CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

MAURICE LAGRANGE

apresentadas em 12 de Junho de 1956 ( *1 )

Sumário

 

I — Os textos legais

 

II — As decisões impugnadas

 

III — Os pedidos dos recursos

 

IV — Os fundamentos dos recursos

 

V — A admissibilidade dos recursos face ao artigo 33.o

 

— carácter decisório da carta de 28 de Maio de 1955, na medida em que diz respeito à supressão da perequação

 

— carácter de «decisões individuais» que «digam respeito» às recorrentes das decisões impugnadas

 

— carácter de «decisões viciadas de desvio de poder» que «afecte» as recorrentes das decisões impugnadas

 

— considerações gerais

 

— aplicação ao caso em análise

 

VI — Discussões quanto ao mérito

 

— a fixação de preços por via de autoridade

 

— a fixação de redução de preços

 

— a dissociação preço-perequação e a selectividade

 

— a ameaça de supressão da perequação

 

— a determinação dos preços do mercado comum, objectivo da aproximação

 

— a determinação dos custos previsíveis para o termo do período de transição, limite da aproximação

 

— o desvio de poder

 

VII — Conclusões finais

Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

Que nos seja permitido, no limiar desta exposição, prestar uma homenagem sincera, não só à seriedade, à consciência e 'ao talento dos advogados que tomaram a palavra neste processo — poder-se-ia esperar isso — mas também à forma verdadeiramente excepcional como conseguiram, pleiteando num processo tão árido quanto completo, e por isso mesmo, apesar da qualidade das peças escritas, de assimilação um pouco penosa, fazer trabalho de clarificação, permitir que a atenção se concentre nos aspectos essenciais, reduzir o número dos pontos de divergência ao mesmo tempo que os realçavam, enfim, e esse é talvez, em nossa opinião, o resultado mais notável, efectuar um estreito e permanente confronto entre as teses jurídicas, mesmo as mais doutas, e a realidade dos problemas, fazendo da adaptação a essa realidade o teste do efectivo valor destas teses. Ora é esse, sabemo-lo todos, o papel do magistrado, que não deve fabricar teorias, mas sim fazer justiça. Sem dúvida, meus senhores, a expressão, um pouco usada, «auxiliares de justiça» raramente terá sido mais merecida que pelos advogados das duas partes neste processo difícil.

Esta «situação» que nos limitamos a «observar» — o que não nos impede de a «apreciar» no seu justo valor — tem como efeito simplificar consideravelmente a nossa tarefa e dispensar-nos-á, para começar, de uma exposição de conjunto sobre o problema da integração das empresas exploradoras das minas de carvão belgas no mercado comum.

I — Os textos legais

Limitar-nos-emos, à guisa de introdução, a recordar esquematicamente as principais disposições aprovadas pela convenção relativa às disposições transitórias para fazer face a este problema, e entre as quais figura o artigo 26.o, n.o 2, alínea a), cuja interpretação dá lugar ao presente litígio.

São:

1)

As disposições de alcance geral do artigo 23.o, relativas à readaptação, que permitem, por um lado, facilitar o financiamento dos programas de transformação ou de criação de novas actividades e conceder auxílios não reembolsáveis para a reclassificação e a reeducação da mão-de-obra, em condições mais amplas que as previstas pelo Tratado e, por outro, conceder subsídios não reembolsáveis, em certas condições, às próprias empresas, quando estas são obrigadas a cessar a sua actividade devido ao estabelecimento do mercado comum.

2)

As disposições especiais relativas ao carvão previstas no artigo 24.o que, por um lado, alargam o âmbito das normas sobre os métodos de cotação e permitem a aplicação de preços de zona em casos não previstos pelo Tratado e, por outro, autorizam a manutenção ou criação de caixas ou mecanismos nacionais de compensação, financiados por uma imposição sobre a produção nacional.

3)

Finalmente, as disposições igualmente específicas para o carvão, e, além disso, especiais para a Bélgica e a Itália, que são as dos artigos 25.o, 26.o e 27.o Resumem-se assim:

a)

garantia dada à Bélgica de que a sua produção líquida de carvão não terá de suportar em cada ano, relativamente ao ano precedente, uma redução superior a 3 % (salvo correcção eventual em caso de redução conjuntural da produção total de carvão da Comunidade);

b)

possibilidade (mas não obrigação) de o Governo belga decidir o isolamento do mercado de carvão do seu país através de mecanismos que funcionem sob o controlo da Alta Autoridade, provocando essa decisão a obrigação de esse Governo, de acordo com a Alta Autoridade, tornar efectivas as deslocações de produção reconhecidas como possíveis por esta última, dentro do limite garantido de 3 %;

c)

finalmente, instituição de um mecanismo comunitário de perequação, financiado por uma imposição sobre as produções de carvão dos países onde os preços de custo médios sejam inferiores à média ponderada da Comunidade, isto é, sobre a produção das empresas exploradoras das minas de carvão alemãs e neerlandesas. As regras de incidência da imposição são fixadas pelo artigo 25.o, não estando as regras de repartição fixadas; só o seu objecto é determinado, duma maneira bastante precisa, pelo artigo 26.o, n.o 2, para a Bélgica, e pelo artigo 27.o, n.o 1, para a Itália. Notemos que, de uma maneira indirecta mas certa, a convenção, ainda aqui, subordina o funcionamento do mecanismo ao acordo do governo interessado, uma vez que, por um lado, o auxílio «recebido do exterior», isto é, proveniente da imposição de perequaçâo, não pode ultrapassar o montante da subvenção governamental que lhe está obrigatoriamente associada e, por outro, «a concessão destas subvenções… constitui um direito para os governos e não uma obrigação»; portanto, se o governo nada pagar, não há perequaçâo.

O Tribunal sabe que, de facto, o Governo belga, até agora, não quis recorrer ao isolamento do seu mercado de carvão, mas, em contrapartida, pelo pagamento das subvenções, permitiu o funcionamento do sistema de perequaçâo a favor da Bélgica, funcionamento que se toma assim obrigatório para a Alta Autoridade.

O Tribunal sabe também que, das duas «compensações adicionais» previstas no artigo 26.o, n.o 2 [o que se chama «perequações b) e c)»], uma, a «perequaçâo b)», destinada à siderurgia belga para lhe permitir enfrentar o mercado comum sem ser prejudicada pelo regime especial do carvão belga, não foi aplicada, tendo-o sido apenas a «perequação c)», prevista a favor das exportações de carvão belga para o mercado comum, mas em condições que estão fora do âmbito do actual litígio. Falta, portanto, a «perequação a)», aquela que se destina, desde o início do período de transição: a «permitir que, para o conjunto dos consumidores de carvão belga no mercado comum, os preços deste carvão se aproximem dos preços do carvão do mercado comum, de forma a possibilitar que os preços do carvão belga baixem ao nível dos custos de produção previsíveis para o termo do período de transição. A tabela de preços assim fixada», acrescenta o texto, «não pode ser alterada sem o acordo da Alta Autori-dade».

É tudo, no que se refere aos textos legais.

II — As decisões impugnadas

Quanto às decisões, só pretendemos, ainda aqui, recordar o essencial.

A —

Pela Decisão n.o 1/53, de 7 de Fevereiro de 1953 (publicada no Jornal Oficial da Comunidade de 10.2.1953), a Alta Autoridade' fixou as condições de incidência e de cobrança da imposição de perequação prevista no artigo 25.o da convenção. Por carta do mesmo dia, publicada no mesmo número do Jornal Oficial, a Alta Autoridade notificou os governos dos Estados-membros da Comunidade da entrada em vigor do mecanismo de perequação: essa é uma formalidade muito importante, visto que, por força do artigo 8.o da convenção, é esta notificação que marca a data do estabelecimento do mercado comum do carvão e, por consequência, nos termos do artigo 1.o, n.o 4, da mesma convenção, o início do período de transição.

B —

No Jornal Oficial da Comunidade de 13.3.1953, surge toda uma série de decisões relativas aos preços do carvão na Comunidade, que fixam preços máximos e, em certos casos, preços de zona. Duas delas dizem respeito ao carvão belga:

a)

a Decisão n.o 24/53, de 8 de Março de 1953, «relativa à fixação das tabelas de preços das empresas das bacias belgas». É uma decisão baseada simultaneamente no artigo 26.o da convenção e no artigo 61.o do Tratado. Fixa num quadro os preços máximos por categorias, com o duplo fundamento, expresso nos «considerandos» que precedem a decisão, de que, «para calcular a perequação, deve ser fixada uma tabela que permita aproximar dos preços do mercado comum os preços do carvão belga, de forma que estes últimos baixem ao nível dos custos de produção previsíveis para o termo do período transitório», e que «os pagamentos de perequação e as subvenções que lhe estão associadas não atingiriam o seu objectivo se o nível dos preços resultante desta tabela pudesse ser ultrapassado pelas empresas»;

b)

uma carta de 8 de Março de 1953 dirigida ao Governo belga, que indica, nos termos dos resultados das «conversações» que tiveram lugar entre os serviços da Alta Autoridade, os representantes dos produtores e as administrações belgas, as modalidades dos auxílios às empresas exploradoras das minas de carvão belgas que a Alta Autoridade se propõe aplicar. Estes «são compostos, por um lado, por 200 milhões de BFR de subvenções concedidas desde agora pelo Governo belga a certas empresas exploradoras de minas de carvão (são as subvenções ditas “convencionais”) e, por outro, por um montante de 29 BFR por tonelada extraída, que constitui a diferença entre o preço de uma tabela de conta que manteria as receitas actuais das empresas e as da tabela de venda aos preços da qual as empresas exploradoras das minas de carvão distribuirão a sua produção» (e que não é senão a tabela fixada pela primeira decisão). Um quadro anexo, elaborado em duas colunas para cada categoria e cada espécie, concretiza este sistema, que, notemo-lo, evidencia grandes diferenças entre as variações segundo as espécies: assim, para os resíduos gordos, ela é de 43 BFR (tabela de conta: 378 BFR, tabela de venda: 335 BFR), enquanto que para toda uma série de carvões meios gordos e magros a diferença é igual a 0, ou seja, para estas espécies, não há perequação, se bem que haja preço máximo; portanto, o valor de 29 BFR é apenas uma média. Além disso — notemo-lo igualmente —, este valor de 29 BFR representa para o consumidor uma redução de apenas 19 BFR, porque é acompanhado da supressão de um duplo preço incompatível com o Tratado.

Tal é o regime nos termos do qual, salvo algumas modificações menores, funcionou o sistema da perequação até à entrada em vigor das decisões de 28 de Maio de 1955 que o alteraram profundamente.

C —

Estas decisões, publicadas no Jornal Oficial da Comunidade de 31.5.1955, são, como as precedentes, em número de duas:

a)

a Decisão n.o 22/55, relativa à fixação das tabelas das empresas das bacias belgas, que fixa, desta vez, já não preços máximos, mas preços fixos, ou seja, inalteráveis, e mais baixos que os preços precedentes (se abstrairmos de um aumento geral de 3 BFR destinado a cobrir um recente aumento salarial) e que — outra diferença — já não se baseia no artigo 61. o do Tratado, mas unicamente no artigo 26. o, n.o 2, alínea a), da convenção; finalmente, o preço de certas espécies (os carvões domésticos), muitos dos quais não recebiam perequaçâo, são pura e simplesmente liberalizados;

b)

uma carta dirigida ao Governo belga, «relativa à adaptação do sistema de perequaçâo».

No primeiro parágrafo, esta carta lembra a instituição, de acordo com o Governo belga, de uma «comissão mista» encarregada de estudar a totalidade do problema suscitado pela integração das empresas exploradoras das minas de carvão belgas no mercado comum no termo do período de transição, a posição adoptada pelo Governo belga sobre as conclusões dessa comissão e o acordo celebrado entre este governo e a Alta Autoridade sobre o objecto das medidas próprias para assegurar a integração nas condições e prazos fixados pela convenção relativa às disposições transitórias.

No segundo parágrafo, a Alta Autoridade declara: «Em consequência, foi reconhecido que o auxílio concedido às empresas exploradoras das minas de carvão belgas graças à perequação deve ser acompanhado de um conjunto de medidas que incumbem ao Governo belga. A Alta Autoridade entende, em particular, que a revisão das medidas de perequaçâo deve estar subordinada a uma acção do vosso governo, no sentido definido adiante…». Segue-se a enumeração de quatro medidas das quais as duas primeiras são de ordem financeira, a terceira relativa à criação ou à extensão de centrais térmicas mineiras e a quarta (citamos, visto que é um dos pontos em litígio):

«retirar, com o acordo com a Alta Autoridade, os subsídios de perequaçâo às empresas que não realizem o esforço de reequipamento julgado possível e necessário, assim como àquelas que recusem efectuar as cessões ou trocas de jazigos julgadas indispensáveis a uma melhor adaptação dos campos de exploração».

O terceiro parágrafo diz respeito à nova adaptação do sistema de perequaçâo. Através de uma mistura contínua de comentários e de disposições propriamente decisórias — mistura que é própria destas «decisões» adoptadas sob forma de cartas e publicadas apenas na rubrica «Informações», muito cara à Alta Autoridade — esta expõe os objectivos da sua nova política: aproximar mais os preços do carvão belga dos do mercado comum e assegurar uma melhor utilização das somas provenientes da imposição de perequaçâo, que devem diminuir todos os anos, por força da degressividade instituída pelo artigo 25.o da convenção. Explica porque alterou a tabela de preços, alteração efectuada pela Decisão n.o 22/55, depois porque e como pretende proceder à eliminação progressiva da perequaçâo, por um lado, relativamente a certas espécies (carvões domésticos), para os quais a procura, «constantemente muito superior à oferta no mercado comum, assegura a distribuição de forma durável sem que seja necessário qualquer auxílio de perequaçâo» e, por outro, em relação a certas empresas, a saber, as minas de Campine, «cuja localização favorável e as reservas exploráveis durante vários anos permitem concentrar toda a extracção num único nível e através de uma sede única», essas minas são designadas «com base», refere a Alta Autoridade, «em indicações fornecidas pelo vosso governo»; são as três empresas recorrentes no processo 9/55.

Finalmente, após algumas outras disposições, uma das quais decide o fim da afectação especial dos 200 milhões de subvenções convencionais, a Alta Autoridade (é o objecto do quarto parágrafo da carta) refere-se à Decisão n.o 22/55, que fixa os preços de venda e anuncia o quadro das taxas de perequação publicado em anexo à carta. Este quadro mostra o abandono do sistema precedente, nos termos do qual os pagamentos de perequação correspondiam à diferença entre a tabela de venda e uma tabela de conta: a nova tabela limita-se a fixar, para cada espécie e categoria, a taxa de perequação por tonelada. Para as espécies liberalizadas e para as empresas privadas de perequação, o valor é igual a 0.

