52003DC0606

Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu sobre o artigo 7º do Tratado da União Europeia - Respeito e promoção dos valores em que a União assenta /* COM/2003/0606 final */


COMUNICAÇÃO DA COMISSÃO AO CONSELHO E AO PARLAMENTO EUROPEU sobre o artigo 7º do Tratado da União Europeia - Respeito e promoção dos valores em que a União assenta

ÍNDICE

INTRODUÇÃO

1. CONDIÇÕES DE APLICAÇÃO DO ARTIGO 7º DO TUE

1.1. Âmbito de aplicação que abrange todos os domínios de actividade dos Estados-Membros

1.2. Mecanismos que permitem uma apreciação política por parte do Conselho

1.3. Envolvimento de personalidades independentes

1.4. Condições básicas para a aplicação do artigo 7º do TUE: risco manifesto de violação grave e violação grave e persistente dos valores comuns

1.4.1. Limiar de aplicação do artigo 7º do TUE: violação dos próprios valores comuns

1.4.2. Risco manifesto de violação grave

1.4.3. Violação grave

1.4.4. Violação persistente

2. MEIOS PARA ASSEGURAR O RESPEITO E A PROMOÇÃO DOS VALORES COMUNS COM BASE NO ARTIGO 7º DO TUE

2.1. Instauração de um acompanhamento regular do respeito pelos valores comuns e recurso a peritos independentes

2.2. Concertação entre as instituições e com os Estados-Membros

2.3. Cooperação com o Comissário dos Direitos Humanos do Conselho da Europa

2.4. Diálogo regular com a sociedade civil

2.5. Informação e educação do público

Conclusão

"Os costumes fazem sempre melhores cidadãos do que as leis"

Montesquieu, "Cartas persas"

INTRODUÇÃO

O nº 1 do artigo 6º do Tratado de União Europeia (TUE) enuncia a lista dos princípios comuns dos Estados-Membros em que a União assenta: "...princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos direitos do Homem e pelas liberdades fundamentais, bem como o Estado de direito...".

Esta enunciação de princípios comuns, ou, para utilizar a terminologia do projecto de Constituição, de valores comuns [1], coloca a pessoa no cerne da construção europeia. Constitui um núcleo de elementos essenciais em que cada cidadão da União se pode rever, independentemente das discrepâncias políticas ou culturais ligadas à identidade nacional.

[1] Artigo I-2º do Projecto de Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa.

O respeito por estes valores, bem como a vontade de os promover conjuntamente, constitui, portanto, uma condição necessária para que qualquer Estado possa pertencer à União Europeia. O artigo 49º do TUE sublinha-o claramente no que respeita aos Estados que pretendem aderir à União: "Qualquer Estado europeu que respeite os princípios enunciados no nº 1 do artigo 6º pode pedir para se tornar membro da União."

O artigo 7º do TUE, introduzido pelo Tratado de Amsterdão e alterado pelo Tratado de Nice, bem como o artigo 309º do Tratado que institui a Comunidade Europeia (TCE), conferem às instituições da União os meios que permitem assegurar que todos os Estados-Membros respeitem os valores comuns.

A entrada em vigor do Tratado de Nice, em 1 de Fevereiro de 2003, constituiu um momento decisivo em relação aos meios de intervenção postos à disposição da União nesta matéria. Conferindo à União a capacidade de intervir preventivamente em caso de risco manifesto de violação grave dos valores comuns, o Tratado de Nice tornou muito mais operacionais os meios já previstos no Tratado de Amsterdão, que apenas permitem uma intervenção a posteriori, numa altura em que a violação grave se já consumou.

A este propósito, o artigo 7º revisto confere à Comissão novas competências no domínio do acompanhamento dos direitos fundamentais na União e da identificação de eventuais riscos nesta matéria. A Comissão propõe-se aproveitar plenamente e com elevado sentido de responsabilidade esta nova prerrogativa.

Os meios descritos destinam-se a, como meio derradeiro de solução, penalizar e resolver uma situação de violação grave e persistente dos valores comuns. No entanto, destinam-se sobretudo a evitar a ocorrência de uma tal situação, ao conferirem à União capacidade de reacção logo que seja claro um risco manifesto de violação por parte de um Estado-Membro.

