ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
29 de Novembro de 1956 ( *1 )
No processo 8/55,
Fédération Charbonnière de Belgique, representada por Louis Dehasse, Léon Canivet, Pierre Delville e Henri Gondaillier, assistidos por Paul Tschoffen, advogado na Cour d'appel de Liège, e por Henri Simont, advogado na Cour de cassation da Bélgica, professor na Universidade Livre de Bruxelas, com domicílio escolhido no Luxemburgo, 6, rue Henri Heine,
recorrente,
contra
Alta Autoridade da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, representada pelo seu consultor jurídico Walter Much, na qualidade de agente, assistido por G. Van Hecke, advogado na Cour d'appel de Bruxelas, professor na Universidade de Lovaina, com domicílio escolhido no Luxemburgo no seu gabinete, 2, place de Metz,
recorrida,
que tem por objecto a anulação da Decisão n.o 22/55 da Alta Autoridade, de 28 de Maio de 1955, e de certas decisões da Alta Autoridade que resultam da carta por esta dirigida em 28 de Maio de 1955 ao Governo do Reino da Bélgica, relativa à adaptação do sistema de perequação (JO de 31.5.1955, p. 753-758),
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,
composto por M. Pilotti, presidente, J. Rueff e O. Riese, presidentes de secção, P. J. S. Serrarens, L. Delvaux, Ch. L. Hammes e A. van Kleffens, juízes,
advogado-geral: M. Lagrange
secretário: A. Van Houtte
profere o presente
Acórdão
(A parte relativa à matéria de facto não é reproduzida)
Fundamentos da decisão
A — No que respeita à Decisão no 22/55, de 28 de Maio de 1955
I — Poder da Alta Autoridade para fixar a tabela dos preços e para os fixar a um nível mais baixo
Nos termos do artigo 8.o da convenção, a criação dos mecanismos de perequação previstos na terceira parte desta convenção deve preceder o estabelecimento do mercado comum. Portanto, só aplicando medidas especiais, designadamente a instituição do sistema de perequação, é que a convenção expõe o mercado belga do carvão, desde o início, aos efeitos do mercado comum. Estas medidas explicam-se pela existência de uma diferença entre a Bélgica e os outros países da Comunidade, que resulta de uma desvantagem nas condições de produção.
No decurso da fase oral do processo, a recorrida fez uma exposição das causas desta desvantagem; esta não foi contestada e parece exacta ao Tribunal. Com efeito, há na Bélgica:
1) |
condições geológicas de produção menos favoráveis, em geral, que as dos países que dominam os preços do mercado comum, que se manifestam pela existência de um certo número de minas ditas «marginais»; |
2) |
um atraso técnico devido à impossibilidade de proceder, durante diversos anos, aos investimentos necessários; e |
3) |
um nível de salários mais elevado que o dos outros países produtores. |
Por estas razões, os custos de produção na Bélgica são mais elevados que em qualquer outro lugar, provocando um nível dos preços mais elevado que o dos outros países. Com vista a integrar o mercado belga no mercado comum e assegurar a aproximação dos preços, o Tratado procura neutralizar esta diferença re duzindo a diferença dos custos de produção por meio de uma perequação, nas condições previstas no artigo 26.o da convenção. Este artigo prevê, para o conjunto dos consumidores de carvão belga, uma redução dos preços deste carvão, para os aproximar dos do mercado comum, indicando as condições que as empresas devem preencher para poderem beneficiar da perequação, a data a partir da qual se deve produzir a aproximação acima referida, assim como a medida na qual deve efectuar-se a redução dos preços. Os interesses dos consumidores, assim reconhecidos, exigem, pois, que a redução dos preços belgas até níveis próximos dos custos de produção previsíveis produza plenamente os seus efeitos, independentemente das flutuações do mercado belga. Se a aproximação dos preços se efectuasse através de uma subida dos preços do mercado comum, e não através de uma redução dos preços belgas, como a recorrente pretende, transformaria a perequação num subsídio desprovido de qualquer causa e objectivo.
Nos termos do artigo 26.o da convenção, a situação que justifica a perequação implica a necessidade de baixar o nível dos preços belgas até um limite mais ou menos fixo, que resulta de uma avaliação de conjunto baseada em previsões dos custos de produção na Bélgica para o termo do período de transição. Por outro lado, deve observar-se que o texto do artigo 26o não contém qualquer indicação precisa que permita saber como se deve realizar a aproximação dos preços nos limites previstos, se deve ser efectuada pelas próprias empresas ou por via de autoridade.
