CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

HENRI MAYRAS

apresentadas em 10 de Março de 1976 ( 1 )

Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

Aos dois princípios fundamentais da liberdade de circulação das pessoas no interior da Comunidade e da proibição de qualquer discriminação baseada na nacionalidade é introduzida uma excepção, quer pelo n.o 3 do artigo 48.o do Tratado de Roma, no que respeita à circulação e ao emprego dos trabalhadores assalariados, quer pelo n.o 1 do artigo 56.o, relativamente ao direito de estabelecimento dos não assalariados. Esta excepção, baseada na ordem pública, no sentido lato da expressão, permite que os Estados-membros adoptem, relativamente aos estrangeiros nacionais de um país comunitário, medidas restritivas do direito de acesso e de residência no seu território.

Contudo, o âmbito desta derrogação, que deve ser interpretada em sentido estrito, não pode ser determinado unilateralmente por qualquer destes Estados, sem controlo das autoridades comunitárias. Deve ressalvar-se, designadamente, o controlo jurisdicional que tendes por missão garantir.

Se deve admitir-se, por conseguinte, que as autoridades nacionais conservaram, no que respeita à utilização que lhes compete da reserva de ordem pública, uma margem de liberdade de apreciação, este poder que cabe aos Estados só pode ser exercido dentro dos limites impostos pelo direito comunitário e pela vossa própria jurisprudência.

Se quis recordar os principais fundamentos do acórdão proferido pelo Tribunal, há mais de um ano, no processo Van Duyn, é, Senhores Juízes, porque a solução das questões prejudiciais que vos são submetidas pelo tribunal de première instance de Liège, cuja decisão de reenvio acaba de ser confirmada, em 22 de Dezembro último, pela cour d'appel, está sujeita às mesmas considerações.

Estas questões foram-vos colocadas no decurso de uma acção penal instaurada contra um indivíduo de nacionalidade francesa acusado de ter entrado e residido na Bélgica sem para tal ter sido autorizado pelo ministro da Justiça, de acordo com as formalidades determinadas pelo decreto real, de 21 de Dezembro de 1965, relativo às condições de entrada, residência e estabelecimento dos estrangeiros nesse país.

Segundo as indicações fornecidas nas peças do processo nacional, o acusado teria sido, em tempos, condenado pela justiça francesa por proxenetismo. Também teria sido suspeito de ter praticado roubos à mão armada. Mas o inquérito policial parece não ter levado a uma incriminação penal.

Foi em conformidade com instruções dadas pelo procurador-geral de Liège no âmbito da (citamos) «luta contra o banditismo e das medidas destinadas aos criminosos internacionais» que a presença de Jean Royer foi detectada, pela primeira vez, em 18 de Janeiro de 1972, na região de Liège, na comuna de Grâce-Hollogne, onde a sua esposa explorava um «café-dancing». Tendo entrado na Bélgica em Novembro de 1971, J. Royer não tinha cumprido as formalidades de inscrição nos registos da população exigidas pela legislação belga.

Acusado de residência ilegal, o interessado foi notificado de uma decisão administrativa de «expulsão do território belga», acompanhada da proibição de ali regressar. Obedecendo a esta ordem de expulsão mudou-se então para a Alemanha.

Porém, passadas algumas semanas, regressou a Grâce-Hollogne. Tendo a sua presença sido aí rapidamente detectada, em 17 de Abril de 1972, foi detido pela polícia e mantido sob prisão. Libertado em 10 de Maio por decisão confirmativa da Chambre des mises en accusation de Liège, foi-lhe notificado, antes de sair da prisão, um decreto ministerial de expulsão do território, adoptado em execução do artigo 3 o , terceiro parágrafo, da lei de 28 de Março de 1952 relativa à polícia dos estrangeiros, com o fundamento de que o «seu comportamento pessoal fazia supor a sua presença perigosa para a ordem pública» e de que «não tinha respeitado as condições que regulam a residência dos estrangeiros nem tinha autorização para se estabelecer no Reino».

