ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2 de Julho de 1974 ( *1 )

No processo 173/73,

Governo da República Italiana, representado pelo embaixador A. Maresca, na qualidade de agente, assistido pelo «vice avvocato dello Stato», I. M. Braguglia, com domicílio escolhido no Luxemburgo na sede da Embaixada de Itália,

recorrente,

contra

Comissão das Comunidades Europeias, representada pelos seus consultores jurídicos A. Marchini-Camia e M. van Ackere, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo junto do seu consultor jurídico P. Lamoureux, 4, boulevard Royal,

recorrida,

que tem por objecto um recurso de anulação da decisão da Comissão, de 25 de Julho de 1973, adoptada nos termos do artigo 93. o, n.o 2, primeiro parágrafo, e n.o 3 do Tratado CEE, respeitante ao artigo 20.o da Lei italiana n.o 1101, de 1 de Dezembro de 1971, relativa à reestruturação, reorganização e conversão da indústria têxtil,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: R. Lecourt, presidente, A. M. Donner e Sørensen, presidentes de secção, R. Monaco, J. Mertens de Wilmars, P. Pescatore, H. Kutscher, C. O'Dálaigh e A. J. Mackenzie Stuart, juízes,

advogado-geral: J.-P. Warner

secretário: A. Van Houtte

profere o presente

Acórdão

(A parte relativa à matéria de facto não é reproduzida)

Fundamentos da decisão

1

Por requerimento apresentado na Secretaria do Tribunal de Justiça em 9 de Outubro de 1973, o Governo da República Italiana interpôs um recurso que tem por objecto um pedido de anulação, nos termos do artigo 173. o do Tratado CEE, da decisão da Comissão, de 25 de Julho de 1973, respeitante ao artigo 20o da Lei italiana n.o 1101, de 1 de Dezembro de 1971, relativa à reestruturação, reorganização e conversão da indústria têxtil (JO L 254 de 11.9.1973, p. 14).

2

O recurso baseia-se em três fundamentos ditos «prévios» relativos à forma e ao processo preliminar da decisão impugnada e em três fundamentos ditos «subsidiários», relativos ao fundo.

3

Uma vez que os três primeiros fundamentos e os três fundamentos subsidiários se correlacionam entre si, devem ser conjuntamente analisados em dois grupos.

Quanto aos fundamentos prévios

4

Em primeiro lugar, o Governo recorrente manifesta a sua discordância com o texto do artigo 1.o da Decisão impugnada, nos termos do qual «a República Italiana suprime o desagravamento temporário e parcial dos encargos sociais relativos às prestações familiares previsto no artigo 20.o da Lei n.o 1101…», fórmula que sugeriria que a decisão seria destinada a produzir um efeito directo na ordem jurídica interna do Estado-membro destinatário.

5

Essa eficácia directa seria incompatível com o artigo 93.o, n.o 2, do Tratado, nos termos do qual a Comissão, após ter verificado que um Estado-membro violou as obrigações impostas pelo artigo 92.o, decide que o Estado em causa deve suprimir o auxílio em questão ou modificá-lo no prazo que ela fixar.

6

Através do segundo fundamento, o recorrente ataca a decisão por nela não se encontrar previsto qualquer prazo de execução e conclui que na falta deste elemento, essencial para a legalidade da decisão, ela deve ser considerada nula.

7

Pelo terceiro fundamento é invocado que o procedimento preliminar previsto no artigo 93 o, n.o 1, não se desenvolveu em termos regulares.

8

Ora, é patente que a disposição do artigo 20o da lei italiana n.o 1101, que aqui está em causa, apesar de inovadora relativamente à situação jurídica anteriormente apresentada pelas empresas industriais e artesanais italianas do sector dos têxteis, não foi previamente levada ao conhecimento da Comissão, como prescreve o n.o 3 do artigo 93.o

9

A Comissão adoptou a decisão impugnada por considerar, após ter recolhido as observações das autoridades italianas e de peritos de outros Estados-membros, que a disposição litigiosa constituía um auxílio nos termos dos artigos 92.o e 93.o

10

Com o objecto de assegurar um desenvolvimento progressivo e um funcionamento do mercado comum de harmonia com o artigo 92.o, o artigo 93.o prevê um exame permanente dos auxílios concedidos ou projectados pelos Estados-membros que pressupõe uma cooperação constante entre aqueles Estados e a Comissão.

11

O artigo 93.o prevê no seu n.o 2 a hipótese de no decurso desse exame a Comissão verificar que um auxílio concedido por um Estado-membro não é compatível com as disposições do artigo 92.o, prevendo igualmente a solução por decisão da Comissão, submetida ao controlo do Tribunal de Justiça.

