CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

HENRI MAYRAS

apresentadas em 15 de Maio de 1974 ( *1 )

Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

Introdução

O presente processo coloca um problema que o Tribunal já algumas vezes apreciou durante os últimos anos, embora os pressupostos sejam agora diferentes.

Trata-se das relações entre, por um lado, os direitos de propriedade industrial e comercial e, por outro lado, as regras de concorrência e de livre circulação de mercadorias instituídas pelo Tratado da Comunidade Económica Europeia.

Em primeiro lugar, embora o objecto dos direitos de propriedade industrial varie consoante se trate de patentes, da protecção do know-how ou, pelo contrário, de marcas de fabrico, esses regimes apresentam contudo uma característica comum: conferem aos titulares um direito exclusivo que é, por si só, susceptível de afectar as condições de concorrência.

Em segundo lugar, a protecção concedida limita-se ao território nacional, sendo pois susceptível de constituir um obstáculo à livre circulação dos produtos no mercado comum.

A dificuldade essencial resulta assim do confronto entre o direito de propriedade industrial — direito nacional com eficácia territorial — e o direito comunitário, cuja aplicação uniforme em todos os Estados-membros garante uma eficácia geral e que, em caso de conflito, deve primar sobre o direito nacional.

Esta antinomia entre a existência do mercado comum e os direitos de propriedade industrial já foi, de resto, expressamente verificada pelo Tribunal nos acórdãos de 29 de Fevereiro de 1968 (processo 24/67, Parke Davis, Colect. 1965-1968, p. 759) e de 18 de Fevereiro de 1971 (processo 40/70, Sirena, Colect. 1971, p. 13), ao reconhecer que «as normas nacionais relativas à protecção da propriedade industrial e comercial não foram objecto de unificação no âmbito da Comunidade, pelo que o carácter nacional dessa protecção pode criar obstáculos quer à livre circulação dos produtos portadores de marca quer ao regime comunitário da concorrência».

É novamente esta antinomia que está na origem do pedido de decisão a título prejudicial que foi apresentado a este Tribunal pelo tribunal d'arrondissement do Luxemburgo, decidindo em matéria comercial, devido a um litígio relativo a uma conhecida marca de origem alemã, confiscada e seguidamente expropriada no fim da Segunda Guerra Mundial. Todavia, no caso sub judice, esta marca já não se encontrava registada em nome da empresa alemã; esta cedera-a anteriormente, para a Bélgica e o Grão-Ducado do Luxemburgo, à sua filial criada em Bruxelas em 1927.

I — Matéria de facto

As partes no processo principal afirmaram a este Tribunal que não existia entre elas qualquer divergência quanto à matéria de facto, mas sim quanto às consequências jurídicas dela decorrentes.

Assim, lembraremos apenas brevemente as circunstâncias que levaram o tribunal do Luxemburgo a submeter-vos duas questões prejudiciais.

Sendo no início do século a primeira titular de patentes para a descafeinização de café puro, a sociedade Hag AG de Brema registou em seu nome, em numerosos países, marcas com as palavras «Café Hag» acompanhadas de um emblema representando um coração ou uma bóia de salvação.

Estas marcas foram registadas na Bélgica e no Grão-Ducado em 1908, encontrando-se desde 1925 legalmente registadas a nível internacional, em Berna, em conformidade com o acordo de Madrid.

A venda de café Hag nos mercados belga e luxemburguês efectuou-se em primeiro lugar por um representante geral da empresa alemã e, seguidamente, a partir de 1927, por uma filial por ela criada em Bruxelas, a SA Café Hag, inteiramente controlada pela sociedade principal.

Tendo sido progressivamente dotada de meios de produção próprios, esta filial em breve pôde satisfazer por si só as necessidades da Bélgica e do Luxemburgo.

Em 1934, a sociedade Hag AG cedeu as suas marcas para estes dois países à filial belga, cessão esta que foi acompanhada da transferência dos processos de descafeinização.