Ora, a recorrente afirmou que o Tratado prevê um regime de mercado em que as empresas fixam os preços e que, assim, salvo derrogação expressa, são as próprias empresas que, no caso em apreço, fixam os preços, o que devem fazer ao nível dos custos de produção previsíveis quando recebem a perequação. A recorrente não exclui, assim, de maneira absoluta, a intervenção da Alta Autoridade na fixação dos preços, mas limita-a aos casos expressamente previstos no Tratado, designadamente no artigo 61.o
A redução dos preços belgas exigida pela convenção é uma operação de importância considerável que tem por objecto a preparação, em condições particularmente difíceis, da integração do carvão belga no mercado comum, e inspirada no interesse geral da Comunidade numa normalização progressiva do mercado comum do carvão.
Segundo esta tese, todos estes objectivos, durante o período de transição, estariam sujeitos ou dependeriam, em primeiro lugar, da livre apreciação das empresas exploradoras das minas do carvão belgas. Esta consequência não pode ser aceite.
Além disso, o funcionamento normal da economia de mercado desencadearia a formação de preços de mercado que resultariam da oferta e da procura e estariam sujeitos a variações contínuas. Ora, os preços do carvão belga durante o período de transição devem ser fixados e manter-se próximos dos custos de produção previsíveis. Este limite, cuja fixação resulta de uma avaliação de conjunto baseada, entre outros elementos, nas previsões de melhoria de rendimento das empresas exploradoras das minas de carvão e nos efeitos de programas de encerramento das minas marginais, escapa às influências do mercado. Se os preços do carvão belga fossem entregues ao jogo da oferta e da procura no mercado, a sua redução não estaria assegurada.
Finalmente, o artigo 61.o do Tratado não é aplicável a este caso. Com efeito, esta disposição só permite uma intervenção em caso de necessidade para remediar os inconvenientes passageiros das subidas excessivas que resulta-riam do funcionamento normal da economia de mercado: seria desviar este artigo do seu objecto próprio utilizá-lo permanentemente para obter a manutenção de preços a um nível artificial resultante da avaliação dos custos de produção previsíveis para o termo do período de transição. Além disso, a morosidade do procedimento previsto no artigo 61.o combina-se dificilmente com uma fixação de preços sujeita a uma revisão devida a modificações nas avaliações dos custos de produção previsíveis, que sobrevêm à medida que o termo se aproxima e que os planos vão sendo realizados.
Sobretudo, o que mostra bem que o artigo 61.o não foi feito para um caso deste género é que ele exige a consulta prévia do comité consultivo e do Conselho «quer sobre a oportunidade das medida … quer sobre o nível de preços que elas determinam», isto é, sobre considerações de oportunidade económica: no presente caso, trata-se de algo muito diferente, a saber, de avaliar custos de produção futuros tendo em conta as melhorias de rendimento a esperar da realização de planos de equipamento e de modernização, o que é de ordem puramente técnica. Quanto à medida da redução, não foi discutida, visto que a convenção já a determinou.
No entanto, a recorrente observou, no decurso da fase oral do processo, que, se as empresas não cumprissem a obrigação de baixar os seus preços dentro dos limites previstos na convenção, a Alta Autoridade dispõe de meios indirectos para assegurar a realização do objectivo do artigo 26.o, isto é, tem meios para retirar a perequação às empresas que não cumprirem os seus deveres. Sendo este meio suficientemente eficaz, não é possível admitir que a fixação dos preços por via de autoridade é indispensável.
O Tribunal não pode admitir este argumento, porque, nos termos de uma norma jurídica geralmente admitida, a reacção indirecta da Alta Autoridade a um acto ilícito das empresas deve ser proporcionada à envergadura deste. Por esta razão, a
Alta Autoridade só poderia reduzir a perequação numa medida equivalente àquela em que as empresas não tivessem baixado os seus preços, nos limites previstos. Ora, nesse caso, as empresas teriam sempre um interesse certo em arriscar a redução da perequação, preferindo o lucro dos preços relativamente muito elevados ao benefício de uma maior perequação correspondente à redução dos preços, se a tivessem consentido, e isto tanto mais que os fundos de perequação disponíveis são degressivos.
