ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

17 de Dezembro de 1970 ( *1 )

No processo 25/70,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, pelo Hessischer Verwaltungsgerichtshof Kassel, destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

Einfuhr- und Vorratsstelle für Getreide und Futtermittel (Serviço de importação e armazenagem de cereais e forragens), de Frankfurt am Main,

e

Köster, Berodt & Co., de Hamburgo,

uma decisão a título prejudicial sobre a validade do Regulamento n.o 102/64/CEE da Comissão, de 28 de Julho de 1964, relativo aos certificados de importação e de exportação para os cereais, os produtos transformados à base de cereais, o arroz, as trincas e os produtos transformados à base de arroz,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: R. Lecourt, presidente, A. M. Donner, A. Trabucchi, presidentes de secção, R. Monaco, J. Mertens de Wilmars, P. Pescatore e H. Kutscher, juízes,

advogado-geral: A. Dutheillet de Lamothe

secretário: A. Van Houtte

profere o presente

Acórdão

(A parte relativa à matéria de facto não é reproduzida)

Fundamentos da decisão

1

Por despacho de 21 de Abril de 1970, entrado na Secretaria do Tribunal de Justiça em 28 de Maio de 1970, o Hessischer Verwaltungsgerichtshof submeteu ao Tribunal, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, um pedido de decisão prejudicial sobre «a validade do Regulamento n.o 102/64/CEE da Comissão, de 28 de Julho de 1964, relativo aos certificados de importação e de exportação para os cereais, os produtos transformados à base de cereais, o arroz, as trincas e os produtos transformados à base de arroz (JO 1964, p. 2125), e, designadamente, sobre a questão de saber se os artigos 1.o e 7o do referido regulamento são válidos, na medida em que dizem respeito aos certificados de exportação e às cauções constituídas para a obtenção dos certificados de exportação».

2

Resulta do despacho de reenvio que a questão submetida foi suscitada no âmbito de um recurso contra uma decisão do Verwaltungsgericht Frankfurt am Main que anulava uma decisão do Einfuhr- und Vorratsstelle fur Getreide und Futtermittel que tinha declarado perdida pela recorrida uma caução por esta não ter realizado dentro do prazo uma exportação para a qual tinha sido emitido um certificado nos termos do artigo 7.o do Regulamento n.o 102/64.

Tendo em conta, quer os fundamentos da decisão da primeira instância, quer as alegações feitas no recurso pela recorrida na causa principal no que se refere à legalidade do regime fixado pelos artigos 1.o e 7.o do Regulamento n.o 102/64, o Hessischer Verwaltungsgerichtshof precisou a sua questão através de quatro questões secundárias que convém considerar separadamente.

I — Quanto à questão relativa ao processo «do comité de gestão»

3

Em primeiro lugar, pergunta-se ao Tribunal se é de considerar como contrário ao Tratado CEE o processo estabelecido pelo artigo 26.o do Regulamento n.o 19 do Conselho, de 4 de Abril de 1962, relativo ao estabelecimento gradual de uma organização comum de mercado no sector dos cereais (JO 1962, p. 933), em aplicação do qual foi adoptado o Regulamento n.o 102/64 da Comissão, e ainda se esse processo é compatível, designadamente, com os artigos 43.o, n.o 2, 155. o, 173. o, 177.o e 189.o, primeiro parágrafo, do Tratado CEE.

4

Esta questão diz respeito à legalidade do processo dito «do comité de gestão», instituído pelos artigos 25.o e 26.o do Regulamento n.o 19 e retomado em muitos outros regulamentos agrícolas.

As disposições do Tratado, acima referidas, revelam que a questão submetida diz mais precisamente respeito à compatibilidade do processo «do comité de gestão» com a estrutura comunitária e o equilíbrio institucional, quer quanto às relações entre instituições quer quanto ao exercício das suas competências respectivas.

5

Em primeiro lugar, sustenta-se que a competência para adoptar o regime em litigio pertenceria ao Conselho, o qual, nos termos do terceiro parágrafo do n.o 2 do artigo 43o, deveria ter deliberado sob proposta da Comissão e após consulta da Assembleia, pelo que o processo seguido teria derrogado os processos e competências estabelecidos por essa norma do Tratado.

