CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

KARL ROEMER

apresentadas em 23 de Março de 1966 ( *1 )

Sumário

 

Introdução (os factos; questões de interpretação)

 

Resposta a dar às questões

 

I — Questões prévias.

 

1. As questões colocadas exigem uma aplicação do direito ao caso sub judice?

 

2. Será necessário que o Tribunal de Justiça altere o modo como as questões foram colocadas?

 

II — As questões colocadas ao Tribunal .

 

1. Primeira questão

 

2. Segunda questão.

 

III — Recapitulação

Senhor Presidente,

senhores Juízes,

Os factos referidos no processo pendente perante a cour d'appel de Paris, que deu lugar a um pedido de decisão prejudicial sobre questões relativas ao direito comunitário em matéria de acordos, podem resumir-se da seguinte forma:

Em 7 de Abril de 1961, foi celebrado, sob a designação de «acordo de exportação», entre a sociedade alemã de responsabilidade limitada Maschinenbau Ulm, produtora de materiais para obras públicas, e a empresa francesa La Technique Minière um contrato que tinha por objecto a venda daquele tipo de materiais em França. Posteriormente (em 13 de Dezembro de 1961), este contrato foi modificado e completado. Nos termos daquele contrato, a Société Techique Minière comprometeu-se, por um período de dois anos a partir de 1 de Janeiro de 1962, a comprar a um preço determinado, um certo número (37) de niveladoras de determinado modelo, a salvaguardar de forma geral, os interesses do vendedor, a organizar um serviço de reparações, a manter um stock suficiente de peças soltas, a satisfazer integralmente a procura no território abrangido pelo contrato e, finalmente, a abster-se de vender produtos concorrentes sem o consentimento do vendedor. Em contrapartida, a sociedade francesa obtinha o exclusivo da venda das máquinas em questão no território francês e nas possessões ultramarinas. O acordo considerava-se tacitamente renovado no termo do prazo previsto, salvaguardandose a possibilidade de cada uma das partes o denunciar mediante um aviso prévio de seis meses. Após a execução parcial do contrato surgiram, contudo, dificuldades que, segundo a Société Technique Minière, se deviam ao facto de as máquinas referidas no acordo não encontrarem compradores no mercado francês. Uma vez que as letras de câmbio entregues pelo concessionário não foram pagas, a Maschinenbau Ulm viu-se obrigada a intentar uma acção no tribunal de commerce de la Seine, destinada a obter a rescisão do contrato por incumprimento culposo por parte da Société Technique Minière e a sua condenação no pagamento de uma indemnização. O processo (ao longo da qual foi ordenada uma peritagem sobre a questão de saber se as máquinas eram adequadas às necessidades do mercado francês, peritagem cujas conclusões favoreceram a autora), terminou numa decisão que acolheu as pretensões da autora, a sociedade Maschinenbau Ulm; porém, na sequência, a Société Technique Minière interpôs recurso para o órgão jurisdicional superior (a cour d'appel de Paris).

Como já tinha feito em primeira instância, para justificar a sua atitude, a recorrente invocou, entre outras, disposições francesas relativas à concorrência (despacho de 30 de Junho de 1945), bem como o direito comunitário em matéria de acordos, segundo o qual o contrato celebrado com a sociedade Maschinenbau Ulm seria nulo por violação do artigo 85 o, n.o 1, do Tratado CEE e por falta de notificação à Comissão da Comunidade Económica Europeia.

O órgão jurisdicional nacional tinha, pois, obrigação de interpretar e aplicar o direito comunitário em matéria de concorrência, mas, não tendo julgado oportuno fazê-lo, decidiu, por acórdão de 7 de Julho de 1965, acolhendo uma das conclusões subsidiárias da Société Technique Minière, suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, as seguintes questões de interpretação:

“1.

