ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

12 de Dezembro de 1974 ( *1 )

No processo 36/74,

que tem por objecto um pedido apresentado ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, pelo Arrondissementsrechtbank Utrecht, destinado a obter, no processo pendente neste órgão jurisdicional entre

1.

Bruno Nils Olaf Walrave

2.

Longinus Johannes Norbert Koch

e

1.

Association Union Cycliste Internationale

2.

Koninklijke Nederlandsche Wielren Unie

3.

Federación Espanola Ciclismo,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação dos artigos 7.o, 48.o e 59 o do Tratado CEE e das disposições do Regulamento (CEE) n.o 1612/68, relativo à livre circulação de trabalhadores na Comunidade (JO L 257 de 19.10.1968 p. 2; EE 5 F1 p. 77),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: R. Lecourt, presidente, C. O'Dálaigh et A. J. Mackenzie Stuart, presidentes de secção, A. M. Donner, R. Mónaco, J. Mertens de Wilmars, P. Pescatore, H. Kutscher e M. Sørensen, juízes,

advogado-geral: J.-P. Warner

secretário: A. Van Houtte

profere o presente

Acórdão

(A parte relativa à matéria de facto não é reproduzida)

Fundamentos da decisão

1

Por decisão de 15 de Maio de 1974, que deu entrada na Secretaria do Tribunal a 24 do mesmo mês, o Arrondissementsrechbank Utrecht apresentou, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, diversas questões relativas à interpretação dos artigos 7.o, primeiro parágrafo, 48.o e 59.o, primeiro parágrafo, deste Tratado, bem como do Regulamento n.o 1612/68 do Conselho, de 25 de Outubro de 1968 (JO L 257, p. 2), relativo à livre circulação de trabalhadores na Comunidade.

2

Pretende-se, fundamentalmente, saber se estes textos legais devem ser interpretados no sentido de ser incompatível com o seu conteúdo uma disposição do regulamento da Union cycliste internationale relativa aos campeonatos do mundo de corridas de meio-fundo de bicicleta precedida de batedor em motorizada, segundo a qual «o batedor deve ser da mesma nacionalidade que o seu corredor».

3

Estas questões foram suscitadas no âmbito de uma acção intentada contra a Union cycliste internationale, bem como contra as federações ciclistas neerlandesas e espanhola, por dois nacionais neerlandeses, que participam habitualmente, na qualidade de batedores, em corridas do tipo da descrita e que consideram discriminatória a referida disposição do regulamento da UCI.

4

Tendo presente os objectivos da Comunidade, a prática de desportos só é abrangida pelo direito comunitário na medida em que constitua uma actividade económica na acepção do artigo 2.o do Tratado.

5

Sempre que tal actividade tenha a natureza de prestação de trabalho assalariado ou de prestação de serviços remunerados, insere-se, em especial, no âmbito de aplicação, consoante os casos, dos artigos 48.o a 51.o ou 59.o a 66.o do Tratado.

6

Estas disposições, que dão execução à regra geral do artigo 7.o do Tratado, proíbem qualquer discriminação em razão da nacionalidade, no exercício das actividades a que se referem.

7

Para este efeito, é irrelevante a natureza exacta do vínculo jurídico em virtude do qual aquelas prestações são efectuadas, uma vez que a regra de não discriminação se estende, em termos idênticos, a todas as prestações de trabalho ou de serviços.

8

Todavia, esta proibição não se aplica à constituição de equipas desportivas, em especial sob a forma de equipas nacionais, uma vez que a formação destas equipas constitui uma questão que unicamente diz respeito ao desporto e, como tal, é alheia à actividade económica.

9

Esta restrição ao âmbito de aplicação das disposições em causa deve, todavia, conservar-se limitada ao seu próprio objecto.

10

Face ao que precede, compete ao órgão jurisdicional nacional qualificar a actividade submetida à sua apreciação e decidir, em especial, se, no desporto em causa, batedor e corredor constituem ou não uma equipa.