A violação grave e persistente dos valores comuns por um Estado-Membro poria em questão de forma dramática os próprios fundamentos da União Europeia. Nas circunstâncias que actualmente caracterizam a situação económica, social e política dos Estados-Membros, a União Europeia continua seguramente a constituir um dos locais do mundo em que a democracia e os direitos fundamentais são melhor protegidos, graças, nomeadamente, aos sistemas jurisdicionais nacionais e em particular aos Tribunais Constitucionais.

No entanto, vários factores de importância variável requerem uma análise minuciosa das questões que se prendem com o respeito da democracia e dos direitos fundamentais nos Estados-Membros.

- Numa altura em que a União entra numa nova fase do seu desenvolvimento, caracterizada pelo próximo alargamento e que implica uma maior diversidade cultural, afigura-se oportuno que as instituições da União aprofundem a sua abordagem comum em relação à defesa dos valores da União.

- O desenvolvimento e o reforço da democracia e do Estado de direito, bem como o respeito dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais, são alguns dos principais objectivos das políticas da União e da Comunidade em relação aos países terceiros. A este propósito, a Comissão gostaria de sublinhar, a exemplo do que sucedeu com o Parlamento Europeu no seu relatório sobre a situação dos direitos fundamentais na União Europeia [2], de 12 de Dezembro de 2002, que, para serem eficazes e credíveis, as políticas da União em relação, por um lado, aos países terceiros e, por outro, aos seus próprios Estados-Membros devem ser coerentes e homogéneas entre si.

[2] A5-0451/2002.

- Os cidadãos e os representantes mais dinâmicos da sociedade civil no domínio da protecção dos direitos fundamentais interrogam-se sobre a dimensão exacta das obrigações dos Estados-Membros ao abrigo do artigo 7º do TUE. A Comissão verifica igualmente que as numerosas queixas que lhe são dirigidas pelos particulares indicam que o artigo 7º do TUE é frequentemente entendido pelos cidadãos da União como um meio de possível resolução das violações dos direitos fundamentais de que podem ter sido vítimas.

Dada esta diversidade de factores, a Comissão considera não ser possível evitar uma reflexão sobre a protecção e promoção dos valores comuns, na acepção do Tratado da União Europeia.

A Comissão pretende contribuir para essa reflexão.

Nessa óptica, a presente comunicação destina-se a, por um lado, analisar as condições de desencadeamento dos procedimentos do artigo 7º e, por outro, a identificar as medidas operacionais que poderiam contribuir para o respeito e a promoção dos valores comuns, graças à concertação entre as instituições da União e à cooperação com os Estados-Membros.

Em contrapartida, não aborda as questões relativas às sanções que, se for caso disso, deverão ser formuladas pelo Conselho contra o Estado-Membro faltoso, em conformidade com o disposto no nº 3 do artigo 7º do TUE e no artigo 309º do TCE. A Comissão considera que importa não especular sobre esta matéria e prefere encarar o artigo 7º do TUE num espírito de prevenção das situações nele abordadas e de promoção dos valores comuns.

1. CONDIÇÕES DE APLICAÇÃO DO ARTIGO 7º DO TUE

No Tratado de Nice, a inovação consistiu na introdução de um mecanismo de prevenção, paralelamente ao mecanismo de sanção previsto no Tratado de Amsterdão. Doravante, coexistem dois mecanismos, sem que o desencadeamento do primeiro seja uma condição necessária para a ocorrência do segundo: por um lado, a constatação de um risco manifesto de violação grave (nº 1 do artigo 7º) e, por outro, a constatação da existência de uma violação grave e persistente dos valores comuns (nº 2 do artigo 7º).

O artigo 7º do TUE é muito preciso em relação ao papel atribuído, respectivamente, ao Parlamento Europeu, aos Estados-Membros e à Comissão, que podem aplicar ambos os mecanismos. A este propósito, a Comissão limita-se a remeter ao texto deste artigo, retomado em anexo à presente comunicação.

No entanto, ela gostaria de sublinhar algumas das suas características fundamentais.

1.1. Âmbito de aplicação que abrange todos os domínios de actividade dos Estados-Membros

O artigo 7º não abrange apenas o âmbito de aplicação do direito da União. A União pode, portanto, intervir não só em caso de violação dos valores comuns nesse quadro estrito, como também em caso de violação num domínio que é da competência de um Estado-Membro.