Que interpretação deve ser dada ao artigo 85.o, n.o 1, do Tratado de Roma e aos regulamentos comunitários adoptados em sua aplicação, para efeitos de apreciação de contratos que, não tendo sido notificados e atribuindo um “direito exclusivo de venda”:

a)

não proíbem o concessionário de reexportar para os restantes mercados da Comunidade Económica Europeia as mercadorias que adquiriu ao concedente;

b)

não obrigam o concedente a proibir os seus concessionários de outros países do mercado comum de venderem os seus produtos na zona reservada ao concessionário com quem foi celebrado o contrato;

c)

não prejudicam o direito de os comerciantes e utilizadores do país do concessionário se abastecerem, através de importações paralelas, junto dos concessionários ou fornecedores dos restantes países do mercado comum;

d)

sujeitam à autorização prévia do concedente o fornecimento, pelo concessionário, de máquinas susceptíveis de competir com o material que constitui objecto de concessão?

2.

A nulidade prevista no artigo 85.o, n.o 2, do Tratado atinge na totalidade o contrato que inclui uma cláusula proibida pelo n.o 1 do referido artigo, ou pode eventualmente limitar-se à cláusula proibida?»

Em conformidade com o artigo 20.o do Estatuto do Tribunal esta decisão foi notificada às partes no processo principal, aos Estados-membros, ao Conselho e à Comissão. Apenas as partes no processo pendente perante o órgão jurisdicional francês e a Comissão da CEE apresentaram observações escritas e orais. As respectivas posições, expostas cuidadosamente e de forma pormenorizada, revelam-se muito divergentes e mostram claramente que, tanto sob o aspecto jurídico como sob o económico, estamos perante uma questão importante cuja solução deve ser procurada sob diversos ângulos.

Tentaremos agora encontrar resposta às questões colocadas; no entanto, devemos analisar duas questões prévias que foram levantadas pela Société Technique Minière. Só depois desta análise, podemos abordar a questão da interpretação propriamente dita (na ordem adoptada pelo órgão jurisdicional a quo), para determinar qual das diversas teses que nos foram apresentadas se pode considerar certa.

Resposta a dar às questões

I — Questões prévias

1. As questões colocadas exigem uma aplicação do direito ao caso sub judice?

A Société Technique Minière exprimiu por escrito e oralmente a sua preocupação pelo modo como a decisão da cour d'appel de Paris formulou as questões de interpretação, pois poderia forçar o Tribunal de Justiça a ir além da interpretação e a aplicar o direito ao caso em análise.

Efectivamente tal não seria permitido (o Tribunal sublinhou-o, designadamente no processo 20/64); por outras palavras, no quadro do artigo 177.o, primeiro parágrafo, alíneas a) e b), segunda parte, não podemos verificar que uma situação de facto concreta (no caso, um acordo entre empresas) não preenche as condições enunciadas no artigo 85.o, n.o 1, e que, consequentemente produz determinados efeitos jurídicos. A única coisa que nos é permitida é, permanecendo no plano das generalidades, precisar o alcance da letra e do espírito desta norma, fixando regras gerais complementares mesmo que, neste momento, o nosso papel esteja limitado a um ou vários aspectos de um leque mais amplo de questões, devido à forma específica como o problema é colocado.

Mas, em boa verdade, no nosso caso, a cour d'appel de Paris não nos pede mais, se bem compreendemos as questões que nos colocou. É o que resulta da forma abstracta como se encontram enunciadas. A sua formulação é semelhante à de certos regulamentos em matéria de acordos (Regulamento n.o 153/62 da Comissão, Regulamento n.o 19/65 do Conselho) em relação aos quais não se pode negar o seu carácter geral e regulamentar. Uma vez dada a resposta, pode acontecer que o juiz nacional considere ainda necessário proceder a outras análises ou apreciações de factos: isso demonstra que não nos cabe a nós, mas sim ao juiz nacional, tratar de aplicar o direito. Na verdade, não haveria nada a criticar mesmo que o Tribunal nacional tivesse colocado as questões de forma mais concreta, solicitando-nos, por exemplo, a resolução da questão que lhe tinha sido submetida. Mesmo neste caso o Tribunal de Justiça não deve rejeitar o pedido de decisão prejudicial, podendo (e isso já foi feito várias vezes) extrair das questões concretamente colocadas as questões abstractas às quais tem competência para responder.