Resulta do que precede que uma intervenção indirecta da Alta Autoridade como a redução da perequação é insuficiente para assegurar a realização do objectivo que o artigo 26.o, n.o 2, alínea a), da convenção estabelece.
Nestas condições, é necessário reconhecer que só a intervenção directa da Alta Autoridade pode garantir a realização imediata da redução dos preços que deve obrigatoriamente acompanhar a perequação.
A recorrente sustentou, no decurso da fase oral do processo, que a ausência no Tratado de uma atribuição expressa do poder de fixar os preços por via de autoridade se opõe ao reconhecimento desse poder através de uma interpretação que considera extensiva e juridicamente inadmissível. O Tribunal não é desta opinião, na medida em que, no caso em análise, se trata de um poder sem o qual, como acaba de observar, a perequação não pode funcio-nar segundo o disposto no artigo 26.o da convenção, isto é, na base de uma redução dos preços imediata e assegurada. Na opinião do Tribunal, é permitido, sem que seja necessária uma interpretação extensiva, aplicar uma regra de interpretação geralmente admitida tanto em direito internacional como em direito nacional, segundo a qual as normas instituídas por um tratado internacional ou por uma lei implicam as normas sem as quais as primeiras não teriam sentido ou não poderiam ser aplicadas de forma razoável e útil. Além disso, cabe à Alta Autoridade, nos termos do artigo 8.o do Tratado, garantir a realização dos objectivos fixados no Tratado, nas condições nele previstas. Há que concluir desta disposição, princípio director das atribuições da Alta Autoridade definidas no capítulo I do Tratado, que ela goza de uma certa autonomia na determinação das medidas de execução necessárias à realização dos objectivos referidos no Tratado ou na convenção, que dele faz parte integrante. Como se trata aqui de realizar o objectivo do artigo 26.o da convenção, a Alta Autoridade tem o poder, se não a obrigação, de adoptar — dentro dos limites traçados por esta disposição — as medidas susceptíveis de assegurar a redução dos preços do carvão belga.
Disso resulta que, neste caso, o cumprimento da sua missão implica, para a Alta Autoridade, o poder de fixar os preços. Contudo, é necessário reconhecer que o âmbito deste poder está limitado ao objectivo de assegurar ao conjunto dos consumidores de carvão belga uma redução de preços deste carvão, desde o início do período de transição, na medida fixada pela convenção no artigo 26.o
A recorrente negou ainda à Alta Autoridade o poder de fixar os preços, sustentando que a frase do artigo 26.o, n.o 2, alínea a), «a tabela assim fixada não pode ser alterada sem o acordo da Alta Autoridade», deve ser interpretada no sentido de que proíbe a Alta Autoridade de fixar num quadro o nível a que os preços do carvão belga devem descer em execução do artigo 26.o da convenção. No entanto, essa proibição não figura no texto supracitado; é dele deduzida pela recorrente, de forma indirecta e a contrario. Ora, esta argumentação só é admissível em última instância e quando nenhuma outra interpretação se revela adequada ou compatível com o texto, o contexto e a sua finalidade. No entanto, este caso não se apresenta aqui, explicando-se o texto, tal como está redigido, pelo desejo de subordinar qualquer alteração ulterior à aprovação da Alta Autoridade, nos casos em que esta não teve que intervir por as empresas terem reduzido os preços por sua própria iniciativa.
Se bem que resulte das considerações precedentes que, no caso em apreço, a Alta Autoridade agiu no âmbito aparente das suas atribuições, é ainda necessário examinar se cometeu um desvio de poder que afecte a recorrente, ao prosseguir, como a recorrente alega, objectivos estruturais, e na medida em que a sua acção teria sido inspirada pelo desejo de baixar os preços tendo em conta certas dificuldades de distribuição de carvão no momento em que foi adoptada a decisão impugnada.