Não é descabido sublinhar que, segundo a decisão de reenvio, o inquérito efectuado alguns meses antes sobre o comportamento de J. Royer na Bélgica não tinha revelado qualquer elemento desfavorável. Afigura-se, portanto, que foram apenas as informações em poder da polícia belga sobre o passado de delinquência de J. Royer que a levaram a considerar que a sua presença constituía um perigo potencial para a ordem pública.

Seja como for, o facto é que a acção penal que deu lugar à decisão de reenvio se baseia exclusivamente na acusação de residência ilegal, delito previsto e punido pelo artigo 12.o, n.o 1, da lei relativa à polícia dos estrangeiros. Nos termos desta disposição, «é punido com pena de prisão de um mês a um ano e multa de 100 a 1000 francos:

1.

O estrangeiro que, sem a devida autorização, entre ou resida no país ou que, sem a devida licença, se estabeleça no Reino, ainda que temporariamente».

Na sequência deste decreto de expulsão, aparentemente, J. Royer deixou, de facto, o território belga. Contudo, o processo por entrada e residência ilegais seguiu os seus trâmites no tribunal de première instance. Tendo o Ministério Publico interposto recurso da decisão que vos tinha sido submetida, a cour d'appel de Liège confirmou, em 22 de Dezembro de 1975, pura e simplesmente, e nos mesmos termos, as questões prejudiciais que vos tinham sido colocadas pelo primeiro juiz.

Eis, Senhores Juízes, no essencial, os factos que levaram o juiz nacional a considerar necessário interrogar o Tribunal sobre a interpretação de várias disposições do direito comunitário relativas quer à livre circulação dos trabalhadores quer ao direito de estabelecimento.

Independentemente dos factos que possam ser reprovados a J. Royer — a este propósito, a sua personalidade, bem como as condenações de que foi alvo em França não militam muito a seu favor —, considero que o Tribunal deve apenas tentar apurar objectivamente no direito comunitário quais são os elementos necessários à cour d'appel de Liège para lhe permitir decidir o litígio aí pendente.

Na verdade, é difícil saber a que título J. Royer pretende valer-se do direito de residência na Bélgica. Sobre este aspecto, a decisão de reenvio não faculta indicações precisas. O defensor de J. Royer juntou ao processo instaurado perante o juiz de primeira instância um contrato de trabalho celebrado entre a esposa do acusado e a empresa proprietária do estabelecimento cuja gerência aquela assegurava na qualidade de assalariada. Este contrato prevê que a gerente será «assistida pelos membros da sua família». Cabe apenas ao órgão jurisdicional belga determinar se J. Royer pode, com este fundamento, invocar quer a qualidade de assalariado quer a de cônjuge de um assalariado. As questões colocadas pela cour d'appel de Liège também não excluem a possibilidade de o interessado poder igualmente invocar as disposições dos artigos 52.o e seguintes, relativas ao direito de estabelecimento. Porém, tal como a Comissão, penso que os problemas de interpretação que vos são colocados reclamam uma mesma resposta, quer seja no plano da livre circulação dos trabalhadores assalariados quer seja antes no do direito de estabelecimento.

Concordando ainda com a Comissão, parece-me necessário reordenar as numerosas e pormenorizadas questões que vos foram colocadas, com o objectivo de as analisar segundo uma ordem lógica.

I —

1.

As referências às disposições comunitárias cuja interpretação é solicitada pelo juiz belga permitem encarar duas hipóteses, consoante a posição do interessado seja regulada pelo capítulo do Tratado relativo aos trabalhadores, e mais especificamente pelo artigo 48.o, cuja execução foi assegurada pelo Regulamento (CEE) n.o 1612/68 do Conselho e pela Directiva 68/360/CEE do Conselho, ou antes pelos capítulos relativos ao direito de estabelecimento e às prestações de serviços, designadamente os artigos 52.o, 53 o 56.o, 62.o e 66.o, executados pela Directiva 73/148/CEE do Conselho.

Em ambos os casos convém, antes de mais, tomar posição sobre o fundamento do direito de residência no território de um Estado-membro dos nacionais de outros Estados-membros, beneficiários da livre circulação dos trabalhadores ou do direito de estabelecimento.