6

Tanto o sistema normativo do Tratado, reflectido nomeadamente no artigo 155 o, último travessão, como a prática constante das instituições comunitárias, estabelecem, em conformidade com as concepções jurídicas prevalecentes em todos os Estados-membros, uma distinção entre as medidas fundadas directamente no próprio Tratado e o direito derivado destinado a assegurar a sua execução.

Não se pode, portanto, exigir que todos os detalhes dos regulamentos relativos à Política Agrícola Comum sejam estabelecidos pelo Conselho segundo o processo do artigo 43 o

Este artigo é respeitado desde que os elementos essenciais da matéria a regular sejam adoptados de acordo com o processo aí estabelecido.

Pelo contrário, as normas de execução dos regulamentos de base podem ser adoptadas segundo um processo diferente do previsto pelo artigo 43. o, seja pelo próprio Conselho, seja pela Comissão, ao abrigo de uma delegação de competência nos termos do artigo 155. o

7

As medidas que são objecto do Regulamento de execução n.o 102/64 da Comissão não ultrapassam o âmbito de execução dos princípios do Regulamento de base n.o 19.

A Comissão foi, pois, validamente habilitada pelo Regulamento n.o 19 a tomar as medidas de aplicação em causa, cuja validade não pode, portanto, ser contestada face às exigências do artigo 43. o, n.o 2, do Tratado.

8

Em segundo lugar, a recorrida na causa principal critica o processo «do comité de gestão» por o mesmo constituir uma ingerência no poder de decisão da Comissão, a ponto de pôr em causa a independência dessa instituição.

Além disso, a interposição entre o Conselho e a Comissão de um organismo não previsto no Tratado teria por efeito alterar as relações interinstitucionais e prejudicar o exercício do poder de decisão.

9

O artigo 155.o dispõe que a Comissão exerce a competência que o Conselho lhe atribua para a execução das regras por ele estabelecidas.

Esta disposição, que é facultativa, permite ao Conselho determinar as eventuais modalidades a que ficará subordinado o exercício por parte da Comissão da competência que lhe tenha sido atribuída.

O processo dito «do comité de gestão» faz parte das modalidades às quais o Conselho pode, legitimamente, subordinar a delegação de competência à Comissão.

Com efeito, resulta da análise do mecanismo instituído pelos artigos 25.o e 26.o do Regulamento n.o 19 que a missão do comité de gestão é a de dar pareceres sobre o projecto das medidas delineadas pela Comissão, que pode adoptar medidas imediatamente aplicáveis seja qual for o parecer do comité de gestão.

Caso o comité dê um parecer desfavorável, a única obrigação que incumbe à Comissão é a de comunicar ao Conselho as medidas tomadas.

O comité de gestão tem por função assegurar uma consulta permanente a fim de orientar a Comissão no exercício dos poderes que lhe são atribuídos pelo Conselho e permitir a este substituir-se à Comissão.

O comité de gestão não tem, pois, competência para tomar uma decisão em substituição da Comissão ou do Conselho.

Portanto, sem pôr em causa a estrutura comunitária e o equilíbrio institucional, o mecanismo do comité de gestão permite ao Conselho atribuir à Comissão poderes de execução de considerável alcance sob reserva da eventual avocação da decisão.

10

A legitimidade do processo dito «do comité de gestão», nos termos dos artigos 25 o e 26.o do Regulamento n.o 19, não pode, pois, ser contestada face à estrutura institucional da Comunidade.

11

A recorrida na causa principal criticou ainda o processo do «comité de gestão» pelo facto de, através da instituição e atribuição de um «direito de cassação» reservado ao Conselho em relação às medidas tomadas pela Comissão, esse mecanismo ter privado o Tribunal de Justiça de alguma das suas atribuições.

12

Esta objecção repousa numa qualificação errada do direito de avocação reservado ao Conselho.

O processo estabelecido no artigo 26.o do Regulamento n.o 19 tem por efeito permitir ao Conselho substituir-se à Comissão em caso de parecer negativo do comité de gestão.

O sistema está, pois, organizado de tal forma que as decisões de aplicação adoptadas ao abrigo de um regulamento de base são sempre tomadas quer pela Comissão quer, excepcionalmente, pelo Conselho.