No ano seguinte, a cessão foi regularizada no plano internacional, de acordo com os mecanismos processuais estabelecidos pelo regulamento de execução do acordo de Madrid: cancelamento do registo internacional da marca Hag Brema em relação à Bélgica e ao Luxemburgo e registo, nestes Estados, de marcas nacionais em nome da Café Hag SA.

Tornou-se então evidente — quaisquer que tenham sido os motivos reais desta operação (repartição dos mercados entre sociedade principal e filial, meio de obviar às dificuldades originadas pelo crescente proteccionismo ou, no plano comercial, aos riscos previsíveis provocados, na época, pela ameaça de um conflito na Europa) — que a mercadoria oferecida no mercado belgo-luxemburguês era doravante produzida unicamente pela sociedade Café Hag de Baixelas e vendida com a sua marca.

Esta situação manteve-se até ao fim da guerra.

Após a libertação da Bélgica, a sociedade anónima Café Hag foi confiscada pela administração belga como bem inimigo. Seguidamente, e nos termos da Acta Final da Conferência de Paris relativa às reparações, de 14 de Janeiro de 1946, cujo artigo 6.o obriga as potências signatárias, entre as quais a Bélgica, a alienar os bens, direitos e interesses alemães, o «Office des séquestres» vendeu as acções da sociedade a uma família belga, Van Oevelen, que se tomou assim proprietária da empresa e das marcas de fabrico registadas em seu nome.

Em 1971, as referidas marcas, cujo registo confirmativo tinha sido realizado sob o novo regime da lei uniforme do Benelux, foram cedidas, não o tendo sido as instalações da sociedade Hag, à firma Van Zuylen Frères (Cafeterie Chat Noir), cessão esta que foi notificada em 25 de Abril de 1972 ao Serviço das Marcas do Benelux.

Por seu lado, a Hag AG de Brema tinha adquirido, depois da guerra, direitos próprios sobre marcas «Café Hag» para a Bélgica e o Grão-Ducado, mas esse registo é evidentemente posterior às marcas que presentemente a Van Zuylen Frères reivindica. A Hag AG de Brema tentara igualmente reimplantar-se no mercado belgo-luxemburguês registando e explorando a marca «Decofa», mas parece não ter conseguido realizar os seus intentos.

Este facto levou-a, em Maio de 1972, a colocar no mercado do Luxemburgo café solúvel Hag, com o seu nome, por intermédio de um concessionário luxemburguês. Foram estas importações directas que levaram a firma Van Zuylen a apresentar uma primeira acção por contrafacção.

Sem contestar a legitimidade dos direitos de Van Zuylen sobre a marca «Hag» na Bélgica e no Luxemburgo, a sociedade alemã alegou antes do mais que esses direitos não lhe eram oponíveis na medida em que tinha adquirido direitos equivalentes, por efeito dos registos internacionais e Benelux realizados em seu nome após 1945.

Foi no intuito de responder a esta primeira pretensão que a Van Zuylen interpôs em 4 de Abril de 1973 uma segunda acção destinada a obter a anulação desses registos de marcas da Hag AG nos territórios belga e luxemburguês.

A demandada defendeu então perante o juiz luxemburguês que os direitos de Van Zuylen eram nulos por se tratar de direitos derivados, adquiridos em virtude de um acordo de cessão ferido de nulidade por ser contrário ao artigo 85 o do Tratado de Roma. Nesta fase do processo, as partes concordaram em solicitar ao tribunal do Luxemburgo que submetesse à apreciação deste Tribunal uma primeira questão prejudicial, cujo âmbito, aliás, ultrapassa o domínio restrito do direito de concorrência, na medida em que implica não apenas a interpretação do artigo 85.o, mas igualmente a dos artigos 5.o, 30.o e seguintes e, nomeadamente, do artigo 36.o do Tratado, relativos à livre circulação de mercadorias.

A decisão de reenvio solicita ao Tribunal que declare se alguma destas disposições tem como efeito permitir ao actual titular de uma marca de fabrico num Estado-membro (A) da Comunidade (no caso sub juáice, a Van Zuylen, no Grão-Ducado) opor-se, invocando o seu direito à marca, à importação para o território desse mesmo Estado pelo titular da mesma marca num outro Estado-membro (B) (a saber, a Hag AG, na Alemanha) de produtos da referida marca provenientes deste Estado.