Este direito resulta directamente das disposições do Tratado e, se for caso disso, dos actos comunitários adoptados para a sua execução, ou só é atribuído pelo título de residência concedido pelas autoridades nacionais do Estado de acolhimento?

A resposta a esta primeira questão é manifestamente ditada pela vossa jurisprudência. Desde o fim do período de transição, tanto o artigo 48.o como o artigo 52.o são directamente aplicáveis, tal como o Tribunal decidiu, designadamente, nos acórdãos de 4 de Dezembro de 1974, Van Duyn, e de 4 de Julho de 1974, Reyners.

Estes preceitos atribuem aos particulares direitos que estes podem invocar em juízo e que os órgãos jurisdicionais nacionais devem salvaguardar.

A primeira dessas disposições atribui, expressamente, aos trabalhadores o direito de se deslocarem livremente no território dos Estados-membros e de aí residirem a fim de nele exercerem uma actividade laboral.

O direito de estabelecimento, que possibilita o acesso às actividades não assalariadas e permite o seu exercício nas condições definidas para os nacionais, postula, implícita mas certamente, o direito de entrar no território e de aí residir.

Em ambos os casos, a existência destes direitos é confirmada pelas directivas adoptadas pelo Conselho, ao abrigo dos artigos 49o, 54.o e 63.o, para a supressão das restrições à entrada e à permanência, quer se trate de trabalhadores assalariados ou independentes. O artigo 10.o do Regulamento n.o 1612/68, o artigo 1.o da Directiva 68/360 e o artigo 1.o da Directiva 73/148 tornam extensiva, em termos praticamente idênticos, a aplicação do direito comunitário em matéria de entrada e de permanência no território dos Estados-membros ao cônjuge de qualquer pessoa abrangida por estas disposições.

Estes preceitos determinam que os Estados-membros reconhecem aos interessados o direito de entrar no seu território mediante a simples apresentação de um bilhete de identidade ou de um passaporte válidos. É-lhes igualmente reconhecido um direito de residência permanente, que é simplesmente confirmado pela concessão de um documento administrativo.

Assim, o artigo 1.o do Regulamento n.o 1612/ /68 determina que os nacionais de um Estado-membro, independentemente do local da sua residência, têm «o direito de aceder a uma actividade assalariada e de a exercer no território de outro Estado-membro» ; o artigo 10.o do mesmo regulamento torna extensivo «o direito de se instalar» aos membros da família do beneficiário. O artigo 4.o da Directiva 68/360 determina que os Estados-membros reconhecem «o direito de permanência no seu território» às pessoas aí contempladas e que este direito é «confirmado» pela emissão de um título de residência especial. A Directiva 73/148 declara no seu preâmbulo que a liberdade de estabelecimento só se realiza completamente «se for reconhecido um direito de residência permanente às pessoas que dele podem beneficiar» e que a livre prestação de serviços implica que seja garantido ao prestador e ao destinatário dos serviços «O direito de permanência durante o período da prestação».

Por conseguinte, o direito de residência, que resulta directamente das disposições do Tratado, é um direito subjectivo, ligado à pessoa do nacional comunitário, trabalhador assalariado ou independente. Este direito não está, de modo algum, subordinado à concessão, pelas autoridades nacionais, de um título de residência, que só se destina a comprovar um direito preexistente e não pode ser tido como constitutivo desse direito. A reserva da ordem e da segurança públicas, formulada pelo n.o 3 do artigo 48.o e pelo n.o 1 do artigo 56.o, não constitui uma condição prévia da qual dependa a aquisição do direito de entrada e de residência, mas permite estabelecer restrições, em casos individuais e devidamente justificados, ao exercício de um direito directamente resultante do Tratado.

Nestas condições, na medida em que digam respeito aos nacionais comunitários, as legislações nacionais não podem ter outro objectivo que não seja o de permitir o controlo da presença, no território, desta categoria de estrangeiros privilegiados e de verificar, no momento da renovação periódica dos títulos de residência, a sua qualidade de nacionais de outro Estado-membro.