11

Estas respostas devem entender-se dentro dos limites, acima definidos, do âmbito de aplicação do direito comunitário.

12

As questões suscitadas relacionam-se com a interpretação dos artigos 48.o e 59 o e, subsidiariamente, do artigo 7.o do Tratado.

13

Em substância, as referidas questões dizem respeito à aplicabilidade das referidas disposições a relações jurídicas que não são do domínio do direito público, à determinação do seu âmbito de aplicação territorial relativamente a uma regulamentação desportiva emanada de uma federação de envergadura mundial, bem como à aplicabilidade directa de algumas delas.

14

Em primeiro lugar, pretende-se saber, relativamente a cada um dos referidos artigos, se as disposições de um regulamento de uma federação desportiva internacional podem ser consideradas incompatíveis com o Tratado.

15

Foi alegado que as proibições contidas naqueles artigos só se aplicam às restrições que tenham origem em actos de autoridades públicas e não às resultantes de actos jurídicos praticados por pessoas ou associações de direito privado.

16

Os artigos 7.o, 48.o e 59 o têm em comum proibirem, nos domínios de aplicação respectivos, qualquer discriminação exercida em razão da nacionalidade.

17

A proibição desta discriminação impõe-se não apenas à actuação das autoridades públicas, mas abrange também as regulamentações de outra natureza, destinadas a disciplinar, de forma colectiva, o trabalho assalariado e as prestações de serviços.

18

Efectivamente, a abolição dos obstáculos à livre circulação de pessoas e à livre prestação de serviços entre os Estados-membros, objectivos fundamentais da Comunidade enunciados no artigo 3.o, alínea c), do Tratado, seria comprometida se a abolição das barreiras de origem estatal pudesse ser neutralizada por obstáculos resultantes do exercício da sua autonomia jurídica por associações ou organismos de direito privado.

19

Além disso, sendo as condições de trabalho nos diversos Estados-membros regidas tanto por via de disposições de carácter legislativo ou regulamentar como por convenções ou outros actos celebrados ou adoptados por pessoas privadas, limitar a proibição em causa aos actos das autoridades públicas acarretaria o risco de criar desigualdades quanto à sua aplicação.

20

Sem dúvida que os artigos 60. o, terceiro parágrafo, 62.o e 64.o se referem especificamente, no domínio das prestações de serviços, à supressão de medidas de natureza estatal, mas esta circunstância não permite pôr em causa a generalidade dos termos do artigo 59 o, que não faz qualquer distinção no que respeita à origem dos obstáculos a eliminar.

21

É, aliás, pacífico que o artigo 48.o, relativo à abolição de qualquer discriminação em razão da nacionalidade no domínio das actividades assalariadas, abrange igualmente as convenções e regulamentos não provenientes de autoridades públicas.

22

Consequentemente, o artigo 7.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1612/68 prevê que a proibição de discriminação se aplica às convenções e outras regulamentações colectivas do trabalho.

23

As actividades referidas no artigo 59 o não se diferenciam, pela sua natureza, das referidas no artigo 48.o mas apenas pela circunstância de serem exercidas fora das relações estabelecidas por um contrato de trabalho.

24

Esta única diferença não pode justificar uma interpretação mais restritiva do âmbito de aplicação da liberdade que se pretende assegurar.

25

Do exposto resulta que as disposições dos artigos 7.o, 48. o e 59 o do Tratado podem ser tomadas em consideração pelo juiz nacional, a fim de apreciar a validade ou os efeitos de uma disposição inserida no regulamento de uma organização desportiva.

26

O órgão jurisdicional nacional apresenta seguidamente a questão de saber em que medida a regra de não discriminação pode ser aplicada a relações jurídicas estabelecidas no âmbito das actividades de uma federação desportiva de envergadura mundial.

