ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

30 de Abril de 1974 ( *1 )

No processo 155/73,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, pelo tribunal de Biella, destinado a obter no processo penal pendente neste órgão jurisdicional contra

Giuseppe Sacchi

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação dos artigos 2.o, 3. o , 5. o , 7.o, 37.o, 86.o e 90.o do Tratado CEE,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: R. Lecourt, presidente, A. M. Donner e M. Sørensen, presidentes de secção, R. Monaco, J. Mertens de Wilmars, P. Pescatore, H. Kutscher, C. O'Dálaigh e A. J. Mackenzie Stuart, juízes,

advogado-geral: G. Reischl

secretário: A. Van Houtte

profere o presente

Acórdão

(A parte relativa à matéria de facto não é reproduzida)

Fundamentos da decisão

1

Por despacho de 25 de Julho de 1973, que deu entrada na Secretaria do Tribunal em 27 de Julho de 1973, o tribunal de Biella submeteu a este Tribunal, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, várias questões relativas à interpretação dos artigos 2.o, 3.o, 5.o, 7.o, 37.o, 86.o e 90.o do Tratado.

Estas questões foram suscitadas no âmbito de um procedimento criminal contra o responsável de uma estação privada de teledistribuição acusado de ter detido, em locais abertos ao público, alguns televisores utilizados para a recepção de transmissões por cabo, sem ter pago a taxa de inscrição prescrita.

A solução destas questões deve permitir ao tribunal de Biella apreciar a conformidade com o Tratado de algumas disposições legislativas italianas que reservam ao Estado a exclusividade da exploração da televisão, em particular da televisão por cabo, e ainda mais particularmente na medida em que essa exclusividade se estende à publicidade comercial.

A — Sobre a competência do Tribunal

2

O Governo italiano pôs em causa a admissibilidade do reenvio a título prejudicial, sustentando que a resposta às questões prejudiciais submetidas ao Tribunal de Justiça não é necessária para a decisão do juiz a quo.

3

O artigo 177.o do Tratado, fundado na clara separação de funções dos órgãos jurisdicionais nacionais e do Tribunal de Justiça, não permite a este último pronunciar-se sobre os fundamentos do pedido de interpretação.

A excepção deduzida não pode portanto ser considerada procedente.

B — Sobre as questões n.os 1, 2, 6, 7, 8, e 9

4

As primeiras duas questões visam essencialmente saber se o princípio da livre circulação de mercadorias no mercado comum se aplica às mensagens televisivas, especialmente no aspecto comercial, e se constitui violação de tal princípio o facto de um Estado-membro atribuir a uma sociedade por acções o direito exclusivo de efectuar todo o género de transmissões televisivas, mesmo com fins de publicidade comercial.

5

A solução desta questão está subordinada à solução de um problema prévio que é o de saber se as mensagens televisivas se devem equiparar a produtos ou a mercadorias nos termos dos artigos 3.o , alínea a), e 9. o e da epígrafe do título I da segunda parte do Tratado.

6

Na falta de disposição expressa em contrário do Tratado, uma mensagem televisiva deve ser considerada, por natureza, uma prestação de serviços.

Embora não se exclua que prestações fornecidas habitualmente contra retribuição possam ficar abrangidas pelas normas relativas à livre circulação de mercadorias, tal só se verificará todavia, como resulta do artigo 60.o, quando elas se encontrem expressamente disciplinadas por aquelas normas.

Do exposto resulta que a emissão de mensagens televisivas, incluindo as que apresentam carácter publicitário, releva, como tal, das normas do Tratado relativas às prestações de serviços.

7

Pelo contrário, ficam submetidas às normas relativas à livre circulação de mercadorias as trocas de quaisquer materiais, suportes de som, filmes e outros produtos utilizados para a difusão de mensagens televisivas.

Consequentemente, se a existência de uma empresa que monopoliza as mensagens publicitárias televisivas não é, por si só, contrária ao princípio da livre circulação de mercadorias, tal empresa violaria este princípio sempre que discriminasse a favor de materiais e produtos nacionais.

8

Do mesmo modo, a circunstância de uma empresa de um Estado-membro beneficiar do direito exclusivo de difundir mensagens publicitárias televisivas não é, em si mesma, incompatível com a livre circulação dos produtos cuja venda as mesmas mensagens visam promover.

A situação configurar-se-ia de modo diferente se o direito exclusivo fosse utilizado para favorecer, no seio da Comunidade, determinados canais de comercialização ou determinados operadores económicos em detrimento de outros.