O modo como as questões prejudiciais foram formuladas não suscita qualquer crítica.

2. Será necessário que o Tribunal de Justiça altere o modo como as questões foram colocadas?

Quando expusemos os factos, referimos que, por mais de urna vez, a cour d'appel de Paris tinha tomado a iniciativa de caracterizar o tipo de convenção em relação ao qual deve ser dada uma interpretação do direito comunitário em matéria de acordos. Aquele órgão jurisdicional observou que se tratava principalmente de apreciar acordos que não imponham ao concessionário uma proibição de exportação e que não excluam as importações paralelas na zona contratual.

A este respeito, a Société Technique Minière sublinha que, na realidade, se se interpretar o acordo que celebrou com a Sociedade Maschinenbau Ulm segundo os usos comerciais, dele resulta que as partes têm implicitamente a obrigação de assegurar a protecção tentorial, isto é, garantir um monopólio de venda («Absatzmonopol») ao concessionário exclusivo («Alleinvertreter»). Assim, terá que se admitir que o concessionário tem a obrigação de não exportar para fora da zona que lhe éconcedida, enquanto que o concedente deve impedir que os seus concessionários noutros territórios importem na zona cedida à Société Technique Minière. Estes são os factos que o Tribunal de Justiça deve ter em conta ao interpretar o n.o 1 do artigo 85.o e ao esclarecer o disposto nos regulamentos da Comunidade em matéria de direito dos acordos.

Também sob este aspecto não nos parece que a opinião da Société Technique Minière seja correcta. A interpretação do acordo celebrado entre as partes no processo principal é da competência exdusiva do órgão jurisdicional nacional. Se esta interpretação leva a considerar que apenas se impõem algumas conclusões bem precisas, a tal nos devemos ater e não nos cate alterar as questões tal como foram colocadas com base nessas conclusões. Igualmente, na tentativa de interpretação que se segue, apenas teremos em conta as características de um acordo de exclusividade de venda, referidas pela cour d'appel de Paris.

Não vislumbrando a existência de outras questões a resolver previamente, podemos ocupar-nos agora da resposta a dar às questões principais.

II — As questões colocadas ao Tribunal

1. Primeira questão

É inútil repetir os termos através dos quais a primeira questão foi formulada: foram retomados quando descrevemos os factos e estão presentes no vosso espírito.

Para lhes dar uma resposta, parece-nas sensato começarmos por nos debruçar sobre a opinião extrema da Société Technique Minière. Com efeito, parece-nos que o carácter extremamente formalista das suas deduções permite uma análise bastante simples e rápida.

Para justificar o seu ponto de vista, a Société Technique Minière faz referência ao Regulamento n.o 153/62 da Comissão, que institui um processo simplificado de notificação para certos acordos, bem como ao conteúdo do formulário B 1, fixado para este fim Em sua opinião, estes textos destinam-se precisamente aos acordos do tipo dos que se encontram caracterizados nas questões apresentadas pela cour d'appel de Paris e a sua notificação é obrigatória por imposição da Comissão. E o seu raciocínio prossegue da seguinte forma: os acordos em relação aos quais existe obrigação de notificação estão contemplados no artigo 85.o, n.o 1, do Tratado. Longe de se poderem entregar a uma apreciação casuística, as instâncias nacionais deveriam, sempre que não tenha havido notificação, declarar a nulidade dos acordos em causa. A Comissão estaria vinculada a seguir esta interpretação autêntica por ela própria dada do direito comunitário em matéria de acordos, enquanto não fosse posta em causa a legalidade do seu Regulamento n.o 153/62.