Ora, a redução dos preços, em função da perequação, está prevista de forma imperativa no artigo 26.o da convenção, ao mesmo tempo que a medida dessa redução. Nestas condições, não, poderia tratar-se de um desvio de poder visto que a única medida que a Alta Autoridade podia adoptar para prosseguir o objectivo do artigo 26.o era precisamente a que consistia em baixar os preços do carvão belga. Na falta de prova de que o nível de preços que a Alta Autoridade fixou ao adoptar a Decisão n.o 22/55 era diferente do nível resultante de uma fixação dos preços em conformidade com o artigo 26.o, n.o 2, alínea a), da convenção, a decisão supracitada não pode estar viciada de desvio de poder. Com efeito, mesmo que estivesse provado — o que não é o caso — que a Alta Autoridade estava inspirada pelo desejo de provocar certas alterações estruturais ou de remediar dificuldades de distribuição por meio de uma redução dos preços, teria pretendido obter efeitos que seriam inevitavelmente e em qualquer caso a consequência da prossecução do objectivo legítimo da sua acção. Além disso, não se pode reprovar à recorrida ter tentado completar, de 1952 a 1955, as suas informações quanto aos custos de produção previsíveis para 1958, nem ter recolhido para este fim, como fez, a documentação própria para a esclarecer a este respeito. Resulta do relatório da comissão mista encarregada do estudo da perequação das empresas exploradoras de minas de carvão belgas, assim como dos cálculos pormenorizados da Alta Autoridade relativos à avaliação do nível dos custos de produção previsíveis, que a Alta Autoridade prosseguiu, entre outros, o objectivo de baixar os preços do carvão belga no âmbito do regime referido no artigo 26.o da convenção e, designadamente, na medida imposta por esta disposição. Mesmo que um motivo não justificado se tivesse acrescentado aos motivos que justificam a acção da Alta Autoridade, a decisão não estaria, devido a esse facto, viciada de desvio de poder, na medida em que não viola o objectivo essencial do artigo 26.o da convenção.
Pelos motivos acima expostos, a primeira e a segunda acusações formuladas no pedido devem ser rejeitadas.
II — Relação entre preço de venda e custos de produção previsíveis
A recorrente sustentou que a Alta Autoridade cometeu um desvio de poder ao fixar os preços sem ter em conta os custos de produção previsíveis para o termo do período de transição, de tal forma que do quadro que publicou para este fim resulta um preço médio inferior aos custos de produção previsíveis.
Ora, o artigo 26.o da convenção determina a medida em que a aproximação dos preços belgas dos do mercado comum deve ser efectuada, partindo do princípio que, se os preços do mercado comum tivessem ultrapassado o nível dos custos de produção previsíveis na Bélgica, não seria necessário baixar os preços belgas ao nível aproximado dos custos de produção previsíveis porque, nessa hipótese, o objectivo da aproximação já teria sido atingido.
Antes de examinar a questão de saber se a Alta Autoridade fixou os preços na medida prevista, é conveniente averiguar se é verdade — como a recorrente alega — que a Alta Autoridade substituiu os preços do mercado comum pelos do Ruhr sem ter em conta o nível artificialmente baixo dos preços do Ruhr assim como o nível de preços mais elevado de certas outras bacias.
A recorrida sustenta que quis reduzir, nos limites previstos, a diferença entre os preços belgas e os do Ruhr, tendo esta bacia o «price leadership» no mercado comum pelo facto de dispor, relativamente às espécies de carvão a que é aplicável o regime da perequação, do maior excedente exportável.
Nesta controvérsia, o Tribunal de Justiça verifica que a Alta Autoridade, ao reduzir a diferença entre os preços belgas e os do Ruhr, e ao basear-se nestes segundos preços tais como eram praticados, isto é, sem ter em conta o seu eventual carácter artificial, deixou subsistir uma certa margem entre estes dois níveis de preços. Quanto ao carácter eventualmente artificial dos preços do Ruhr, a Alta Autoridade tinha o direito de não o considerar, porque a questão de saber se os preços do mercado comum são determinados pelos preços do Ruhr é uma questão de facto que não depende do carácter eventualmente artificial destes preços. Sabendo-se, portanto, que a Alta Autoridade não fixou os preços belgas exactamente ao nível dos preços do Ruhr, deve observar-se que a recorrente demonstrou que os preços fixados pela Alta Autoridade, em alguns casos excepcionais, eram inferiores aos preços válidos para certas outras bacias, designadamente a de Aix-la-Chapelle, assim como a do Nord et Pas-de-Calais. Só nestes poucos casos foi alegado que a Alta Autoridade ultrapassou o nível dos preços do mercado comum. No entanto, a recorrente não invocou qualquer facto ou circunstância que permita provar que, nos casos supracitados, o nível dos preços das bacias em questão determinava o do mercado comum. Nestas condições, não é possível admitir que, no caso em análise, os preços fixados pela Alta Autoridade eram inferiores aos do mercado comum.