Esses actos, seja qual for o seu autor, são sempre de natureza a dar lugar, em idênticas condições, seja ao recurso de anulação do artigo 173 o, seja ao pedido prejudicial do artigo 177.o do Tratado.

Conclui-se, portanto, que o exercício por parte do Conselho do seu direito de avocação em nada limita a competência do Tribunal de Justiça.

II — Quanto à questão relativa à competência da Comissão

13

Pede-se ao Tribunal que declare se o Regulamento n.o 102/64 da Comissão não configura qualquer base válida de atribuição de competência, na medida em que determina, no seu artigo 1.o, a obrigação de exportar que implica o certificado de exportação, no seu artigo 7.o, n.o 1, a necessidade de constituir uma caução para obter esse certificado e, no seu artigo 7.o, n.o 2, a perda da caução caso não seja cumprida a obrigação de exportar, ou se, pelo contrário, a competência da Comissão resulta, seja do Tratado CEE em geral, seja da conjugação dos n.os 2 e 3 do artigo 16.o, ou dos artigos 19 o e 20.o do Regulamento n.o 19 do Conselho.

14

Resulta dos fundamentos da decisão da primeira instância, bem como das observações da recorrida na causa principal, que essa questão diz respeito a uma dúvida relativa à competência da Comissão para alargar o regime de caução tanto à exportação de cereais como à importação e exportação de produtos transformados à base de cereais.

Tendo essa dúvida origem na redacção do artigo 16.o do Regulamento n.o 19, convém analisar se essa disposição constitui base suficiente de atribuição de competência para as medidas de aplicação tomadas no âmbito do Regulamento n.o 102/64 quanto às exportações e, de um modo geral, quanto aos produtos transformados.

15

Nos termos do n.o 1 do artigo 16.o do Regulamento n.o 19, qualquer importação ou exportação dos produtos visados no artigo 1.o está sujeita à apresentação de um certificado de importação ou de exportação.

A esta disposição, de ordem geral, o n.o 2 do mesmo artigo acrescenta diversas especificações no que se refere ao prazo de validade do certificado de importação para os cereais acrescentando que a «emissão do certificado fica subordinada à constituição de uma caução…».

Por fim, o n.o 3 estabelece que «as modalidades de aplicação do presente artigo… serão adoptadas segundo o processo previsto no artigo 26.o», especificando que essa disposição se aplica «designadamente» à determinação do período de validade do certificado de importação para os produtos transformados à base de cereais.

A redacção deste artigo suscitou a questão de saber se, sendo mencionado no n.o 2 do artigo 16.o o regime de caução apenas em relação aos certificados de importação dos cereais propriamente ditos, a Comissão pôde legitimamente alargar esse regime, por efeitos do Regulamento de execução n.o 102/64, às exportações e aos produtos transformados.

16

Estas várias disposições devem ser interpretadas à luz do espírito e das finalidades quer do artigo 16.o quer do Regulamento n.o 19 no seu conjunto.

O n.o 1 do artigo 16.o traduz a intenção de estabelecer um regime destinado a regular indistintamente as importações e as exportações de todos os produtos submetidos a uma organização de mercado em virtude do Regulamento n.o 19.

No mesmo espírito, o n.o 3 remete para o processo previsto no artigo 26.o para a determinação de todas as modalidades de aplicação a adoptar no âmbito do artigo 16.o

17

Colocado entre estas duas disposições de alcance geral, o n.o 2 constitui uma medida de aplicação especial destinada a implementar uma parte das disposições previstas no n.o 1.

Uma interpretação que restringisse as garantias de eficácia estabelecidas pelo regulamento apenas ao certificado de importação e apenas a uma parte dos produtos que são objecto da organização de mercado teria por efeito afectar o funcionamento harmonioso do sistema.

18

É, pois, necessário interpretar o artigo 16.o como tendo incluído, na remissão para as medidas de aplicação referidas no n.o 3, todas as disposições destinadas a completar as medidas parciais estabelecidas no n.o 2, segundo o modelo dessa mesma disposição.

