especial qual o grau de severidade dos controlos a efectuar.

16

Contudo, resulta do artigo 36.o que uma regulamentação ou prática nacionais que produzem ou possam produzir um efeito restritivo sobre as importações de produtos farmacêuticos só são compatíveis com o Tratado na medida em que se revelem necessárias para uma protecção eficaz da saúde e da vida das pessoas.

17

Assim, uma regulamentação ou prática nacionais não beneficiam da derrogação prevista no artigo 36.o quando a saúde e a vida das pessoas podem ser protegidas de forma igualmente eficaz através de medidas menos restritivas das trocas intracomunitárias.

18

O artigo 36.o não pode, designadamente, ser invocado para justificar legislações ou práticas, ainda que úteis, mas cujos aspectos restritivos se explicam essencialmente pela preocupação de reduzir o encargo administrativo ou as despesas públicas, a menos que, na ausência das referidas legislações ou práticas, estes encargos ou despesas ultrapassem manifestamente os limites do que razoavelmente pode ser exigido.

19

É à luz destas considerações que deve analisar-se a situação descrita pelo juiz nacional.

20

B —

Para este efeito, deve distinguir-se, por um lado, entre documentos relativos a um medicamento em geral, no caso concreto o «processo» previsto na legislação neerlandesa, e, por outro, os documentos relativos a um lote concreto deste medicamento importado por um operador determinado, no caso concreto os «protocolos» exigidos pela mesma legislação.

21

a)

No que respeita aos documentos relativos a um medicamento em geral, se as autoridades sanitárias de um Estado-membro importador já dispuserem, na sequência de importação anterior, de todas as indicações farmacêuticas julgadas indispensáveis para o controlo da eficácia e da inocuidade do medicamento, é manifestamente desnecessário que, tendo em vistà a protecção e a vida das pessoas, as referidas autoridades exijam que um segundo importador de um medicamento idêntico tenha que fornecer novamente as mesmas indicações.

22

Consequentemente, uma regulamentação ou prática nacionais que impõem tal obrigação não poderia justificar-se por razões de protecção da saúde e da vida das pessoas na acepção do artigo 36.o do Tratado.

23

b)

Quanto aos documentos relativos ao lote concreto de um medicamento importado no momento em que as autoridades sanitárias do Estado-membro importador já possuem um «processo» relativo a este medicamento, estas autoridades têm um interesse legítimo em poder verificar com segurança e a qualquer momento se essa parte do produto se encontra em conformidade com as indicações que figuram no «processo».

24

No entanto, atenta a natureza do mercado do produto farmacêutico em causa, pode perguntar-se se este objectivo não pode ser igualmente alcançado se as autoridades nacionais, em vez de esperarem passivamente que as provas exigidas lhes sejam apresentadas, tendo com isso adoptado uma fórmula que privilegia o fabricante do produto e os seus representantes autorizados, admitirem, sendo caso disso, provas análogas e sobretudo se adoptassem uma política mais activa que possibilitasse a todos os comerciantes a obtenção das provas necessárias.

25

Esta questão impõe-se tanto mais que, frequentemente, os importadores paralelos estão em condições de oferecer a mercadoria a um preço inferior ao praticado pelo importador autorizado, em relação ao mesmo produto, facto que, tratando-se de medicamentos, deveria, sendo caso disso, incitar as autoridades sanitárias a não desfavorecer as importações paralelas, uma vez que a protecção eficaz da saúde e da vida das pessoas exige igualmente que os medicamentos sejam vendidos a preços razoáveis.

26

As autoridades nacionais dispõem de meios legislativos e administrativos capazes de obrigar o fabricante ou o seu representante autorizado a fornecerem as indicações que permitem verificar que o medicamento efectivamente importado por via paralela é idêntico ao medicamento em relação ao qual as autoridades nacionais já se encontram informadas.

27

De resto, uma simples colaboração entre as autoridades dos Estados-membros permitir-lhes-ia obter reciprocamente, em relação a produtos de grande difusão mais ou menos uniformizados, os necessários documentos de verificação.

28

Tendo em conta estas possibilidades de informação, as autoridades sanitárias nacionais deverão indagar se a protecção eficaz da vida e da saúde das pessoas justifica a presunção de não conformidade do lote importado com a descrição do medicamento ou se, ao invés, bastaria estabelecer uma presunção de conformidade, tendo a administração a possibilidade de, sempre que necessário, afastar essa presunção.

29

Finalmente, admitindo que é indispensável impor ao importador paralelo a prova desta conformidade, em todo o caso não se justificaria, face ao artigo 36.o, obrigá-lo a fazer tal prova mediante documentos que lhe são inacessíveis, quando a administração ou, sendo caso disso, o juiz verificassem que a prova pode ser apresentada por outros meios.