Tais são as duas decisões que submetem à apreciação do Tribunal, por via de um recurso de anulação baseado no artigo 33.o do Tratado, por um lado, a Fédération Charbonnière de Belgique ou Fédéchar (processo 8/55) e, por outro, as três sociedades referidas no artigo 3.o, alínea b), da carta de 28 de Maio: Société des Charbonnages de Beeringen, Société des Charbonnages de Houthalen e Société des Charbonnages de Helchteren et Zolder (processo 9/55).

III — Os pedidos dos recursos

A —

No processo 8/55, a Fédération Charbonnière de Belgique concluiu pedindo:

1)

a anulação da Decisão n.o 22/55 (e da tabela anexa) «na medida em que fixa reduções de preços para certas espécies de carvões»;

2)

a anulação da decisão contida na carta de 20 de Maio de 1955 (e no quadro das taxas de perequação junto a esta carta), na medida em que:

a)

provoca uma discriminação entre produtores de espécies idênticas de carvão;

b)

decide que os pagamentos de perequação são ou poderão ser retirados a certas empresas, se estas não realizarem o esforço de reequipamento julgado possível e necessário ou recusarem efectuar as cessões ou trocas de jazigos julgadas indispensáveis a uma melhor adaptação dos campos de exploração;

c)

fixa taxas de perequação correlativas à nova tabela.

B —

Quanto ao processo 9/55 das três sociedades, os pedidos, sob uma forma um pouco diferente e que acentua sobretudo a parte da decisão contida na carta, que se aplica directamente às recorrentes, têm na realidade o mesmo objecto que os do processo 8/55.

IV — Os fundamentos dos recursos

Parece-nos supérfluo retomar em pormenor a enumeração dos fundamentos que figuram nos recursos — visto que deveremos voltar a eles. Notemos somente que um deles tem um carácter claramente distinto de todos os outros: é um fundamento de desvio de poder baseado no facto de a decisão impugnada (a Decisão n.o 22/55) ter sido adoptada «na sequência de uma intervenção do Governo belga e para servir objectivos próprios da política económica deste». Todos os outros fundamentos se relacionam com a violação de disposições do Tratado ou da convenção, designadamente dos artigos 24.o, 25.o, e 26.o da convenção, base legal na matéria em causa, como vimos, dos artigos 5.o e 57.o do Tratado, nos termos dos quais a Alta Autoridade desempenha a sua missão através de intervenções limitadas e recorre de preferência aos modos de acção indirectos que estão à sua disposição, e do artigo 4.o, alínea b), do Tratado, que proíbe as discriminações. Aliás, estes outros fundamentos são também acompanhados de uma alegação de desvio de poder, mas que se relaciona directamente com o desrespeito dos textos invocados.

Observemos no entanto que, entre os fundamentos invocados, dois dos que figuram no recurso 8/55 não figuram no recurso 9/55, a saber:

1)

o fundamento baseado no facto de a decisão impugnada (trata-se da Decisão n.o 22/55) ter fixado preços sem considerar os custos de produção previsíveis pára o termo do período transitório, o que é contrário ao artigo 26.o, n.o 2, alínea a), da convenção (requerimento 8/55, I-3).

2)

o fundamento de desvio de poder.

Só na réplica as sociedades recorrentes, alinhando inteiramente a sua posição com a Fédéchar, retomaram por sua conta estes dois fundamentos. Ora, o Tribunal sabe-o, é no requerimento, apresentado num prazo peremptório, que deve figurar a exposição, pelo menos sumária, dos fundamentos, juntamente com os pedidos (artigo 22.o do Estatuto do Tribunal).

Em relação ao primeiro dos dois fundamentos, pode-se sustentar, em rigor, que, ao invocar a violação do disposto no artigo 26. o, n.o 2, alínea a), ainda que, noutros aspectos, as sociedades satisfizeram as exigências formais do artigo 22.o (ainda que isso seja muito discutível). Mas um tal esforço é evidentemente impossível relativamente ao fundamento de desvio de poder. Proporemos, pois, ao Tribunal que afaste este último fundamento como inadmissível, no que respeita ao recurso 9/55. Isso não tem, aliás, importância prática, visto que o Tribunal terá de se pronunciar sobre o mesmo fundamento por ocasião do recurso 8/55.

Para terminar com esta questão dos funda mentos, devemos ainda dizer uma palavra sobre uma questão suscitada pela Alta Auto ridade na contestação no processo 9/55 (nonc parágrafo, p. 12): «O Tribunal verificará, di; a Alta Autoridade, que, no que respeita à Decisão n.o 22/55, as recorrentes limitam-se a invocar a «ilegalidade» da decisão — sen que daí se possa deduzir de qual dos funda mentos referidos no artigo 33.o se trata —, e a remeterem para o pedido de um terceiro a Fédération Charbonnière de Belgique, rela tivo à mesma decisão. A admissibilidade desta parte do recurso face ao artigo 29.o do Re gulamento Processual é, pois, duvidosa. Neste aspecto, a Alta Autoridade remete para a sabedoria do Tribunal».

Meus senhores, no que respeita à remissão para o pedido no processo 8/55, pensamos que, no presente caso, é admissível. Com efeito, os dois recursos são estreitamente conexos; foram interpostos no mesmo dia, têm o mesmo objecto e, sob reserva do que acabámos de dizer, baseiam-se nos mesmos fundamentos; as sociedades recorrentes no recurso 9/55 fazem parte da Fédération Charbonnière de Belgique, recorrente no processo 8/55. O Tribunal decidiu a apensação dos dois processos para efeitos de audiência e não está excluído que essa apensação se estenda ao próprio acórdão: em todo o caso, é uma simples questão de oportunidade e, evidentemente, nenhum obstáculo jurídico se lhe opõe. Nestas condições, pode-se admitir que a exposição de um fundamento seja substituída por uma remissão feita expressis verbis de um requerimento para outro, desde que o enunciado deste fundamento figure claramente no primeiro requerimento. Pelo contrário, quando o próprio enunciado não figura no requerimento, quando este é inteiramente omisso a este respeito, a violação do artigo 22.o do Estatuto e, por conseguinte, do artigo 29.o do regulamento que, nesta matéria, não faz senão reproduzi-lo, é evidente. Aliás, em nossa opinião, como já dissemos, esse é apenas o caso do fundamento de desvio de poder e, talvez (a este respeito temos dúvidas) do fundamento baseado no facto de a Decisão n.o 22/55 não ter considerado os custos de produção previsíveis para o termo do período de transição.

V — A admissibilidade dos recursos face ao artigo 33.o

Chegamos agora às questões mais importantes de admissibilidade, as que se põem face ao artigo 33.o, segundo parágrafo, do Tratado.

Recordemos este texto: «as empresas ou associações referidas no artigo 48.o podem interpor, nas mesmas condições (isto é, nas condições que acabam de ser fixadas no primeiro parágrafo), recurso das decisões e recomendações individuais que lhes digam respeito, bem como das decisões e recomendações gerais que considerem viciadas de desvio de poder que as afecte».

As três sociedades recorrentes no processo 9/55 são empresas na acepção do artigo 80.o do Tratado; a Fédération Charbonnière de Belgique é uma associação de empresas na acepção do artigo 48.o Portanto, a qualidade das recorrentes está bem provada. Mas devem ser examinadas três questões relativas à admissibilidade, pelo menos parcial, dos recursos. São as seguintes:

1)

a carta de 28 de Maio tem carácter de «decisão» ou, pelo menos, de «recomendação», na parte relativa à ameaça de supressão da perequação?

2)

as duas decisões impugnadas têm, no todo ou em parte, carácter de «decisões individuais que digam respeito»às recorrentes?

3)

se este carácter não lhes for reconhecido, estão elas «viciadas de desvio de poder que as afecte»?

Se a primeira destas questões é puramente específica do caso em apreço, o mesmo não se passa com as duas outras, que põem em causa a interpretação do artigo 33.o em aspectos que ainda só foram parcialmente resolvidos pela jurisprudência do Tribunal.

O trecho da carta de 28 de Maio de 1955 relativo à ameaça de supressão da perequação tem ou não carácter de decisão (ou de recomendação)?

Poderia espantar-nos que a própria Alta Autoridade, que, aliás, só suscitou esta questão na audiência, não saiba exactamente se pretendeu ou não adoptar uma decisão sobre este ponto. No entanto, espanta-nos menos o facto de os juristas que a representam perante o Tribunal terem experimentado alguns escrúpulos a este respeito, e o terem exprimido, uma vez que se deve reconhecer que a questão é bem duvidosa.

Pensamos, antes de mais, que não se trata, em todo o caso, de uma “recomendação”, na acepção que esta expressão tem no artigo 14.o do Tratado, isto é, uma decisão quanto aos fins a atingir mas que não toma partido sobre a escolha dos meios adequados para alcançar esses fins. Com efeito, aqui, os meios estão perfeitamente definidos. Mas é uma decisão?

A forma em que a carta é concebida sobre este ponto levaria a responder pela negativa. A frase começa, como o Tribunal se recorda, por estas palavras: “A Alta Autoridade entende, em particular, que a revisão das medidas de perequaçâo deve estar subordinada a uma acção do vosso Governo, no sentido definido adiante…”; portanto, por um lado, trata-se de uma opinião e, por outro, o que está em causa é uma acção do Governo belga.

Não obstante, pensamos que, na realidade, se trata de uma decisão, isto é, um acto que produz ou pode produzir efeitos jurídicos, um acto “lesivo”ou susceptível de lesar, para retomar uma expressão corrente em matéria de contencioso administrativo.

Efectivamente, se se trata de uma opinião, inclui, como o Tribunal notou, a palavra “deve” (deve estar subordinada…). Por outro lado, no que respeita à quarta modalidade indicada pela carta, que está em causa aqui, não depende, como as outras, apenas do Governo belga, mas de uma medida cuja execução incumbe a este governo agindo “com o acordo da Alta Autoridade”. Finalmente, é dito um pouco mais adiante que “a Alta Autoridade reserva-se o direito de intervir junto do Governo belga para seguir a execução dos programas de reequipamento em curso assim como a execução de todas as medidas que tenha por objecto a racionalização e o saneamento da indústria exploradora de carvão belga”. Isto marca bem a vontade afirmada pela Alta Autoridade de participar no controlo das medidas que as empresas devem tomar e cuja correcta execução, no pensamento da Alta Autoridade, condiciona os pagamentos de perequação a essas empresas. Se, portanto, um dia, na sequência desse controlo, a Alta Autoridade entendesse dever cessar os pagamentos devidos a título da perequaçâo, obtendo para esse efeito o acordo do Governo belga, sem dúvida alguma que poderia encontrar na passagem da carta em causa a base legal dessa sanção. Trata-se, assim, se quisermos utilizar, como pensamos dever fazê-lo, de um critério material e não formal, de uma “decisão”, na acepção do artigo 14.o do Tratado, susceptível de recurso nos termos do artigo 33 o

As duas decisões impugnadas têm carácter de “decisões individuais” que “digam respeito” às recorrentes?

O Tribunal sabe que as partes estão de acordo em dois pontos: por um lado, a Alta Autoridade admite, com as recorrentes, o carácter individual da decisão contida na carta de 28 de Maio, na medida em que priva de perequação, ou concede apenas uma perequaçâo reduzida, às três empresas exploradoras das minas de carvão de Campine nominalmente designadas na referida carta. Por outro lado, as recorrentes, pelo menos nas suas alegações, declararam-se de acordo com a Alta Autoridade para reconhecer um carácter geral à decisão (se decisão há, como cremos) relativa à ameaça de supressão da perequaçâo.

No entanto, é evidente que o acordo das partes sobre este assunto não vincula o Tribunal, único a quem compete definir a verdadeira qualificação jurídica das decisões que lhe são submetidas, sendo também evidente que a questão deve ser examinada no seu conjunto.

Senhores Juízes, a este respeito, encontramos já algumas indicações interessantes no recente acórdão do Tribunal de 23 de Abril de 1956, “Groupement des industries sidérurgiques luxembourgeoises” e nas conclusões que o nosso colega Roemer apresentou nesse processo.

O acórdão é, em parte, um acórdão específico. Contudo, num ponto importante, tem a natureza de um acórdão de princípio, quando decide que “nestas condições, para que possa ser interposto um recurso por uma empresa ou associação de uma decisão ou recomendação, basta que aquela decisão ou recomendação não seja geral, tendo o carácter de decisão individual, sem que seja necessário que apresente este carácter relativamente ao recorrente”. É, em suma, uma interpretação extensiva da expressão “que lhes digam respeito”, que não é sinónimo de “de que são destinatários”. Como observou o advogado-geral nas suas conclusões, a interpretação estrita, não considerando o objecto material da decisão, conduziria a resultados pouco satisfatórios: por exemplo, a supressão de um encargo especial dirige-se, de um ponto de vista formal, àquele sobre o qual esse encargo incidia, mas diz respeito, na realidade, ao antigo beneficiário. No caso em questão, era a situação contrária: a decisão implícita impugnada recusa suprimir um encargo que, segundo a recorrente, tem carácter de encargo especial ilegal, e do qual ela era um dos principais devedores: é evidente que os verdadeiros interessados são aqueles sobre os quais o encargo incidia e não os que dele beneficiavam. Foi por isso que o Tribunal admitiu que a decisão, que, pela sua natureza, tinha carácter individual, “dizia respeito” ao recorrente se bem que ele não fosse o seu destinatário.

Assim, Senhores Juízes, a interpretação estrita, rígida, do texto foi afastada, e não pensamos que, esta vez, as recorrentes disso se queixem. Foi afastada para dar lugar a uma interpretação que procura inspirar-se na noção de interesse que, como recordámos nas nossas conclusões nos processos 3/54 e 4/54 (Colect. 1954-1961, p. 11 e 15), é inerente ao recurso de anulação. Sem dúvida, não se trata de um qualquer interesse e, como igualmente tínhamos dito, em vez de remeter para o Tribunal a tarefa de elaborar uma jurisprudência adaptada aos diversos casos concretos, o Tratado preferiu regular ele próprio a questão por via de autoridade. Fê-lo, como o advogado-geral Roemer mostrou por uma penetrante análise nas suas conclusões já citadas, elaborando a lista das pessoas com direito de agir (é o artigo 33.o, primeiro parágrafo, que confere, sem limitação, o direito de recurso aos Estados-membros e ao Conselho), e concretizando o interesse através de uma definição (é o caso das empresas e associações referidas no segundo parágrafo do mesmo artigo, às quais só é reconhecido interesse na medida em que se trate de “decisões individuais que lhes digam respeito”); e o nosso colega recordou que este último procedimento se encontra em certas legislações nacionais, designadamente em direito alemão (onde se vai mesmo ao ponto de exigir a existência de uma violação de um direito).

