ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

6 de Abril de 1962 ( *1 )

No processo 13/61,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial dirigido ao Tribunal de Justiça, pela cour d'appel de Haia, Segunda Secção, por acórdão de 20 de Junho de 1961 (101 R/60), no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

Sociedade Kledingverkoopbedrijf de Geus en Uitdenbogerd, com sede em Roterdão,

recorrente,

representada pelo advogado P. H. Hoogenbergh,

e

1)

Sociedade de direito alemão Robert Bosch GmbH, com sede em Estugarda,

e

2)

Sociedade anónima Maatschappij tot voortzetting van de zaken der Firma Willem van Rijn, com sede em Amsterdão,

recorridas,

representadas por J. F. A. Verzijl, advogado,

destinado a obter do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias decisão sobre «a questão de saber se a proibição de exportar imposta pela Robert Bosch GmbH, com sede em Estugarda, aos seus clientes e por estes contratualmente aceite, é nula à luz do n.o 2 do artigo 85.o do Tratado CEE, no que respeita à exportação para os Países Baixos»,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: A. M. Donner, presidente, O. Riese e J. Rueff, presidentes de secção, L. Delvaux e Ch. L. Hammes, juízes,

advogado-geral: M. Lagrange

secretário: Van Houtte

profere o seguinte

Acórdão

(A parte relativa à matéria de facto não é reproduzida)

Fundamentos da decisão

A — Quanto à competência do Tribunal de Justiça

As recorridas Bosch e van Rijn e o Governo francês suscitaram dúvidas sobre a questão de saber se o pedido da cour d'appel de Haia é susceptível de decisão prejudicial, pelo facto de ter sido apresentado recurso do acórdão que o formulou.

Esta dúvida resulta da interpretação do artigo 177.o do Tratado segundo a qual tal pedido só poderia dar lugar a decisão se o acórdão ou a decisão que o formula tivesse adquirido a força de caso julgado.

Esta interpretação do artigo 177.o não é confirmada pela letra do preceito; além disso, não tem em conta que o direito nacional do órgão jurisdicional que pede uma decisão prejudicial e o direito comunitário constituem duas ordens jurídicas distintas e diferentes.

Com efeito, ao mesmo tempo que não impede a Cour de cassation nacional de conhecer do recurso e antes deixa a análise da sua admissibilidade para o direito interno e à apreciação do órgão jurisdicional nacional, o Tratado subordina a competência do Tribunal de Justiça apenas à existência de um pedido nos termos do artigo 177.o, sem que o juiz comunitário tenha de verificar se a decisão do órgão jurisdicional nacional adquiriu força de caso julgado de acordo com as disposições do seu direito nacional.

As recorridas Bosch e van Rijn, bem como o Governo francês, sustentam seguidamente que o pedido da cour d'appel de Haia não é susceptível de uma decisão prejudicial, pelo facto de não se limitar a uma simples questão de interpretação na acepção do artigo 177.o, mas destinar-se, na realidade e como o indica a sua redacção, a fazer decidir pelo Tribunal de Justiça uma questão que visa a aplicação do Tratado a um caso concreto.

Todavia, o Tratado não prevê nem explícita nem implicitamente a forma em que o órgão jurisdicional nacional deve apresentar o seu pedido de decisão prejudicial.

Podendo o próprio sentido da expressão «interpretação do Tratado» do artigo 177.o ser objecto de interpretação, é lícito ao juiz nacional redigir o seu pedido de uma forma directa e simples, que apenas deixa ao Tribunal de Justiça o cuidado de decidir sobre o pedido nos limites da sua competência, isto é, apenas na medida em que compreenda questões de interpretação do Tratado.

A forma directa como foi apresentado o pedido permite destacar com nitidez as questões de interpretação nele incluídas.

O Governo francês alega ainda que, enquanto os regulamentos referidos no artigo 87.o do Tratado não tiverem sido adoptados, o Tribunal de Justiça não pode pronunciar-se sobre a interpretação do artigo 85.o, pelo que, até então, a aplicação deste caberá apenas às autoridades nacionais.