30

Os governos britânico, dinamarquês e neerlandês consideram que medidas como as em discussão no processo principal são necessárias à satisfação das exigências impostas pelas directivas 65/65, 75/318 e 75/319 do Conselho (JO de 9 2.1965, p. 369; EE 13 F1 p. 18; JO L 147 de 9.6.1975, p. 1 e 13; EE 13 F4, p. 80 e EE 07 F1 p. 92), relativas à aproximação das legislações nacionais respeitantes às especialidades farmacêuticas.

31

No entanto, estas directivas têm por único objectivo a harmonização das disposições nacionais nesta matéria; não pretendem, nem poderiam fazê-lo, alargar a competência residual, de resto importante, deixada aos Estados-membros pelo artigo 36.o em matéria de saúde pública.

32

Consequentemente, deve responder-se que, perante uma situação de facto como a descrita na primeira questão, uma legislação ou prática que permitem ao fabricante e aos seus representantes autorizados monopolizar, pela simples recusa do «processo» ou dos «protocolos», a importação e a comercialização do produto em causa deve ser considerada mais restritiva do que o necessário, não podendo, portanto, beneficiar da derrogação prevista no artigo 36.o do Tratado, a menos que esteja claramente demonstrado que qualquer outra legislação ou prática ultrapassariam manifestamente os meios razoáveis ao dispor de uma administração normalmente activa.

Quanto à segunda questão

33

Na segunda questão, pede-se ao Tribunal que, no essencial, declare se a resposta a dar à primeira questão é igualmente válida no caso de (a) o medicamento importado de outro Estado-membro pelo importador paralelo diferir, quanto ao processo de fabrico e à sua composição qualitativa e quantitativa, do medicamento do mesmo nome e em relação ao qual as autoridades do Estado-membro importador já dispõem destes dados, mas (b) «as diferenças existentes entre os dois produtos são de tal modo irrelevantes que permitem presumir que o fabricante tem intenção de utilizar estas diferenças com o objectivo evidente e exclusivo de impedir e criar entraves à possibilidade de uma importação paralela da especialidade farmacêutica».

34

A resposta deve ser afirmativa.

35

Com efeito, a administração competente do Estado-membro importador está obviamente habilitada a exigir do fabricante ou do seu importador autorizado, no momento em que o interessado solicita autorização para comercializar o medicamento e entrega a documentação respectiva, (a) que declare se o fabricante ou eventualmente o grupo dos fabricantes de que faz parte fabrica, sob a mesma designação e com destino a diferentes Estados-membros, vários tipos do medicamento e (b), em caso afirmativo, que apresente igualmente uma documentação análoga para as restantes variantes, especificando a natureza das diferenças entre elas existentes.

36

Só quando resultasse dos documentos apresentados que existem diferenças com incidência terapêutica é que se justificaria tratar as variantes como medicamentos diferentes para efeitos da autorização de comercialização, entendendo-se que, quanto à apresentação dos respectivos documentos em relação a cada um dos processos de autorização necessários, se mantém válida a resposta dada à primeira questão.

Quanto às despesas

37

As despesas efectuadas pelos governos britânico, dinamarquês e neerlandês, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o Kantongerechter de Roterdão, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões submetidas pelo Kantongerechter de Roterdão, declara:

 

1)

Uma legislação ou prática nacionais que têm por efeito canalizar as importações, permitindo-as apenas a alguns operadores económicos e excluindo-as a outros, constitui uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa na acepção do artigo 30.o do Tratado.

 

2)

Perante uma situação de facto como a exposta na primeira questão, uma legislação ou prática nacionais que permitem que o fabricante do produto farmacêutico em causa ou os seus representantes autorizados monopolizem a importação e a comercialização do produto através da simples recusa de apresentação dos documentos relativos ao medicamento em geral ou a um lote concreto do medicamento deve ser considerada mais restritiva do que o necessário e não poderá, portanto, beneficiar da derrogação prevista no artigo 36.o do Tratado, salvo se se provar que qualquer outra legislação ou prática ultrapassariam manifestamente os meios razoáveis de que dispõe uma administração normalmente activa.

 

3)

Só no caso de resultar das informações ou dos documentos apresentados pelo produtor ou pelo seu importador autorizado que existem outras variantes do medicamento com diferenças que incidem sobre o aspecto terapêutico é que se justificaria tratar as variantes como medicamentos diferentes para efeitos da autorização da comercialização, entendendo-se que, para cada um dos processos de autorização necessários, se mantém válida a resposta dada no n.o 2.

 

Lecourt

Kutscher

O'Keeffe

Donner

Mertens de Wilmars

Sørensen

Mackenzie Stuart

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 20 de Maio de 1976.

O secretário

A. Van Houtte

O presidente

R. Lecourt


( *1 ) Língua do processo: neerlandês.