Tal como sublinha o artigo 3. o da directiva da Comissão, de 22 de Dezembro de 1969, relativa à supressão das medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas à importação não referidas noutras disposições adoptadas nos termos do Tratado (JO L 13 de 19.1.1970), são susceptíveis de constituir medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas as disposições relativas ao comércio cujos efeitos restritivos «ultrapassem o âmbito dos efeitos próprios de uma regulamentação comercial».

Será esse o caso sempre que os efeitos restritivos não sejam proporcionais aos fins prosseguidos (no caso concreto, a organização da televisão, segundo o direito de um Estado-membro, como serviço de interesse público).

9

A sexta questão, relativa à interpretação do artigo 37.o do Tratado, deve ser examinada conjuntamente com os problemas suscitados pelas normas relativas à livre circulação de mercadorias, entre as quais se insere o referido artigo.

Pergunta-se se o artigo 37.o, n. os 1 e 2, do Tratado se aplica a uma sociedade por acções a que um Estado-membro tenha atribuído o direito exclusivo de efectuar no seu território emissões televisivas, incluindo as emissões publicitárias e a emissão de filmes e documentos produzidos noutros Estados-membros.

10

O artigo 37.o trata da regulamentação dos monopólios nacionais com carácter comercial.

Quer pela sua inserção no capítulo relativo à abolição das restrições quantitativas, quer pela utilização do termo «importações» e «exportações» no n.o 1, segundo parágrafo, e dos termos «produtos» nos n.os 3 e 4, resulta que o dito artigo se refere às trocas comerciais e não pode aplicar-se a um monopólio de serviços.

Assim, a publicidade comercial televisiva, dada a sua natureza de serviço, fica subtraída à aplicação das disposições em causa.

11

As questões 7 e 9, formuladas apenas para o caso de a questão 6 receber resposta afirmativa, ficam assim privadas de objecto, o que aliás se verifica também em relação à questão 8.

C — Sobre as questões n.os 3, 4 e 5

12

As terceira, quarta e quinta questões respeitam ao problema da conformidade com as normas do Tratado relativas à concorrência, dos direitos exclusivos concedidos por um Estado-membro a uma sociedade por acções em matéria de transmissão televisiva, bem como ao exercício de tais direitos.

A terceira questão visa saber se as disposições conjugadas dos artigos 86.o e 90.o do Tratado devem ser interpretadas no sentido de que é proibido às empresas contempladas no artigo 90.o, n.o 1, a constituição de uma posição dominante (mesmo se isso resultar da intervenção das autoridades nacionais), sempre que tal posição acarretasse a eliminação de qualquer forma de concorrência no âmbito da actividade que aquela empresa exerce no território de um Estado-membro.

Em caso de resposta afirmativa à terceira questão, pretende-se saber — com a quarta questão — se a empresa a que foi concedido o direito exclusivo de efectuar emissões televisivas, em particular por cabo, mesmo para fins de publicidade comercial, seria detentora de uma posição dominante incompatível com o artigo 86.o ou, pelo menos, abusaria da sua posição dominante entregando-se a certas práticas anticoncorrenciais indicadas pelo órgão jurisdicional nacional.

Em caso de resposta afirmativa a esta questão, pergunta-se — com a quinta questão — se as proibições a que se referem as questões precedentes têm efeito directo e atribuem aos particulares direitos que os órgãos jurisdicionais nacionais devem tutelar.

13

Os governos italiano e alemão observaram que, a partir do momento em que desempenham uma função de interesse público, de carácter cultural e informativo, as cadeias de televisão não são «empresas» nos termos das referidas normas do Tratado; de qualquer forma, elas estão incumbidas de um serviço de interesse económico geral e como tal só estariam submetidas às normas do Tratado, nomeadamente às da concorrência, nos limites em que a aplicação das mesmas normas não comprometesse a realização, de facto ou de direito, das tarefas específicas que lhes foram confiadas.

14

O artigo 90o, n.o 1, não proíbe os Estados-membros de conceder a algumas empresas direitos especiais ou exclusivos.

Nada no Tratado obsta a que os Estados-membros, por considerações de interesse público, de carácter não económico, subtraiam as emissões televisivas, incluindo as emissões por cabo, ao jogo da concorrência, concedendo o direito exclusivo de realizar tais emissões a uma ou várias entidades.

Todavia, para desempenho da sua missão, estas entidades permanecem submetidas à proibição de discriminação, e a elas se aplicam — na medida em que esse desempenho implique actividades de natureza económica — as disposições previstas no artigo 90.o para as empresas públicas e para as empresas a que os Estados concedam direitos especiais ou exclusivos.