Este argumento não pode ser acolhido.

Mesmo na hipótese de a aplicação dos artigos 85.o e seguintes do Tratado caber às autoridades nacionais, não seria menos verdade que o artigo 177.o, que visa a interpretação do Tratado, continua aplicável, de forma que o órgão jurisdicional nacional está, consoante o caso, habilitado ou obrigado a pedir uma decisão prejudicial.

Este raciocínio justifica-se tanto pela letra como pelo espírito do artigo 177.o; com efeito, por um lado, esta disposição não contém qualquer reserva relativa aos artigos 85.o e seguintes, enquanto que, por outro lado, uma harmonização das jurisprudências tal como a concebe o artigo 177.o se impõe particularmente nos casos em que a aplicação do Tratado está confiada às autoridades nacionais.

Por isso, o Tribunal de Justiça é competente para se pronunciar sobre o presente pedido de decisão prejudicial, nos termos do artigo 177.o do Tratado.

B — Quanto ao mérito

O acórdão da cour d'appel de Haia suscita a questão de saber se o artigo 85.o era aplicável desde a data de entrada em vigor do Tratado.

Em princípio, a resposta é afirmativa.

Conferindo às autoridades nacionais e à Comissão, respectivamente, competência para aplicação do artigo 85.o, os artigos 88.o e 89.o do Tratado pressupõem a aplicabilidade desta disposição desde a entrada em vigor do Tratado.

Todavia, os artigos 88.o e 89.o não são susceptíveis de assegurar uma aplicação completa e integral do artigo 85.o, de uma forma tal que a sua simples existência permita concluir que o artigo 85.o produziu, desde a entrada em vigor do Tratado, todos os seus efeitos, e que, designadamente, a nulidade prevista no n.o 2 do preceito ocorreu em todos os casos abrangidos pela definição do n.o 1, em relação aos quais não tinha ainda sido feita qualquer declaração nos termos do n.o 3.

Com efeito, o artigo 88.o apenas prevê uma decisão das autoridades dos Estados-membros sobre a admissibilidade de acordos quando estes últimos sejam submetidos à sua aprovação no âmbito do direito que rege a concorrência em vigor nos respectivos países.

O artigo 89.o, embora atribua à Comissão uma competência geral de fiscalização e controlo, apenas a habilita a verificar eventuais violações dos artigos 85.o e 86.o, sem lhe conferir competência para proferir declarações nos termos do n.o 3 do artigo 85.o

Finalmente, nenhum destes artigos contém regulamentação transitória relativamente aos acordos existentes no momento da entrada em vigor do Tratado.

Além disso, deve dizer-se que os autores do primeiro regulamento de aplicação dos artigos 85.o e 86.o do Tratado (JO, p. 204/62) se inspiraram numa concepção idêntica.

Com efeito, resulta das disposições conjugadas dos artigos 6.o, n.o 2, e 5.o, n.o 1, deste regulamento que a Comissão pode ainda fazer declarações nos termos do n.o 3 do artigo 85.o relativamente a acordos existentes desde antes da entrada em vigor do referido regulamento, podendo então conferir-lhes efeitos retroactivos mesmo a uma data anterior àquela em que o acordo lhe foi notificado.

Conclui-se daí que os autores do regulamento parece terem previsto igualmente que, no momento da entrada em vigor do referido regulamento, existiam acordos a que o n.o 1 do artigo 85.o era aplicável, mas a respeito dos quais não tinha sido ainda tomada qualquer decisão nos termos do ao 3, sem que, por isso, esses acordos sejam nulos.

Interpretação contrária levaria à consequência inadmissível de que alguns acordos teriam inicialmente sido nulos durante vários anos, sem que nenhuma autoridade tivesse alguma vez verificado essa nulidade, enquanto que, posteriormente, esta nulidade se encontraria sanada com efeitos retroactivos.

