30.11.2010   

PT

Jornal Oficial da União Europeia

C 323/6


Parecer da Autoridade Europeia para a Protecção de Dados sobre a proposta de Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à luta contra o abuso e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil e que revoga a Decisão-Quadro 2004/68/JAI

2010/C 323/02

A AUTORIDADE EUROPEIA PARA A PROTECÇÃO DE DADOS,

Tendo em conta o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e, nomeadamente, o artigo 16.o,

Tendo em conta a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e, nomeadamente, o artigo 8.o,

Tendo em conta a Directiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995, relativa à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (1),

Tendo em conta o Regulamento (CE) n.o 45/2001 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de Dezembro de 2000, relativo à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas instituições e pelos órgãos comunitários e à livre circulação desses dados (2) e, nomeadamente o artigo 41.o,

ADOPTOU O SEGUINTE PARECER

I.   INTRODUÇÃO

1.

Em 29 de Março de 2010, a Comissão adoptou uma proposta de Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à luta contra o abuso e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil e que revoga a Decisão-Quadro 2004/68/JAI (3) (a seguir designada por «a proposta»).

2.

A proposta destina-se a revogar uma decisão-quadro adoptada em 22 de Dezembro de 2003, devido a algumas deficiências dessa legislação anterior. O novo texto iria melhorar a luta contra o abuso de crianças no que diz respeito aos seguintes aspectos: criminalização das formas graves de abuso de crianças, relacionadas, por exemplo, com o turismo sexual envolvendo crianças; protecção das crianças não acompanhadas; investigação criminal e coordenação da acção penal; novos crimes praticados com recurso às tecnologias da informação; protecção das vítimas e prevenção dos crimes.

3.

No que se refere ao objectivo de prevenção dos crimes, um dos instrumentos utilizados seria a restrição do acesso à pornografia infantil na Internet.

4.

A EDPS tomou nota do principal objectivo da proposta. Não é sua intenção questionar a necessidade de instituir um quadro melhor, que preveja medidas adequadas para proteger as crianças contra os abusos. Deseja, todavia, salientar o impacto de algumas das medidas previstas na proposta, como o bloqueamento do acesso a sítios Internet e a criação de linhas directas, sobre os direitos fundamentais à privacidade e à protecção de dados das diversas pessoas envolvidas. Decidiu, por isso, apresentar o presente parecer sucinto por sua própria iniciativa.

II.   ANÁLISE DA PROPOSTA

5.

Os problemas de protecção de dados estão relacionados com dois aspectos da proposta, que não são específicos da luta contra o abuso de crianças mas sim de qualquer iniciativa que implique a colaboração do sector privado para efeitos de aplicação da lei. Estes problemas já foram analisados pela EDPS em diversos contextos, especialmente relacionados com a luta contra os conteúdos ilegais na Internet (4).

6.

Quanto à proposta, os dois elementos que suscitam preocupação são desenvolvidos no considerando 13 e no artigo 21.o, podendo ser descritos da seguinte forma.

II.1.   O papel dos prestadores de serviços no que respeita ao bloqueamento dos sítios Internet

7.

A proposta prevê duas alternativas possíveis para bloquear o acesso, a partir do território da União, a páginas Internet que contenham ou divulguem pornografia infantil: mecanismos para permitir que as autoridades judiciárias ou policiais competentes ordenem esse bloqueamento, ou acções voluntárias dos fornecedores de serviços Internet para bloquear as páginas Internet com base em códigos de boa conduta ou orientações.

8.

A EDPS questiona os critérios e as condições conducentes a uma decisão de bloqueamento: embora possa apoiar as acções adoptadas pela polícia ou pelas autoridades judiciais num quadro jurídico bem definido, tem fortes dúvidas a respeito da segurança jurídica de um bloqueamento accionado por privados.

9.

Tem dúvidas, em primeiro lugar, sobre a eventual vigilância da Internet que poderia levar a esse bloqueamento. A vigilância e o bloqueamento podem implicar diversas actividades, incluindo a exploração da Internet, a identificação de sítios Internet ilícitos ou suspeitos e o bloqueamento do acesso aos utilizadores finais, mas também a vigilância do comportamento em linha dos utilizadores finais que tentem aceder ou descarregar esses conteúdos. Os instrumentos utilizados são diferentes e implicam diferentes graus de ingerência, mas suscitam questões semelhantes quanto ao papel dos fornecedores de serviços Internet no que respeita ao tratamento dos conteúdos informativos.

10.

Essas actividades de vigilância têm consequências em termos de protecção de dados, uma vez que serão tratados dados pessoais de vários indivíduos, nomeadamente informações sobre as vítimas, as testemunhas, os utilizadores, ou os fornecedores de conteúdos. A EDPS já expressou dúvidas, em pareceres anteriores, sobre a vigilância de pessoas por entidades privadas (por exemplo, FSI ou titulares dos direitos de autor), em domínios que, em princípio, se inserem na esfera de competências das autoridades responsáveis pela aplicação da lei (5).