A interpretação do artigo 86.o conjugado com o artigo 90o conduz à conclusão de que a existência de um monopólio a favor de uma empresa a que um Estado-membro tenha concedido determinados direitos exclusivos não é só por si incompatível com o artigo 86.o

O mesmo se deve dizer, portanto, do alargamento dos direitos exclusivos, decorrente de uma nova intervenção do referido Estado.

15

Por outro lado, mesmo nos Estados-membros em que as entidades incumbidas da gestão do serviço televisivo se encontram qualificadas, também no que respeita à sua actividade de carácter comercial, designadamente o domínio publicitário, como empresas incumbidas de um serviço de interesse económico geral, o comportamento de tais entidades no mercado encontra-se submetido, nos termos do artigo 90.o, n.o 2, às referidas proibições, até que se demonstre que elas são incompatíveis com o desenvolvimento da sua missão.

16

Na quarta questão, o órgão jurisdicional nacional indicou um certo número de comportamentos que poderiam constituir abuso nos termos do artigo 86.o

17

Existiria certamente um abuso sempre que a empresa titular do exclusivo das transmissões televisivas publicitárias impusesse aos utentes tarifas ou condições iníquas, ou ainda se efectuasse discriminações, no que respeita ao acesso à publicidade televisiva, entre os operadores económicos ou os produtos nacionais e dos outros Estados-membros.

18

Compete ao órgão jurisdicional nacional verificar caso a caso a existência de tais abusos e à Comissão pôr-lhes termo no âmbito das suas competências.

Nestes termos, mesmo no âmbito do artigo 90.o, as proibições previstas no artigo 86.o têm eficácia directa e atribuem aos particulares direitos que os órgãos jurisdicionais nacionais devem tutelar.

D — Sobre a questão n.o 11

Através da décima primeira questão pretende-se saber se o facto de um Estado-membro reservar a uma sociedade o direito exclusivo de transmitir mensagens publicitárias televisivas, em todo o território do referido Estado, acarretará uma violação do artigo 7.o do Tratado.

Resulta das considerações que precedem que a concessão de um direito exclusivo do género daquele que é considerado pelo órgão jurisdicional a quo não constitui violação do artigo 7.o, mas que já seriam incompatíveis com aquela disposição as práticas discriminatórias adoptadas pela empresa titular da exclusividade, relativamente aos cidadãos dos Estados-membros em razão da nacionalidade.

Quanto às despesas

As despesas efectuadas pela Comissão das Comunidades Europeias e pelos governos italiano e alemão, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de um incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões submetidas pelo tribunal de Biella, por despacho de 25 de Julho de 1973, declara:

 

1)

A difusão de mensagens televisivas, incluindo as que têm carácter publicitário, fica submetida, como tal, às normas do Tratado relativas à prestação de serviços. Todavia, as trocas que tenham por objecto materiais de qualquer género, suportes de som, filmes, instrumentos e outros produtos utilizados para a difusão das mensagens televisivas constituem objecto das normas aplicáveis à livre circulação de mercadorias.

 

2)

A circunstância de uma empresa de um Estado-membro ser titular do direito exclusivo de transmitir mensagens publicitárias televisivas não é em si mesma incompatível com a livre circulação dos produtos cuja comercialização as mesmas mensagens visam promover. A situação configurar-se-ia de modo diferente se o direito de exclusividade fosse utilizado para favorecer no seio da Comunidade determinados canais de comercialização ou determinados operadores económicos em detrimento de outros.

 

3)

O artigo 37.o do Tratado respeita às trocas comerciais e não pode aplicar-se a um monopólio de serviços.

 

4)

A existência de um monopólio a favor de uma empresa a que um Estado-membro tenha concedido, nos termos do artigo 90.o, determinados direitos exclusivos, bem como o alargamento desses direitos em consequência de nova intervenção do mesmo Estado, não são em si mesmo incompatíveis com o artigo 86.o do Tratado.

 

5)

Mesmo no âmbito do artigo 90.o, as proibições constantes do artigo 86.o têm efeito directo e atribuem aos particulares direitos que os órgãos jurisdicionais nacionais devem tutelar.

 

6)

A concessão do direito exclusivo de difundir mensagens televisivas não constitui, em si mesma, violação do artigo 7.o do Tratado. São todavia incompatíveis com este artigo as práticas discriminatórias adoptadas pelas empresas titulares de exclusividade, na relação com os cidadãos dos Estados-membros, em razão da nacionalidade.

 

Lecourt

Donner

Sørensen

Monaco

Mertens de Wilmars

Pescatore

Kutscher

O'Dálaigh

Mackenzie Stuart

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 30 de Abril de 1974.

O secretário

A. Van Houtte

O presidente

R. Lecourt


( *1 ) Língua do processo: italiano.