A Comissão estava, pois, habilitada a incluir no Regulamento n.o 102/64, no que se refere aos certificados de exportação, as disposições relativas à obrigação de exportar e à caução que são objecto dos artigos 1.o e 7o, bem como as que dizem respeito aos produtos transformados, categoria em que se inserem as mercadorias cuja não exportação está na origem do litígio.

19

Não parece ser necessário analisar em que medida os artigos 19 o e 20.o do Regulamento n.o 19 teriam podido eventualmente constituir uma base jurídica para as disposições do Regulamento n.o 102/64.

III — Quanto à questão relativa aos princípios da liberdade económica e da proporcionalidade

20

Pede-se ao Tribunal que decida se as disposições do Regulamento n.o 102/64 da Comissão relativas à obrigação de exportar inerente a qualquer certificado de exportação (artigo 1.o), bem como a constituição e a perda da caução prestada para a obtenção dos certificados de exportação (artigo 7.o) violam um princípio que obriga a administração a só implementar as medidas que sejam proporcionais ao fim a atingir, ou que lhe proíbe que recorra a medidas excessivas e se é assim, nomeadamente, no caso visado no n.o 1 do artigo 7.o, de a caução ser constituída para a obtenção de certificados de exportação para os quais o montante da restituição não é fixado antecipadamente.

21

Conclui-se dos fundamentos da decisão da primeira instância que o Verwaltungsgericht considerou inválido o compromisso conexo com a emissão dos certificados de importação ou de exportação, nos termos do artigo 1.o do Regulamento n.o 102/64, bem como a caução prevista no primeiro parágrafo do artigo 7o do mesmo regulamento, a fim de garantir o cumprimento desse compromisso, com fundamento num pretenso abuso de poder contrário aos princípios da liberdade económica e da proporcionalidade.

Segundo o Verwaltungsgericht, esses princípios destinados a garantir o respeito dos direitos fundamentais fariam parte integrante tanto do direito internacional como do ordenamento jurídico supranacional, pelo que a norma comunitária contrária a esses princípios deveria ser considerada nula.

22

O respeito dos direitos fundamentais faz parte integrante dos princípios gerais de direito cuja observância é assegurada pelo Tribunal de Justiça.

Convém, pois, analisar, respondendo à questão submetida e à luz dos princípios invocados, se o regime da caução terá afectado direitos de natureza fundamental, cujo respeito deve ser assegurado no ordenamento jurídico comunitário.

23

A finalidade do regime de caução é exposta no sexto considerando do preâmbulo do Regulamento n.o 102/64, nos termos do qual «convém evitar emitir certificados para importações e exportações que não venham seguidamente a efectuar-se», dado que «esses certificados dariam uma ideia errada da situação do mercado» e que, para essa finalidade, a emissão dos certificados fica subordinada à constituição de uma caução que será perdida se não for satisfeita a obrigação de importar ou exportar.

Resulta tanto dessas considerações como do sistema geral dos Regulamentos n. os 19 e 102/64 que o regime de caução se destina a garantir a realidade das importações e das exportações para as quais são pedidos os certificados, com a finalidade de assegurar tanto à Comunidade como aos Estados-membros um conhecimento exacto das transacções previstas.

24

Esse conhecimento, conjuntamente com os outros dados disponíveis sobre a situação do mercado, é indispensável para permitir às autoridades competentes uma utilização criteriosa dos instrumentos de intervenção, usuais ou excepcionais, postos à sua disposição para garantir o funcionamento do regime de preços instituído pelo regulamento, como sejam as acções de compra, de armazenamento e desarmazenamento, a fixação de prémios de desnaturação, a fixação das restituições à exportação, a aplicação de medidas de protecção e a escolha das medidas destinadas a evitar desvios de tráfego.

Essa necessidade é tanto mais imperiosa quanto a implementação da Política Agrícola Comum acarreta pesadas responsabilidades financeiras para a Comunidade e os Estados-membros.

25

Importa, pois, que as autoridades competentes disponham, não apenas de dados estatísticos sobre a situação do mercado, mas ainda de previsões exactas sobre as importações e exportações futuras.