27

É ainda este Tribunal convidado a declarar se a situação jurídica pode ser diferente, consoante a competição desportiva tenha lugar no território da Comunidade ou fora dele.

28

A regra da não discriminação, em razão do seu carácter imperativo, impõe-se à apreciação de todas as relações jurídicas, sempre que estas relações, quer em razão do lugar em que se constituem, quer em razão do lugar em que produzem os seus efeitos, possam ser localizadas no território da Comunidade.

29

Compete ao órgão jurisdicional nacional apreciar essa localização de acordo com as circunstâncias de cada caso concreto e extrair, no que respeita ao efeito jurídico dessas relações, as consequências de uma eventual violação de regra de não discriminação.

30

Em último lugar, o órgão jurisdicional nacional apresentou a questão de saber se o artigo 59.o, primeiro parágrafo, e eventualmente o artigo 7.o, primeiro parágrafo, do Tratado produzem efeitos directos na ordem jurídica dos Estados-membros.

31

Como já foi dito, o artigo 59.o tem por objecto proibir, no domínio das prestações de serviços, qualquer discriminação exercida em razão da nacionalidade do prestador.

32

O artigo 59.o constitui, no sector das prestações de serviços, a execução da regra de não discriminação formulada no artigo 7.o relativamente ao âmbito geral de aplicação do Tratado e no artigo 48.o para o sector do trabalho assalariado.

33

Tal como já foi declarado (acórdão de 3 de Dezembro de 1974 no processo 33/74, Van Binsbergen), o artigo 59.o implica, a partir do final do período de transição, uma proibição incondicional que impede, na ordem jurídica de cada Estado-membro e no que respeita às prestações de serviços — desde que sè trate de nacionais dos Estados-membros — a introdução de obstáculos ou limitações fundadas na nacionalidade do prestador de serviços.

34

Deve, portanto, responder-se à questão formulada que o artigo 59 o, primeiro parágrafo, cria, em qualquer caso, na medida em que se destina eliminar qualquer discriminação em razão da nacionalidade, e a partir do final do período de transição, na esfera jurídica dos particulares, direitos que os órgãos jurisdicionais nacionais devem proteger.

Quanto às despesas

35

As despesas efectuadas pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentou observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões que lhe foram submetidas pelo Arrondissementsrechtbank Utrecht, declara:

 

1)

Tendo em conta os objectivos da Comunidade, a prática de desportos só é abrangida pelo direito comunitário na medida em que constitua uma actividade económica na acepção do artigo 2.o do Tratado.

 

2)

A proibição de discriminação em razão da nacionalidade, enunciada nos artigos 7.o, 48.o e 59.o do Tratado, não se aplica à composição de equipas desportivas, em especial sob a forma de equipas nacionais, uma vez que a formação destas equipas constitui uma questão que unicamente diz respeito ao desporto e, como tal, é alheia à actividade económica.

 

3)

A proibição de discriminação em razão da nacionalidade impõe-se não apenas à actuação das autoridades públicas, mas também às regulamentações de outra natureza, destinadas a disciplinar, de forma colectiva, o trabalho assalariado e as prestações de serviços.

 

4)

A regra da não discriminação aplica-se à apreciação de todas as relações jurídicas que possam ser localizadas no território da Comunidade, quer em razão do lugar em que se constituem, quer em razão do lugar em que produzem os seus efeitos.

 

5)

O artigo 59.o, primeiro parágrafo, cria, em qualquer caso, na medida em que se destina a eliminar qualquer discriminação com base na nacionalidade, e a partir do final do período de transição, na esfera jurídica dos particulares, direitos que os órgãos jurisdicionais nacionais devem proteger.

 

Lecourt

O'Dálaigh

Mackenzie Stuart

Donner

Mónaco

Mertens de Wilmars

Pescatore

Kutscher

Sørensen

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 12 de Dezembro de 1974.

O secretário

A. Van Houtte

O presidente

R. Lecourt


( *1 ) Língua do processo: neerlandês.