A primeira questão que se põe é, pois, a de saber se a Alta Autoridade, ao assegurar a aproximação dos preços pela fixação dos preços belgas a um nível inferior ao anteriormente em vigor, desviou ou não do seu objectivo a avaliação dos custos da produção previsíveis para 1958, à qual tinha obrigação de proceder, sendo o nível destes custos, nos termos do artigo 26.o, o limite da redução dos preços que a perequação podia justificar.
Com efeito, o objectivo que a integração completa e definitiva do carvão belga no mercado comum constitui é sem dúvida conforme ao alcance geral do Tratado, mas ultrapassa o do disposto no artigo 26.o, n.o 2, alínea a), da convenção, que só prevê a integração na medida em que os custos de produção na Bélgica no termo do período de transição a permitam. Durante este período, o artigo 26.o, n.o 2, alínea a), prevê um regime de perequação limitado no tempo; portanto, a perequação está ligada à evolução dos custos de produção previsíveis com vista a assegurar uma evolução correspondente dos preços. No termo do período de transição, é possível que uma maior redução dos custos de produção se revele necessária para permitir integrar definitivamente o carvão belga no mercado comum; a realização deste novo objectivo dependerá dos meios disponíveis nesse momento, mas esta questão não se inclui no âmbito de aplicação do artigo 26.o, n.o 2, alínea a), da convenção e do regime nele previsto. Se a Alta Autoridade — como alega a recorrente — tivesse fixado os preços tendo unicamente em vista aproximá-los dos preços do mercado comum e ignorando o nível dos custos de produção previsíveis para o termo do período de transição, a sua decisão estaria viciada de desvio de poder e deveria ser anulada. No entanto, o caso não se apresenta assim.
A recorrente não carreou, como lhe incumbia, a prova de que a recorrida fixou os preços de venda contrariamente às disposições do Tratado, às realidades objectivas e aos interesses das empresas exploradoras das minas de carvão belgas, e que avaliou os custos de produção dos carvões em causa previsíveis para 1958 com o único fim, ou pelo menos com o fim principal, de reduzir os preços sem ter em conta o limite que impõe o artigo 26.o, n.o 2, alínea a), da convenção.
As divergências de concepção, manifestadas pelas partes no decurso dos debates, quanto à avaliação dos custos de produção do carvão belga no final do período de transição, incidem exclusivamente sobre elementos de ordem estatística cuja apreciação puramente contabilística não pode prejudicar a legalidade da medida impugnada, uma vez que esta apreciação não revela qualquer indício susceptível de provar que a Alta Autoridade, ao proceder a essa avaliação, tenha prosseguido um objectivo que não o definido pelo artigo 26.o, n.o 2, alínea a), da convenção.
Mesmo que a recorrida tenha cometido certos erros na escolha dos elementos dos seus cálculos, como é o caso no respeitante ao ano de referência, e como poderia verificar-se igualmente no que diz respeito às amortizações e ao agrupamento das categorias de carvão, daí não resulta que os seus erros constituem ipso facto a prova de um desvio de poder, se não for igualmente provado que a Alta Autoridade, objectivamente, por grave falta de previdência ou de circunspecção equivalente a violação do fim legal, prosseguiu fins que não aqueles em vista dos quais os poderes previstos pelo artigo 26.o, n.o 2, alínea a), lhe foram atribuídos.
Com efeito, quanto à fixação do nível dos custos de produção previsíveis para 1958, parece evidente — no que diz respeito à escolha do ano de referência 1952 caeteris paribus, em vez do ano de 1955, época em que foram adoptadas as decisões em causa — que elementos imprevisíveis em 1952 e anteriormente eram ou podiam tornar-se previsíveis em 1955. É ainda necessário frisar que, não obstante, a recorrida atenuou, ou pelo menos tentou atenuar, estes erros, aumentando os preços de venda dos carvões e o montante da perequação, tendo em conta a subida dos salários e outros elementos de menor importância. O mesmo se diga do facto de a recorrida ter tido em conta as previsões conhecidas em 1955 relativas à reorganização das minas marginais (v. relatório da comissão mista das minas), assim como certas subvenções e despesas de renovação de instalações, a título de amortizações, sem todavia concordar com os valores a elas relativos utilizados na contabilidade das empresas. Estes factos, quer sejam considerados no seu conjunto ou individualmente, são característicos do desejo e da vontade legítima da recorrida de procurar uma aproximação cada vez mais estreita dos custos de produção previsíveis para o termo do período de transição.