Mas se o Tratado dispôs assim, por via de enumeração ou de definição, em termos que vinculam o juiz, este não deixou de ter o direito — diremos mesmo o dever — de se inspirar na noção de base subjacente, isto é, a noção de interesse, para interpretar o texto sempre que subsiste uma margem de incerteza. Pensamos ficar assim nos limites de uma sã doutrina da interpretação de textos legais — mesmo internacionais — e na linha traçada pelo acórdão do Tribunal de 23 de Abril de 1956.

Assim, o problema consiste em saber o que é uma decisão individual e o que é uma decisão geral. Como o nosso colega Roemer — cuja opinião partilhamos plenamente, mais uma vez — referiu nas suas conclusões nos processos luxemburgueses, não se devem invocar aqui, senão com grande reserva, os direitos nacionais, pela dupla razão de que estes, em geral, têm em conta considerações que não as que tem em vista o Tratado, e que, nestes mesmos direitos, os critérios da distinção são frequentemente obscuros.

O que é relativamente claro é a distinção entre, por um lado, o regulamento, isto é, o acto destinado a regular uma situação geral e impessoal através de disposições normativas, e que, pelo menos do ponto de vista material, partilha o próprio carácter da lei, que quase sempre se destina a completar — e, por outro, em oposição, o acto individual, que tem por objecto aplicar a norma a uma pessoa determinada (por exemplo, uma sanção, uma autorização ou uma recusa de autorização). Mas a dificuldade advém do facto de existirem, entre os dois extremos, toda uma série de casos intermédios. Em alguns deles, a escolha é fácil: por exemplo, as decisões colectivas nada mais são, na realidade, que uma justaposição de decisões individuais (assim, um quadro de promoção em matéria de funcionários). Mas noutros casos, a dificuldade é maior. É assim nos casos em que a decisão se aplica a uma situação concreta que regula directamente, sem que as pessoas visadas sejam designadas nominalmente, ou mesmo sem que seja possível saber, a não ser por um exame especial dos casos individuais, a que pessoas ela diz respeito.

Em apoio de uma interpretação estrita da noção de decisão individual, poder-se-ia ser tentado a recorrer ao artigo 15.o do Tratado, nos termos do qual «as decisões e recomendações, sempre que tenham carácter individual, obrigam o interessado por força da notificação», enquanto que «nos outros casos, produzem efeito pelo mero facto da sua publicação». Mas pensamos, como o advogado-geral Roemer, que também examinou este ponto, que esta disposição tem essencialmente por objecto saber em que casos a publicação é suficiente para que a decisão tenha efeito obrigatório: isto interessa sobretudo para efeitos de prazos de recurso.

Pensamos, Senhores Juízes, que para resolver a dificuldade no que chamámos os «casos intermédios», deve recorrer-se, pelo menos a título auxiliar, a um critério subjectivo de relatividade. Queremos com isso dizer que uma decisão que, por hipótese, não tem um carácter normativo e se destina a regular directamente uma situação concreta, pode ser considerada como uma decisão individual em relação às pessoas (empresas ou associações) que são imediata e directamente afectadas por esta decisão considerada no seu todo. Pelo contrário, o carácter individual deverá ser recusado à mesma decisão em relação às pessoas a quem não diz directamente ou só parcialmente diz respeito. A ideia é que seja estabelecida uma correlação, não matemática, evidentemente, mas bastante estreita, entre o âmbito de aplicação da decisão e a esfera de interesses da pessoa que dela recorre.

Este esforço, meus senhores, parece-nos justificado a um duplo título. Antes de mais, permite dar uma interpretação do artigo 33.o baseada essencialmente na noção de interesse que, como dissemos, está subjacente a todo o artigo e que, com toda a evidência, inspirou também o acórdão do Tribunal de 23 de Abril de 1956. Ora, a noção de interesse é essencialmente relativa.

Por outro lado, este mesmo esforço tem por resultado abrir largamente a porta deste Tribunal às associações de produtores referidas no artigo 48.o, o que também nos parece necessário. Com efeito, as associações representam interesses colectivos e uma restrição demasiada da noção da decisão individual causaria a impossibilidade, na maior parte dos casos, de elas usarem o direito de recurso que o artigo 33.o lhes facultou: só poderiam recorrer das decisões gerais em caso de «desvio de poder que as afecte»e não poderiam impugnar as decisões individuais, em sentido estrito (por exemplo, uma sanção, uma autorização) porque, cremos, é um princípio comummente admitido que uma pessoa colectiva como uma associação ou um sindicato não pode substituir-se a um dos seus membros numa acção na qual só este tem legitimidade: no máximo, tem um direito de intervenção em apoio dessa acção. Podemos referir-nos, sobre este assunto, por exemplo, à jurisprudência constante do Conseil d'Etat francês (citada por Odent, Contentieux administratif, 1953-1954, III, p. 542 e 543).

Ora, as associações de empresas referidas no artigo 48.o têm, no Tratado, um papel importante, que o próprio artigo 48.o define. Parece-nos indispensável que este papel se exerça igualmente na defesa em juízo dos interesses colectivos que representam, e isso tanto mais que — a experiência prova-o — certas decisões da Alta Autoridade podem lesar estes interesses sem que qualquer Estado-membro julgue útil recorrer. Pode mesmo dizer-se que, em matéria de carvão, esta situação é quase corrente, porque normalmente, e designadamente quando se trata de preços, os interesses das empresas exploradoras das minas de carvão estão em conflito simultaneamente com a Alta Autoridade, cuja missão é «velar pelo estabelecimento dos mais baixos preços» [artigo 3.o, alínea c)], com todos os utilizadores, e, em particular, a in dústria siderúrgica, e com os governos, cuja política económica geral procura, também ela, a maior parte das vezes, comprimir os preços desta matéria de base.

Tentemos agora aplicar estas várias ideias ao caso em apreço.

Antes de mais, consideramos que a Decisão n.o 22/55 e a carta formam um todo inseparável, mesmo juridicamente, não se concebendo uma sem a outra: têm ambas um objecto único: assegurar a aplicação do artigo 26.o, n.o 2, alínea a), relativo à perequação; e a fixação dos preços de venda, que é o objecto da Decisão n.o 22/55, não tem sentido se não for acompanhada da determinação das taxas de perequação, que resulta do quadro anexo à carta.

Por outro lado, não se trata de uma decisão de carácter normativo. Um perfeito exemplo de uma decisão que não é um regulamento mas que, no entanto, tem carácter geral, porque fixa os princípios nos quais as decisões de execução deverão basear-se posteriormente, parece-nos ser a Decisão n.o 6/53, de 5 de Março de 1953, relativa aos princípios aplicáveis à fixação dos preços máximos para o carvão no mercado comum: essa decisão não é um regulamento, visto que tem essencialmente por objecto decidir, «nas presentes circunstâncias», a fixação de preços máximos para o carvão, mas é uma decisão geral de carácter normativo, que define de forma geral e abstracta as modalidades de funcionamento do regime de preços máximos instituído, e serve de base a toda uma série de decisões de execução relativas às várias bacias e mesmo a empresas determinadas no interior da mesma bacia. Por este motivo, não poderia ser impugnada por nenhuma associação, mesmo que existisse uma federação que agrupasse todas as empresas exploradoras das minas de carvão da Comunidade.

Aqui, a situação é totalmente diferente. As regras aplicáveis encontram-se na convenção, como aliás o próprio princípio da operação a realizar. Trata-se unicamente de aplicar estas regras a uma situação concreta e bem definida, simultaneamente, no espaço e no tempo. A decisão que tem este objecto (empregamos propositadamente o singular, por considerarmos que, na realidade, existe apenas uma decisão) tem claramente um carácter individual que afecta as empresas exploradoras de minas de carvão belgas, consideradas no seu conjunto, e a este título diz respeito à Federação que agrupa precisamente todas as empresas que exploram essas minas de carvão, cujos interesses tem por missão defender. Propomos, pois, ao Tribunal que considere as duas decisões como «decisões individuais que digam respeito« à Fédération Charbonnière de Belgique.

Em relação às três empresas recorrentes no processo 9/55, a situação é diferente, e são necessárias distinções. O carácter individual em relação às empresas não nos parece contestável no que diz respeito à supressão ou à redução das taxas de perequação, matéria em que são designadas nominalmente na decisão contida na carta de 28 de Maio e no quadro que lhe está anexo; aliás, a Alta Autoridade admite-o. É não menos certo que este mesmo carácter individual, em relação a estas empresas, não pode ser reconhecido às disposições relativas à ameaça de supressão de perequação: só uma decisão ulterior que viesse a aplicar a ameaça a uma delas teria, em relação a ela, esse carácter.

Podem ter-se mais dúvidas sobre a fixação dos preços que resulta da Decisão n.o 22/55. Entendemos, no entanto, que esta decisão, cujo objecto é fixar preços por espécies e categorias aplicáveis sem distinção a todas as empresas exploradoras de minas de carvão belga, não pode ter um carácter individual em relação a uma empresa determinada.

Chegamos agora à terceira e última questão de admissibilidade.

Se não for reconhecido às decisões impugnadas carácter individual, estão elas viciadas de desvio de poder que «afecte« as recorrentes ?

A bem dizer, trata-se mais de uma questão de mérito, mas que interage parcialmente com a admissibilidade, pelo menos segundo a opinião que exprimimos nas nossas conclusões nos processos 3/54 e 4/54, à qual tivemos o prazer de ver as partes aderirem.

Considerações gerais

Meus senhores, sobre o que deve entender-se por «desvio de poder», na acepção do artigo 33.o, e por «desvio de poder que as afecte», na acepção do segundo parágrafo do mesmo artigo, permitimo-nos referir as nossas conclusões nos processos 3/54 e 4/54, ASSIDER e ISA (Colect. 1954-1961, p. 11 e 15). Com efeito, por um lado, reconhecemos muito francamente que, apesar de sérias reflexões sobre este assunto, que não datam deste processo, apesar das muito interessantes observações lidas e ouvidas no presente processo, as conclusões a que tínhamos chegado nos processos 3/54 e 4/54 não se modificaram em ponto algum. Observamos apenas que, consoante os casos, as partes citam uma ou outra parte dessas conclusões, que evidentemente consideram favorável à sua tese, mas até agora ninguém, que seja do nosso conhecimento, lhes fez uma crítica sistemática. Quanto à autocrítica, no entanto séria, acabamos de dizer que, na realidade, não alcançou qualquer resultado!

Limitar-nos-emos, assim, a algumas observações complementares:

1.

Antes de mais, não podemos deixar sem esposta as observações feitas por um dos eminentes advogados das recorrentes a propósito do trecho da exposição dos fundamentos da lei luxemburguesa de ratificação. É bem verdade que a exposição dos fundamentos de uma lei, ou, mais exactamente, de um projecto de lei, como os outros documentos que é habitual ordenar na rubrica dos «trabalhos preparatórios», não tem qualquer valor obrigatório quanto à interpretação do texto e, em particular, não pode nunca ser oposta ao próprio texto quando este é claro e sem ambiguidade. Mas é universalmente admitido que os juízes podem recorrer a ela, a título de informação, e daí retirar elementos que permitam, se necessário, esclarecer o pensamento do legislador. O que é verdade é que os juízes têm toda a liberdade de apreciação para o fazerem. Sem dúvida, quando se trata de um Tratado, os documentos de ordem interna relativos ao processo de ratificação só podem dizer respeito à intenção ou ao pensamento de um dos governos signatários. Mas de qualquer forma, não se deve presumir que, ao apresentar o Tratado ao seu Parlamento para ratificação, um governo se permita exprimir uma opinião que sabe não ser partilhada pelos governos dos outros Estados signatários e que não seja, pelo menos na sua opinião, o reflexo de um comum acordo. No que diz respeito ao Tratado de 18 de Abril de 1951, os trabalhos preparatórios do próprio Tratado são praticamente inexistentes — ou secretos (o que é equivalente); portanto, por este motivo, as exposições dos fundamentos nacionais têm maior importância, e isto tanto mais que teve lugar uma certa coordenação destas exposições, de forma a evitar — o que teria sido muito desagradável — contradições entre elas.

Dito isto, refira-se que só invocámos o argumento porque vinha em apoio duma opinião baseada essencialmente no próprio texto do artigo 33.o, mas o comentário incriminado reflecte com uma tal evidência a intenção mais certa dos redactores do Tratado sobre o ponto em litígio que nos pareceu impossível não lhe reconhecer um certo valor.

2.

Contrariamente ao que sustenta a Alta Autoridade, pensamos que não se pode dar às palavras «desvio de poder» um sentido diferente no primeiro e no segundo parágrafos do artigo 33.o Há somente, no segundo parágrafo, uma exigência suplementar: é necessário que, ao ser cometido, o desvio de poder alegado afecte o recorrente.

Sem dúvida, esta tese alarga o âmbito da aplicação do segundo parágrafo para além do desvio de poder que consiste em «camuflar» uma decisão individual sob a aparência de uma decisão geral, mas, como observámos nas nossas conclusões precedentes (processo 3/54, Colect. 1954-1961, p. 11), esta explicação da decisão individual camuflada, se bem que seja, em nossa opinião, a única plausível, não pode opor-se a que o texto seja aplicado tal como é, uma vez que a interpretação estrita conduziria a privar de praticamente todo o alcance os recursos interpostos pelas associações das decisões gerais. É verdade que, se o Tribunal seguir as nossas sugestões quanto ao carácter das decisões gerais que dizem respeito às associações, este inconveniente será reduzido na prática pela própria redução do número de decisões com carácter geral em relação às associações; contudo, a objecção permanece válida.

3.

As várias observações que queremos ainda submeter ao Tribunal dizem respeito à própria noção do desvio de poder referido no artigo 33.o

a)

Meus senhores, verificámos com satisfação que as partes estão de acordo sobre a definição do desvio de poder no sentido do uso feito por uma autoridade pública dos seus poderes para um fim diferente daquele em vista do qual eles lhe foram conferidos; no máximo, os representantes das recorrentes inclinar-se-iam a preferir a palavra «objecto» ou «objectivo» à palavra «fim».

Mas, sendo assim, como explicar que a divergência reapareça totalmente quando se trata de passar da definição à aplicação? Como explicar que as recorrentes consigam, em todos os casos, fazer coexistir um fundamento de desvio de poder com um fundamento de ilegalidade?

