ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

31 de Outubro de 1974 ( *1 )

No processo 15/74,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, pelo Hoge Raad dos Países Baixos e que visa a obtenção, no processo pendente neste órgão jurisdicional entre

Centrafarm BV, com sede em Roterdão,

bem como

Adrian de Peijper, com domicílio em Nieuwerkerk aan de Ijssel,

e

Sterling Drug Inc., com sede em New York,

de uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação das normas do Tratado CEE relativas à livre circulação de mercadorias, em conjugação com o artigo 42o do acto de adesão de novos Estados-membros à Comunidade Económica Europeia, e ainda sobre a interpretação do artigo 85.o do Tratado CEE, relativamente ao direito de patente,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA

composto por: R. Lecourt, presidente, C. O'Dálaigh e A. J. Mackenzie Stuart, presidentes de secção, A. M. Donner, R. Monaco, J. Mertens de Wilmars, P. Pescatore, H. Kutscher e M. S0rensen, juízes,

advogado-geral: A. Trabucchi

secretário: A. Van Houtte

profere o presente

Acórdão

(A parte relativa à matéria de facto não é reproduzida)

Fundamentos da decisão

1

Por acórdão interlocutório de 1 de Março de 1974, entrado no Tribunal em 4 de Março, o Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal Neerlandês) apresentou, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, determinadas questões relativas ao direito de patentes e à sua conjugação com as disposições do mesmo Tratado e com o acto relativo à adesão de três novos Estados-membros.

2

O Hoge Raad, através do acórdão de reenvio, apresentou os seguintes elementos de facto e de direito interno relacionados com as questões controvertidas:

um titular de patente possui patentes paralelas em diversos Estados pertencentes à CEE;

os produtos protegidos por estas patentes são legalmente comercializados em um ou vários destes Estados-membros por empresas às quais o titular da patente concedeu licenças de fabrico e de venda ou apenas de venda;

tais produtos são seguidamente exportados por terceiros, comercializados e depois revendidos num desses Estados-membros;

a legislação relativa às patentes, aplicável neste último Estado-membro, confere ao titular da patente o direito de se opor judicialmente a que os produtos protegidos pela referida patente aí sejam comercializados por outras pessoas, mesmo quando estes produtos foram em data anterior legalmente comercializados num outro país pelo titular da patente ou por um seu concessionário.

3

Resulta do processo que o litígio principal diz respeito aos direitos do titular de patentes paralelas em vários Estados-membros, o qual concede, em cada um destes Estados, uma licença de venda exclusiva do produto protegido pela patente, exceptuando o seu fabrico, embora o mesmo titular não fabrique o referido produto no Estado-membro considerado.

Quanto à questão I, alínea a)

4

O Tribunal é solicitado a pronunciar-se sobre se, na hipótese considerada, as normas do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias proíbem o titular da patente de se opor a que um produto protegido pela patente seja comercializado por outras pessoas.

5

Por força das disposições do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias e, em especial, do artigo 30.o, são proibidas entre os Estados-membros as restrições quantitativas à importação, bem como todas as medidas de efeito equivalente.

6

Nos termos do artigo 36.o, as referidas disposições, contudo, não são aplicáveis às proibições ou restrições à importação justificadas por razões de protecção da propriedade industrial e comercial.

7

Resulta todavia do mesmo artigo, nomeadamente do seu segundo período, bem como do seu contexto, que, se o Tratado não afecta a existência de direitos reconhecidos pela legislação de um Estado-membro em matéria de propriedade industrial e comercial, é possível, em determinadas circunstâncias, que as proibições estabelecidas pelo Tratado afectem o exercício dos referidos direitos.

8

Na medida em que se trata de uma norma excepcional relativamente a um dos princípios fundamentais do mercado comum, o artigo 36.o apenas admite, com efeito, derrogações à livre circulação de produtos quando tais derrogações são justificadas por razões da salvaguarda de direitos que constituem o objecto específico desta propriedade.

9

No domínio das patentes, o objecto específico da propriedade industrial é o de assegurar ao titular, como forma de recompensar o esforço criador do inventor, o direito exclusivo de utilizar uma invenção destinada ao fabrico e ao primeiro lançamento em circulação de produtos industriais, quer directamente, quer mediante a concessão de licenças a terceiros, bem como o direito de se opor a qualquer violação do referido direito.

10

A existência, na legislação nacional em matéria de propriedade industrial e comercial, de normas que estabeleçam que o direito do titular da patente não se «esgota» com a comercialização do produto protegido pela patente num outro Estado-membro, daí resultando que o titular se pode opor à importação no seu próprio Estado do produto comercializado num outro Estado, pode constituir um obstáculo à livre circulação de produtos.

11

Se tal obstáculo à livre circulação pode ser justificado por razões de protecção da propriedade industrial quando essa protecção é invocada contra um produto proveniente de um Estado-membro onde não é patenteável e foi fabricado por terceiros sem o consentimento do titular da patente, bem como na hipótese da existência de patentes cujos titulares originais são jurídica e economicamente independentes, em contrapartida, a derrogação ao princípio de livre circulação de mercadorias não se pode justificar quando o produto foi lançado legalmente, pelo próprio titular ou com o seu consentimento, no mercado do Estado-membro de onde foi importado, nomeadamente quando se trata de um titular de patentes paralelas.