Qual é, a este propósito, a posição da legislação belga em matéria de polícia dos estrangeiros?

Analisemos, antes de mais, as disposições aplicáveis à entrada e à residência dos estrangeiros no território belga.

O diploma fundamental é a lei de 28 de Março de 1952, modificada pelas leis de 30 de Abril de 1964 e de 1 de Abril de 1969.

Em princípio, o artigo 2.o, alínea A, da lei determina que nenhum estrangeiro pode entrar ou residir na Bélgica se para tal não estiver autorizado pelo ministro da Justiça, segundo as formas prescritas por decreto real, ou se não preencher determinadas condições fixadas, designadamente, por convenções internacionais.

Da mesma forma, por força da alínea C, nenhum estrangeiro se pode estabelecer no Reino sem ter, para esse efeito, obtido a autorização do ministro da Justiça.

Este preceito institui, assim, um regime de autorização prévia. Porém, o decreto real de 21 de Dezembro de 1965, alterado em 1969, contém, no seu capítulo III, disposições especiais aplicáveis aos nacionais dos países membros da Comunidade Europeia e que têm em conta as disposições do direito comunitário.

Com efeito, a entrada na Bélgica dos nacionais dos países membros só está, por efeito do artigo 33 o do decreto, subordinada à posse de um passaporte ou de um bilhete de identidade oficial, emitido pelas autoridades do Estado da sua nacionalidade.

Quanto ao seu estabelecimento na Bélgica, o artigo 39 o determina que a «autorização de estabelecimento» exigida pela lei de 28 de Março de 1952 lhes é reconhecida de pleno direito. Por conseguinte, a concessão deste documento destina-se apenas a confirmar o direito de residência preexistente que lhes é garantido pelo direito comunitário.

É certo que o artigo 38.o determina que um certificado de inscrição garante, durante três meses a contar da data de entrada na Bélgica, a sua residência neste país, com a condição de aí terem penetrado regularmente. Este certificado é emitido pela administração comunal no momento da declaração de chegada e só pode ser prorrogado uma vez pelo mesmo período de três meses.

Ainda que não se encontre prevista nas directivas comunitárias, a exigência deste documento não pode considerar-se contrária às regras aí prescritas. Justifica-se pela necessidade prática de administrar o prazo necessário à concessão da autorização de estabelecimento, mas não impõe qualquer condição prévia ao exercício do direito de residência, garantido pelo direito comunitário ao nacional de outro Estado-membro que se estabeleça na Bélgica para aí exercer uma das actividades contempladas nos artigos 48.o ou 52.o do Tratado.

A obrigação imposta a qualquer estrangeiro, pelo artigo 15 o do mesmo decreto real, de se inscrever nos registos da população na administração comunal do lugar de residência, no prazo de oito dias a contar da sua entrada na Bélgica, caso aí queira permanecer mais tempo, baseia-se nas disposições da lei de 2 de Junho de 1856, relativa aos recenseamentos gerais e aos registos da população. Este diploma não impõe, no que respeita aos nacionais comunitários, uma condição de que dependa o seu direito de residência. Além do mais, as infracções a esta lei são meras contravenções, que só são punidas com simples penas contravencionais.

Nestas condições, o facto de um nacional de um Estado-membro da Comunidade ter faltado ao cumprimento desta obrigação, bem como o de não ter em seu poder um certificado de inscrição ou uma autorização de estabelecimento, não bastam para o privar do direito de residência que lhe advém directamente do Tratado.

No entanto, o direito comunitário não proíbe que as autoridades nacionais façam acompanhar o desconhecimento das disposições internas relativas ao controlo dos estrangeiros de sanções adequadas, com o fim de assegurar a eficácia dessas disposições. Porém, tendo em conta o princípio de não discriminação consagrado nos artigos 7.o e 48.o do Tratado, estas sanções não podem ir além das que são aplicáveis aos nacionais do Estado-membro em causa que não se conformem com as obrigações administrativas previstas para os casos de mudança de residência. Em especial, uma medida tão grave como é a prisão ou uma detenção com vista ao afastamento ou à expulsão do território nacional parece desproporcionada em relação à omissão censurada ao interessado; não constitui um meio de coerção legítimo relativamente a quem se limitou a utilizar o direito que o Tratado lhe atribui de entrar no território de um Estado-membro e de aí permanecer, mesmo não tendo cumprido as formalidades em matéria de controlo dos estrangeiros.