Contudo, parece-nos que a opinião da Société Technique Minière não tem justificação, e isto não só porque a própria Comissão, ou seja, o «legislador», não está de acordo, mas também por razões objectivas imperiosas.

Na realidade, devemos basear-nos no Regulamento n.o 17/62 do Conselho, isto é, o primeiro regulamento de aplicação do Tratado CEE em matéria de direito dos acordos: o n.o 3 do artigo 9.o determina expressamente que as autoridades dos Estados-membros têm competência para aplicar o disposto no artigo 85o, n.o 1, do Tratado, enquanto a Comissão não der início a qualquer processo nos termos dos artigos 2.o, 3 o ou 6.o do próprio regulamento. Reconheceu-se, portanto, às autoridades nacionais e consequentemente aos órgãos jurisdicionais nacionais o direito de apreciar e de verificar a aplicabilidade do artigo 85.o, n.o 1, e parece normal reconhecer às instâncias nacionais este poder de apreciação, pois, em geral, como observou a Sociedade Maschinenbau Ulm, são elas que podem proceder a uma averiguação, por estarem mais próximas dos factos do que a Comissão e os conhecerem tão bem como esta. Em contrapartida, a aplicação do n.o 3 do artigo 85o está reservada à Comissão. Foi com essa finalidade que, nos artigos 4.o e 5.o do Regulamento n.o 17, foi previsto um processo de notificação, e apenas neste domínio é que o seu artigo 24.o atribui à Comissão competência para fixar regras de aplicação relativas à forma, conteúdo e modalidades da notificação. Consequentemente, segundo o seu sentido, o Regulamento n.o 153 não estabelece uma obrigação absoluta de proceder à notificação; pelo contrário, assenta na ideia tácita de que só existe obrigação de proceder à notificação quando o artigo 85 o, n.o 1, é em princípio aplicável e, consequentemente, quando a excepção prevista no n.o 3 do artigo 85.o pode entrar em linha de conta. Se no presente processo, e em conformidade com esta ideia (expressa também sob a forma de uma reserva contida no formulário B 1), a Comissão não excluiu a faculdade de os órgãos jurisdicionais nacionais apreciarem os casos de aplicação do direito dos acordos à luz dos critérios do artigo 85.o, n.o 1, não é possível acusá-la de se ter afastado do Regulamento n.o 153 e de ter introduzido novos critérios de apreciação dos contratos de exclusividade de venda. Na realidade, a Comissão limitou-se a interpretar o Regulamento n.o 153 de uma forma que, objectivamente, está em harmonia com o artigo 85 o do Tratado e com o Regulamento n.o 17/62 do Conselho.

Consequentemente, não parece correcto encarregar a cour d'appel de Paris da apreciação do contrato de exclusividade de venda celebrado entre as Sociedades La Technique Minière e Maschinenbau Ulm, apenas do ponto de vista formal da falta de notificação. A missão que nos cabe consiste em fornecer uma interpretação dos diversos elementos do artigo 85.o, n.o 1, em função da qual o órgão jurisdicional nacional deverá determinar se, no caso concreto, o acordo está ou não abrangido pela referida disposição.

Nesta interpretação, já o sublinhamos no processo 32/65, três aspectos deverão ser especialmente tomados em conta:

O que deve entender-se por acordos entre empresas?

Em que circunstâncias se pode afirmar que tais acordos têm por objectivo ou efeito prejudicar a concorrência?

O que significa a expressão «susceptíveis de afectar o comércio entre os Estados-membros» ?

No processo «Governo italiano contra Conselho de Ministros da CEE», já expusemos pormenorizadamente os princípios segundo os quais estes aspectos devem ser entendidos em matéria de contratos de exclusividade de venda.