Meus senhores, é aqui que intervém uma teoria para nós misteriosa e que, apesar de esforços perseverantes, confessamos com toda a humildade termos sido até agora incapazes de compreender, a teoria dita do «desvio de poder objectivo» que se opõe à teoria baseada unicamente num critério de intenção.

Quando dizemos que não compreendemos a teoria dita «objectiva», entendamo-nos bem: queremos dizer que não a compreendemos partindo da definição clássica, a que recordámos há um instante.

Meus senhores, retomemos pois esta definição: uma autoridade usa o seu poder para um fim diferente (ou, se se prefere, com um outro objecto, ou prosseguindo um outro objectivo) daquele em vista do qual esse poder lhe foi conferido.

Isso supõe, primeiro, que a autoridade em causa tem um poder e um poder discricionário, pelo menos dentro de certos limites. Com efeito, por um lado, se não tem esse poder, não pode evidentemente desviá-lo do seu objecto legal; e se, por outro, tem um poder, mas em condições tais que é legalmente obrigada a usá-lo num certo sentido e não noutro, a questão do desvio de poder também não se põe: é o que se chama a «competência vinculada».

Quanto ao critério de intenção, meus senhores, não lhe concedemos uma importância excessiva, se esta expressão choca ou assusta certos espíritos. Não se trata, evidentemente, de «penetrar os pensamentos mais íntimos» e de conhecer as reflexões ou as segundas intenções secretas do autor do acto no momento em que o adoptou; esta investigação de ordem psicológica seria tanto mais ridícula quanto a decisão pode emanar, como é o caso aqui, de uma autoridade colegial; mas trata-se de saber qual foi o fim (ou o objecto, ou o objectivo…) realmente prosseguido pelo autor do acto quando o adoptou, de maneira a poder compará-lo com aquele que deveria ter prosseguido e que, até prova contrária, é reputado ter prosseguido; portanto, não são os resultados da decisão, designadamente a sua ilegalidade, e ainda menos o facto de o autor ter excedido a sua competência, que podem servir de prova a este respeito — ou então as palavras já não têm sentido.

Mas então, como fazer a prova do fim realmente prosseguido? Esta prova pode resultar de um ou de diversos elementos de facto (tais como correspondência, declarações, etc.) por conseguinte de carácter estritamente objectivo, que demonstrarão que o autor do acto não teve realmente em vista o fim (ou o objecto, ou o objectivo) legal, mas um outro que o não é.

b) Queremos fazer ainda duas observações.

I —

Admitimos perfeitamente (e nunca dissemos o contrário) que o desvio de poder pode existir mesmo num caso em que o fim ou o objecto a prosseguir pela autoridade é definido pela própria lei: esta hipótese encontra-se frequentemente no Tratado, e é precisamente o caso do artigo 26.o, alínea a), da convenção que aqui nos interessa. Evidentemente, nada seria mais arbitrário do que excluir o desvio de poder só pelo facto de o fim se encontrar definido por um texto legal. Mas é só na medida em que o poder existe e tem carácter discricionário que se pode conceber o seu desvio: se há ultrapassagem dos limites há excesso de poder e não desvio (eccesso di potere, não sviamento di poteré), o que se traduz no sistema do Tratado por uma incompetência ou por uma violação da lei (ou pelas duas simultaneamente, sendo as regras de competência, em geral, fixadas pela lei).

II —

Afirmou-se frequentemente, em apoio de um alargamento da noção clássica do desvio de poder na aplicação do artigo 33.o, que esta noção praticamente nunca encontraria aplicação positiva, devido à natureza e ao papel da autoridade chamada a intervir para a aplicação do Tratado. Como se pode conceber, diz-se, que a Alta Autoridade possa descer ao ponto de cometer aquilo a que se chama o desvio de poder «sórdido» ? Seria depreciá-la ao nível de um presidente de câmara rural.

Meus senhores, esta objecção é, em nossa opinião, totalmente errada.

É esquecer, antes de mais, que os maiores têm por vezes grandes fraquezas…

Mas, sobretudo, é esquecer duas coisas: a primeira é que a concepção clássica do desvio de poder não está de modo nenhum restringida aos casos «sórdidos», digamos antes, para evitar esta palavra sem dúvida excessiva, aos casos em que um interesse particular ou pessoal toma o lugar do interesse geral. Na sua forma tradicional, o desvio de poder encontra-se também em casos em que o objectivo prosseguido é perfeitamente honesto, até perfeitamente legítimo, mas não é o que devia ser: o exemplo clássico na matéria é o do uso dos poderes de polícia com um interesse financeiro. Há também o que se chama o «desvio de processo», que consiste na utilização de um processo mais simples para evitar recorrer às formalidades, consideradas mais morosas, do processo realmente aplicável.

A segunda observação é que, se virmos o desvio de poder sob este ângulo, pode-se dar conta de que a Alta Autoridade lhe está muito especialmente exposta. Não está exposta, por exemplo, a usar os seus poderes (ou a recusar usá-los), negligenciando os interesses de que tem o encargo em proveito da política económica geral de um Estado-membro? Não é isso, precisamente, o que lhe é reprovado no presente processo, e não vimos uma censura exactamente análoga dirigida à Alta Autoridade num outro processo, também relativo aos carvões? Isso já foi referido neste Tribunal, razão pela qual nos permitimos esta alusão. Usar os seus poderes contra os interesses dos produtores de carvão para sacrificar à política, suposta perfeitamente honesta e inspirada nas mais puras considerações de interesse geral, de um ministro da Economia dinâmico, seja ele belga ou alemão, não seria isso, se nos é permitida a expressão, um desvio de poder «à medida» da Alta Autoridade?

Que esteja provado, é outra questão. Mas o que quisemos mostrar é que não é exacto sustentar que a concepção clássica do desvio de poder seria quase inconcebível no Tratado: o contrário parece-nos verdadeiro.

Aplicação ao caso em análise

Falta agora aplicar estes princípios ao caso em análise, examinando a verdadeira natureza de cada um dos fundamentos invocados. Referir-nos-emos, para o fazer, à enumeração dos fundamentos tal como figura na réplica das três sociedades de Campine (p. 12), por ser aí que ela é mais completa e por a questão interessar principalmente às sociedades (e mesmo unicamente a elas, se o Tribunal seguir as nossas propostas no que diz respeito ao carácter individual das decisões que afectam a Fédéchar).

Primeiro fundamento:«A Alta Autoridade cometeu um desvio de poder, ou, subsidiariamente, legislou para além da sua competência, e/ou violou o Tratado ao impor autoritariamente uma tabela».

Meus senhores, toda a discussão suscitada sobre este tema respeita unicamente ao ponto de saber se os textos legais, e designadamente o artigo 26.o da convenção, permitem ou não à Alta Autoridade estabelecer «autoritariamente», sem o acordo dos produtores, uma tabela de preços. É uma pura questão de legalidade, totalmente estranha ao desvio de poder. Por outro lado, diz respeito à Decisão n.o 22/55, que, em nossa opinião, não tem carácter individual em relação às três empresas. O fundamento não pode ser invocado na medida em que é formulado no recurso 9/55.

Segundo fundamento:«A Alta Autoridade cometeu um desvio de poder, ou, subsidiariamente, legislou para além da sua competência, e/ou violou o Tratado ao impor reduções de preços».

A este respeito, as recorrentes sustentam, antes de mais, que uma reforma de estrutura não pode realizar-se por meio de uma redução artificial dos preços de venda, devendo essa redução ser o resultado das reduções de preços de custo através de investimentos, racionalizações e modernizações do aparelho de produção, o que deve conduzir a deixar as empresas livres para aproveitarem a conjuntura favorável quando ela se apresenta, o que era o caso.

Meus senhores, trata-se portanto de saber se a Alta Autoridade tem ou não o direito de fixar reduções de preços sem considerar a conjuntura: é uma questão estranha ao objecto do texto, que é a obtenção da aproximação dos preços; não é contestado que a Alta Autoridade teve claramente em vista esta aproximação; não pode ser um desvio de poder.

A propósito deste mesmo fundamento, as recorrentes pretendem que a Alta Autoridade assimilou erradamente os preços do mercado comum aos preços do Ruhr.

Meus senhores, alega-se aí um erro de facto sobre o que deve entender-se por «preços do mercado comum», no sentido do artigo 26.o, n.o 2, alínea a), e não um desvio de poder.

Ainda aqui, o fundamento, no seu conjunto, não pode ser invocado pelas três empresas recorrentes.

Terceiro fundamento:«A Alta Autoridade cometeu um desvio de poder, ou, subsidiariamente, legislou para além da sua competência, e/ou violou o Tratado ao impor reduções de preços que não consideram os custos de produção previsíveis para o termo do período transitório».

Meus senhores, já exprimimos as sérias dúvidas que tínhamos quanto à admissibilidade formal deste fundamento, que, pelo menos explicitamente, só foi formulado pelas três sociedades de Campine na réplica.

Em todo o caso, este fundamento deve receber a mesma resposta que os dois primeiros: o facto de não ter considerado os custos de produção previsíveis para o termo do período de transição é não um desvio de poder, mas uma violação do artigo 26.o, n.o 2, alínea a), que prevê formalmente a obrigação de os ter em conta.

Quarto fundamento:«A Alta Autoridade cometeu um desvio de poder ao agir sob a pressão do Governo belga, pelo menos com vista a alcançar objectivos próprios da política do Governo belga mas estranhos ao Tratado».

Este fundamento tem tipicamente o carácter de um fundamento de desvio de poder. Se o Tribunal partilhar da nossa maneira de ver quanto à interpretação do segundo parágrafo do artigo 33.o, admitirá sem dúvida que este desvio de poder, supondo-o provado, teria sido cometido «afectando» as três sociedades recorrentes, que são as verdadeiras vítimas da selectividade. Isto parece-nos verdade para as duas decisões, em razão da sua indivisibilidade de direito e de facto, e daí resulta que as três sociedades podem invocar todos os fundamentos de legalidade, além do fundamento de desvio de poder, pelo menos se se admitir a tese que sustentámos nas nossas conclusões nos processos 3/54 e 4/54 (Colect. 1954-1961, p. 11 e 15) e que as partes nos presentes processos aceitam. Notemos que esta vantagem poderia não ser puramente académica, pelo menos quanto às consequências do acórdão, se não quanto à parte decisória, a qual, evidentemente, só poderia ser anulatória. Mas, recordamo-vo-lo, este fundamento, claramente distinto de todos os outros, não foi invocado, nem sequer por alusão, no recurso 9/55. Assim, só poderá ser examinado quanto ao recurso 8/55.

Quinto fundamento:«A Alta Autoridade cometeu um desvio de poder, ou, subsidiariamente, legislou para além da sua competência, e/ou violou o Tratado ao ameaçar retirar a perequação às empresas que recusem proceder aos investimentos julgados necessários ou à troca de jazigos».

Sobre este ponto, dissemo-lo, a carta de 28 de Maio não tem carácter individual em relação às três sociedades, como elas próprias reconhecem. Por outro lado, a questão é saber se a Alta Autoridade possui ou não o poder de tomar semelhante medida e não saber se, ao fazê-lo, prosseguiu um outro objecto que não a aproximação de preços, o que parece incontestável: não é um desvio de poder.

Sexto fundamento:«A Alta Autoridade cometeu um desvio de poder, ou, subsidiariamente, legislou para além da sua competência, e/ou violou o Tratado ao dissociar perequação e tabela e ao impor uma tabela ao mesmo tempo que recusou a perequação».

Este fundamento não nos parece poder ser dissociado do sétimo e último fundamento, com o qual faz apenas um, que passamos a expor.

Sétimo fundamento:«A Alta Autoridade cometeu um desvio de poder, ou, subsidiariamente, legislou para além da sua competência, e/ou violou o Tratado ao recusar a perequação, ou ao conceder uma perequação inferior, às três recorrentes, ao mesmo tempo que lhes impôs para as mesmas espécies de carvão uma tabela idêntica à dos outros produtores».

Meus senhores, trata-se aqui do trecho da carta de 28 de Maio que, como é pacífico, tem carácter de decisão individual em relação às recorrentes. A admissibilidade do recurso, quanto a este ponto, não causa dúvidas, podendo ser invocados todos os fundamentos referidos no artigo 33.o

Em resumo, pensamos que o recurso 9/55 só é admissível na parte em que se refere à decisão que priva de perequação as três sociedades recorrentes, ou lhes concede apenas uma perequaçâo reduzida, ao mesmo tempo que lhes impõe uma tabela de preços. Aliás, é este ponto que, como elas próprias reconhecem, lhes interessa mais. Quanto ao recurso 8/55, parece-nos admissível em todos os pontos e em relação a todos os fundamentos invocados com base no artigo 33.o

Antes de terminar a apreciação das questões processuais, queremos apresentar uma última observação.

O exame, ao qual acabamos de nos dedicar, dos fundamentos invocados no recurso 9/55 demonstra à saciedade que, se for admitida uma noção demasiado extensiva do desvio de poder, este confunde-se praticamente com a violação da lei ou com a incompetência, de forma que as empresas e suas associações, por este meio, veriam ser-lhes reconhecidos, de facto, direitos de recurso das decisões gerais idênticos aos dos Estados e do Conselho. Esta consequência, tão evidentemente, tão directamente contrária ao artigo 33.o, basta, em nossa opinião, para condenar o sistema extensivo.

Em contrapartida, pensamos que a interpretação que vos propomos dar à noção de decisão individuai, interpretação ampla, mas que tem em conta o seu carácter relativo, não é contrária ao artigo 33.o, mas permanece bem no espírito deste texto, ao referir-se à noção, essencialmente relativa, de interesse, que está na base do recurso de anulação. É nesta direcção que nos parece dever incidir o esforço, perfeitamente legítimo, destinado a acolher tão amplamente quanto possível os particulares neste Tribunal, e não no sentido do que somos tentados a chamar a «desintegração» de uma noção como a de desvio de poder que, por si própria, é de manejo delicado e, seja qual for a sua importância, nunca teve senão um papel mais ou menos marginal na técnica do recurso de anulação.

VI — Discussões quanto ao mérito

Chegamos — finalmente — à apreciação do mérito. Propomo-nos examinar sucessivamente os fundamentos de legalidade e o fundamento de desvio do poder, reagrupando os primeiros numa ordem um pouco diferente daquela na qual as partes os apresentaram, quer nos requerimentos quer nas réplicas (às quais nos referimos há um instante) quer nas alegações. Aliás, vale mais falar de «acusações» que de fundamentos.

Eis portanto esta ordem:

1)

Fixação de preços por via de autoridade: é a acusação n.o 1 das réplicas, que se apoia essencialmente na violação do artigo 26.o, n.o 2, alínea a), da convenção.

2)

Fixação de reduções de preços, sem considerar a conjuntura. É a primeira parte da acusação n.o 2 das réplicas.

