HENRI MAYRAS
apresentadas em 10 de Março de 1976 ( 1 )
Senhor Presidente,
Senhores Juízes,
Aos dois princípios fundamentais da liberdade de circulação das pessoas no interior da Comunidade e da proibição de qualquer discriminação baseada na nacionalidade é introduzida uma excepção, quer pelo n.o 3 do artigo 48.o do Tratado de Roma, no que respeita à circulação e ao emprego dos trabalhadores assalariados, quer pelo n.o 1 do artigo 56.o, relativamente ao direito de estabelecimento dos não assalariados. Esta excepção, baseada na ordem pública, no sentido lato da expressão, permite que os Estados-membros adoptem, relativamente aos estrangeiros nacionais de um país comunitário, medidas restritivas do direito de acesso e de residência no seu território.
Contudo, o âmbito desta derrogação, que deve ser interpretada em sentido estrito, não pode ser determinado unilateralmente por qualquer destes Estados, sem controlo das autoridades comunitárias. Deve ressalvar-se, designadamente, o controlo jurisdicional que tendes por missão garantir.
Se deve admitir-se, por conseguinte, que as autoridades nacionais conservaram, no que respeita à utilização que lhes compete da reserva de ordem pública, uma margem de liberdade de apreciação, este poder que cabe aos Estados só pode ser exercido dentro dos limites impostos pelo direito comunitário e pela vossa própria jurisprudência.
Se quis recordar os principais fundamentos do acórdão proferido pelo Tribunal, há mais de um ano, no processo Van Duyn, é, Senhores Juízes, porque a solução das questões prejudiciais que vos são submetidas pelo tribunal de première instance de Liège, cuja decisão de reenvio acaba de ser confirmada, em 22 de Dezembro último, pela cour d'appel, está sujeita às mesmas considerações.
Estas questões foram-vos colocadas no decurso de uma acção penal instaurada contra um indivíduo de nacionalidade francesa acusado de ter entrado e residido na Bélgica sem para tal ter sido autorizado pelo ministro da Justiça, de acordo com as formalidades determinadas pelo decreto real, de 21 de Dezembro de 1965, relativo às condições de entrada, residência e estabelecimento dos estrangeiros nesse país.
Segundo as indicações fornecidas nas peças do processo nacional, o acusado teria sido, em tempos, condenado pela justiça francesa por proxenetismo. Também teria sido suspeito de ter praticado roubos à mão armada. Mas o inquérito policial parece não ter levado a uma incriminação penal.
Foi em conformidade com instruções dadas pelo procurador-geral de Liège no âmbito da (citamos) «luta contra o banditismo e das medidas destinadas aos criminosos internacionais» que a presença de Jean Royer foi detectada, pela primeira vez, em 18 de Janeiro de 1972, na região de Liège, na comuna de Grâce-Hollogne, onde a sua esposa explorava um «café-dancing». Tendo entrado na Bélgica em Novembro de 1971, J. Royer não tinha cumprido as formalidades de inscrição nos registos da população exigidas pela legislação belga.
Acusado de residência ilegal, o interessado foi notificado de uma decisão administrativa de «expulsão do território belga», acompanhada da proibição de ali regressar. Obedecendo a esta ordem de expulsão mudou-se então para a Alemanha.
Porém, passadas algumas semanas, regressou a Grâce-Hollogne. Tendo a sua presença sido aí rapidamente detectada, em 17 de Abril de 1972, foi detido pela polícia e mantido sob prisão. Libertado em 10 de Maio por decisão confirmativa da Chambre des mises en accusation de Liège, foi-lhe notificado, antes de sair da prisão, um decreto ministerial de expulsão do território, adoptado em execução do artigo 3 o , terceiro parágrafo, da lei de 28 de Março de 1952 relativa à polícia dos estrangeiros, com o fundamento de que o «seu comportamento pessoal fazia supor a sua presença perigosa para a ordem pública» e de que «não tinha respeitado as condições que regulam a residência dos estrangeiros nem tinha autorização para se estabelecer no Reino».
Não é descabido sublinhar que, segundo a decisão de reenvio, o inquérito efectuado alguns meses antes sobre o comportamento de J. Royer na Bélgica não tinha revelado qualquer elemento desfavorável. Afigura-se, portanto, que foram apenas as informações em poder da polícia belga sobre o passado de delinquência de J. Royer que a levaram a considerar que a sua presença constituía um perigo potencial para a ordem pública.