Com o objectivo de determinar exactamente as condições de facto com base nas quais a questão se coloca, o juiz luxemburguês foi levado a concretizar:

que a marca em causa foi cedida pelo titular originário no Estado-membro (B) à sua filial constituída no Estado-membro (A) em virtude de acordos anteriores à entrada em vigor do Tratado;

que esta filial, confiscada em 1944 pelo Estado (A), foi cedida juntamente com a marca a um terceiro, no caso sub judice, a família Van Oevelen;

que este terceiro, por sua vez, cedeu a marca ao actual titular no Estado (A) — a sociedade Van Zuylen Frères;

que, finalmente, não existe qualquer vínculo jurídico, financeiro, técnico ou económico entre o actual titular (Van Zuylen) e o titular originário (Hag AG) das marcas nos Estados (A) e (B).

A segunda questão prejudicial que foi apresentada ao Tribunal explica-se pelo pedido de intervenção formulado perante o tribunal do Luxemburgo por um comerciante alemão, a sociedade Joachim Kunde, que, tendo importado no Luxemburgo café Hag em grão comprado directamente à Hag AG em Brema, pretende ver reconhecidos os seus direitos a efectuar essas importações.

Sem se pronunciar quanto à admissibilidade desta intervenção, o tribunal a quo pergunta ao Tribunal de Justiça se a resposta a esta segunda questão deve ser idêntica à que será dada à primeira, quando a venda dos produtos portadores de marca for realizada no Estado-membro (A) não pelo titular originário da marca, mas por um importador que adquiriu legalmente os produtos no Estado-membro (B) ao titular originário.

Deste modo, o tribunal d'arrondissement do Luxemburgo, ratificando aliás o acordo das partes sobre a própria redacção do pedido de decisão a título prejudicial, limita-se a apresentar as questões relativas à interpretação do direito comunitário, inspirando-se directamente nas soluções que resultam dos acórdãos do Tribunal de Justiça de 18 de Fevereiro de 1971 (processo Sirena, já citado) e de 8 de Junho de 1971 (processo 78/70, Deutsche Grammophon, Colect. 1971, p. 183).

Embora a Comissão tenha considerado dever abordar esse problema, pensamos todavia que é inútil esclarecer se uma solução de lege ferenda poderia, no caso sub judice, resolver o conflito que opõe a Van Zuylen à Hag AG. Em especial, parece-nos inútil indagar se o disposto no artigo 12.o, n.os 1 e 2, do anteprojecto de convenção relativa ao direito europeu das marcas poderia ser aplicado no caso concreto.

Do mesmo modo, a Comissão reconhece que a redacção actualmente proposta para esse artigo não solucionaria o problema das marcas expropriadas após a guerra.

De qualquer modo, trata-se de um anteprojecto elaborado por um grupo de peritos, do qual não se poderão extrair quaisquer indicações pertinentes para a interpretação do Tratado.

Ora, é precisamente a questão da interpretação que é submetida ao Tribunal e que nos propomos analisar, em primeiro lugar, em relação às normas relativas à concorrência do artigo 85.o e, seguidamente, em relação aos princípios que regulam a livre circulação de mercadorias.

II — Aplicação do artigo 85 o do Tratado

O artigo 85 o do Tratado nada diz quanto às relações entre o regime comunitário da concorrência e as legislações nacionais relativas aos direitos à marca.

Contudo, o Tribunal já teve de se pronunciar acerca da compatibilidade dos direitos de marca com as regras do Tratado no domínio da concorrência nos processos Grundig/Consten (acórdão de 13 de Julho de 1966, Colect. 1965-1968, p. 423) e Sirena (acórdão de 18 de Fevereiro de 1971, já citado).

O problema consiste em decidir se, caso uma legislação nacional atribua ao titular de uma marca o direito de se opor às importações de produtos com a mesma marca provenientes de outro Estado-membro, o direito comunitário pode limitar o conteúdo desse direito.