Para evitar repetir a nossa argumentação, que nos seja permitido referirmo-nos àquelas deduções e limitarmo-nos a recordar as conclusões a que chegámos:

Os contratos de exclusividade de venda celebrados entre um produtor e comerciantes em nome próprio, isto é, negociantes que trabalham por conta e risco próprios, são «acordos entre empresas» na acepção do n.o 1 do artigo 85o (neste momento ainda não é necessário determinar se a palavra «acordo» designa todo o contrato, ou apenas algumas das suas cláusulas, importantes do ponto de vista da concorrência).

Dado que o Tratado CEE parte de uma noção ampla da concorrência e não distingue entre acordos horizontais e acordos verticais, os prejuízos causados à concorrência devidos à última categoria devem igualmente ser tomados em consideração para efeitos de aplicação do artigo 85.o Tais prejuízos podem verificar-se no caso de acordos de exclusividade do tipo dos que nos são descritos, devido a compromissos exclusivos de fornecimento e de compra, e isso mesmo no caso de não serem impostas aos restantes concessionários proibições de exportação e mesmo que o beneficiário do exclusivo tenha o direito de vender fora do território concedido.

Só deve considerar-se que o comércio entre os Estados-membros foi afectado quando tiver sido influenciado desfavoravelmente; a este respeito, na verdade, não basta provar que existe um crescimento quantitativo nas trocas dos produtos para poder negar que tal se verifica. Dado que os contratos de distribuição exclusiva se destinam a regulamentar o comércio entre Estados-membros, concentrando-o num circuito de venda, tais contratos podem (relativamente à situação que é preciso considerar normal numa fase determinada da integração), igualmente apresen-tar-se como afectando o comércio.

Mas, enquanto que a Société Technique Minière, nas suas observações subsidiárias (já dissemos o que pensamos do essencial da sua tese) declara ser desnecessário ir mais longe nas constatações, o que significa, que existe um monopólio indesejável quando as considerações até agora expostas fazem presumir a existência de um prejuízo para a concorrência, e isto pelo facto de — tal como em matéria de responsabilidade aquiliana — o artigo 85o, n.o 1, penalizar mesmo a mais pequena infracção à concorrência, por seu lado, a Comissão e a sociedade Maschinenbau Ulm tentam, por diferentes vias, subtrair-se a considerações tão rígidas e dogmáticas. A Comissão, por exemplo, considera que não basta um prejuízo teórico às regras da concorrência: é necessário que se verifique um prejuízo perceptível. A sociedade Maschinenbau Ulm vai mesmo a ponto de excluir a aplicação do n.o 1 do artigo 85.o, quando, não obstante a existência de acordo, a conconência se mantém funcional.

Estes argumentos certamente merecem ser acolhidos pois seria exagerado aplicar rigorosamente a proibição prevista no n.o 1 do artigo 85.o ao menor prejuízo para a concorrência, quer este resultasse de um acordo celebrado com esse objectivo ou de um acordo que simplesmente produziu esse efeito, e conceder excepções apenas no âmbito do n.o 3. Talvez não seja inútil reflectir no facto seguinte: um dos sistemas jurídicos europeus mais rigoroso em matéria de acordos — a lei alemã relativa às restrições à concorrência — determina no § 18 que nada há a criticar em princípio os contratos de exclusividade de venda, e só autoriza o «Kartellbehorde» (autoridade de controlo dos acordos) a intervir quando, por exemplo, existe um prejuízo grave para a concorrência, no mercado de um ou mais produtos ou actividades comerciais.

Também não é possível alegar contra a Comissão e a sociedade Maschinenbau Ulm, como a Société Technique Minière o tenta fazer, que a introdução de semelhante rule of reason (chamemos-lhe assim) comporta o risco de divergências na aplicação do direito nos vários Estados-membros, e até mesmo num único Estado, pois a sua aplicação é frequentemente confiada ao juiz nacional. Será que o artigo 177.o do Tratado (o presente processo vai justamente demonstrá-lo) nos faculta um meio privilegiado de prevenção destes riscos, através da elaboração progressiva de critérios de interpretação por parte do Tribunal de Justiça da Comunidade Económica Europeia?