Seja como for, o facto é que a acção penal que deu lugar à decisão de reenvio se baseia exclusivamente na acusação de residência ilegal, delito previsto e punido pelo artigo 12.o, n.o 1, da lei relativa à polícia dos estrangeiros. Nos termos desta disposição, «é punido com pena de prisão de um mês a um ano e multa de 100 a 1000 francos:
1. |
O estrangeiro que, sem a devida autorização, entre ou resida no país ou que, sem a devida licença, se estabeleça no Reino, ainda que temporariamente». |
Na sequência deste decreto de expulsão, aparentemente, J. Royer deixou, de facto, o território belga. Contudo, o processo por entrada e residência ilegais seguiu os seus trâmites no tribunal de première instance. Tendo o Ministério Publico interposto recurso da decisão que vos tinha sido submetida, a cour d'appel de Liège confirmou, em 22 de Dezembro de 1975, pura e simplesmente, e nos mesmos termos, as questões prejudiciais que vos tinham sido colocadas pelo primeiro juiz.
Eis, Senhores Juízes, no essencial, os factos que levaram o juiz nacional a considerar necessário interrogar o Tribunal sobre a interpretação de várias disposições do direito comunitário relativas quer à livre circulação dos trabalhadores quer ao direito de estabelecimento.
Independentemente dos factos que possam ser reprovados a J. Royer — a este propósito, a sua personalidade, bem como as condenações de que foi alvo em França não militam muito a seu favor —, considero que o Tribunal deve apenas tentar apurar objectivamente no direito comunitário quais são os elementos necessários à cour d'appel de Liège para lhe permitir decidir o litígio aí pendente.
Na verdade, é difícil saber a que título J. Royer pretende valer-se do direito de residência na Bélgica. Sobre este aspecto, a decisão de reenvio não faculta indicações precisas. O defensor de J. Royer juntou ao processo instaurado perante o juiz de primeira instância um contrato de trabalho celebrado entre a esposa do acusado e a empresa proprietária do estabelecimento cuja gerência aquela assegurava na qualidade de assalariada. Este contrato prevê que a gerente será «assistida pelos membros da sua família». Cabe apenas ao órgão jurisdicional belga determinar se J. Royer pode, com este fundamento, invocar quer a qualidade de assalariado quer a de cônjuge de um assalariado. As questões colocadas pela cour d'appel de Liège também não excluem a possibilidade de o interessado poder igualmente invocar as disposições dos artigos 52.o e seguintes, relativas ao direito de estabelecimento. Porém, tal como a Comissão, penso que os problemas de interpretação que vos são colocados reclamam uma mesma resposta, quer seja no plano da livre circulação dos trabalhadores assalariados quer seja antes no do direito de estabelecimento.
Concordando ainda com a Comissão, parece-me necessário reordenar as numerosas e pormenorizadas questões que vos foram colocadas, com o objectivo de as analisar segundo uma ordem lógica.
I — |
|
II — |
Com a sua quarta questão, o juiz belga pretende saber se dos n. os 1 e 2 do artigo 4.o da Directiva 68/360 resulta para os Estados-membros a obrigação de reconhecerem a existência de um direito atribuído pelo Tratado, desde que o interessado esteja em posição de apresentar as provas adequadas, e se um Estado-membro, antes de recorrer a uma medida de coacção física, tem a obrigação de socorrer-se de outros meios para induzir um nacional de outro Estado que se encontre em situação irregular no seu território a regularizar voluntariamente a sua situação. Já recordei que, nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 4.o da directiva, os Estados-membros «reconhecem» o direito de permanência no seu território às pessoas que estejam em condições de apresentar os documentos indicados na directiva, sendo este direito «confirmado»pela emissão de um cartão de residência especial para os nacionais dos Estados-membros. Esta disposição destina-se, por conseguinte, não a criar um direito em favor dos nacionais comunitários, mas a regular o exercício de um direito atribuído pelo Tratado. O direito de permanência deve ser reconhecido a qualquer pessoa que se integre nas categorias definidas no artigo 1.o e que possa provar, pela exibição dos documentos mencionados no n.o 3, que cabe numa dessas categorias. No entanto, parece-me que este preceito não impõe às autoridades nacionais qualquer obrigação jurídica de manifestarem uma deferência especial para com uma pessoa encontrada em situação irregular, no caso de estas autoridades terem razões para pensar que a sua presença pode atentar contra a ordem e a segurança públicas. No caso de o comportamento do estrangeiro, sob este aspecto, deixar muito a desejar e de, sem cair ipso facto sob a alçada da lei penal, se justificar, no fim de contas, aos olhos das autoridades nacionais, uma medida de expulsão, parece-me que seria conveniente que o estrangeiro fosse clara e formalmente advertido do risco de expulsão em que incorre se não modificar a sua atitude. |