O Tribunal respondeu afirmativamente a esta questão inspirando-se num princípio «que se aplica em matéria de concorrência no sentido de que, não sendo os direitos reconhecidos pela legislação de um Estado-membro aos titulares de direitos de marca afectados na sua existência pelo artigo 85.o e seguintes, o seu exercício pode em contrapartida ser abrangido pelo âmbito das proibições estabelecidas por essas disposições». De resto, o Tribunal inspirou-se a este respeito nas considerações feitas pela Comissão no Regulamento n.o 67/67, em que esta, sem pretender exprimir um juízo prévio acerca das relações existentes entre o regime da concorrência e os direitos de propriedade industrial, demonstrou claramente a sua intenção de não admitir que esses direitos fossem exercidos de forma abusiva, de modo a criar uma protecção territorial absoluta.

Ora, não oferece dúvidas que o exercício do direito à marca é particularmente propício à repartição ou ao isolamento dos mercados nacionais susceptível de afectar o comércio entre os Estados-membros, podendo assim obstar à realização de um mercado único e à livre circulação de produtos, objectivos essenciais do mercado comum.

Contudo, em sede do artigo 85 o, é necessário ter em conta que a aplicação desta disposição implica a existência de um acordo entre empresas ou, no mínimo, de práticas concertadas.

Este primeiro requisito verificava-se indubitavelmente no processo Grundig/Consten. Com efeito, em paralelo com um contrato de distribuição exclusiva, existia uma convenção acessória celebrada entre a Grundig e o seu concessionário, nos termos da qual a firma alemã autorizava a Consten a registar em França, em seu nome, a marca «Gint». Assim, esta era titular dos direitos relativos a esta marca unicamente em virtude de um «acordo» cujo objectivo manifesto era o de reforçar a protecção territorial absoluta de que dispunha.

Verificava-se assim o elemento da concertação necessário para a aplicação do artigo 85.o

No processo Sirena, o Tribunal foi mais longe.

Com efeito, após ter admitido que o direito à marca, enquanto instituto legal, não possui os elementos contratuais ou de concertação requeridos pelo artigo 85 o, n.o 1, o Tribunal não deixou de afirmar que «o seu exercício pode cair na alçada das proibições do Tratado, sempre que se apresentar como objecto, meio ou resultado de um acordo».

Não se colocam quaisquer dificuldades em admitir que o exercício do direito à marca é abrangido pelo artigo 85 o, quando constitui o próprio objecto de um acordo. Seria o caso, nomeadamente, de um contrato de licença pelo qual o titular de uma marca imponha ao detentor da licença restrições não justificadas pela protecção do direito, como a imposição de preços de venda ou de quotas de produção.

O mesmo sucederia se, no âmbito de licenças paralelas, o titular pretendesse exigir dos seus concessionários o compromisso de não exportarem, com o objectivo de garantir a cada um deles uma protecção territorial absoluta.

Em contrapartida, no caso da cessão pura e simples do direito à marca, e salvo circunstâncias particulares, é mais difícil descortinar a existência de um acordo tendo por objecto ou como efeito a restrição da concorrência. Faz parte da própria natureza dessa cessão a transferência total do direito, conferindo-se ao concessionário prerrogativas idênticas às do cedente.

Esta a razão pela qual o Tribunal afirmou no acórdão Sirena que «o artigo 85.o é… aplicável (quando), invocando-se o direito à marca, se impedem as importações provenientes de diferentes Estados-membros de produtos que têm a mesma marca, pelo facto de os seus titulares terem adquirido essa marca, ou o direito à sua utilização, por força quer de acordos entre eles quer de acordos celebrados ou com terceiros».

Neste sentido, pouco importa que o acordo não tivesse por objecto restringir a concorrência, bastando que esse efeito se verificasse, que dele resultasse essa consequência e que se tivesse criado uma situação jurídica susceptível de obstar às importações paralelas.

Contudo, não estaremos deste modo a forçar um pouco a redacção do artigo 85 o, interpretando-o de forma demasiado extensiva?