A EDPS salienta que a vigilância da rede e o bloqueamento dos sítios Internet constituiria uma finalidade não relacionada com os fins comerciais dos FSI, o que suscitaria problemas em relação ao tratamento lícito e à utilização compatível dos dados pessoais previstos no artigo 6.o, n.o 1, alínea b), e no artigo 7.o da Directiva relativa à protecção de dados (6).

A EDPS põe em questão os critérios para o bloqueamento e salienta que um código de conduta ou orientações adoptadas a título voluntário não ofereceriam suficiente segurança jurídica nesta matéria.

A EDPS destaca também os riscos ligados à eventual inclusão de pessoas numa lista negra e às suas possibilidades de defesa perante uma autoridade independente.

11.

A EDPS já afirmou, em diversas ocasiões, que «a vigilância do comportamento de um utilizador na Internet e a recolha dos seus endereços IP equivalem a uma ingerência nos seus direitos de respeito da vida privada e da inviolabilidade de correspondência (…). Esta opinião está em consonância com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (7)». Atendendo a esta ingerência, são necessárias salvaguardas mais adequadas para garantir que a vigilância e/ou o bloqueamento só serão efectuados de forma rigorosamente direccionada e sob controlo judiciário, e que a utilização indevida deste mecanismo é impedida por medidas de segurança adequadas.

II.2.   A criação de uma rede de linhas directas

12.

O programa «Para uma Internet mais segura», sobre o qual o EDPS emitiu o parecer acima referido, prevê uma rede de linhas directas, mencionada no considerando 13 da proposta. Uma das observações da EDPS está precisamente relacionada com as condições em que as informações seriam recolhidas, centralizadas e trocadas: é necessário descrever exactamente os conteúdos que devem ser considerados ilegais e nocivos, quem está autorizado a recolher e a conservar as informações e ao abrigo de que salvaguardas específicas.

13.

Esta questão é particularmente importante atendendo às consequências da comunicação de informações: para além da informação relativa às crianças, poderão estar em causa os dados pessoais de qualquer pessoa que esteja de algum modo ligada à informação que circula na rede, incluindo, por exemplo, informações sobre uma pessoa suspeita de conduta ilícita, quer seja um utilizador da Internet ou um fornecedor de conteúdos, mas também sobre uma pessoa que denuncie um conteúdo suspeito ou sobre a vítima do abuso. Os direitos de todas essas pessoas não devem ser esquecidos quando os procedimentos de comunicação de informações forem desenvolvidos: devem ser tidos em conta em conformidade com o actual quadro de protecção de dados.

14.

As informações recolhidas pelas linhas directas também serão, muito provavelmente, utilizadas na acção penal, durante a fase judicial do processo. Em termos de requisitos de qualidade e integridade, deverão aplicar-se salvaguardas adicionais para garantir que tais informações, consideradas como provas digitais, foram adequadamente recolhidas e preservadas e que, por conseguinte, são admissíveis em tribunal.

15.

As garantias em matéria de supervisão do sistema, em princípio pelas autoridades responsáveis pela aplicação da lei, são elementos decisivos que devem ser respeitados. A transparência e as possibilidades de defesa independente ao dispor das pessoas são outros elementos essenciais a integrar num tal sistema.

III.   CONCLUSÃO

16.

A EDPS, embora não tendo motivos para se opor ao desenvolvimento de um quadro sólido e eficaz para combater o abuso sexual, a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil, insiste na necessidade de garantir a segurança jurídica em relação a todos os intervenientes, incluindo os fornecedores de serviços Internet e as pessoas que utilizam a rede.

17.

A menção na proposta da necessidade de ter em conta os direitos fundamentais dos utilizadores finais é louvável mas insuficiente: deve ser complementada pela imposição aos Estados-Membros da obrigação de assegurarem procedimentos harmonizados, claros e pormenorizados quando combatem os conteúdos ilegais, sob a supervisão de autoridades públicas independentes.

Feito em Bruxelas, em 10 de Maio de 2010.

Peter HUSTINX

Autoridade Europeia para a Protecção de Dados


(1)  JO L 281 de 23.11.1995, p. 31.

(2)  JO L 8 de 12.1.2001, p. 1.

(3)  COM(2010) 94 final.

(4)  A EDPS emitiu, nomeadamente, os seguintes pareceres, que contêm observações pertinentes para a presente iniciativa:

Parecer da EDPS, de 23 de Junho de 2008, sobre a proposta de decisão que estabelece um programa comunitário plurianual para a protecção das crianças na utilização da Internet e de outras tecnologias das comunicações, (JO C 2 de 7.1.2009, p. 2);

Parecer da EDPS, de 22 de Fevereiro de 2010, sobre as negociações em curso da União Europeia sobre um Acordo Comercial Anticontrafacção (ACTA).

Ver também Grupo do Artigo 29.o, documento de trabalho sobre as questões de protecção de dados relacionadas com os direitos de propriedade intelectual (WP 104), adoptado em 18 de Janeiro de 2005.

(5)  Ver ambos os pareceres da EDPS acima mencionados.

(6)  Directiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995, relativa à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, (JO L 281 de 23.11.1995, p. 31).

(7)  Parecer da EDPS sobre um ACTA, p. 6.