É certo que não será fácil definir de forma adequada o princípio que enunciámos e indicar com precisão até onde pode o juiz nacional deixar de considerar as infracções menores à concorrência. Em nossa opinião, seria ir demasiado longe considerar, como o faz a sociedade Maschinenbau Ulm, que o artigo 85.o, n.o 1, deve ser afastado sempre que a concorrência se mantém funcional; é evidente que tais considerações só têm cabimento quando se trata de aplicar o artigo 85.o, n.o 3 [v. alínea b)]. Ao invés, o ponto de vista da Comissão parece demasiado restrito, porque para determinar que a concorrência foi afectada de forma «perceptível» contenta-se com presunções ou com declarações proferidas pelas partes ao longo do processo pendente no órgão jurisdicional interno, sem exigir a este último a apreciação concreta da situação do mercado. A solução correcta deve buscar-se no meio destas duas opiniões, isto é, a aplicação do artigo 85.o, n.o 1, depende da existência de um prejuízo notório para a concorrência, quer pela sua verificação efectiva, quer porque existem factos concretos que indicam que esse prejuízo se vai produzir.

A este propósito é preciso ter em conta o facto de muitas vezes ser efectivamente impossível a empresas de dimensões modestas afirmaram-se num mercado estrangeiro se não concentrarem a oferta numa única entidade, especialmente quando se trata de produtos que carecem de montagem antes de serem vendidos e para os quais se afigura necessário assegurar um serviço de reparações e um stock de peças soltas. Neste caso, uma comparação com a situação que se apresentaria no mercado em que não existisse concessão exclusiva poderia levar a concluir que precisamente a falta do acordo é que provocaria uma redução da concorrência, porque seria paralela a uma redução da oferta. Se, como no nosso caso, o concessionário exclusivo nem sequer conseguiu colocar no mercado os produtos que está encarregado de distribuir, é muito provável que, para estes produtos, a situação não fosse melhor se a oferta fosse confiada a um número 'mais alargado de pessoas.

Seguidamente deve observar-se que, geralmente, o compromisso de exclusividade de aquisição por parte do concessionário (isto é, proibição da venda de produtos concorrentes), previsto neste tipo de contratos, não apresenta perigo para a concorrência, porque raros são os casos em que só é possível assegurar eficazmente o acesso de certos produtos ao mercado através de um único profissional.

Sempre no âmbito de considerações que devem prender a atenção do órgão jurisdicional nacional, ainda haverá que ter em conta o facto de os contratos de exclusividade de venda que nos interessam não impedirem as importações paralelas na zona de concessão e, portanto, pelo menos dentro de certos limites, o concessionário exclusivo estar em concorrência com os comerciantes que oferecem o mesmo produto. Finalmente não se pode perder de vista a concorrência de produtos similares e isso (contrariamente ao que a Comissão defende) não só para os artigos de série mas também para os aparelhos com características altamente especializadas, vendidos sob um determinada marca e que, em certa medida, podem ser preferidos pelos consumidores. Isto significa que um estudo real do mercado pode perfeitamente revelar que, também neste domínio, a concorrência entre mercadorias de vários produtores é intensa, o que faz com que a eliminação da concorrência entre as mercadorias de um único produtor deva considerar-se irrelevante. A este propósito, os dados fornecidos pela sociedade Maschinenbau Ulm sobre o número e a importância dos «ofertantes» no mercado francês e sobre a percentagem que aí representam os resultados que ela própria tentou alcançar podem fornecer alguns esclarecimentos preciosos ao processo que nos ocupa.

Se desse estudo (e não é excessivo, mas perfeitamente normal esperar que os órgãos jurisdicionais nacionais o efectuem, sem o que o artigo 9.o do Regulamento n.o 17 perderia todo o seu significado) resultar que, no seu conjunto, não obstante a existência de convenções que têm por objectivo ou efeito prejudicar a concorrência, as condições em que esta se desenvolve são influenciadas de forma pouco sensível, os contratos de exclusividade que, em princípio, podem ser abrangidos pelo n.o 1 do artigo 85.o não deverão sofrer os efeitos desta disposição.