Face à obrigação, imposta aos Estados-membros pelo n.o 1 do artigo 16.o do Regulamento n.o 19, de emitir a qualquer interessado certificados de importação ou de exportação, as previsões seriam destituídas de qualquer significado se não implicassem, para os beneficiários, o compromisso de agir em conformidade.

Por sua vez, esse compromisso seria ineficaz se o seu cumprimento não fosse assegurado através de meios adequados.

26

Não se pode criticar que para esse efeito o legislador comunitário tenha escolhido o meio da caução, tendo-se em conta o facto de que esse mecanismo está adaptado à natureza voluntária dos pedidos de certificados e de que possui, sobre os outros sistemas possíveis, a dupla vantagem da simplicidade e da eficácia.

27

Um regime de simples declaração das exportações efectuadas e dos certificados não utilizados, tal como é preconizado pela recorrida na causa principal, seria, em virtude do seu carácter retrospectivo e na falta de qualquer garantia de aplicação, incapaz de proporcionar às autoridades competentes dados exactos sobre a evolução dos movimentos de mercadorias.

Do mesmo modo, um sistema de multas aplicadas a posteriori acarretaria consideráveis complicações administrativas e jurisdicionais, quer no momento da decisão quer aquando da execução.

28

Conclui-se, portanto, que a exigência de certificados de importação e de exportação, que comportam para os beneficiários o compromisso de efectuar as operações previstas mediante a garantia de uma caução, constitui um meio necessário e apropriado para permitir às autoridades competentes determinar da forma mais eficaz as suas intervenções no mercado dos cereais.

29

O princípio do regime de caução não pode, pois, ser contestado.

30

Convém, no entanto, analisar se certas modalidades do regime de caução não poderão ser contestadas em face dos princípios invocados na questão, já que, além disso, a recorrida na causa principal alegou que o encargo que constitui a caução seria excessivo para o comércio, a ponto de violar os direitos fundamentais.

31

Para avaliar o encargo real que constitui a caução para o comércio, convém ter em consideração, não tanto o montante da caução que é reembolsada — ou seja, 0,5 unidades de conta por tonelada —, como os custos e encargos que acarreta a sua constituição.

Para a avaliação desse encargo não se pode ter em conta a perda da própria caução, dado que os comerciantes estão adequadamente protegidos pelas disposições do regulamento relativas às circunstâncias reconhecidas como casos de força maior.

As despesas provocadas pela constituição da caução não constituem um montante não proporcional ao valor das mercadorias em questão e aos outros custos comerciais.

32

Conclui-se, pois, que os encargos resultantes do regime de caução não são excessivos e são a consequência normal de um regime de organização de mercado concebido de acordo com as exigências do interesse geral, definido no artigo 39o do Tratado, que visa assegurar um nível de vida equitativo à população agrícola, assegurando ao mesmo tempo preços razoáveis nos fornecimentos aos consumidores.

33

A recorrida na causa principal afirma ainda que a perda da caução, consecutiva ao não cumprimento do compromisso de importar ou de exportar, constituiria na realidade uma multa ou uma pena, para cuja instituição o Tratado não teria atribuído competência ao Conselho ou à Comissão.

34

Esse argumento repousa numa análise errada do regime de caução, que não pode ser assimilado a uma sanção penal, dado que constitui apenas a garantia do cumprimento de um compromisso voluntariamente assumido.

35

Finalmente, o argumento da recorrida na causa principal baseado no facto de que os serviços da Comissão não estariam tecnicamente em posição de explorar os dados fornecidos pelo sistema criticado, que seria, portanto, destituído de qualquer utilização prática, é irrelevante, já que não pode pôr em causa o próprio princípio do regime de caução.

36

Resulta do conjunto destas considerações que o regime dos certificados que acarretam, para quem os solicita, o compromisso de importar ou de exportar garantido por uma caução, não ofende qualquer direito fundamental.

O mecanismo das cauções constitui um meio apropriado, na acepção do n.o 3 do artigo 40.o do Tratado, da organização comum dos mercados agrícolas, de forma alguma excessivo e, além disso, conforme às exigências do artigo 43. o

IV — Quanto à questão relativa ao conceito de força maior

37

Pede-se ao Tribunal que declare se a disposição do Regulamento n.o 102/64 relativa à perda da caução (artigo 7.o, n.o 2) é inválida em virtude do facto de, sem que o legislador se preocupe em determinar se o não cumprimento da obrigação de exportar é culposo, o único caso em que a caução não é declarada perdida, no termos do artigo 8.o, é aquele em que a exportação não possa ser efectuada dentro do prazo de validade do certificado na sequência de circunstâncias que devam ser consideradas como de força maior.