Ainda que a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de Novembro de 1950, não possa ser considerada, no sentido estrito da expressão, um diploma comunitário cuja aplicação directa caiba aos tribunais nacionais assegurar, sob o vosso controlo, deve observar-se que o seu artigo 5 o, n.o 1, alínea 0, permitiria, se tal fosse necessário, corroborar o resultado a que penso dever chegar.

2.

Contudo, convém ainda indagar se o facto de se subtrair a uma obrigação de inscrição imposta pela legislação nacional constitui um «comportamento pessoal» de molde a justificar, por razões de ordem pública, a intervenção de uma medida de afastamento do território.

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que, nos termos do artigo 3.o, n.o 1, da Directiva 64/ /221, que se aplica quer aos trabalhadores assalariados quer aos trabalhadores independentes, medidas desta natureza devem fundamentar-se, exclusivamente, no comportamento pessoal do indivíduo em causa. E o n.o 2 esclarece que «a mera existência de condenações penais não pode, por si só, servir de fundamento à aplicação de tais medidas». Nos acórdãos Bonsignore e Rutili, o Tribunal decidiu que o móbil de «prevenção geral», subjacente à expulsão de um nacional de um Estado-membro com a finalidade de dissuadir outros estrangeiros da prática de delitos semelhantes aos cometidos pela pessoa em questão, não era compatível com o artigo 3 o dessa directiva.

É certo que várias condenações penais anteriores, quer no Estado de residência quer num outro Estado, constituem um elemento de apreciação importante. E o artigo 5.o, n.o 2, da directiva prevê, a este propósito, consultas entre as autoridades competentes, impondo ao Estado-membro consultado a obrigação de responder no prazo de dois meses. Estas consultas não devem, porém, ter um carácter sistemático. Sobretudo, ao elemento que constitui uma condenação penal anterior deve aliar-se todo um contexto a tomar em consideração antes de pronunciar uma medida de expulsão ou de recusa de admissão. Essa medida deve destinar-se a sancionar uma conduta anti-social e uma perturbação grave e actual da ordem pública. As medidas tomadas em relação a estrangeiros por razões de ordem pública devem fundar-se exclusivamente no comportamento pessoal do indivíduo em causa; por outras palavras, essas medidas devem ser individualizadas.

Tendo em conta o que atrás afirmei, o facto de não ter acatado as prescrições relativas ao controlo dos estrangeiros não pode, por si, ainda que associado a condenações penais anteriores, constituir um atentado à ordem e à segurança públicas, de modo a justificar uma medida da gravidade de uma expulsão, quando, por outro lado, o comportamento do estrangeiro no Estado da residência não revelou qualquer elemento desfavorável.

Na mesma ordem de ideias, nos termos do n.o 3 do artigo 3 o da directiva, uma decisão de expulsão não pode basear-se no simples facto de ter caducado o documento nacional de identidade que permitiu a entrada e a residência ou o estabelecimento. Aliás (artigo 3 o, n.o 4), o Estado que tinha emitido o título em questão compromete-se a readmitir o interessado no seu território, sem qualquer formalidade, ainda que, a seguir, a sua nacionalidade venha a ser contestada. Isto confirma o carácter acessório ou derivado do título de residência.

Por fim, no que respeita à função dos documentos administrativos nacionais em relação aos direitos atribuídos pelo Tratado, poder-se-ia estabelecer um paralelo com as licenças ou certificados emitidos pelas autoridades nacionais no domínio da circulação das mercadorias.

Já em 13 de Outubro de 1970, o Bundesfinanzhof tinha considerado que o certificado de circulação das mercadorias não é um acto constitutivo de direitos, tratando-se de uma simples declaração pela qual as autoridades do Estado-membro exportador atestam a exactidão de certas indicações do exportador, de molde a justificar um tratamento preferencial. Anteriormente, o Hessischer Finanzgericht tinha decidido, em 12 de Agosto de 1968, que as disposições relativas ao certificado de circulação das mercadorias, revestindo carácter puramente formal, não influenciam o desenrolar das transacções comerciais comunitárias.