Para sermos completos, assinalemos que isto também é válido quanto à possibilidade de «afectar o comércio entre Estados-membros». Também aqui não é possível limitarmo-nos a considerar teoricamente a análise das cláusulas de um contrato, como pretende a Société Téchnique Minière, que considera que, regra geral, os contratos de exclusividade afectam o comércio entre Estados-membros. Ao contrário, é preferível afirmar que não tem importância o facto de o comércio ser afectado de maneira pouco sensível. Também a Comissão é desta opinião, embora tenha que se admitir que não retira desse facto todas as consequências necessárias. Na verdade estas consistem em, com base neste segundo ponto de vista, exigir um estudo do mercado, ou seja, comparar a situação do mercado anteriormente à celebração do acordo com a situação subsequente ao acordo. Não é excessivo exigir esta comparação quando têm que se considerar não acordos a celebrar futuramente, mas acordos que já existiam no passado, pois neste caso as experiências vividas no passado podem dar indicações acerca das suas presumíveis repercussões no futuro.

Esta comparação pode, eventualmente, levar a reconhecer que, numa situação e numa fase determinada de integração, são precisamente os contratos de exclusividade que tornam possível o comércio de um determinado produto entre os Estados-membros (por exemplo, quando se trata de empresas de meios e dimensões modestas que pretendam conquistar um mercado estrangeiro, enfrentando uma concorrência importante). Ou ainda o facto de um contrato de exclusividade de venda não proibir as importações paralelas poder forçar a reconhecer que a concentração do comércio entre Estados-membros, que se pretendeu efectuar com o auxílio de um único concessionário, é tão largamente compensada por outras importações que deixou de ser possível afirmar que as relações comerciais internacionais foram seriamente falseadas. E se for essa a situação, seria artificial afirmar que o artigo 85.o, n.o 1, é aplicável e que o equilíbrio só seria restabelecido através da excepção contemplada no artigo 85.o, n.o 3.

Não nos parece que o Tribunal de Justiça possa ir mais longe na interpretação geral do direito que deve dar a propósito da primeira questão que lhe foi colocada, sem se expor à crítica de pretender substituir-se, na aplicação do direito, ao juiz nacional. Mas os elementos que fornecemos deverão ser suficientes para que o órgão jurisdicional nacional a quo aprecie os factos sobre os quais tem que decidir.

2. Segunda questão

A segunda questão, cuja formulação também não vamos aqui repetir, só tem relevância para o juiz nacional se a análise a que deve proceder demonstrar que pelo menos algumas cláusulas do contrato de exclusividade de venda celebrado entre as sociedades Maschinenbau Ulm e a Technique Minière são incompatíveis com o n.o 1 do artigo 85.o

Precisemos de imediato que nesta questão se pergunta apenas se a eventual nulidade está limitada às convenções propriamente ditas, estipuladas em matéria de concorrência, ou se atinge o contrato na sua totalidade. Consequentemente não temos que nos ocupar da limitação da nulidade no tempo (a que a Société Technique Minière se referiu), designadamente da questão de saber a partir de que momento poderá existir nulidade.

Também sobre esta segunda questão as opiniões expressas são divergentes, pelo menos no que respeita à Société Technique Minière, por um lado, e à Sociedade Maschinenbau Ulm e à Comissão, por outro (apesar de o ponto de vista desta última nem sempre ser claro e livre de contradições.)