No respeitante à repartição ou «agrupamento» dos carvões por espécies e categorias, as partes estão de acordo em reconhecer que só é possível uma repartição por categorias. Após terem proposto, antes do acórdão de 16 de Julho de 1956, de comum acordo, apesar de certas reservas de um lado e do outro, um valor representando a média que resulta de um agrupamento, todas as categorias reunidas, as partes, apoiando-se nestas reservas, apresentaram (e pleitearam baseando-se neles) novos agrupamentos tão diferentes que se torna difícil, senão impossível, comparar os valores. No entanto, sem nos pronunciarmos sobre os respectivos méritos intrínsecos destes diferentes modos de agrupamento, há que observar que o seu exame pormenorizado não revela que a recorrida, pela escolha do seu método, tenha chegado a um resultado oposto à aproximação dos preços do carvão belga dos do mercado comum, ignorando o limite dos custos de produção previsíveis para 1958.
Pelos motivos acima expostos, a acusação de desvio de poder não tem fundamento no que respeita ao nível dos preços de venda e à relação entre este e o dos custos de produção previsíveis para o termo do período de transição.
III — Intervenção do Governo belga
Ao afirmar que a Decisão n.o 22/55 baixou os preços de venda tendo em vista servir objectivos próprios da política económica do Governo belga, na sequência de uma intervenção deste, a recorrente absteve-se de precisar em que pontos estes objectivos seriam contrários e teriam substituído os que a Alta Autoridade tinha legitimidade para prosseguir. A recorrente não provou que a Alta Autoridade, pela Decisão n.o 22/55, tenha sacrificado os interesses legítimos dos produtores belgas em benefício da política do seu governo; aliás, é normal que; em semelhante domínio, tenham lugar discussões e consultas. O facto, não contestado, de que a Alta Autoridade fixou os preços de venda a um nível superior ao proposto pelo Governo belga indica antes que a Alta Autoridade conservou a sua liberdade de apreciação.
Nestas condições, a presente acusação não tem fundamento.
IV — Fixação em certos casos de preços de venda sem perequação
A recorrida alega que a exclusão do benefício da perequação no caso dos carvões gordos não classificados da Campine não implica de modo algum que estas espécies estejam já suficientemente integradas no mercado comum para serem colocadas fora do sistema de perequação; é de opinião que é preciso ter em conta o caso de ser preciso assegurar de novo uma certa redução dos preços belgas e retomar, se necessário, os pagamentos de perequação também para as empresas exploradoras das minas de carvão da Campine.
Com efeito, a carta de 28 de Maio de 1955 mantém as espécies de carvão em questão no sistema de perequação, apesar das modificações que introduz nas regras segundo as quais, para certas empresas, é determinado o montante da perequação; assim, o regime previsto no artigo 26.o, n.o 2, alínea a), da convenção é aplicável a estas espécies, designadamente no que diz respeito à necessidade de assegurar os plenos efeitos deste regime através de uma fixação dos preços.
Ora, a fixação dos preços surge, como já foi demonstrado, como uma medida geral e indispensável à aplicação do regime excepcional previsto no artigo 26.o, n.o 2, para a produção carbonífera belga considerada globalmente.
A questão de saber se este regime é de natureza a permitir que se reduza ou mesmo que se retire a perequação segundo as condições de produção de certas empresas individuais constitui o objecto da acusação relativa ao princípio da selectividade na aplicação do artigo 26.o A legitimidade da selectividade será examinada mais adiante, em ligação com as disposições da carta da Alta Autoridade ao Governo belga de 28 de Maio de 1955. Em contrapartida, pode observar-se desde já que, independentemente da decisão a proferir em relação a este princípio, não se pode conceber a existência de diversas tabelas de preços para os consumidores de carvão belga, assim como a coexistência, numa mesma espécie, de carvão a preços livres e de carvão a preços fixos.
Daí resulta que, no caso supracitado, a redução ou mesmo a supressão da perequação para certas espécies e apenas em determinados casos individuais não implica que se coloquem estas espécies fora da tabela, uma vez que a tabela de preços que resulta da aplicação do artigo 26.o, n.o 2, só pode ser única para o conjunto dos consumidores de carvão belga.
A decisão adoptada explica-se portanto pela aplicação normal do regime referido no artigo 26.o e pelo exercício normal de um poder necessário à execução deste regime; portanto, o fundamento de desvio de poder não é procedente.