Por seu lado, o Tribunal decidiu, em 6 de Junho de 1972, no processo 94/71, Schlüter & Maack (Colect., p. 111), que a declaração que o exportador deve fazer e, designadamente, a entrega do certificado de saída constituem uma manifestação suficiente da vontade do exportador em beneficiar da restituição e satisfazem as exigências da regulamentação comunitária.

Apesar de os Estados-membros poderem, por motivos relacionados com a organização dos seus serviços, impor aos exportadores que apresentem igualmente um pedido redigido de acordo com as formalidades determinadas pelo direito nacional, não podem, em contrapartida, sancionar o incumprimento desta obrigação com a caducidade do direito à restituição.

Da mesma forma, o Tribunal decidiu, em 1 de Fevereiro de 1972, no processo 49/71, Hagen (Colect., p. 7), que uma oferta para uma intervenção originariamente incompleta podia ser seguidamente completada.

II —

Com a sua quarta questão, o juiz belga pretende saber se dos n. os 1 e 2 do artigo 4.o da Directiva 68/360 resulta para os Estados-membros a obrigação de reconhecerem a existência de um direito atribuído pelo Tratado, desde que o interessado esteja em posição de apresentar as provas adequadas, e se um Estado-membro, antes de recorrer a uma medida de coacção física, tem a obrigação de socorrer-se de outros meios para induzir um nacional de outro Estado que se encontre em situação irregular no seu território a regularizar voluntariamente a sua situação.

Já recordei que, nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 4.o da directiva, os Estados-membros «reconhecem» o direito de permanência no seu território às pessoas que estejam em condições de apresentar os documentos indicados na directiva, sendo este direito «confirmado»pela emissão de um cartão de residência especial para os nacionais dos Estados-membros.

Esta disposição destina-se, por conseguinte, não a criar um direito em favor dos nacionais comunitários, mas a regular o exercício de um direito atribuído pelo Tratado. O direito de permanência deve ser reconhecido a qualquer pessoa que se integre nas categorias definidas no artigo 1.o e que possa provar, pela exibição dos documentos mencionados no n.o 3, que cabe numa dessas categorias.

No entanto, parece-me que este preceito não impõe às autoridades nacionais qualquer obrigação jurídica de manifestarem uma deferência especial para com uma pessoa encontrada em situação irregular, no caso de estas autoridades terem razões para pensar que a sua presença pode atentar contra a ordem e a segurança públicas.

No caso de o comportamento do estrangeiro, sob este aspecto, deixar muito a desejar e de, sem cair ipso facto sob a alçada da lei penal, se justificar, no fim de contas, aos olhos das autoridades nacionais, uma medida de expulsão, parece-me que seria conveniente que o estrangeiro fosse clara e formalmente advertido do risco de expulsão em que incorre se não modificar a sua atitude.

III —

Na sua quinta questão, o juiz belga pergunta-vos se uma decisão de expulsão ou a recusa da concessão de um título de residência ou de estabelecimento pode, à luz das exigências do direito comunitário, dar origem a medidas de execução imediata ou se tais medidas só podem produzir efeitos depois de esgotadas as vias de recurso perante os órgãos jurisdicionais nacionais.

Como o Tribunal recordou, no acórdão Rutili, de 28 de Outubro de 1975, nos termos do artigo 8.o da Directiva 64/221, qualquer pessoa atingida por uma medida de expulsão do território deve poder recorrer desta decisão utilizando os recursos facultados aos nacionais para impugnação dos actos administrativos; na falta de recurso, o artigo 9 o determina que o interessado deve, pelo menos, ter a possibilidade de deduzir os seus meios de defesa perante uma autoridade competente, diferente daquela que tomou a medida restritiva de liberdade. Finalmente, o recurso apresentado perante uma autoridade competente deve, excepto em caso de urgência, preceder a decisão de expulsão.