3)

Dissociação da perequação e da tabela. Não se pode simultaneamente impor uma tabela e recusar a perequação, nem impor a certas empresas, para as mesmas espécies, uma tabela idêntica à das outras empresas, ao mesmo tempo que se lhes recusa a perequação ou se lhes concede apenas uma perequação reduzida. São as acusações n. os 6 e 7 das réplicas.

4)

A ameaça da supressão da perequação É a acusação n.o 5 das réplicas.

5)

Erro cometido pela Alta Autoridade na determinação dos preços do mercado comum, que não são os do Ruhr. É a segunda parte da acusação n.o 2 das réplicas.

6)

Erro cometido na determinação dos custos de produção previsíveis para o termo do período de transição. É a acusação n.o 3 das réplicas.

7)

O fundamento de desvio de poder. É a acusação n.o 4 das réplicas.

Primeira acusação: fixação de preços por via de autoridade.

Sustenta-se que nem o artigo 26.o, n.o 2, alínea a), nem qualquer outra disposição do Tratado ou da convenção permite à Alta Autoridade fixar sozinha, por via de autoridade e sem o acordo dos produtores, os preços do carvão belga para a aplicação da perequação.

Argumento literal, antes de mais, retirado da redacção da última frase da alínea a): «A tabela assim fixada não pode ser alterada sem o acordo da Alta Autoridade»: esta disposição só pode ter sentido se a tabela não for fixada pela Alta Autoridade. Por quem, pois, pode sê-lo? Só pelos produtores, na ausência de qualquer indicação contrária.

Com efeito, e aí entregamo-nos a uma exegese do Tratado, o regime por este instituído é um regime de mercado e de economia de mercado, no qual os preços são, em princípio, livremente fixados pelos produtores, devendo o papel da autoridade pública limitar-se a assegurar que o jogo da concorrência se exerce normalmente e, em particular, sem discriminações. Os objectivos que o Tratado determina à Comunidade devem realizar-se naturalmente através deste livre jogo, só podendo ser exercidos os poderes de intervenção em caso de necessidade e respeitando as garantias de forma expressamente previstas para esse efeito. Não prevendo o artigo 26.o qualquer derrogação a estes princípios, não podemos substituí-lo; podemo-lo tanto menos quanto o artigo 1.o, n.o 5, da convenção dispõe expressamente que as disposições do Tratado são aplicáveis desde a sua entrada em vigor «sem prejuízo das derrogações e das disposições complementares previstas na presente convenção…». A convenção é pois, muito particularmente, de interpretação estrita e, na medida em que não concede expressamente poderes especiais à Alta Autoridade, esta, durante o período transitório, só possui os que lhe são atribuídos pelo Tratado. Ora, em matéria de preços, estes poderes estão previstos no artigo 61.o e não noutro local: é o direito de fixar preços máximos, ou preços mínimos, mas não preços fixos, e após cumprimento de certas formalidades.

Finalmente, o método de interpretação estrita assim defendido é aquele que deve sempre prevalecer quando se trata de tratados internacionais, seguindo os usos dos órgãos jurisdicionais internacionais, como o Tribunal de Haia.

Meus senhores, sobre este último ponto, não discutiremos longamente. Poder-se-ia sem dúvida recordar que este Tribunal não é um órgão jurisdicional internacional, mas sim o órgão jurisdicional de uma Comunidade criada por seis Estados numa forma que se assemelha muito mais a uma organização federal do que a uma organização internacional, e que o Tratado, cuja aplicação o Tribunal tem por missão assegurar, se de facto foi celebrado na forma dos tratados internacionais, e se incontestavelmente é um deles, não constitui menos, do ponto de vista material, a carta da Comunidade, sendo as normas de direito nele contidas o direito interno desta Comunidade. Quanto às fontes deste direito, nada se opõe, evidentemente, a que sejam procuradas, se for caso disso, no direito internacional, mas normalmente, e a maioria das vezes, encontrar-se-ão antes no direito interno dos Estados-membros. As próprias recorrentes não seguiram esta última via no presente litígio, a propósito, por exemplo, da noção de desvio de poder, onde se revelou que os direitos nacionais constituem uma fonte infinitivamente mais rica do que a teoria verdadeiramente um pouco sumária do «abuse of power» ?

Mas, meus senhores, parece-nos inútil encetar uma discussão doutrinal sobre este ponto, porque, quer se trate de tratados internacionais ou de leis internas, é um princípio comummente admitido e ao qual já nos referimos que só há lugar à interpretação e à averiguação da intenção presumida dos autores do texto em caso de obscuridade ou de ambiguidade e que a letra, quando é formal, deve sempre prevalecer. Se bem que não sendo de modo algum um especialista do direito internacional — e é portanto com modéstia e com todas as reservas que nos aventuramos neste terreno —, temos a impressão de que, na realidade, nao ha duas doutrinas diferentes para interpretar os textos internos e os textos internacionais, mas que, de facto, os órgãos jurisdicionais internacionais têm tendência a serem mais tímidos para se afastarem da interpretação literal do que os tribunais nacionais, o que se explica facilmente. Com efeito, por um lado, a vontade comum (a intenção comum das partes), que deve ser o fundamento da interpretação de um acto contratual, é, a maior parte das vezes, difícil de averiguar com certeza em relação a actos como as convenções internacionais, que são habitualmente o resultado de compromissos mais ou menos laboriosos, e onde a obscuridade ou a falta de precisão da redacção frequentemente mais não fazem que dissimular os desacordos de base. Por outro lado, o que se chama princípios gerais de direito são necessariamente muito mais vagos quando é necessário procurá-los num quadro universal do quê quando se pode recorrer à tradição em vigor num só país.

Portanto, estamos plenamente de acordo sobre o método de interpretação.

Mas toda a questão é precisamente saber se o texto é claro e não precisa de interpreta ção. Ora, a este respeito, a própria existência do presente litígio e as trocas de argumentos a que deu lugar bastam para prova: que não é assim.

«A tabela assim fixada não pode ser alterada sem o acordo da Alta Autoridade.» O texto indica uma condição de forma à qual está subordinada a eventual alteração da tabela, mas neglige dizer por quem é fixada a tabela e as suas bases. É preciso, pois, entregarmo-nos a uma exegese para preencher esta lacuna. Se bem que o code Napoléon não seja aplicável aqui, não podemos deixar de recordar o seu artigo 4.o, nos termos do qual «o juiz que recusar julgar, sob pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiência da lei, poderá ser demandado como culpado de denegação de justiça».

O Tribunal conhece as teses em presença. Recordámos a das recorrentes. Quanto à Alta Autoridade, sustenta que, sendo responsável pelo bom funcionamento do sistema de perequação, que constitui um modo de intervenção autoritária imposto pela convenção para permitir ao mercado do carvão belga ser integrado no mercado comum no termo do período transitório, é a única qualificada para fixar os preços na medida necessária à realização dos objectivos definidos nesse texto. Tal medida só pode ser obra de uma autoridade pública e é impossível abandonar a sua responsabilidade à iniciativa dos produtores.

Para sermos completos, devemos assinalar uma terceira tese: é a que resulta da exposição dos fundamentos da lei neerlandesa de ratificação, a qual se exprime assim a propósito do artigo 26.o: «Os pagamentos da perequação que a Bélgica receberá do fundo de perequação são destinados a três objectivos claramente definidos: o primeiro ponto é relativo ao saneamento atrás citado. Consiste em permitir, desde o início do período de transição, a aproximação dos preços dos carvões belgas para o utilizador ao nível dos preços previsíveis para o termo deste período. Este nível, que, pela força das coisas, deve ser avaliado, será fixado pelo Governo belga sob forma de uma tabela de preços válida para todo o período de transição, a menos que a Alta Autoridade autorize a sua alteração.»

Meus senhores, veremos a propósito da segunda acusação o que se deve pensar da tese da Alta Autoridade quanto ao mérito. Mas, neste momento, estamos em presença de um só problema: a quem compete fixar a tabela de preços se não existir acordo entre os produtores e a Alta Autoridade?

Notemos, antes de mais, que as partes estão de acordo em afastar a aplicação do artigo 61.o A Alta Autoridade reconhece que referiu erradamente esta disposição na sua primeira Decisão n.o 24/53. Partilhamos esta maneira de ver: trata-se, em aplicação do artigo 26.o, n.o 2, alínea a), de estabelecer preços fixos e não preços máximos. Isso é verdade, qualquer que seja a opinião que se tenha sobre a natureza do sistema de perequação e a maneira como deve atingir o seu objectivo, pelo livre jogo das forças económicas ou por uma acção dirigista da autoridade pública.

Mesmo na primeira opinião, podem existir divergências de apreciação sobre o nível a que devem ser fixados os preços de venda, e não se pode conceber que esse nível, que está em relação necessária com o montante, se não com a repartição, dos pagamentos de perequação, seja livremente fixado pelos produtores, quando a Alta Autoridade determina, nos termos do artigo 25.o, «tendo em conta as necessidades por ela reconhecidas», o montante total efectivo da imposição. As recorrentes, aliás, não o pretendem. Afirmam que (réplica, p. 18) «a fixação de um preço deve ser o resultado de um exame em comum no termo do qual a Alta Autoridade dará o seu acordo».

Mas então, surge imediatamente a questão: que se passa se não há acordo? Na fase escrita do processo, esta questão foi deixada sem resposta. Pelo contrário, no decurso das audiências ouvimos um dos advogados da Fédéchar dar-no-la. Se não há acordo, disse-nos ele, é muito simples: não há perequação, pelo menos a favor da empresa que recusou o seu acordo; por conseguinte, se todas as empresas recusarem o seu acordo, não haverá qualquer perequação.

Meus senhores, esta consequência basta para condenar a tese, porque é inadmissível que a vontade dos produtores baste para paralisar o funcionamento de um sistema que o Tratado instituiu a título imperativo e considerou indispensável à integração do carvão belga no mercado comum. Como já vimos, só o Governo belga, por força de disposições formais da convenção, teria o poder de se lhe opor, o que se compreende, porque é evidente que uma decisão de semelhante importância só pode ser tomada pelos órgãos políticos responsáveis do país.

Portanto, o poder de decisão só pode pertencer a uma autoridade pública. É a Alta Autoridade ou, segundo a tese da exposição dos fundamentos da lei neerlandesa de ratificação, o Governo belga? Não pensamos que, na ausência de uma disposição que lhe confira expressamente esse poder, possa ser o governo. Em nossa opinião, não pode ser senão a Alta Autoridade a quem, nos termos do artigo 8.o do Tratado, «cabe… garantir a realização dos objectivos fixados no presente Tratado», abrangendo igualmente esta última palavra, por força do artigo 84.o, a convenção relativa às disposições transitórias. É certo que o artigo 8.o acrescenta «nas condições nele previstas», o que se refere tanto às condições de forma como às condições de fundo. Aqui, há condições de fundo que definem o objecto da perequação, mas do facto de não existirem condições especiais de forma não se pode evidentemente concluir que o poder não existe.

Resta então a objecção baseada na redacção da última frase do artigo 26.o, n.o 2, alínea a): se a tabela «não pode ser alterada sem o acordo da Alta Autoridade», é porque não foi fixada por esta ou, em todo o caso, só por esta.

Meus senhores, a única resposta razoável a esta objecção parece-nos ser a seguinte: é preciso distinguir entre «a tabela» e «as bases». A tabela é a habitual tabela de preços que as empresas são obrigadas a publicar em execução do artigo 60.o; não insistimos na noção da tabela que um outro litígio deu ao Tribunal ocasião de aprofundar como desejou. O próprio título da Decisão n.o 22/55 refere a «fixação das tabelas das empresas das bacias belgas», em relação, evidentemente, com o artigo 60.o De facto, só há uma tabela para todas as empresas exploradoras das minas de carvão belgas, fixada pelo Comptoir belge des charbons, da qual um exemplar figura nos autos. Esta circunstância explica sem dúvida o emprego do singular no artigo 26.o, n.o 2, alínea a): «a tabela assim fixada…». Quanto às bases, é a Alta Autoridade que as estabelece, pelas razões que indicámos, com fundamento no artigo 8.o do Tratado: fá-lo elaborando um quadro de preços. Assim sendo, o texto esclarece-se: a tabela das empresas deve evidentemente retomar todos os preços que figuram no quadro elaborado pela Alta Autoridade, mas, como uma comparação dos dois documentos evidencia, a tabela das empresas é muito mais detalhada, porque, por um lado, fixa as «condições de venda» que se acrescentam à indicação dos preços e, por outro, fixa directamente os preços das espécies liberalizadas. Aliás, o exemplar apresentado ao Tribunal di-lo expressamente: «Esta tabela (isto é, a presente tabela) retoma os preços indicados no Jornal Oficial n.o 12, que reproduz a Decisão n.o 22/55 da Alta Autoridade. Os preços das espécies não retomadas nesta decisão foram fixados pelos produtores interessados». É a tabela fixada pelos produtores que não pode ser alterada sem o acordo da Alta Autoridade, pelo menos (isso parece ser evidente), na medida em que a alteração da tabela viesse a afectar as «bases», que são concretizadas pelo quadro de preços elaborado pela Alta Autoridade. Trata-se, em suma, de uma derrogação às disposições do artigo 60.o, destinada a assegurar que a tabela das empresas permaneça em conformidade com as decisões da Alta Autoridade.

Segunda acusação, que tem carácter subsidiário em relação à precedente: a Alta Autoridade, admitindo que tenha o poder de fixar preços oficiosamente, não tem o de fixar reduções de preços sem ter em conta a conjuntura.

É aqui que surge a divergência económica fundamental que separa as partes.

As recorrentes reconhecem que o auxílio de perequação, como os outros auxílios a que se acrescenta (empréstimos Marshall, redução de juros, etc), têm de facto por objecto realizar as reformas de estrutura indispensáveis. Mas, dizem (réplica, p. 21), «não se realiza uma reforma de estrutura baixando artificialmente os preços de venda; realiza-se uma reforma de estrutura tornando possíveis reduções dos preços de custo através de investimentos, de racionalizações e de modernizações do aparelho de produção, que devem normalmente conduzir a uma redução dos preços de venda, isto é, a um reforço da capacidade concorrencial». Ora, acrescenta-se, a Alta Autoridade reconhece que os carvões belgas poderiam ser escoados nesse momento (isto é, em 17 de Novembro de 1955) aos preços da antiga tabela, até mesmo a preços sensivelmente superiores. Mais, no momento em que a decisão foi adoptada, estes carvões eram vendidos ao preço da antiga tabela, no mercado comum, sem que os produtores tenham tido que recorrer à perequação c) (a que está reservada às exportações). Portanto, quando a conjuntura é favorável, não existe qualquer motivo para fixar reduções de preços; deve permitir-se aos produtores que aproveitem esta conjuntura, o que lhes dará a ocasião de aumentarem ou, pelo menos, de manterem as suas receitas e, por conseguinte, de prosseguirem em melhores condições o seu esforço de modernização, e então a pretendida redução do preço de custo realizar-se-á por si própria.