B — No que respeita à carta de 28 de Maio de 1955
I — Redução ou supressão da perequação para certas empresas
A recorrente argumenta, em primeiro lugar, que a introdução de um critério selectivo no sistema de perequação, isto é, a sua adaptação à situação individual das empresas, constitui uma discriminação proibida pelo Tratado.
Esta tese deve ser rejeitada. Na sequência da decisão contida na carta de 28 de Maio de 1955, a perequação encontra-se reduzida, e mesmo suprimida, na medida em que as desvantagens resultantes das condições geológicas menos favoráveis, que são uma das premissas do regime especial concedido à indústria belga do carvão, se revelam eliminadas de facto. Daí resulta que a diferenciação dos montantes de perequação consoante as condições reais de produção pretende reconhecer diferenças que existem de facto, com vista a assegurar um benefício igual a casos comparáveis e, por consequência, evitar discriminações. A tese da recorrente só seria pertinente se a Alta Autoridade não tivesse aplicado um critério objectivo e uniforme para verificar se a situação individual das empresas era conforme às premissas da perequação. Ora, a decisão contida na carta definiu esse critério e, além disso, a conformidade da situação das três empresas exploradoras das minas de carvão com este critério não foi contestada.
Em segundo lugar, a recorrente é de opinião que o facto de o artigo 26.o, n.o 2, falar de «carvão belga» e de as perequações referidas nas alíneas b) e c) serem de carácter global é determinante para a natureza igualmente global da perequação a).
Este argumento não é concludente, sabendo-se que as perequações b) e c) são claramente destinadas a permitirem à siderurgia belga, assim como aos exportadores de carvão, enfrentar a concorrência do mercado comum caso o limite resultante dos custos de produção previsíveis fosse demasiado elevado em relação aos preços do mercado comum. Por esta razão, os objectivos prosseguidos pelas perequações b) e c) são de natureza diferente do da perequação a). Além disso, as alíneas b) e c) incluem um conjunto de disposições destinadas a regular a repartição destas perequações, enquanto na perequação a) essas normas não existem. Tendo em conta estas diferenças entre as alíneas a), b) e c) e visto que a expressão «carvão belga» se explica tanto num como no outro caso, o texto do artigo 26.o, por si só, não permite concluir que a perequação a) deve revestir um carácter global.
Ora, se os pagamentos de perequação a) fossem uniformes para todas as empresas sem ter em conta as diferenças das suas condições de produção, a perequação tornarse-ia discriminatória e perderia a sua razão de ser, porque se transformaria em subvenção na medida em que fosse concedida a empresas cujas condições de produção não estariam expostas às desvantagens que são as próprias premissas da perequação. Daí resulta que a perequação deve necessariamente ter em conta a situação individual das empresas no que diz respeito às suas condições de produção.
Para defender a sua tese, a recorrente baseia-se ainda na existência de uma garantia de manutenção das receitas.
Apesar do silêncio da convenção sobre a eventual existência de uma relação entre a perequação e as receitas, sendo estas mencionadas unicamente no artigo 25.o em relação com a incidência da imposição, semelhante interpretação só seria admissível se a perequação devesse necessariamente e em todas as circunstâncias cobrir a totalidade da diferença entre os preços de venda reduzidos e as receitas que existiam no início do período de transição. Ora, não é esse o caso, sendo a perequação apenas uma medida de protecção necessária para evitar que se produzam deslocações de produção precipitadas e perigosas. O regime excepcional previsto com este objectivo deve, nos termos do artigo 24.o da convenção, ter em consideração as situações existentes aquando do estabelecimento do mercado comum. No entanto, não é permitido interpretar esta disposição de forma extensiva, isto é, no sentido de uma garantia de manutenção do nível inicial das receitas. A instituição de um regime excepcional como o da perequação explica-se pela existência na Bélgica de certas condições de produção que diferem essencialmente das dos outros países que participam no mercado comum. Assim, a perequação não pode ultrapassar os limites do que é estritamente necessário para neutralizar, numa certa medida, os efeitos da desvantagem que resulta destas diferenças, o que não implica a garantia de manutenção das receitas iniciais. A questão de saber em que medida o total do preço de venda e da perequação — total que determina as receitas das empresas — deve variar no decurso do período de transição é uma questão que a Alta Autoridade deve examinar em função dos progressos do reequipamento e da reorganização das empresas exploradoras das minas de carvão belgas.