O Tribunal, aparentemente, foi conduzido a este resultado no processo Sirena por certos elementos de facto que o advogado-geral Dutheillet de Lamothe tinha, muito justamente, acentuado nas suas conclusões. A análise do processo fazia efectivamente pensar que a situação contratual que a firma italiana invocava decorria da existência de acordos, ou, no mínimo, de práticas concertadas proibidas pelo artigo 85.o, quando confrontada com os contratos paralelos celebrados entre a sociedade americana Mark Allen, titular originária da marca, e as firmas francesas, belgas, neerlandesas e alemãs.

O Tribunal não deixou de salientar que, «se a justaposição de transferências de direitos a marca nacionais, protegendo o mesmo produto, a diferentes exploradores tiver por efeito a reconstituição de fronteiras impenetráveis entre os Estados-membros, essa prática pode afectar o comércio entre os Estados e alterar a concorrência no mercado comum».

Os elementos de facto do presente processo não nos parecem permitir idêntica conclusão, pelo menos com base no artigo 85.o

Não se pode, todavia, pôr em causa a existência de um acordo de cessão celebrado em 1934-1935 entre a Hag AG Brema e a sociedade Café Hag Bélgica, na medida em que, mesmo tendo os arquivos da empresa alemã sido destruídos durante a guerra e não podendo o texto desse contrato ser reproduzido, as partes no processo principal reconhecem que esse acordo foi efectivamente celebrado.

Não podemos igualmente admitir a tese defendida pelos representantes de Van Zuylen, a saber, que um contrato de cessão integralmente executado e cujos efeitos se esgotaram no passado não pode ser abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 85.o

Este argumento foi formalmente condenado no acórdão Sirena: a situação jurídica criada por um acordo de cessão anterior à entrada em vigor do Tratado permanece inalterada, bastando — como observa a demandada no processo principal — verificar que a Van Zuylen invoca ainda essa cessão para admitir que ela é susceptível de produzir efeitos jurídicos.

Apesar destas duas considerações, são outras as razões que nos levam a afastar a aplicação do artigo 85 o.

Como afirma o juiz luxemburguês — e as partes no processo principal não contestam esse facto — a cessão de marca foi realizada pela Hag Brema a uma filial sobre a qual exercia um controlo absoluto. Não se pode pois encarar esta cessão como um acordo entre empresas diferentes e independentes, mas como um simples acordo interno no seio da mesma unidade económica. Não pode existir entre uma sociedade principal e a sua filial, desprovida de poder de decisão autónomo, qualquer relação de concorrência susceptível de ser restringida mediante a celebração de um acordo. Referimo-nos a este respeito à posição do Tribunal nos acórdãos de 25 de Novembro de 1971 (Béguelin, processo 22/71, Colect., p. 355) e de 13 de Julho de 1972 (processo relativo aos corantes, Colect. 1972-1973, p. 205): «quando a filial não possui uma autonomia real na determinação da sua linha de acção no mercado, as proibições constantes do n.o 1 do artigo 85 o podem ser consideradas como não aplicáveis às relações entre essa filial e a sociedade principal com a qual forma uma unidade económica».

Todavia, como defendem a Hag Brema e a Comissão, não deveria afastar-se essa solução quando os vínculos entre a sociedade principal e a filial se romperam, devido à transferência forçada de parte do capital da filial, considerado como bem inimigo, para um terceiro?

Se bem entendemos esta tese, o acordo de cessão de 1934-1935, que por si só não era susceptível de afectar a concorrência, por ter sido celebrado entre duas empresas financeiramente ligadas, produziria, após a entrada em vigor do Tratado de Roma, efeitos anticoncorrenciais devido a esses vínculos terem sido dissolvidos.

Dever-se-ia assim considerar que os efeitos objectivos do contrato de cessão criaram uma situação jurídica que seria actualmente proibida pelo artigo 85.o

Parece-nos impossível admitir este raciocínio, precisamente devido ao facto de nenhum elemento de concertação — necessário para a aplicação desta disposição do Tratado — subsistir ou ter sido restabelecido entre a Hag Brema e o actual titular da marca na Bélgica e no Luxemburgo.