A esta tese opõe-se a da recorrida: não devem ter-se em conta as flutuações puramente conjunturais. É dever da Alta Autoridade realizar uma aproximação dos preços por via de autoridade, de forma a reunir progressivamente as condições que permitam a integração do mercado do carvão belga no mercado comum no termo do período transitório. Para este fim, não é possível remeter para a boa vontade dos produtores nem para os acasos da conjuntura.

Meus senhores, cremos que o Tribunal deve tomar partido entre estas duas teses.

Com efeito, o texto do artigo 26.o, n.o 2, alínea a), é inteiramente omisso quanto ao âmbito dos poderes da Alta Autoridade. Apenas se explica sobre o objecto do que chama «a perequação», isto é, na realidade, dos pagamentos de perequação. Portanto, o limite dos poderes da Alta Autoridade só se pode encontrar nas necessidades do objecto assim definido: são estas necessidades que condicionam a legalidade das decisões adoptadas, o que obriga o Tribunal, para assegurar a protecção dos interesses dos particulares que, sem isso, estariam entregues à mais completa arbitrariedade, a fazer-se juiz da questão, sob reserva, bem entendido, das limitações constantes do artigo 33.o

Ora, sobre este assunto, pensamos que a questão assim suscitada não atinge «a apreciação da situação decorrente dos factos ou circunstâncias económicas» que serviu de base às decisões impugnadas: é uma questão de princípio e de legalidade.

Quanto a nós, Senhores Juízes, a nossa opinião é idêntica à da Alta Autoridade. Pensamos que as regras de funcionamento do mercado comum, tais como estão definidas nos artigos 3.o e 4.o do Tratado e à luz das quais as disposições do próprio Tratado (como o artigo 60.o) devem ser interpretadas, já não são válidas quando se trata precisamente de efectuar a integração de uma indústria que não tem condições para enfrentar este mercado comum: neste caso, medidas dirigistas — não recuemos perante a expressão — tornam-se absolutamente necessárias. O objecto da convenção é permiti-las: o artigo 1.o di-lo muito claramente: «o objecto da presente convenção… consiste em prever as medidas necessárias ao estabelecimento do mercado comum e à adaptação progressiva das produções às novas condições criadas, facilitando, ao mesmo tempo, o desaparecimento dos desequilíbrios resultantes das condições anteriormente existentes». Em suma, as regras de uma economia de mercado só são válidas na medida em que o mercado existe; não são suficientes para o criar quando não existe, ou então existiriam graves perturbações. Ora, as disposições transitórias têm precisamente por objecto evitar estas perturbações através de medidas de protecção apropriadas, que, ao mesmo tempo, permitem realizar a integração num certo prazo. É certo que uma operação tão delicada só pode ser obra de uma autoridade pública. Mais ainda, o próprio texto do artigo 26.o, n.o 2, alínea a), parece ir neste sentido, visto dizer que a perequaçâo se destina, desde o início do período de transição, a permitir aproximar os preços do carvão belga dos preços do mercado comum. É uma outra questão saber se, de facto, os preços foram fixados abaixo dos do mercado comum (veremos este ponto já a seguir), mas o que nos parece certo é que o objectivo de aproximação se impõe à Alta Autoridade sem que esta tenha que ter em conta flutuações puramente conjunturais.

Terceira acusação: é a questão da dissociação da perequação e da tabela e o problema da selectividade.

As recorrentes sustentam que existe um nexo necessário entre a fixação dos preços e o montante dos pagamentos de perequaçâo, que têm por objecto manter as receitas das empresas, para lhes permitir prosseguirem o seu esforço de reequipamento e de modernização. A fixação dos preços só encontra a sua justificação na aplicação da perequação. Como diz a réplica da Fédéchar (p. 35) «o direito à perequaçâo é a causa jurídica determinante da obrigação de as empresas não alterarem a sua tabela sem o acordo da Alta Autoridade» e, evidentemente, esta tese tem mais força ainda se se admitir que os preços podem ser fixados pela Alta Autoridade sem o acordo dos produtores.

Donde se segue, sempre segundo as recorrentes, que não se pode ao mesmo tempo impor um preço a uma empresa e recusar-lhe os pagamentos de perequação e que também não se pode, para uma mesma espécie, reduzir ou suprimir a perequaçâo mantendo um preço fixado. O processo a que se chamou «selectividade» seria assim ilegal.

Esta tese resulta directamente da concepção económica das recorrentes sobre a perequaçâo e que já analisámos: «o fim da perequação», dizem elas (réplica Fédéchar, p. 37), «é pois, em princípio, manter as receitas de todas as minas belgas, a despeito das baixas de preço que estas são chamadas a consentir no imediato, e assegurar assim a estas minas os meios financeiros julgados indispensáveis à execução do seu programa de reequipamento, isto, bem entendido, sob reserva da degressividade prevista pela convenção». Portanto, a partir do momento em que a liberdade dos preços pode assegurar por si própria a manutenção das receitas, a perequaçâo pode ser suprimida e, sendo assim, já não existe qualquer motivo legítimo para manter artificialmente a redução dos preços. Foi aliás o que a própria Alta Autoridade reconheceu ao liberalizar os carvões domésticos ao mesmo tempo que suprimia todos os pagamentos de perequaçâo em seu favor. Com que direito agir diferentemente para os carvões gordos B não classificados extraídos pelas três empresas recorrentes?

Por todas estas razões, a selectividade, pelo menos se não for acompanhada de uma liberalização dos preços correlativa, é contrária ao disposto no artigo 26.o, n.o 2, alínea a). Além disso, viola a regra fundamental da não discriminação inscrita no artigo 4.o do Tratado.

Pretende-se, por outro lado, que um sistema de perequação, por si próprio, exclui todo o poder de repartição arbitrária ou «selectiva», da mesma forma que os sistemas de compensação previstos pela convenção no âmbito nacional (artigo 24.o da convenção). Finalmente, observa-se que as duas outras modalidades da perequação belga, o que se chama as perequações b) e c), são atribuídas globalmente, o que confirma o carácter necessariamente global desta perequação, -inclusive na parte a).

Meus senhores, não nos detemos nestes últimos argumentos, que foram refutados com pertinência pela Alta Autoridade, tanto na fase escrita do processo como na audiência. Contentar-nos-emos em observar que o que se chama «perequação» é apenas um mecanismo financeiro cuja base legal se encontra no artigo 53.o do Tratado.

Com efeito, este artigo permite à Alta Autoridade quer autorizar… a instituição, nas condições que fixar, e sob o seu controlo, de todos os mecanismos financeiros comuns a várias empresas, que considere necessários ao desempenho das atribuições definidas no artigo 3.o», quer «instituir ela própria… os mecanismos financeiros que satisfaçam os mesmos objectivos». No primeiro caso, deve consultar o Comité Consultivo e o Conselho; no segundo caso, deve obter parecer favorável do Conselho, votado por unanimidade.

Não nos devemos admirar por a convenção não exigir qualquer condição de forma no que respeita à perequação instituída a favor das empresas exploradoras das minas de carvão belgas e italianas. Toda a consulta ou parecer prévios eram evidentemente supérfluos visto que, neste caso concreto, o mecanismo financeiro foi instituído pelos próprios autores da convenção. O texto, efectivamente, fixa as normas que regem este mecanismo, tanto no que respeita às receitas (artigo 25.o) como às despesas (artigos 26.o e 27.o). Mas permanece o poder reconhecido à Alta Autoridade de determinar as condições e assegurar o controlo do mecanismo; noutros termos, é incumbência da Alta Autoridade fixar as regras de execução das normas previstas pela convenção, em toda a medida necessária para realizar concretamente o objecto definido por estas normas.

Portanto, eis-nos reconduzidos, uma vez mais, às necessidades do objectivo a prosseguir, consideradas como condição da legalidade das medidas adoptadas.

Meus senhores, sobre o princípio da selectividade, não temos, na verdade, qualquer dúvida. Por força do artigo 25.o, é a Alta Autoridade que determina periodicamente o montante da imposição de perequação. Fá-lo, refere o texto, «tendo em conta as necessidades por ela reconhecidas, nos termos dos artigos 26.o e 27.o da presente convenção».

Se se admite a tese que chamámos «dirigista», parece-nos evidente que as necessidades que a Alta Autoridade deve ter em conta são as exigidas pelo esforço de modernização e de reequipamento das empresas que, em razão das condições da sua exploração, ainda não estão em condições de enfrentar a concorrência no mercado comum, tendo a possibilidade de aí chegar um dia. É pois perfeitamente normal que tanto as empresas que não têm, ou já não têm, «necessidade» de auxílio para prosseguirem o seu esforço como aquelas que, no pólo oposto, não têm qualquer possibilidade de alcançar a integração sejam excluídas da perequação. Não existe aí discriminação, mas sim aplicação da justiça distributiva. Diremos mesmo que, se algo pode parecer estranho, é o facto de a Alta Autoridade ter deixado passar uma boa parte do período transitório, ainda que muito breve, antes de entrar nesta via.

Mas resta ainda a questão de saber se se pode simultaneamente privar uma empresa dos subsídios de perequação para certas espécies e impor-lhe o regime dos preços fixos para essas mesmas espécies. Não existe aí, ao mesmo tempo, um desrespeito do artigo 26.o, n.o 2, alínea a), que vincula a fixação de preços de venda obrigatórios à existência de pagamentos a título de perequação, e uma contradição evidente, visto que reconhecer que uma empresa já não precisa de perequação é, parece, reconhecer que ela está em condições de enfrentar a concorrência do mercado comum, dito de outro modo, que se tornou competitiva?

Meus senhores, esta questão é delicada e confessamos ter hesitado muito tempo sobre a solução. Pensamos no entanto, em definitivo, que a tese da Alta Autoridade é justificada.

Antes de mais — e é a resposta à primeira parte da argumentação —, não se deve esquecer que o artigo 26.o, n.o 2, alínea a), tem dois objectivos: o primeiro, e é o objectivo primordial, consiste na fixação de preços que, desde o início do período de transição, se aproximem dos do mercado comum de forma a que os consumidores de carvão belga beneficiem imediatamente dos preços deste mercado ou de preços que deles se aproximem. Em suma, para os utilizadores, belgas e outros, o problema supõe-se resolvido. Mas, e é o segundo objectivo, esta medida é acompanhada de uma cláusula de salvaguarda em favor dos produtores, para lhes permitir não só não falirem, mas prosseguirem o seu esforço de adaptação de forma que, com o efeito das outras medidas previstas, o mercado belga esteja integrado no fim do período de transição, quando os auxílios tiverem cessado.

Ora, o primeiro e essencial objectivo não é atingido se todos os consumidores não puderem obter, no mercado belga e relativamente às mesmas espécies, o preço próximo do do mercado comum ao qual têm direito.

Mas precisamente, dizem-nos, e é a segunda parte da objecção — o preço do mercado comum está atingido, pelo próprio facto de certas espécies poderem ser vendidas livremente por certas empresas, sem o auxílio de qualquer perequação. Está atingido, pelo menos, no que diz respeito a estas espécies e na medida em que elas são produzidas por estas empresas. Porquê, a este respeito, seguir um raciocínio diferente do utilizado para os carvões domésticos, cujos preços foram totalmente liberalizados ao mesmo tempo que eram privados de qualquer auxílio de perequação?

Poder-se-ia responder a isso que é impossível admitir um duplo preço para as mesmas espécies no mercado belga, onde todas as vendas são feitas por intermédio de um único consórcio de venda, que, vimo-lo, publica uma só tabela: é a consequência da unidade do mercado do carvão belga durante o período transitório. Mas esta resposta não nos parece decisiva.

A verdadeira resposta, em nossa opinião, e é a que determinou a nossa convicção, é que as espécies para as quais os preços fixos foram mantidos, ainda que algumas das empresas que os produzem tenham sido privadas de subsídios de perequaçâo, não são ainda competitivas, e que só uma situação conjuntural permitiu, quando foi adoptada a decisão impugnada, deixá-las vender livremente por estas empresas.

Os carvões domésticos, pelo contrário, podem ser considerados, desde já, como integrados no mercado comum. Porquê? Porque os produtores belgas destas espécies são, no mercado comum, os que dispõem, em período normal e abstracção feita dos movimentos de conjuntura, do maior excedente de carvões domésticos exportável no mercado comum. Assim, pode considerar-se que, com toda a probabilidade, são os preços do carvão doméstico belga que representam, para estas espécies, o preço de mercado. Portanto, não pode estar em questão a «aproximação» destes preços.

A mesma observação económica permite, pelo contrário, concluir que, no que respeita aos carvões industriais, são os produtores do Ruhr que, dispondo do maior excedente exportável, em período normal, no mercado comum, orientam e determinam o «preço de mercado» destas espécies. Assim, a procura de uma competitividade estrutural (e não passageiramente conjuntural) dos carvões industriais belgas em relação aos preços do mercado comum implica baixar os seus preços a um nível que permita a estes carvões suportar a concorrência dos carvões industriais do Ruhr. Ora, a diferença de custo que existe entre estas duas categorias, mesmo na hipótese de os salários e encargos sociais serem igualizados, mostra a necessidade de efectuar, para os carvões industriais belgas, a «aproximação» que condiciona a sua integração final no mercado comum.

Pode, pois, dizer-se que os carvões domésticos belgas podiam legalmente ser colocados fora da tabela, visto que os seus preços constituem o preço de mercado previsto como objectivo ideal pelo artigo 26o , n.o 2, alínea a), enquanto que os preços dos carvões industriais belgas deviam legalmente ser mantidos tabelados e reduzidos, independentemente de qualquer consideração sobre a atribuição ou a não atribuição de subsídios de perequação a um ou outro produtor destas espécies, visto que os seus preços continuam sensivelmente superiores ao preço de mercado que é representado, com toda a probabilidade, pelo preço dos carvões industriais extraídos na bacia do Ruhr.

Admitir que a supressão dos subsídios da perequaçâo em relação às empresas exploradoras das minas de carvão de Campine deveria ter por corolário a concessão da liberdade de preços a estas empresas seria desrespeitar a natureza exacta do objectivo de «aproximação dos preços do carvão belga dos do mercado comum» que é imperativamente prescrito pelo artigo 26.o, n.o 2, alínea a).