Além disso, a perequação, se se destinasse a garantir a manutenção das receitas iniciais, estaria em contradição com o princípio da degressividade que se encontra inscrito no artigo 25.o da convenção. Finalmente, a convenção, como refere o artigo 1.o, tem como objectivo a adaptação progressiva das produções às novas condições criadas pelo estabelecimento do mercado comum, e não a adaptação das novas condições à manutenção das situações existentes no início do período de transição.
Aliás, se a perequação, como a recorrente sustenta, devesse assegurar às empresas exploradoras das minas de carvão os meios financeiros julgados indispensáveis à execução dos seus programas de reequipamento, o objecto da perequação ultrapassaria largamente as causas que a explicam e esta ver-se-ia transformada numa medida destinada a contribuir de uma maneira activa e directa para a reorganização das minas belgas, o que seria contrário ao carácter essencialmente passivo de uma medida de protecção.
A recorrente afirmou, em último lugar, que a perequação deve ser uniforme para todas as empresas exploradoras das minas de carvão, devido ao facto de o Tratado e a convenção, designadamente os artigos 5o, quarto travessão, e 62.o do Tratado e os artigos 24.o, alínea b), e 26.o, n.o 4, da convenção, preverem medidas especiais destinadas a igualizar as diferenças existentes entre as empresas exploradoras das minas de carvão consideradas individualmente.
Este argumento não é válido, porque, embora as disposições supracitadas prevejam medidas que não a perequação para remediar diferenças existentes entre as empresas exploradoras das minas de carvão, isso não se opõe de forma alguma a que, no caso da Bélgica, a perequação tenha igualmente em conta as diferenças individuais, na medida em que o regime de perequação previsto para este país o implique.
Em consequência, a presente acusação não tem fundamento.
II — Ameaça de supressão da perequação
Sendo a perequação uma medida de protecção que permite incorporar o carvão belga no mercado comum desde o início do período de transição, durante o qual a obra de reorganização e de reequipamento deverá ser realizada, não está destinada a contribuir para essa obra de uma maneira directa e activa. É evidente que a perequação é concedida quando a reorganização e o reequipamento das empresas são realizáveis numa medida suficiente para permitir a incorporação definitiva do carvão belga no mercado comum no final do período transitório.
A perequação não tem por objectivo o financiamento do reequipamento e a reorganização das empresas exploradoras de minas de carvão. Por outro lado, se viesse a revelar-se que certas empresas não realizaram essa obra de reorganização e de reequipamento, por isso podendo ser responsabilizadas, seria necessário reconhecer que a perequação teria perdido o seu fundamento ou a sua razão de ser. Estas empresas ter-se-iam assim privado elas próprias, por sua culpa, do direito ao benefício da perequação.
A Alta Autoridade deve ter em conta semelhante eventualidade. Fê-lo, designadamente, na sua carta de 28 de Maio de 1955, no ponto 2, alínea d), sob forma condicional, ao autorizar o Governo belga a retirar eventualmente a perequação sob reserva do acordo prévio da Alta Autoridade. Ora, o texto da carta não permite concluir que a Alta Autoridade tenha subordinado o seu acordo a critérios não objectivos e injustificados. Portanto, a Alta Autoridade não cometeu um desvio de poder e o recurso não é fundado quanto a este ponto.
Quanto às despesas
Nos termos do artigo 60.o do Regulamento do Tribunal, a parte vencida é condenada nas despesas. Tendo a recorrente sido vencida, há que condená-la nas despesas.
Pelos fundamentos expostos, vistos os autos, visto o acórdão do Tribunal proferido em 16 de Julho de 1956 no presente processo, ouvidas as alegações das partes, ouvidas as conclusões do advogado-geral, vistos os artigos 2.o, 3o, alínea c), 4.o, 5.o, 8.o, 14.o, 33.o, 34.o, 36.o, 50o, 60.o, 61.o e 62.o do Tratado, bem como os artigos 1.o, 8.o, 24.o, 25o e 26.o da convenção, visto o Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal, visto o Regulamento do Tribunal, assim como o Regulamento do Tribunal sobre as despesas de justiça, O TRIBUNAL DE JUSTIÇA decide: |
|
|
Pilotti Rueff Riese Serrarens Delvaux Hammes Van Kleffens Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 29 de Novembro de 1956. O secretário A. Van Houtte O presidente M. Pilotti |
( *1 ) Língua do processo: francês.