12

Com efeito, se o titular da patente pudesse impedir a importação de produtos protegidos pela patente por ele comercializados ou com o seu consentimento para um outro Estado-membro, teria igualmente a possibilidade de repartir os mercados nacionais e de praticar assim um acto restritivo do comércio entre os Estados-membros, sem que tal restrição fosse considerada necessária para lhe assegurar a essência dos direitos exclusivos derivados das patentes paralelas.

13

Em resultado do precedente, a recorrente no processo principal alega que, em razão das divergências entre as legislações e práticas nacionais, não existem patentes absolutamente idênticas ou paralelas.

14

Cabe referir a este respeito que, apesar das divergências que subsistem em relação à unificação das normas relativas à propriedade industrial, a identidade da invenção protegida apresenta-se como elemento essencial do conceito de patentes paralelas cuja apreciação incumbe ao tribunal.

15

Há assim que responder à questão declarando que o exercício, pelo titular de uma patente, do direito que lhe é conferido pela legislação de um Estado-membro de impedir a comercialização, nesse Estado, de um produto protegido pela patente e lançado no mercado de um outro Estado-membro por este titular ou com o seu consentimento é incompatível com as normas do Tratado CEE relativas à livre circulação de mercadorias no interior do mercado comum.

Quanto à questão I, alínea b)

16

Esta questão foi apresentada tendo em vista a eventualidade de as normas comunitárias não proibirem de forma absoluta que o titular da patente exerça o direito conferido pela lei nacional de impedir a importação do produto protegido.

17

Considerando a resposta dada à questão I, alínea a), é desnecessário responder à questão I, alínea b).

Quanto à questão I, alínea c)

18

O Tribunal é solicitado a pronunciar-se sobre se a resposta à questão I, alínea a), pode ser diferente na hipótese de o titular da patente e os concessionários pertencerem ou não ao mesmo grupo.

19

Resulta da resposta à questão I, alínea a), que o factor essencialmente caracterizador da restrição ao comércio entre os Estados-membros é a protecção territorial conferida ao titular da patente num Estado-membro contra a importação do produto que foi comercializado num Estado-membro diferente pelo próprio titular ou com o seu consentimento.

20

Consequentemente, a concessão de uma licença de venda num Estado-membro tem como resultado que o titular fica impossibilitado de se opor à comercialização do produto protegido no conjunto do mercado comum.

21

Assim, é irrelevante saber se o titular e os concessionários pertencem ou não ao mesmo grupo.

Quanto à questão I, alínea d)

22

o Tribunal é solicitado a responder no essencial se, não obstante a resposta dada à primeira questão, o titular da patente pode opor-se à importação de produtos protegidos quando existem diferenças de preço resultantes de medidas adoptadas pelas autoridades públicas no país de exportação destinadas a controlar o preço dos produtos.

23

Cabe às autoridades comunitárias eliminar os factores susceptíveis de falsear a concorrência entre os Estados-membros, nomeadamente através da harmonização das medidas nacionais destinadas a controlar os preços e da proibição de ajudas incompatíveis com o mercado comum, bem como mediante o exercício dos seus poderes em matéria de concorrência.

24

A existência de tais factores num Estado-membro não pode justificar todavia a manutenção ou a introdução por outro Estado-membro de medidas incompatíveis com as normas relativas à livre circulação de mercadorias, nomeadamente no domínio da propriedade industrial e comercial.

25

Deve assim responder-se negativamente à questão colocada.

Quanto à questão I, alínea e)

26

O Tribunal é solicitado a pronunciar-se sobre se, não obstante as normas comunitárias relativas à livre circulação de mercadorias, o titular de uma patente pode exercer os direitos que esta lhe confere para manter o controlo sobre a distribuição de um produto farmacêutico com o objectivo de proteger os consumidores contra eventuais defeitos.

27

Constituindo a protecção dos consumidores contra os riscos devidos a produtos farmacêuticos defeituosos uma preocupação legítima, o artigo 36.o do Tratado autoriza os Estados-membros a derrogar as normas relativas à livre circulação de mercadorias por razões de protecção da saúde e da vida das pessoas e animais.

28

Contudo, as medidas necessárias à prossecução deste fim devem ser adoptadas no âmbito do controlo sanitário, não podendo constituir um desvio das normas em matéria de propriedade industrial e comercial.

29

Por outro lado, o objecto específico da protecção da propriedade industrial e comercial diferencia-se do objecto da protecção dos consumidores e das eventuais responsabilidades dele derivadas.

30

Deve assim responder-se negativamente à questão colocada.

Quanto ã questão I, alínea f)

31

O Tribunal é solicitado a pronunciar-se sobre se o artigo 42.o do acto relativo às condições de adesão de três novos Estados-membros implica que as normas do Tratado no domínio da livre circulação de mercadorias não possam ser invocadas nos Países Baixos antes de 1 de Janeiro de 1975, na medida em que se trata de mercadorias provenientes do Reino Unido.