Eis ponque nos parece justificado não só o princípio de selectividade mas também a manutenção dos preços fixos para os carvões industriais, mesmo em relação às empresas que a aplicação da selectividade privou da perequaçâo.

Resta evidentemente saber se a aproximação dos preços foi, de facto, correctamente calculada: é o que veremos por ocasião do exame das quinta e sexta acusações.

Quanto à aplicação do próprio princípio de selectividade, colocam-se duas questões:

1)

Os critérios utilizados são correctos? Recordamo-vos que, contrariamente às propostas da comissão mista, que não foram seguidas neste ponto, a situação financeira das empresas não foi tida em conta. Foram utilizados critérios puramente objectivos, a saber, a concentração da extracção num único nível e através de uma sede única. Talvez pudessem ter sido escolhidos outros critérios, para se alcançar uma selectividade mais alargada. Talvez fosse possível efectuar a repartição da perequação entre as empresas, segundo critérios baseados na importância das suas necessidades respectivas, de preferência a continuar a reparti-la proporcionalmente às tonelagens segundo as categorias e as espécies, com uma excepção aplicável apenas a três empresas: isso adaptar-se-ia à lógica do novo sistema, baseado na selectividade. Mas essas são questões de apreciação que, em nossa opinião, estão subtraídas ao controlo do juiz.

2)

Para que este sistema seja legal, é evidentemente necessário que a supressão dos pagamentos de perequação ou a redução do seu montante em relação a certas empresas, sem liberalização correlativa dos preços, não tenha por efeito paralisar o esforço de reequipamento e de modernização prosseguido por estas empresas: com efeito, se fosse esse o caso, estaria provado que a decisão adoptada, no que lhes diz respeito, se baseia num erro de facto. Mas, na realidade, esse erro não foi provado nem mesmo, a falar verdade, formalmente alegado.

Quarta acusação: ameaça de supressão da perequação.

Sobre este ponto, a nossa exposição será breve.

Com efeito, se se admite a legalidade do princípio da selectividade, se se admite que o pagamento dos auxílios de perequação é feito em função das necessidades — necessidades não do conjunto das empresas exploradoras das minas de carvão, mas de cada uma delas, na medida em que este auxílio deve permitir-lhe levar a cabo o esforço de reequipamento e de modernização necessário —, é inteiramente legítimo prever, em contrapartida, um controlo e sanções, não penais nem mesmo administrativas (estas últimas não poderiam ser instituídas por uma simples decisão), mas a sanção que consiste em privar do auxílio quem não realizar o objectivo para o qual este auxílio lhe foi concedido. Essa é uma regra normal de todos os mecanismos de subvenção.

Chegamos agora às duas últimas acusações de ilegalidade, baseadas no facto de os dois limites inferiores fixados pelo artigo 26.o, n.o 2, alínea a), para a determinação dos preços — a saber, os preços do mercado comum e os custos de produção previsíveis para o termo do período de transição — terem sido ultrapassados.

Quinta acusação: erro cometido pela Alta Autoridade na determinação dos preços do mercado comum.

A — A argumentação das recorrentes pode analisar-se como se segue.

a)

Ao equiparar os preços do Ruhr aos do mercado comum, objectivo final da aproximação, a Alta Autoridade cometeu um erro evidente. Os preços do Ruhr são apenas um dos preços dos carvões industriais no mercado, e não se trata de um preço livremente determinado pela lei da oferta e da procura. Os preços do Ruhr, até 1 de Abril de 1956, foram mantidos artificialmente baixos, até mesmo a um nível inferior ao custo de produção real, por força de uma decisão da Alta Autoridade. E se foram liberalizados a partir dessa data, não é menos verdade que a sua subida foi travada e limitada a 2 DM pela acção do Governo alemão, quando normalmente teria atingido 6 DM, em média, se tivesse podido traduzir livremente a pressão de um verdadeiro mercado concorrencial.

Os preços dos carvões industriais produzidos na bacia do Nord et Pas-de-Calais e na bacia de Aix-la-Chapelle são próximos dos preços belgas e aplicam-se a uma produção da mesma importância. Não se vê porque seriam os preços belgas os únicos a dever ser aproximados dos do Ruhr.

b)

Na realidade, é o patamar de espera no qual foram fixados os preços belgas em 1953 que reflecte, simultaneamente, os custos de produção do carvão belga previsíveis para o termo do período de transição e os preços do mercado comum nessa mesma época, uma vez que o livre jogo do mercado concorrencial, e designadamente a pressão dos salários na Alemanha, deve ter como consequência natural levar os preços do Ruhr ao nível deste patamar e efectuar assim a aproximação que constitui o objectivo do artigo 26.o, n.o 2, alínea a): a aproximação nâo se deve fazer em sentido único.

c)

A estatística dos preços dos carvões industriais, quanto à sua evolução de 1952 a 1956 no Ruhr e na Bélgica, confirma, sempre segundo as recorrentes, o fundamento da sua tese. O quadro que reflecte a avaliação comparada dos preços dos finos de coque desde 1952 na Comunidade, que apresentaram na audiência (e que vos pedem para substituir ao quadro apresentado pela Alta Autoridade) mostra claramente que os preços dos finos lavados do Ruhr aumentaram consideravelmente a partir de 1952 (565 BFR em 1952, 627 BFR em 1956, passando assim do índice 100 ao índice 111) enquanto que as mesmas espécies, produzidas pelas bacias belgas, passaram de 716 BFR a 691 BFR (e mesmo a 671 BFR para os lavados gordos B), sendo assim o índice 100 em 1952 reduzido a 96 e 94, respectivamente. Se, além disso, se acrescentar aos preços do Ruhr o montante de 2 DM tomado a cargo pelo Tesouro alemão a título de reembolso fiscal e as despesas de transporte (2 DM por tonelada), vê-se que os carvões industriais do Ruhr, uma vez entregues na Bélgica, se venderiam a um preço muito pouco distante dos preços belgas e que, em consequência, as preocupações da Alta Autoridade não têm fundamento.

B — Que responde a Alta Autoridade?

a)

No que diz respeito à escolha do Ruhr, a Alta Autoridade afirma que nunca efectuou pura e simplesmente a equiparação dos preços do Ruhr aos do mercado comum, como foi acusada, e observa que as decisões impugnadas não mencionam de forma alguma essa equiparação. No entanto, no que diz respeito aos carvões industriais, vê-se que são de facto os produtores do Ruhr que determinam o preço de mercado, porque são eles que dispõem, em período de conjuntura normal ou de recessão económica, do maior excedente exportável susceptível de concorrer com as produções estrangeiras no seu próprio mercado, especialmente no mercado belga do qual são «o» concorrente mais perigoso.

O mercado francês, em qualquer conjuntura, é tradicionalmente importador líquido (12 milhões de toneladas por ano); as suas necessidades suplementares devem ser satisfeitas pelos carvões do Ruhr ou pelos carvões belgas. Portanto, se se quer que os carvões belgas, em período normal, possam enfrentar a concorrência do Ruhr no mercado francês, é de facto dos preços do Ruhr que é necessário aproximá-los.

Em definitivo (e os próprios produtores belgas o reconhecem), de todos os produtores do mercado comum, os do Ruhr são aqueles cuja concorrência se faz e se fará sentir com maior intensidade no mercado belga. Os preços do Ruhr devem pois ser considerados como o ponto de referência que é preciso ter em conta no movimento de aproximação, especialmente em relação aos carvões industriais com que concorrem severamente tanto no mercado belga como nos mercados externos, designadamente na França.

b)

No que respeita ao segundo argumento, a Alta Autoridade declara não partilhar o optimismo das recorrentes. Supondo, diz, que os preços alemães aumentam, uma subida dos preços belgas não está de modo algum excluída, pelo menos se acreditarmos nas informações das agências noticiosas.

Seja como for, a Alta Autoridade entende que não pode confiar unicamente na subida dos salários alemães para realizar a aproximação. Foi calculado que se, em 1952, os salários e encargos sociais no Ruhr tivessem sido elevados ao nível belga, o custo da mão-de-obra por tonelada produzida atingiria no Ruhr apenas 66 % desse mesmo custo na Bélgica. A subida dos salários alemães é pois um factor de alcance limitado no que respeita à aproximação dos preços, e a igualização absoluta dos salários e encargos sociais não pode, por si só, bastar para realizar a aproximação. Além disso, a Alta Autoridade observa, por experiência, que, se os salários sobem no Ruhr, os encargos salariais não ficam estacionários na Bélgica; por exemplo, faz alusão às repercussões a esperar da instituição da semana de cinco dias nas minas belgas.

c)

No que diz respeito aos números, a Alta Autoridade alega que, colocando-se na época em que a decisão impugnada foi adoptada e utilizando como referência o quadro apresentado pelas próprias recorrentes, se pode verificar que, em 1955, os preços dos finos de coque eram, no Ruhr, em valores absolutos, 650 BFR e, na Bélgica, respectivamente 691 BFR para o gordo A e 671 BFR para o gordo B, «números que», acrescenta a Alta Autoridade, «não necessitam de comentários».

C — Que deve pensar-se desta discussão?

Antes de mais, sobre a questão de saber o que se deve entender por «preços do mercado comum», pensamos, como precedentemente dissemos, que o critério baseado, para uma espécie determinada, no «maior excedente exportável» é um critério válido.

Quanto à aplicação que dele foi feita para determinar o nível em que se fixam os preços de mercado no que respeita aos carvões industriais, é evidente que depende da apreciação de uma situação resultante de factos e circunstâncias económicas. Assim, o Tribunal só pode controlar esta apreciação na medida em que ela revele a existência de um desvio de poder (o que veremos já de seguida), ou uma violação «manifesta» de uma norma jurídica.

«O Tribunal decidiu, no acórdão de 21 de Março de 1955, 6/54, Governo dos Países Baixos (Colect. 1954-1961, p. 19), que o termo ‘manifesta’ supõe que seja atingido um determinado grau de violação das disposições legais, de modo que esta violação apareça como decorrente de um erro evidente de apreciação, em relação às disposições do Tratado, da situação em atenção à qual foi adoptada a decisão.»

Não é certamente o caso no presente processo.

Com efeito, por um lado, os próprios produtores belgas reconhecem (citação feita pela Alta Autoridade na tréplica, p. 65, e não contestada) que o Ruhr é tradicionalmente «O» concorrente perigoso em período normal, tanto no mercado belga como nos mercados de exportação, visto que aí «faz» o preço. A integração estrutural do carvão belga no mercado comum impõe, portanto, que se tomem as medidas necessárias para tornar concorrenciais os carvões industriais belgas e os do Ruhr.

Por outro lado, os valores avançados pela Alta Autoridade — e que não foram contestados pelos advogados das recorrentes — no que respeita ao custo respectivo de mão-de-obra, a salários iguais, no preço de custo dos carvões do Ruhr e no dos carvões belgas, mostram claramente que a igualização dos salários não pode ser suficiente para realizar a aproximação «durável» que deve permitir a integração do carvão belga no mercado comum.

Quanto à diferença de preço entre os finos belgas e os do Ruhr em 1955, como resulta do quadro fornecido pelas recorrentes, só se pode abstrair dela entregando-nos a arriscadas suposições sobre a influência que, ajudando a conjuntura, o livre jogo da lei da oferta e da procura, num mercado de concorrência perfeita, poderia ter sobre os preços dos finos de coque do Ruhr, sendo certo que estas suposições correriam o risco de desabar à menor inflexão da conjuntura.

Em definitivo, a acusação não pode ser acolhida nem no que diz respeito ao papel destinado ao Ruhr como base de determinação dos «preços de mercado» dos carvões industriais, nem no que se refere à avaliação que foi feita do nível destes preços.

Sexta acusação: erro cometido pela Alta Autoridade na determinação dos custos de produção previsíveis para o termo do período de transição.

A —

As recorrentes pretendem que, ao impor uma nova redução dos preços dos carvões belgas através da Decisão n.o 22/55, a Alta Autoridade ultrapassou o limite dos custos de produção previsíveis para o termo do período de transição, e violou assim o disposto no artigo 26.o, n.o 2, alínea a). Eis como se pode resumir a argumentação.

a)

As estimativas, feitas em 1953, dos custos de produção do carvão belga previsíveis para o termo do período de transição mostraram a possibilidade de uma redução de 29 BFR por tonelada em relação a 1952. Foi imediatamente efectuada uma redução de igual montante no regime preço-perequação entrado em vigor em 1953. As tabelas foram assim reduzidas a um «patamar de espera» que devia permanecer imutável até ao fim do período transitório, visto que, com efeito, a redução tinha sido efectuda de uma só vez até ao limite permitido.

b)

As recorrentes reconhecem, é verdade, que o crescimento real de rendimento, observado em 1952 e 1955, ultrapassou de facto as previsões iniciais, mas, dizem, é também evidente que a redução de custo que daí normalmente devia resultar foi anulada na sequência das subidas de salários e de produtos ocorridas no mesmo tempo. Em definitivo, o custo real em 1955 revela-se superior às previsões iniciais e esta circunstância é de natureza a proibir qualquer nova redução de preços, ou até mesmo a justificar um aumento dos preços fixados em 1953.

As recorrentes admitem como perfeitamente normal que as previsões de custos tenham sido efectuadas, em 1953, tendo como constantes durante cinco anos os salários, encargos sociais e preços dos produtos e matérias utilizadas nas minas: com efeito, estes elementos eram então imprevisíveis. Mas é inconcebível, segundo elas, que em 1955, aquando da revisão das estimativas de custos, não se tenham tido em conta as subidas de salários e de preços de produtos e matérias que tinham ocorrido no intervalo, porque então já não se tratava de elementos imprevisíveis, mas sim de dados concretos que se deviam ter em conta na previsão dos preços de custo.

B — Que responde a Alta Autoridade?

a)

Sobre o primeiro ponto, os próprios produtores belgas, diz, previam em 1952 que o crescimento de rendimento a esperar em 1956, na sequência da realização do plano de reequipamento, permitiria uma economia de 90 BFR por tonelada extraída. Com o acordo da administração belga, a Alta Autoridade preferiu limitar-se provisoriamente a uma redução de preços fixada em 29 BFR, reservando-se o direito de acentuar ulteriormente a redução, na medida que as suas previsões iniciais fossem confirmadas na sequência da realização progressiva do plano. Não se poderia pois considerar que a redução decretada em 1953 conduziu os preços belgas a um patamar de espera imutável, abaixo do qual era admitido que não se desceria.

b)

Sobre o segundo ponto, a Alta Autoridade não nega que tenham ocorrido aumentos de salários entre 1953 e 1955; aliás, teve-os em conta ao autorizar, em 1955, um aumento geral de 3 BFR dos preços dos carvões belgas. Mas estas subidas de salários e de matérias-primas, elementos imprevisíveis por natureza, não entram no cálculo das previsões impostas pelo artigo 26o, n.o 2, alínea a). A previsão, no sentido deste texto, só pode ser feita baseando-se exclusivamente nas melhorias de rendimento que se podem prever durante o período de transição, permanecendo todos os outros factores (essencialmente salários, encargos sociais e custo das matérias-primas utilizadas na exploração das minas) iguais. Querer ter em conta, à partida, eventuais modificações do custo da mão-de-obra resultantes de eventuais subidas de salários impediria radicalmente que se efectuasse a previsão económica a que é obrigatório pro-ceder-se desde o inicio do período transitório.