12

A ideia de cooperação em que se inspira o referido artigo implica que, em tal caso, a Comissão deve permitir ao Estado em causa um prazo para dar cumprimento à decisão adoptada.

13

Todavia, no caso previsto no n.o 3 do mesmo artigo, isto é, no caso em que um projecto de auxílio é incompatível com o artigo 92.o, seria inútil o estabelecimento de um prazo, uma vez que a medida em causa não poderia ser posta em execução.

14

Estes fundamentos destinam-se a afirmar que um novo auxílio introduzido por um Estado-membro em violação do n.o 3 seria equiparável aos auxílios legitimamente concedidos e só poderia portanto ser objecto do procedimento previsto no n.o 2, incluindo a obrigatoriedade de fixação de um prazo.

15

Todavia, esta interpretação do artigo 93.o é inaceitável, uma vez que ela levaria a privar da sua força obrigatória as disposições do n.o 3 e até a favorecer o seu incumprimento.

16

Pelo contrário, o espírito e a economia do artigo 93.o implicam que a Comissão, sempre que verifique que foi instituído ou modificado um auxílio em violação do n.o 3, deve poder decidir, designadamente quando considerar que esse auxílio não é compatível com o mercado comum nos termos do artigo 92.o, que o Estado em causa deve suprimi-lo ou modificá-lo, sem que esteja obrigada a fixar prazo algum, sem prejuízo da faculdade de recorrer ao Tribunal de Justiça se o Estado em causa não der cumprimento à decisão com a devida diligência.

17

Nesta hipótese, os meios de acção da Comissão não podem ser limitados ao procedimento mais complexo previsto no artigo 169o

18

Assim sendo, o fundamento segundo o qual a decisão se destinaria a produzir um efeito directo na ordem jurídica interna da República Italiana é improcedente, uma vez que a decisão determina, nos termos do seu artigo 2.o, que «A República Italiana é destinatária da presente decisão», fórmula de que resulta claramente que ela se destina a impor ao Estado em causa a obrigação enunciada no seu artigo 1.o

19

Finalmente, o terceiro fundamento, relativo às irregularidades processuais, não foi explicitado de forma suficiente para poder ser atendido.

20

Estes fundamentos devem portanto ser rejeitados.

Quanto aos fundamentos subsidiários

21

O Governo recorrente sustenta, em primeiro lugar, que, ao invadir um domínio reservado pelo Tratado à soberania dos Estados-membros — o das imposições fiscais internas —, a decisão impugnada estaria viciada por «excesso de poder».

22

Em segundo lugar, invoca que o desagravamento dos encargos em questão deveria ser qualificado como medida de natureza social, o que não permitiria o seu enquadramento no âmbito dos artigos 92.o e 93.o

23

Tendo em conta o sistema de financiamento das prestações familiares anteriormente em vigor que onerava os sectores que apresentassem uma grande proporção de mão-de-obra feminina, a medida litigiosa limitar-se-ia simplesmente a repor o equilíbrio reduzindo os encargos que recaíam sobre a indústria têxtil italiana.

24

Além disso, esta indústria encontrava-se em situação de desvantagem relativamente às indústrias têxteis de outros Estados-membros, em virtude de os encargos sociais que recaem sobre os empresários serem sensivelmente mais elevados em Itália do que nos outros Estados-membros.

25

Por fim, o desagravamento parcial dos encargos sociais não se apresentava de molde a afectar as trocas dentro da Comunidade ou a falsear a concorrência dentro do mercado comum.

26

Ora, o artigo 92.o tem por objectivo evitar que eventuais vantagens consentidas pelas autoridades públicas, sob diversas formas, falseiem ou ameace falsear a concorrência favorecendo certas empresas ou certas produções.

27

Nestes termos, o artigo 92.o não distingue as intervenções em causa de acordo com as suas causas ou os seus objectivos, mas define-as em função dos seus efeitos.

28

Por conseguinte, nem a natureza fiscal, nem os objectivos sociais da medida em apreço poderão justificar a não aplicação do artigo 92.o

29

Quanto ao argumento segundo o qual a medida em causa se destinaria apenas a compensar os encargos que resultam para o sector têxtil do sistema geral das contribuições para a segurança social, designadamente no que respeita às prestações familiares, verifica-se que o regime italiano de prestações familiares se destina, tal como todos os sistemas semelhantes, a assegurar ao trabalhador uma remuneração adaptada às suas necessidades familiares.