32

O artigo 42.o do acto de adesão estabelece no primeiro parágrafo que as restrições quantitativas à importação e à exportação entre a Comunidade na sua composição originária e os novos Estados-membros são suprimidas a partir da adesão.

33

Nos termos do segundo parágrafo do referido artigo, que diz respeito à questão em análise, «as medidas de efeito equivalente a tais restrições devem ser suprimidas o mais tardar até 1 de Janeiro de 1975».

34

Neste contexto, tal disposição apenas pode referir-se às medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas que, entre os antigos Estados-membros, deveriam estar suprimidas no termo do período transitório, por força dos artigos 30o e 32.o a 35.o do Tratado CEE.

35

É assim evidente que o artigo 42.o do acto de adesão não tem qualquer incidência sobre as proibições de importação resultantes de uma legislação nacional relativa à propriedade industrial e comercial.

36

Esta matéria está assim submetida ao princípio inerente ao Tratado e ao acto de adesão, nos termos do qual as disposições dos Tratados que instituem as Comunidades Europeias relativas à livre circulação de mercadorias, e em especial o artigo 30.o, são aplicáveis, salvo derrogação expressa, aos novos Estados-membros desde a data da adesão.

37

Consequentemente, o artigo 42.o do acto de adesão não pode ser invocado para impedir a importação para os Países Baixos, mesmo antes de 1 de Janeiro de 1975, de mercadorias comercializadas no Reino Unido, nas condições supra referidas, pelo titular de uma patente ou com o seu consentimento.

Quanto as questões II, alíneas a) e b)

38

Com estas questões o Tribunal é solicitado a pronunciar-se sobre se o artigo 85o do Tratado é aplicável aos acordos e práticas concertadas entre o titular de patentes paralelas em diferentes Estados-membros e os seus concessionários, na hipótese em que o conjunto dos acordos e práticas concertadas visem regular de forma diferente, consoante os países, as condições de mercado para as mercadorias protegidas pelas patentes.

39

Embora o artigo 85.o não afecte a existência dos direitos reconhecidos pela legislação de um Estado-membro no domínio da propriedade industrial, as condições de exercício do referido direito podem, todavia, ser abrangidas pelas proibições previstas nesse artigo.

40

Tal pode ser o caso sempre que o exercício do referido direito seja susceptível de constituir o objecto, o meio ou a consequência de uma «entente».

41

O artigo 85.o não visa, contudo, os acordos ou práticas concertadas entre empresas pertencentes ao mesmo grupo, enquanto sociedade-mãe e filial, se as empresas constituem uma unidade económica no interior da qual a filial goza de uma real autonomia na determinação da sua actuação sobre o mercado e se tais acordos ou práticas têm por objectivo estabelecer uma repartição interna das tarefas entre as empresas.

Quanto as despesas

42

As despesas efectuadas pelo Governo do Reino da Dinamarca e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o Hoge Raad der Nederlanden, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões submetidas pelo Hoge Raad der Nederlanden, através de acórdão interlocutório de 1 de Março de 1974, declara:

 

1)

O exercício, pelo titular de uma patente, do direito que lhe é conferido pela legislação de um Estado-membro de impedir a comercialização, nesse Estado, de um produto protegido pela patente e comercializado no mercado de outro Estado-membro por este titular ou com o seu consentimento é incompatível com as normas do Tratado CEE relativas à livre circulação de mercadorias no interior do mercado comum.

 

2)

Neste contexto, é irrelevante saber se o titular e as empresas às quais concedeu licenças pertencem ou não ao mesmo grupo.

 

3)

É igualmente irrelevante que existam, entre os Estados-membros de exportação e importação, diferenças de preços resultantes de medidas adoptadas pelas autoridades públicas no Estado de exportação destinadas a controlar o preço do produto.

 

4)

O titular de uma patente relativa a um produto farmacêutico não pode eximir-se às normas comunitárias no domínio da livre circulação de mercadorias com o objectivo de controlar a distribuição do produto por razões de protecção dos consumidores contra os produtos defeituosos.

 

5)

O artigo 42.o do acto relativo às condições de adesão e às adaptações dos Tratados não pode ser invocado para impedir a importação para os Países Baixos, mesmo antes de 1 de Janeiro de 1975, de produtos comercializados no Reino Unido pelo titular da patente ou com o seu consentimento.

 

6)

O artigo 85.o não visa acordos ou práticas concertadas entre empresas pertencentes ao mesmo grupo, enquanto sociedade-mãe e filial, se as empresas constituem uma unidade económica no interior da qual a filial não goza de uma real autonomia na determinação da sua actuação sobre o mercado e se tais acordos ou práticas têm por objecto estabelecer uma repartição interna das tarefas entre as empresas.

 

Lecourt

O'Dálaigh

Mackenzie Stuart

Donner

Monaco

Mertens de Wilmars

Pescatore

Kutscher

Sørensen

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 31 de Outubro de 1974.

O secretário

A. Van Houtte

O presidente

R. Lecourt


( *1 ) Língua do processo: neerlandês