O carácter horizontal e geral do possível âmbito de aplicação do artigo 7º do TUE é facilmente compreensível num artigo que se destina a assegurar o respeito pelas condições em relação à qualidade de membro da União. Seria, de facto, paradoxal limitar as possibilidades de intervenção da União apenas ao âmbito de aplicação do direito da União e ignorar eventuais violações graves em domínios da competência nacional. Com efeito, as violações por um Estado-Membro de valores fundamentais com a gravidade requerida pelo artigo 7º do TUE poderão minar as próprias bases em que a União assenta e a confiança dos seus membros, qualquer que seja o domínio em que ocorram.

O artigo 7º confere, portanto, à União uma competência de intervenção muito diferente da de que dispõe em relação aos Estados-Membros para assegurar o respeito dos direitos fundamentais por estes últimos quando aplicam o direito da União. É com efeito jurisprudência assente que os Estados-Membros devem, neste quadro, respeitar os direitos fundamentais como princípios gerais do direito comunitário. Além disso, esta obrigação apenas se aplica às situações nacionais abrangidas pelo direito comunitário [3]. Ao contrário do que sucede com os mecanismos previstos no artigo 7º do TUE, o respeito desta obrigação é assegurado pelo Tribunal de Justiça, por exemplo no âmbito de um processo por infracção (artigos 226º e 227º do TCE) ou de um recurso a título prejudicial (artigo 234º do TCE).

[3] Ver, por exemplo, o Acórdão de 13 de Julho de 1989, no Processo 5/88, Wachauf (Colectânea da Jurisprudência, 1989, p. 2609) e o Acórdão de 18 de Junho de 1991, direitos exclusivos em matéria de radiodifusão e televisão, no Processo C-260/89 (Colectânea da Jurisprudência, 1991, p. I-2925).

1.2. Mecanismos que permitem uma apreciação política por parte do Conselho

O artigo 7º confere ao Conselho liberdade de apreciação em relação à constatação quer de um risco manifesto de violação grave quer da existência de uma violação grave e persistente, devendo ele estatuir, consoante os casos, com base numa proposta apresentada pelo Parlamento Europeu, por um terço dos Estados-Membros ou pela Comissão. No entanto, a competência do Conselho não está limitada na sua própria constatação quer de risco manifesto, quer de violação grave e persistente.

O nº 3 do artigo 7º prevê igualmente que, após a constatação da gravidade e da persistência da violação, o Conselho pode decidir a aplicação de sanções, embora a tal não seja obrigado.

Esta faculdade sublinha o carácter político do artigo 7º do TUE, que permite uma solução diplomática para resolver uma situação que poderia ocorrer na União em caso de constatação de violação grave e persistente dos valores comuns.

Este poder de apreciação está, no entanto, sujeito a um controlo democrático do Parlamento Europeu, expresso no parecer favorável que este deve emitir antes da decisão do Conselho.

Em contrapartida, apesar das sugestões repetidas da Comissão aquando dos trabalhos preparatórios dos Tratados de Amsterdão e de Nice, o Tratado da União não atribuiu ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias o controlo jurisdicional da constatação de uma violação grave e persistente dos valores comuns ou de um risco manifesto de violação grave desses valores. Com efeito, o controlo do Tribunal abrange apenas, em virtude do disposto na alínea e) do artigo 46º do TUE, "as disposições processuais previstas no artigo 7º", permitindo assim o respeito dos direitos de defesa do Estado em causa.

1.3. Envolvimento de personalidades independentes

O envolvimento de "personalidades independentes", que poderiam ser convidadas a apresentar num prazo razoável um relatório sobre a situação no Estado-Membro em causa, tal como previsto no nº 1 do artigo 7º, poderia contribuir para uma análise objectiva e completa da situação em relação à qual o Conselho deve pronunciar-se.

A Comissão sugere uma reflexão sobre se o Conselho deve ou não dispor de uma lista de nomes de "personalidades independentes" que possam ser consultadas rapidamente em caso de necessidade.

1.4. Condições básicas para a aplicação do artigo 7º do TUE: risco manifesto de violação grave e violação grave e persistente dos valores comuns

A aplicação do artigo 7º do TUE pressupõe que estejam reunidas condições de fundo em relação à violação, ou ao risco de violação. Estas condições não são idênticas para o mecanismo de prevenção e o mecanismo de sanção: o primeiro pode ser desencadeado em caso de "risco manifesto de violação grave", enquanto o segundo só pode ser aplicado se ocorrer "uma violação grave e persistente" dos valores comuns.