Não se verifica o requisito essencial para a aplicação do artigo 85.o, e não é sequer necessário invocar, como faz a Van Zuylen, o carácter de acto da autoridade pública da venda do capital da sociedade anónima Café Hag à família Van Oevelen pelo «Office des séquestres» belga.

Na realidade, é incorrecto pensar que só o regime da concorrência pode ser validamente invocado para fazer face aos entraves que os direitos nacionais relativos à marca opõem à livre circulação de mercadorias no mercado comum.

Essas disposições apenas podem ser tomadas em consideração se for reconhecida a existência de um acordo ou de uma prática concertada na acepção do artigo 85.o ou, mutatis mutandis, um abuso de posição dominante, na acepção do artigo 86.o

É o que aliás se deduz do acórdão de 29 de Fevereiro de 1968 (Parke, Davis, processo 24/67, Colect. 1965-1968, p. 759), em que o Tribunal reconheceu que o exercício de uma patente não releva do artigo 85.o, na ausência de um acordo abrangido por essa disposição.

Assim, embora a fórmula do acórdão Sirena — segundo o qual um direito exclusivo pode constituir «objecto, meio ou consequência de um acordo» — permaneça perfeitamente válida, é a contrario evidente que o artigo 85.o não pode ser validamente invocado contra o exercício de um direito de propriedade industrial, quando este não constituir objecto, meio, ou consequência de um acordo proibido por este artigo.

III — Aplicação dos artigos 5o, 30o e 36o do Tratado

Podemos assim avaliar os limites para além dos quais deixam de se poder invocar as disposições do Tratado relativas à concorrência para resolver a antinomia existente entre o direito comunitário e os direitos nacionais de propriedade industrial.

Com efeito, e como demonstra a evolução da jurisprudência deste Tribunal, a solução da questão reside nas normas que regulam a livre circulação de mercadorias no mercado comum.

Os artigos 30.o e 36.o do Tratado constituem, na nossa opinião, a base jurídica adequada, permitindo que, sem recorrer à noção de acordo, se resolva o conflito existente entre o princípio da unidade do mercado e os direitos exclusivos conferidos pelas leis nacionais.

No acórdão de 8 de Junho de 1971 (Deutsche Grammophon, processo 78/70, Colect. 1971, p. 183), o Tribunal tomou claramente partido, declarando que, na hipótese do exercício — no caso concreto de um direito conexo com o direito de autor — «escapar aos elementos contratuais ou de concertação previstos por esta disposição (o artigo 85.o), a resposta à questão suscitada levaria a examinar se o exercício do direito de protecção em causa é compatível com outras disposições do Tratado, relativas designadamente à livre circulação de mercadorias».

E foi manifestamente por referência a esta decisão que o juiz luxemburguês situou as questões prejudiciais que apresentou ao Tribunal também no âmbito dos artigos 5.o, 30.o e seguintes, e particularmente do artigo 36.o do Tratado.

O artigo 5.o, cuja invocação se deve ao facto de já no processo Deutsche Grammophon se ter recorrido a esta disposição de princípio, consagra, como declarou o Tribunal, uma obrigação geral imposta aos Estados-membros de se absterem de tomar quaisquer medidas susceptíveis de pôr em perigo a realização dos objectivos do Tratado.

Foi nomeadamente com base nesta disposição que o Tribunal, no acórdão de 15 de Junho de 1964 (Costa/Enel, processo 6/64, Colect. 1962-1964, p. 549), declarou o primado do direito comunitário sobre os direitos nacionais.

Significará isto que esta obrigação de «cooperação leal e universal» dirigida aos Estados-membros e que se impõe a todos os órgãos estatais, incluindo os órgãos jurisdicionais nacionais, é por si só suficiente para limitar o exercício dos direitos nacionais de propriedade industrial?

Certamente que não, mas tem o valor de um princípio cujo conteúdo deve ser concretiza do, caso a caso, pelas disposições precisas do Tratado.

No domínio que nos interessa, são os artigos 30.o e 36.o que permitem conferir um conteúdo positivo e concreto aos princípios enunciados pelo artigo 5.o

O artigo 30.o proíbe, como é sabido, as restrições quantitativas à importação e «todas as medidas de efeito equivalente».