38

O conceito de força maior consagrado nos regulamentos agrícolas tem em conta a natureza particular das relações de direito público entre os operadores económicos e a administração nacional, bem como as finalidades dessa regulamentação.

Resulta tanto dessas finalidades como das normas positivas dos regulamentos em causa que o conceito de força maior não se limita à impossibilidade absoluta, mas aplica-se também a circunstâncias anormais, estranhas ao importador ou ao exportador, e cujas consequências só possam ser evitadas à custa de sacrifícios excessivos, apesar de toda a diligência empregue.

Esse conceito implica uma suficiente flexibilidade no que respeita, não apenas à natureza da ocorrência invocada, mas ainda às diligências que o exportador poderia ter efectuado para lhe fazer face e à extensão dos sacrifícios que teria, para esse efeito, que aceitar.

39

O sistema estabelecido pelo Regulamento n.o 102/64 tende a desvincular os operadores económicos do seu compromisso apenas nos casos em que a operação de importação ou de exportação não pôde ser realizada durante o período de validade do certificado na sequência dos acontecimentos visados por esse texto.

Para além desses casos, de que não podem assumir a responsabilidade, os importadores e exportadores são obrigados a conformar-se às disposições dos regulamentos agrícolas, sem que lhes possam opor considerações resultantes do seu próprio interesse.

40

Conclui-se, portanto, que ao limitar aos casos de força maior o cancelamento do compromisso de exportar e a liberação da caução, o legislador comunitário adoptou uma disposição que, sem impor um encargo indevido aos importadores ou aos exportadores, é adequada para assegurar o funcionamento normal da organização comum de mercado dos cereais, no interesse geral, tal como este é definido no artigo 39.o do Tratado.

Não se pode, portanto, tirar qualquer argumento contra a validade do regime de caução das disposições que limitam a liberação da caução às circunstâncias reconhecidas como casos de força maior.

Quanto às despesas

41

As despesas efectuadas pelo Conselho e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o Hessischer Verwaltungsgerichtshof, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

vistos os autos,

ouvido o relatório do juiz-relator,

ouvidas as alegações da recorrida na causa principal, do Conselho e da Comissão das Comunidades Europeias,

ouvidas as conclusões do advogado-geral,

visto o Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia, designadamente os seus artigos 2.o, 39.o, 40.o, 43o, 149.o, 155.o, 173.o, 177.o e 189o,

visto o Regulamento n.o 19 do Conselho, de 4 de Abril de 1962, e o Regulamento n.o 102/64/CEE da Comissão, de 28 de Julho de 1964,

visto o Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça da Comunidade Económica Europeia, designadamente o seu artigo 20.o,

visto o Regulamento Processual do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre a questão submetida pelo Hessischer Verwaltungsgerichtshof Kassel, por despacho de 21 de Abril de 1970, declara:

 

A análise da questão submetida não revelou qualquer elemento susceptível de afectar a validade:

 

1)

do Regulamento n.o 102/64/CEE da Comissão, de 28 de Julho de 1964, relativo aos certificados de importação e de exportação para os cereais, os produtos transformados à base de cereais, o arroz, as trincas e os produtos transformados à base de arroz, adoptado ao abrigo do artigo 16.o, n.o 3, do Regulamento n.o 19, segundo o processo do «comité de gestão» instituído pelo artigo 26.o desse mesmo regulamento;

 

2)

dos artigos 1.o e 7.o do Regulamento n.o 102/64/CEE da Comissão, na medida em que respeitam aos certificados de exportação e às cauções constituídas para a obtenção desses certificados.

 

Lecourt

Donner

Trabucchi

Monaco

Mertens de Wilmars

Pescatore

Kutscher

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 17 de Dezembro de 1970.

O secretário

A. Van Houtte

O presidente

R. Lecourt


( *1 ) Língua do processo: alemào.