Nesta óptica, as subidas de salários ocorridas entre 1953 e 1955, se podiam, eventualmente, incitar a Alta Autoridade a autorizar a sua repercussão parcial nos preços de venda, não impunham, de modo algum, uma revisão das previsões de custo para 1958, baseadas, em 1953, nos progressos a esperar da realização do plano de reequipamento, coeteris paribus. Nesta base, os valores fornecidos pelas recorrentes, coluna G do quadro, mostram que os custos de produção, calculados na hipótese de salários constantes, baixaram, entre 1952 e o primeiro trimestre de 1955, de 452 BFR para 409 BFR por tonelada, ou seja, uma redução real de 43 BFR. O efeito cumulativo das reduções fixadas em 1953 e em 1952 (29 BFR + 10 BFR), ou seja, 39 BFR, permanece assim nos limites das reduções de custo avaliadas na data das decisões impugnadas. Quanto ao mais, a redução de custo, a salários constantes, assim calculada, tem unicamente em conta o reequipamento realizado (elevando o rendimento de 753 kg no ano de 1952 a 826 kg em 1955) e faz abstracção dos efeitos benéficos a esperar daquilo a que se chama «medidas de racionalização negativa» e do plano de saneamento das minas marginais. A realização destas medidas e as novas melhorias de rendimento que ocorrerão até ao fim do período de transição permitem afirmar a fortiori que a redução fixada em 1955 não excede o limite dos custos previsíveis para o termo deste período.

C — Eis as duas teses em presença.

Parece-nos, Senhores Juízes, que nesta acusação há uma dupla questão, uma de direito, outra de facto.

a)

A questão de direito é a de saber o que se deve entender, na acepção do artigo 26.o, n.o 2, alínea a), pela expressão «custos de produção previsíveis», e, designadamente, se se deve ou não ter em conta, na determinação destes custos, outros elementos além dos relativos aos rendimentos, que são susceptíveis de diminuir em função directa das melhorias que a realização dos planos de reequipamento e de modernização torna possíveis.

Partilhamos, sobre esta questão, do ponto de vista da Alta Autoridade. Sem dúvida, em si mesma, a noção de «custos de produção» inclui a totalidade dos elementos do preço de custo e, entre eles, os salários e encargos sociais, bem como o preço das matérias-primas. As recorrentes, a este respeito, teriam podido invocar a autoridade do próprio presidente da Alta Autoridade que, no decurso de uma exposição feita recentemente em Estrasburgo perante a Assembleia Comum, falava em «subida do preço do carvão, tornada necessária pelo aumento dos custos de produção, e, designadamente, pelos aumentos de salários…».

Mas é evidente — e as partes estão de acordo em reconhecê-lo — que estes elementos só podem figurar no cálculo dos custos de produção tais como existem no próprio momento em que o cálculo é efectuado, quanto à previsão dos mesmos custos no futuro, não se podem considerar elementos imprevisíveis ou, pelo menos, as suas possíveis variações. Só na medida em que é possível elaborar um plano, baseado em dados concretos, é que o cálculo das reduções dos custos deverá ser efectuado: os elementos cujas variações são imprevisíveis serão tidos em conta, mas apenas se todos os outros factores se mantiverem inalterados.

Meus senhores, esta interpretação parece-nos a única compatível com o artigo 26.o, n.o 2, alínea a), e isso por duas razões: a primeira é o emprego da palavra “previsíveis” que figura no texto: uma “previsão” só se pode fazer em relação a elementos “previsíveis” (a ciência económica nâo é certamente uma ciência exacta; também não é uma ciência Oculta). A segunda é que o objectivo da perequação consiste na redução dos preços de custo, na medida em que essa redução deve ser tornada possível pela melhoria do rendimento: são pois os custos de produção, na medida em que são susceptíveis de diminuição na sequência desta melhoria dos rendimentos prevista, que devem servir de base às previsões.

Mas então — e parece ser, em definitivo, o único ponto sobre o qual as partes permanecem em desacordo —, que se deve fazer quando um dos elementos “imprevisíveis” varie (por exemplo, se ocorre uma subida de salários)? É necessário refazer o plano de previsão tendo em conta as modificações assim verificadas, ou é possível limitar-se, como sustenta a Alta Autoridade, a compensar essas subidas, seja por aumentos de preços, seja por subvenções, seja combinando os dois processos, mas sem alterar os planos já feitos?

Meus senhores, dado o que dissemos sobre a noção de “custos de produção previsíveis”, na acepção do artigo 26.o, que deve servir de base, desde o início do período de transição, a uma previsão baseada unicamente nas reduções de preços de custo a esperar de uma melhoria dos rendimentos, pensamos que é coerente com a lógica do sistema não alterar esta previsão cada vez que ocorrem, à mercê das circunstâncias, modificações que afectam os elementos estranhos à melhoria dos rendimentos, isto é, os elementos imprevisíveis. Procedendo assim, arriscar-nos-íamos a ter preços que não só se afastariam dos do mercado comum, mas que, ligados a acontecimentos próprios da Bélgica (tais como variações de salários), já não teriam qualquer relação com estes preços: seria directamente contrário ao artigo 26.o, n.o 2, alínea a), cujo objectivo primeiro, dissemo-lo, é permitir aos utilizadores beneficiarem imediatamente de preços aproximados dos do mercado comum.

Bem entendido, não é anormal que os preços de venda sejam aumentados quando ocorre uma mudança nos “elementos imprevisíveis”, mas nada deve ser mudado, por essa razão, no objectivo de aproximação dos preços baseado na melhoria dos rendimentos no conjunto das empresas exploradoras das minas de carvão belgas: só se vierem a ser reconhecidos erros na avaliação dos elementos previsíveis é que se tem o direito de os corrigir; mas isso pode acontecer a qualquer momento, e de forma absolutamente independente das modificações susceptíveis de ocorrerem no que respeita aos elementos imprevisíveis.

b)

Quanto à questão de facto, é a de saber se, tendo em conta os poderes de que dispunha — e cujos limites acabamos de tentar traçar —, a Alta Autoridade cometeu erros de previsão na avaliação dos custos de produção previsíveis para o termo do período de transição.

Sobre este ponto, Senhores Juízes, as respostas dadas pelas partes às questões formuladas pelo juiz-relator mostram que, segundo a interpretação que acabamos de dar, os preços fixados em Maio de 1955 continuam, de qualquer forma, a ser superiores aos custos de produção previsíveis para 1958.

Mas, mesmo se, contrariamente a esta interpretação, se seguisse o método de previsão proposto pelas recorrentes, não pensamos que fosse possível considerar que estas provaram a existência de um excesso. Com efeito, as previsões fornecidas pelas recorrentes à medida que o processo se desenrolou variaram um tanto. Foi assim que o custo real dos carvões gordos e três quartos gordos para o primeiro trimestre de 1955 foi de 669 BFR, enquanto que o diagrama que tinha sido apresentado em anexo ao pedido previa, para esta mesma época, um valor de 699 BFR, ou seja, uma diferença de 30 BFR entre a previsão e a realidade para uma duração de previsão de menos de um ano! Pode admitir-se que o resultado de um excesso de 10 BFR a que, na melhor das hipóteses, as recorrentes chegam quando comparam os preços actuais com os custos previstos para 1958, isto é, três anos mais tarde, não permaneça no limite da margem de incerteza inerente a tais previsões?

Senhores Juízes, não o pensamos.

Em definitivo, entendemos que as recorrentes não provaram uma violação do artigo 26.o, n.o 2, alínea a), no que respeita ao limite previsto por este texto para a redução dos preços.

Propomo-vos, pois, não acolher esta sexta acusação.

Sétima e última acusação: é o fundamento de desvio de poder.

A Alta Autoridade teria adoptado as decisões impugnadas “com vista a realizar objectivos próprios da política económica do Governo belga”.

Quais eram esses objectivos próprios da política económica do Governo belga? Obter, em favor de uma nova adaptação da perequação, uma nova redução dos preços dos carvões industriais. Assim, a adaptação da perequação teria sido apenas um pretexto: o verdadeiro fim prosseguido consistiria em secundar a política económica de um Estado-membro. A este respeito, invoca-se designadamente toda uma série de declarações feitas no Parlamento pelo ministro da Economia belga e que o Tribunal conhece.

Meus senhores, poderíamos ser tentados, para afastar esta acusação, a limitar-nos a observar que o objectivo final da perequação é a integração tão rápida quanto possível do mercado do carvão belga no mercado comum, e que a Alta Autoridade nunca prosseguiu outro objectivo: se pecou, foi por excesso e não por defeito, mas o facto de, a este respeito, os seus objectivos terem coincidido em larga medida com os do Governo belga, longe de constituir a prova de um desvio de poder, demonstra, pelo contrário, que foi o objectivo legal o procurado, visto que a Alta Autoridade partilha com o Governo belga a responsabilidade da integração, que constitui o seu objectivo comum.

Mas, meus senhores, esta resposta seria insuficiente e a questão é, em nossa opinião, mais delicada.

Com efeito, se se admite a concepção a que chamámos “clássica” do clesvio de poder (sobre o qual as partes, aliás, estão de acordo), mas dando-lhe todo o seu sentido, o desvio de poder não deve apreciar-se só em relação ao objectivo final, ou seja, no caso em apreço, a integração do mercado do carvão belga no mercado comum, mas também em função do objectivo próprio da perequação como está definido no artigo 26.o, n.o 2, alínea a), sendo a perequaçâo apenas um dos meios previstos pela convenção, entre outros, para realizar a integração. Ora, é precisamente neste terreno que se colocam as recorrentes. O que reprovam à Alta Autoridade é ter usado os poderes que lhe confere o artigo 26.o, n.o 2, alínea a), para objectivos que não os que deveria ter em vista nos termos desta disposição, a saber, secundar uma certa política do Governo belga. Este governo, é-nos dito, procurava obter da Alta Autoridade, em favor da perequação, uma fixação dos preços do carvão belga, pelo menos do carvão industrial, exagerada e artificialmente baixa, de forma a satisfazer as reivindicações dos utilizadores e ao mesmo tempo responder às críticas da opinião dos países devedores dos pagamentos, e a Alta Autoridade teria cedido a esta pressão, perdendo de vista os objectivos próprios da perequaçâo.

Meus senhores, como dissemos, é só na medida em que a Alta Autoridade goza de um poder discricionário, e nos limites em que é chamada a utilizá-lo, que se pode conceber o desvio de poder.

Isto permite-nos afastar da discussão todos os pontos sobre os quais admitimos que as questões em litígio eram questões de direito que como tais deviam ser decididas pelo Tribunal: não temos de voltar a elas.

Quais são pois, entre os pontos em litígio, aqueles em que a Alta Autoridade fez uso do seu poder discricionário?

a)

Hesitamos em aí incluir, em primeiro lugar, o próprio princípio da selectividade em que se baseiam as decisões impugnadas. Perguntamo-nos, com efeito, se a Alta Autoridade não era obrigada a recorrer a ele e se o primeiro procedimento (o da repartição feita exclusivamente na proporção das tonelagens, sem qualquer consideração das “necessidades”) era absolutamente legal — dito de outro modo, se a mudança efectuada quanto ao princípio resulta do exercício do poder discricionário.

Mas isto, meus senhores, pouco importa, cremos. Com efeito, mesmo dando uma resposta afirmativa a esta questão, pensamos que, sobre este ponto, o desvio de poder, tal como é alegado, não está de modo nenhum provado. Para disso nos convencermos, basta notar que a constituição da comissão mista, que tinha sido encarregada de apreciar o problema no seu todo e, designadamente, a eventualidade de uma nova adaptação da perequação, data de 18 de Fevereiro de 1954, enquanto que as eleições legislativas na Bélgica só tiveram lugar em

11 de Abril de 1954 e a constituição do novo governo em Maio seguinte. Estas datas parecem-nos dispensar qualquer comentário.

b)

No que diz respeito à avaliação dos custos de produção previsíveis para o termo do período de transição, vimos que o litígio incide essencialmente sobre a interpretação da noção de «custos de produção previsíveis», na acepção do artigo 26.o, n.o 2, alínea a), e, numa certa medida, sobre as observações de facto que dela resultam. Não há qualquer lugar, neste ponto, para um desvio de poder.

c)

Resta a própria fixação dos preços, em função do objectivo de aproximação do preço do mercado comum determinado pelo texto.

Aqui, evidentemente, a Alta Autoridade gozava de um poder de apreciação bastante amplo, dentro dos limites que tentámos traçar. Por um lado, só era obrigada a um esforço de «aproximação»; por outro, não era de maneira nenhuma obrigada a efectuar esta aproximação de uma só vez, no início do período de transição. Tinha todo o direito de agir, sobretudo no inicio, com uma certa prudência, sendo certo o carácter necessariamente aproximativo da avaliação dos vários elementos a ter em conta. Ao reservar-se uma certa margem de segurança, de forma a evitar, na medida do possível, ter de voltar a subir preços anteriormente reduzidos ou de alterar com demasiada frequência o quadro dos preços, agiu, parece, com sabedoria. Não obstante, ao fazer isto, procurou sacrificar os interesses legítimos dos produtores em benefício da política do Governo belga? Nenhum dos «elementos objectivos» que figuram no processo permite afirmar — íamos dizer que tenha tido tal intenção — mas dizemos que tenha sido esse o objectivo realmente prosseguido. O facto de terem tido lugar longas discussões entre o Governo belga e a Alta Autoridade não constitui evidentemente uma prova a este respeito, tanto mais que, como refere a tréplica (p. 38), «é… público e notório que, longe de seguir pura e simplesmente as opiniões do Governo belga, a Alta Autoridade apenas aceitou uma alteração da perequaçâo que implicava uma redução de preços menos importante que a proposta pelo Governo belga»; esta afirmação não foi contestada.

Em definitivo, consideramos que a existência do desvio de poder alegado não está provada.

Concluímos que deve ser negado provimento aos recursos e que as recorrentes devem ser condenadas nas despesas, cada uma na parte que lhe diz respeito.


( *1 ) Língua original: francês.