Assim, salvo em caso de urgência devidamente justificada, sempre que um recurso judicial na acepção do artigo 8.o seja admissível, a decisão de expulsão não pode ser executória enquanto não tiver sido dada ao interessado a possibilidade de interpor tal recurso. O mesmo se diga no caso de tal recurso, apesar de possível, não ter efeito suspensivo: o interessado deve ter a possibilidade de apelar para uma autoridade diferente da que tomou a medida restritiva de liberdade e, de novo salvo em caso de urgência devidamente justificada, esta medida não pode ser executada antes de esta autoridade se ter pronunciado.

Por último, nos termos do artigo 7o da directiva, o prazo concedido ao interessado para abandonar o território não pode, salvo por motivo de urgência, ser inferior a um mês ou a quinze dias a contar da data da notificação da decisão definitiva, consoante o interessado tivesse ou não autorização de residência.

IV —

Nas suas sexta, sétima e oitava questões, o juiz belga pergunta-vos se, à luz dos artigos 53 o e 62.o do Tratado, um Estado-membro pode adoptar disposições ou práticas menos liberais do que as que aplicava antes ou depois da entrada em vigor do Tratado.

Os artigos 53.o e 62.o proíbem a introdução, pelos Estados-membros, de qualquer nova restrição à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços, tal como existiam à data da entrada em vigor do Tratado; no que respeita às novas medidas de liberalização, estas disposições apenas têm em vista, obviamente, as que devem ser tomadas para a execução de uma obrigação decorrente do Tratado.

A Directiva 64/221 veio estabelecer um certo número de restrições à liberdade de apreciação dos Estados-membros, em matéria de protecção da ordem pública, da segurança e da saúde públicas, e especificar as suas obrigações em relação ao Tratado neste domínio. Deixou, porém, intacta a competência dos Estados-membros quanto à forma e aos meios adequados para garantir o resultado a alcançar.

Por conseguinte, na hipótese de um Estado-membro ter aprovado disposições ou adoptado práticas mais liberais do que aquelas que lhe eram impostas pelo direito comunitário, esta circunstância não pode conferir aos nacionais comunitários direitos mais amplos do que aqueles que decorriam dos artigos 53.o e 62.o e das disposições comunitárias aprovadas para a sua aplicação, designadamente da Directiva 64/221. Assim, a Bélgica poderia regressar a um regime menos liberal, desde que esse regime se mantivesse conforme ao direito comunitário e, acrescento eu, aos seus compromissos internacionais.

Concluo que o Tribunal declare que:

1.

a)

O direito de os nacionais de um Estado-membro entrarem no território de outro Estado-membro e aí residirem decorre directamente dos artigos 48.o, 52.o e 59 o e das disposições comunitárias adoptadas para a sua execução, independentemente da concessão de qualquer título de residência pelo Estado de acolhimento;

b)

o facto de os nacionais de um Estado-membro terem omitido as formalidades relativas ao controlo dos estrangeiros não constitui uma ameaça para a ordem e a segurança públicas e não pode, por conseguinte, justificar, por si só, uma medida de expulsão ou de detenção.

2.

O artigo 4.o da Directiva 68/360 impõe aos Estados-membros a obrigação de conceder uma autorização de residência a qualquer pessoa que tenha provado estar abrangida nas categorias mencionadas no artigo 1.o desta directiva, exibindo os documentos exigidos.

3.

Salvo por motivo de urgência devidamente fundamentada, uma decisão de expulsão não pode ser executada antes de o interessado ter tido a possibilidade de esgotar os recursos que lhe são garantidos pelos artigos 8.o e 9 o da Directiva 64/221.

4.

Os artigos 53.o e 62.o do Tratado proíbem a introdução, por um Estado-membro, de novas restrições à liberdade efectivamente alcançada em matéria de estabelecimento e de prestações de serviços na data de entrada em vigor do Tratado; os Estados-membros não podem retomar disposições ou práticas menos liberais, na proporção em que as medidas de liberalização adoptadas constituam a execução de obrigações decorrentes do Tratado.


( 1 ) Língua original: francês.