O artigo 36.o, na primeira frase, exceptua dessa proibição as restrições ou medidas de efeito equivalente que sejam justificadas, entre outras, por razões de protecção da propriedade industrial e comercial.

Contudo, na segunda frase, estipula que essas excepções não devem constituir «nem um meio de discriminação arbitrária, nem qualquer restrição dissimulada ao comércio entre os Estados-membros».

Da conjugação destas duas frases podemos deduzir que:

1)

embora, em princípio, as leis nacionais relativas à propriedade industrial e comercial permaneçam em vigor, os direitos delas decorrentes são atingidos e afectados pelo estabelecimento do mercado comum, numa medida a determinar. Defender o contrário equivaleria a negar qualquer aplicação útil, a este respeito, do artigo 36.o;

2)

em qualquer caso, apenas podem beneficiar da excepção à proibição de princípio do artigo 36.o as restrições à importação que sejam justificadas por razões relativas à protecção da propriedade industrial e não todas as restrições inerentes ao exercício destes direitos;

3)

de qualquer forma, subsiste a proibição de um exercício destes direitos que tenha como efeito uma discriminação arbitrária ou uma restrição dissimulada ao comércio entre os Estados-membros.

A questão reside pois em saber em que medida o artigo 36.o afecta não a própria existência de um direito de propriedade industrial mas sim o seu exercício.

Foi com base nesta distinção, retomada no acórdão Deutsche Grammophon, que o Tribunal interpretou o artigo 36.o, salientando que, «se o Tratado permite proibições ou restrições à livre circulação de produtos justificadas por razões de protecção da propriedade industrial e comercial, o artigo 36.o só admite derrogações a esta liberdade na medida em que elas sejam justificadas pela salvaguarda dos direitos que constituem o objecto específico desta propriedade».

Embora este acórdão diga respeito ao direito exclusivo conferido pela legislação alemã a um fabricante de suportes de som, que o Tribunal qualificou como direito conexo com o direito de autor, as considerações de princípio que o Tribunal consagrou à interpretação do artigo 36.o possuem indubitavelmente um alcance geral.

O Tribunal concluiu que se esse direito «é invocado para proibir a comercialização num Estado-membro de produtos postos em circulação pelo seu titular, ou com o seu consentimento, no território de um outro Estado-membro, pelo simples motivo de que essa colocação em circulação não teria tido lugar no território nacional, tal proibição, consagrando o isolamento dos mercados nacionais, é contrária ao objectivo essencial do Tratado, que visa a fusão dos mercados nacionais num mercado único».

O motivo determinante reside no facto de o exercício do direito invocado pela Deutsche Grammophon causar essa repartição dos mercados, proibida pelo Tratado. Noutros termos, os obstáculos à importação de produtos originais provenientes de outros Estados-membros não são, face ao Tratado, justificados pela existência do direito de protecção instituído pela lei nacional, constituindo antes uma restrição dissimulada ao comércio entre os países do mercado comum proibida pelo artigo 36.o, segunda frase.

Em segundo lugar, a redacção do acórdão permite pensar que a interpretação do Tribunal não se refere apenas a um direito conexo com o direito de autor, valendo também para outros direitos de protecção exclusiva, na medida em que o Tribunal teve o cuidado de afirmar que o objectivo essencial do Tratado «não poderia ser atingido se, em virtude dos diversos regimes jurídicos dos Estados-membros, os seus nacionais tivessem a possibilidade de vedar o mercado».

As directrizes de interpretação deduzidas do acórdão Deutsche Grammophon parecem-nos pois poder ser facilmente transpostas para o domínio das marcas de fabrico.

Admitindo-se que as acções intentadas pela Van Zuylen perante o tribunal do Luxemburgo têm por objectivo opor-se às importações de um produto com marca idêntica realizadas pela Hag Brema, invocando a Van Zuylen o seu direito exclusivo à marca, trata-se assim de aplicar os referidos princípios e de saber se a própria existência da marca registada na Bélgica e no Luxemburgo confere esse poder à autora no processo principal, ou se, ao contrário, a proibição reivindicada constitui um exercício do direito à marca em condições incompatíveis com o disposto no artigo 36.o

O objecto específico do direito à marca, considerado na sua própria essência, é indicar a origem e proveniência do produto, permitindo assim ao titular proteger a posição económica adquirida através dos seus meios financeiros, esforço técnico e actividade comercial.