Em nossa opinião, se tivermos em conta os objectivos do Tratado, a resposta a esta questão não levanta dificuldades especiais. É necessário partir da ideia de que o Tratado apenas proíbe aquilo que possa prejudicar a aplicação dos seus princípios, no caso concreto, os entraves de natureza internacional colocados à concorrência e que revistam uma certa amplitude. Os restantes factores eventualmente ligadas a estes entraves sào irrelevantes para o Tratado, pelo menos do ponto de vista do artigo 85 o Como, em princípio, parece estar estabelecido, também consideramos que só podem ser atingidas pela nulidade prevista no n.o 2 do artigo 85.o as cláusulas de um acordo geradoras de uma restrição à concorrência que devam ser consideradas causas determinantes de um prejuízo para a concorrência. Não nos parece aceitável admitir consequências mais amplas, principalmente porque muitas vezes é apenas por acaso que, simultaneamente com uma restrição da concorrência, as partes estipulam outras cláusulas e as consignam no mesmo contrato. Em especial, seria errado pensar, como faz a Société Technique Minière, que a nulidade total do contrato se justifica pela ideia de penalizar as empresas que violam o princípio da concorrência. Estas considerações também são estranhas ao direito nacional em matéria de acordos e não têm qualquer justificação quando estão em causa acordos celebrados antes da adopção do Regulamento n.o 17. O facto de, em caso de notificação para efeitos da excepção prevista no artigo 85, n.o 3, poder ser necessária a comunicação de todo o conteúdo do acordo, a fim de poder comparar as cláusulas que são de molde a incentivar a concorrência e aquelas que a prejudicam, também não conduz a outro resultado, precisamente porque a análise baseada no n.o 3 do artigo 85.o e a análise das condições de aplicação do n.o 1 do artigo 85.o são de natureza distinta. Finalmente também não nos apercebemos de dificuldades intransponíveis no facto de, por vezes, ser difícil determinar quais as cláusulas importantes do ponto de vista da restrição à concorrência, designadamente quando esta apenas resulta da articulação de várias cláusulas. Com efeito, admitido o princípio de que o juiz nacional tem competência para analisar as condições de aplicação do n.o 1 do artigo 85.o (o que é legal), igualmente se lhe poderia atribuir a responsabilidade de proceder à referida delimitação, tendo designadamente em consideração o artigo 177.o do Tratado CEE, que pode eventualmente fornecer ao caso concreto o auxílio das decisões prejudiciais deste Tribunal.

Consequentemente, retenhamos que em matéria de concorrência o direito do Tratado, em princípio, só fere de nulidade as cláusulas de um acordo que sejam relevantes do ponto de vista do direito da concorrência. Quanto ao resto, em nossa opinião, não é necessário resolver, no plano do direito comunitário, ou seja, uniformemente para todos os Estados-membros, a questão dos efeitos da nulidade parcial de um acordo sobre o conjunto das restantes cláusulas contratuais. Esta é uma questão onde o direito nacional pode reivindicar o seu domínio (deve determinar-se de acordo com as regras do direito internacional privado): no caso concreto, eventualmente o artigo 1172.o do Código Civil francês.

III — Recapitulação

Em resumo, devem ser dadas às questões que vos foram colocadas as seguintes respostas:

1)

Os contratos de exclusividade de venda do tipo dos descritos pela cour d'appel de Paris podem ser abrangidos pelo n.o 1 do artigo 85o do Tratado. Porém, dado que para se poder aplicar o artigo 85 o não basta verificar, do ponto de vista puramente teórico, o preenchimento dos requisitos nele previstos, cabe ao órgão jurisdicional nacional ponderar quais as repercussões reais ou prováveis do acordo sobre o mercado e determinar se, no caso concreto, a concorrência é lesada de forma apreciável e o comércio entre Estados-membros afectado. Se este órgão jurisdicional chegar à conclusão de que é este o caso, e se não teve lugar a notificação no prazo fixado no artigo 5 o do Regulamento n.o 17, os acordos celebrados são nulos.

2)

Neste caso, a nulidade não atinge os acordos na sua integralidade; em princípio, só atinge as cláusulas que têm importância do ponto de vista do direito da concorrência. Quanto ao resto, o acordo deve ser apreciado em conformidade com o direito nacional.


( *1 ) Língua original: alemão.