30

Sendo as contribuições dos empresários calculadas, nesse sistema, em função da carga salarial de cada empresa, a circunstância de uma parte relativamente reduzida de mão-de-obra empregada por uma empresa poder, enquanto chefe de família, pretender o pagamento efectivo dessas prestações, não poderá traduzir-se nem numa vantagem nem numa desvantagem específica para a empresa em questão relativamente às empresas em que uma proporção maior de empregados recebe estas prestações, encontrando-se precisamente os encargos do seu pagamento igualizados para todas as empresas.

31

O que acaba de observar-se quanto aos encargos resultantes do regime das prestações familiares para o orçamento de uma empresa vale do mesmo modo para as relações entre diversos sectores da indústria.

32

Nestes termos, os números indicados pelo Governo recorrente, segundo os quais, durante o ano de 1971, teriam sido pagos 65,7 mil milhões de liras, a título de contribuições para o sector têxtil, enquanto que as prestações sociais a título de prestações familiares neste sector teriam ascendido apenas a 42,4 mil milhões, não poderão demonstrar que o sector têxtil terá sido prejudicado nos seus custos de produção, relativamente a outros sectores da indústria.

33

Assim, é necessário concluir que o desagravamento parcial dos encargos sociais a título de prestações familiares que recaem sobre os empresários do sector dos têxteis se apresenta como uma medida destinada a isentar parcialmente as empresas de um determinado sector industrial dos encargos financeiros que resultam da normal aplicação do sistema geral de previdência social sem que essa isenção encontre justificação na natureza ou estrutura desse sistema.

34

Não poderá assim proceder o fundamento segundo o qual o desagravamento em causa não constituiria um auxílio concedido pelo Estado, uma vez que a perda de receitas daí resultante seria compensada por meio de recursos provenientes das contribuições pagas a título de seguro de desemprego.

35

Sendo os fundos em causa alimentados por contribuições obrigatórias impostas pela legislação do Estado e, tal como o caso em análise o demonstra, geridas e repartidas de acordo com essa legislação, devem considerar-se como «recursos estatais» nos termos do artigo 92.o, mesmo que sejam administrados por instituições diferentes dos órgãos do Estado.

36

Quanto ao argumento segundo o qual os encargos sociais que incumbem às empresas do sector têxtil se apresentam mais elevados em Itália do que nos outros Estados-membros, a verdade é que, para aplicação do artigo 92.o, n.o 1, é necessário obviamente partir da situação concorrencial existente no mercado comum antes da adopção da medida em causa.

37

Essa situação resulta de numerosos elementos que apresentam incidências diversas nos custos de produção nos diferentes Estados-membros.

38

Aliás, o Tratado prevê, nos artigo 99.o a 102.o, as formas de eliminar distorções genéricas provenientes de divergências entre os sistemas fiscais e de segurança social dos diferentes Estados-membros, tendo em conta as dificuldades estruturais apresentadas por certos sectores da indústria.

39

Pelo contrário, a modificação unilateral de um determinado elemento dos custos de produção num dado sector económico de um Estado-membro é susceptível de perturbar o equilíbrio existente.

40

Nestes termos, não se reveste de qualquer interesse a comparação das proporções relativas a uma certa categoria de custos dentro dos custos totais de produção, uma vez que o elemento decisivo é o próprio desagravamento e não a categoria de custos a que ela se encontra associada.

41

A isto acresce que os encargos sociais que recaem sobre os empresários se integram na categoria mais geral dos custos do trabalho.

42

Resulta da análise do processo que os custos de mão-de-obra no sector têxtil italiano são relativamente baixos em relação aos do sector têxtil dos outros Estados-membros.

43

Verifica-se que o desagravamento dos encargos sociais previsto no artigo 20.o da Lei n.o 1101 tem por efeito a redução dos custos de mão-de-obra no sector têxtil italiano.

44

A indústria têxtil italiana encontra-se em concorrência com as empresas do mesmo sector dos outros Estados-membros, como o demonstra o volume crescente de produtos têxteis italianos exportados para esses Estados.

45

A diminuição dos custos de produção da indústria têxtil italiana, obtida através do desagravamento dos encargos sociais em causa, afecta necessariamente as trocas entre os Estados-membros.

46

Nestes termos, também os fundamentos subsidiários devem ser rejeitados.

Quanto às despesas

47

Por força do disposto no no2 do artigo 69o do Regulamento Processual, a parte vencida deve ser condenada nas despesas. Tendo o recorrente sido vencido, há que condená-lo nas despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA

decide:

 

1)

Negar provimento ao recurso.

 

2)

Condenar o recorrente nas despesas.

 

Lecourt

Donner

Sørensen

Monaco

Mertens de Wilmars

Pescatore

Kutscher

O'Dálaigh

Mackenzie Stuart

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 2 de Julho de 1974.

O secretário

A. Van Houtte

O presidente

R. Lecourt


( *1 ) Lingua do processo: italiano.