É mediante o direito de colocar pela primeira vez o produto em circulação que o titular pode legalmente assegurar essa protecção e, nomeadamente, proibir a comercialização de produtos que ostentam a sua marca por pessoas que não gozam desse direito.

O direito à marca confere-lhe assim o poder de proibir as contrafacções realizadas por terceiros.

Em contrapartida, o princípio da territorialidade, consequência do carácter nacional da legislação das marcas (e a este respeito a existência de uma lei uniforme Benelux não modifica os dados do problema), de acordo com a jurisprudência do Tribunal, não constitui parte integrante do direito de protecção, tal como foi exposto nas conclusões no processo Deutsche Grammophon pelo advogado-geral Karl Roemer, a propósito do direito exclusivo conferido aos fabricantes de suportes de som.

É o efeito da protecção territorial das legislações internas que é incompatível com o princípio comunitário da livre circulação de mercadorias.

No litígio apresentado ao juiz luxemburguês, a sociedade Van Zuylen, cessionária da marca «Café Hag» para a Bélgica e o Luxemburgo, tem assim o direito de se opor, no território onde o seu direito é exercido, à venda de café descafeínado com essa colocado em circulação por contrafactores. Contudo, não se pode opor à importação de produtos com a mesma marca provenientes da empresa alemã, titular originária da marca.

É ainda necessário que a proveniência do produto seja claramente indicada, o que de resto a firma Hag fez, referindo na embalagem que o café vendido no Grão-Ducado é fabricado na Alemanha Federal.

Pelo seu lado, a Van Zuylen tem a obrigação de indicar a proveniência belga dos cafés vendidos com a marca «Hag».

Finalmente, é necessário, em nossa opinião, afastar decididamente a objecção de que a empresa alemã poderia vender os seus produtos no Luxemburgo sob uma marca que não a «Hag». De resto, ela tentou fazê-lo, numa primeira fase, importando café com a marca «Decofa». É evidente que essas importações não levantaram nem poderiam levantar quaisquer dificuldades perante o direito nacional das marcas e o direito comunitário.

Mas compreende-se que, para se implantar na Bélgica e no Luxemburgo com esta nova marca desconhecida dos consumidores, a firma alemã perderia o benefício da marca «Hag», pela qual ela é notoriamente conhecida do público, e seria assim obrigada a partir do ponto zero e a consagrar importantes meios financeiros e comerciais para impor a imagem dessa nova marca.

É pois unicamente com base nos artigos 30.o e 36.o, relativos à livre circulação de mercadorias na Comunidade, e tendo em consideração o princípio de unidade do mercado comum, que sugerimos ao Tribunal que responda às questões que lhe foram apresentadas.

Consequentemente, se o Tribunal seguir a nossa proposta, a resposta à segunda questão, relativa às importações no Grão-Ducado, efectuadas por um negociante alemão, de café comprado directamente à empresa Hag de Brema não pode ser diversa da solução dada à primeira questão prejudicial.

Concluímos, por conseguinte, no sentido de que seja declarado que:

a faculdade que possui o cessionário de um direito à marca de, no território do Estado-membro (A), onde a mesma está registada, proibir a importação directa de produtos que ostentam a mesma marca pela empresas titular do direito à mesma marca, a título originário, no Estado-membro (B), não constitui parte integrante do direito de propriedade industrial e comercial na acepção do artigo 36.o do Tratado;

essa faculdade constitui um exercício do direito à marca incompatível com os princípios fundamentais do Tratado que resultam das disposições relativas à livre circulação de mercadorias;

o mesmo sucede quando as importações dos referidos produtos no Estado-membro (A) são efectuadas por intermédio de um comerciante estabelecido no Estado-membro (B) que os adquiriu à empresa titular da marca nesse Estado.


( *1 ) Língua original: francês.