De um modo mais genérico, seria contrário ao princípio geral da segurança jurídica — regra de direito a respeitar na aplicação do Tratado — considerar nulos certos acordos antes mesmo de ter sido possível saber, e portanto declarar, a que acordos se aplica o artigo 85.o no seu conjunto.

Assim, em conformidade com o teor literal do n.o 2 do artigo 85.o, que, ao falar de acordos ou decisões «proibidos pelo presente artigo», parece considerar os n. os 1 e 3 desse artigo como formando um todo indivisível, há que admitir que, até à entrada em vigor do primeiro regulamento de execução dos artigos 85.o e 86.o do Tratado, a nulidade apenas se aplicava aos acordos e decisões considerados pelas autoridades dos Estados-membros, ao abrigo do artigo 88.o, abrangidos pelo n.o 1 do artigo 85.o e não susceptíveis de escaparem à proibição por efeito do n.o 3 do artigo 85.o, ou acerca dos quais a Comissão tivesse feito a declaração prevista no n.o 2 do artigo 89.o

Não tendo a cour d'appel de Haia podido precisar no seu acórdão de reenvio a época a considerar para decidir sobre a eventual nulidade do acordo em causa, há que analisar igualmente esta questão relativamente ao período que se segue à entrada em vigor do regulamento.

A nulidade não é aplicável aos acordos e decisões existentes no momento da entrada em vigor deste regulamento, pelo simpes facto de caírem na alçada do n.o 1 do artigo 85.o

Estes acordos e decisões devem ser considerados válidos quando abrangidos pelo n.o 2 do artigo 5.o do referido regulamento; devem ser considerados provisoriamente válidos quando, não estando abrangidos por essa disposição, forem notificados à Comissão de acordo com o n.o 1 do artigo 5.o do referido regulamento.

Esta validade não tem carácter definitivo, visto que a nulidade estabelecida no n.o 2 do artigo 85.o se aplica quando as autoridades dos Estados-membros exercem a competência que lhes atribui o artigo 88.o do Tratado e lhes mantém o artigo 9o do referido regulamento para aplicar o n.o 1 do artigo 85.o e para declarar proibidos alguns acordos ou decisões.

Além disso, a recusa da Comissão em tomar uma decisão nos termos do n.o 3 do artigo 85.o acerca dos acordos e decisões abrangidos por este artigo acarreta a sua nulidade a partir da entrada em vigor do referido regulamento.

Contudo, as disposições do artigo 7.o deste regulamento conferem à Comissão a possibilidade — mesmo quando o acordo ou a decisão não são susceptíveis de escaparem à proibição nos termos do n.o 3 do artigo 85.o — de limitar o efeito da proibição do artigo 85.o, isto é, a nulidade, a um período determinado, quando os interessados se mostrem dispostos a revogar ou modificar esses acordos ou decisões.

Esta disposição do artigo 7.o do referido regulamento só se compreende se não existir nulidade enquanto a Comissão não se tiver pronunciado sobre os acordos e decisões que lhe foram notificados ou enquanto as autoridades dos Estados-membros não declararem que o artigo 85.o era aplicável.

O pedido da cour d'appel de Haia incide sobre a questão de saber se a proibição de exportar, imposta pela sociedade Robert Bosch de Estugarda aos seus compradores e por eles aceite, cai na alçada do n.o 1 do artigo 85o do Tratado.

Esta questão não pode ser considerada como uma mera interpretação do Tratado, porque, não lhe tendo sido exposto o contexto em que se insere esta proibição sumária, o Tribunal de Justiça não poderia decidir sobre essa questão sem proceder a um exame prévio; essa análise não é da competência do Tribunal de Justiça ao decidir nos termos do artigo 177.o do Tratado.

Nestas condições, o Tribunal de Justiça deve limitar-se a declarar que não está excluído caberem as restrições à exportação a que se refere a cour d'appel na definição do n.o 1 do artigo 85.o, e que estão, designadamente, compreendidas na expressão: «acordos… que sejam susceptíveis de afectar o comércio entre os Estados-membros.»