III — |
Na sua quinta questão, o juiz belga pergunta-vos se uma decisão de expulsão ou a recusa da concessão de um título de residência ou de estabelecimento pode, à luz das exigências do direito comunitário, dar origem a medidas de execução imediata ou se tais medidas só podem produzir efeitos depois de esgotadas as vias de recurso perante os órgãos jurisdicionais nacionais. Como o Tribunal recordou, no acórdão Rutili, de 28 de Outubro de 1975, nos termos do artigo 8.o da Directiva 64/221, qualquer pessoa atingida por uma medida de expulsão do território deve poder recorrer desta decisão utilizando os recursos facultados aos nacionais para impugnação dos actos administrativos; na falta de recurso, o artigo 9 o determina que o interessado deve, pelo menos, ter a possibilidade de deduzir os seus meios de defesa perante uma autoridade competente, diferente daquela que tomou a medida restritiva de liberdade. Finalmente, o recurso apresentado perante uma autoridade competente deve, excepto em caso de urgência, preceder a decisão de expulsão. Assim, salvo em caso de urgência devidamente justificada, sempre que um recurso judicial na acepção do artigo 8.o seja admissível, a decisão de expulsão não pode ser executória enquanto não tiver sido dada ao interessado a possibilidade de interpor tal recurso. O mesmo se diga no caso de tal recurso, apesar de possível, não ter efeito suspensivo: o interessado deve ter a possibilidade de apelar para uma autoridade diferente da que tomou a medida restritiva de liberdade e, de novo salvo em caso de urgência devidamente justificada, esta medida não pode ser executada antes de esta autoridade se ter pronunciado. Por último, nos termos do artigo 7o da directiva, o prazo concedido ao interessado para abandonar o território não pode, salvo por motivo de urgência, ser inferior a um mês ou a quinze dias a contar da data da notificação da decisão definitiva, consoante o interessado tivesse ou não autorização de residência. |
IV — |
Nas suas sexta, sétima e oitava questões, o juiz belga pergunta-vos se, à luz dos artigos 53 o e 62.o do Tratado, um Estado-membro pode adoptar disposições ou práticas menos liberais do que as que aplicava antes ou depois da entrada em vigor do Tratado. Os artigos 53.o e 62.o proíbem a introdução, pelos Estados-membros, de qualquer nova restrição à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços, tal como existiam à data da entrada em vigor do Tratado; no que respeita às novas medidas de liberalização, estas disposições apenas têm em vista, obviamente, as que devem ser tomadas para a execução de uma obrigação decorrente do Tratado. A Directiva 64/221 veio estabelecer um certo número de restrições à liberdade de apreciação dos Estados-membros, em matéria de protecção da ordem pública, da segurança e da saúde públicas, e especificar as suas obrigações em relação ao Tratado neste domínio. Deixou, porém, intacta a competência dos Estados-membros quanto à forma e aos meios adequados para garantir o resultado a alcançar. Por conseguinte, na hipótese de um Estado-membro ter aprovado disposições ou adoptado práticas mais liberais do que aquelas que lhe eram impostas pelo direito comunitário, esta circunstância não pode conferir aos nacionais comunitários direitos mais amplos do que aqueles que decorriam dos artigos 53.o e 62.o e das disposições comunitárias aprovadas para a sua aplicação, designadamente da Directiva 64/221. Assim, a Bélgica poderia regressar a um regime menos liberal, desde que esse regime se mantivesse conforme ao direito comunitário e, acrescento eu, aos seus compromissos internacionais. |
Concluo que o Tribunal declare que:
1. |
|
2. |
O artigo 4.o da Directiva 68/360 impõe aos Estados-membros a obrigação de conceder uma autorização de residência a qualquer pessoa que tenha provado estar abrangida nas categorias mencionadas no artigo 1.o desta directiva, exibindo os documentos exigidos. |
3. |
Salvo por motivo de urgência devidamente fundamentada, uma decisão de expulsão não pode ser executada antes de o interessado ter tido a possibilidade de esgotar os recursos que lhe são garantidos pelos artigos 8.o e 9 o da Directiva 64/221. |
4. |
Os artigos 53.o e 62.o do Tratado proíbem a introdução, por um Estado-membro, de novas restrições à liberdade efectivamente alcançada em matéria de estabelecimento e de prestações de serviços na data de entrada em vigor do Tratado; os Estados-membros não podem retomar disposições ou práticas menos liberais, na proporção em que as medidas de liberalização adoptadas constituam a execução de obrigações decorrentes do Tratado. |
( 1 ) Língua original: francês.