Além do mais, se as referidas proibições se enquadrarem na previsão do n.o 1 do artigo 85.o, não se pode admitir sem mais que o n.o 2 do artigo 4.o do primeiro regulamento de execução dos artigos 85o e 86.o do Tratado lhes seja aplicável, caso em que ficariam dispensadas de notificação, ao abrigo do n.o 2 do artigo 5.o do mesmo regulamento, e por isso deveriam ser consideradas válidas.

Com efeito, segundo a alínea 1) do n.o 2 do artigo 4.o, os acordos relativos à importação ou à exportação entre Estados-membros não beneficiam de dispensa de notificação, quando a proibição de exportar tenha efeitos diferentes dos referidos na alínea 2) do n.o 2 do artigo 4.o e objecto diferente do previsto na alínea 3) da referida disposição.

Quanto às despesas

As despesas efectuadas pela Comissão da CEE e pelos Governos dos Estados-membros, que submeteram observações ao Tribunal de Justiça, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante a cour d'appel de Haia, compete a este órgão jurisdicional decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

vistos os autos,

visto o relatório para audiência,

vistas as alegações apresentadas pela Comissão das Comunidades Económicas Europeias e pelas partes,

 

ouvidas as conclusões do advogado-geral,

vistos os artigos 85.o, 87.o, 88.o, 89.o e 177.o do Tratado que institui a CEE,

visto o Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça da CEE,

visto o Regulamento Processual do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

decidindo sobre o pedido de decisão prejudicial que lhe foi submetido pela cour d'appel de Haia, por carta de 10 de Julho de 1961, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, declara:

 

1)

Até à entrada em vigor do regulamento previsto no artigo 87.o, conjugado com o n.o 3 do artigo 85.o do Tratado, o n.o 2 do artigo 85.o do mesmo Tratado apenas produz efeitos quanto aos acordos e decisões em relação aos quais as autoridades dos Estados-membros expressamente decidiram, com base no artigo 88.o do Tratado, que caem na alçada do disposto no n.o 1 do artigo 85.o e não podem beneficiar da declaração referida no n.o 3, ou que a Comissão, através de decisão tomada nos termos do n.o 2 do artigo 89.o, declarou contrários ao artigo 85.o

 

2)

Os outros acordos e decisões, existentes à data de entrada em vigor do primeiro regulamento de execução dos artigos 85.o e 86.o do Tratado, que são abrangidos pela proibição do n.o 1 do artigo 85.o e que tenham sido notificados em tempo útil de acordo com o artigo 5.o deste regulamento, só devem ser considerados nulos quando a Comissão decidir que não são susceptíveis, nem de decisão nos termos do n.o 3 do artigo 85.o, nem de aplicação do n.o 1 do artigo 7.o do regulamento, ou ainda quando as autoridades dos Estados-membros decidirem exercer os poderes que lhes atribui o artigo 88.o do Tratado, em conjugação com o artigo 9.o do referido regulamento.

 

3)

Os acordos e decisões abrangidos pela proibição do n.o 1 do artigo 85.o e que, apesar de existentes à data de entrada em vigor do primeiro regulamento de execução dos artigos 85.o e 86.o do Tratado e de não estarem abrangidos pelo n.o 2 do artigo 5.o do regulamento, não tenham sido notificados em tempo útil. em conformidade com o n.o 1 do mesmo artigo, são nulos a partir da data de entrada em vigor do regulamento.

 

4)

A parte restante do pedido não pode ser objecto de decisão prejudicial.

 

5)

Compete à cour d'appel de Haia decidir sobre as despesas do processo.

 

Donner

Ries

Delvaux

Hammes

Rueff

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 6 de Abril de 1962.

O secretário

A. Van Houtte

O presidente

A. M. Donner


( *1 ) Língua do processo: neerlandês.