Vários documentos internacionais contêm elementos úteis para a interpretação da noção de violação "grave e persistente". De facto, esta noção deriva do direito público internacional. O artigo 6º da Carta das Nações Unidas prevê com efeito que, "se um Membro da Organização transgredir de forma persistente os princípios enunciados na presente Carta, pode ser excluído da Organização pela Assembleia Geral, mediante recomendação do Conselho de Segurança". Também o artigo 8º do Estatuto do Conselho da Europa prevê, que "Qualquer Membro do Conselho da Europa que atente gravemente contra o disposto no artigo 3º [4] pode ser suspenso do seu direito de representação...".

[4] "Todos os Membros do Conselho da Europa reconhecem o princípio do primado do Direito e o princípio em virtude do qual qualquer pessoa colocada sob a sua jurisdição deve gozar dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, comprometendo-se a colaborar sincera e activamente na prossecução do objectivo definido no capítulo I".

Em contrapartida, a noção de risco, introduzida pelo Tratado de Nice para permitir a intervenção preventiva da União, parece ser específica do sistema jurídico da União.

Antes de analisar estas noções, que distinguem entre uma situação de risco e uma de violação já concretizada, impõe-se uma constatação prévia: a clareza do risco manifesto de violação grave, bem como a persistência e a gravidade da violação determinam o limiar de aplicação do artigo 7º do TUE. Este limiar é muito superior ao dos casos de violações individuais dos direitos fundamentais constatadas pelas jurisdições nacionais, pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e, no âmbito do direito comunitário, pelo Tribunal de Justiça.

1.4.1. Limiar de aplicação do artigo 7º do TUE: violação dos próprios valores comuns

É evidente que, para a vítima de uma violação caracterizada dos seus direitos, qualquer violação é grave. Face às queixas que recebe, a Comissão verifica que um número importante e crescente de pessoas considera que qualquer violação dos direitos fundamentais nos Estados-Membros poderá conduzir à aplicação do artigo 7º e sugere frequentemente que a Comissão instaure um processo. É, portanto, essencial clarificar esta questão.

O procedimento do artigo 7º destina-se a sanar a violação graças a uma abordagem política global, e não a solucionar casos individuais de violação.

De facto, a leitura simultânea do disposto no nº 1 do artigo 6º e no artigo 7º do TUE indica ser necessário que o objecto da violação diga respeito aos próprios valores comuns para que possa ser constatada uma violação na acepção do segundo desses dois artigos. O risco e a violação constatados devem, portanto, dizer respeito a situações não meramente individuais e constituir um problema de âmbito geral. Reside neste facto, aliás, o valor acrescentado por esta disposição de última instância em relação à resposta dada a casos de violação individual.

Tal facto não significa que haja um vazio jurídico nesta matéria. Os casos individuais de violação dos direitos fundamentais devem ser resolvidos através da instauração de procedimentos jurídicos internos, europeus e internacionais. Os tribunais nacionais, o Tribunal de Justiça - no que respeita à aplicação do direito comunitário - e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem têm papéis bem definidos a desempenhar nesta matéria.

1.4.2. Risco manifesto de violação grave

O risco de violação grave constitui apenas uma simples possibilidade, não obstante dever ser qualificado: deve de facto ser "manifesto", o que conduz a que o mecanismo de prevenção não abranja os riscos ainda muito hipotéticos. Pelo contrário, a violação grave pressupõe a concretização material do risco. Poder-se-á afirmar, por exemplo, que a adopção de uma lei que autoriza a eliminação das garantias processuais em caso de guerra constitui um risco manifesto; por outro lado, a sua utilização efectiva numa situação de guerra constituiria uma violação grave.

Ao introduzir a noção de "risco manifesto", o artigo 7º do TUE criou meios para enviar sinais de alerta adequados ao Estado-Membro faltoso, antes da consumação do risco. Simultaneamente, impõe às instituições uma obrigação de vigilância constante, uma vez que "o risco manifesto" ocorre num contexto político, económico e social conhecido e no termo de um período mais ou menos longo, no decurso do qual eram já perceptíveis os primeiros sinais precursores, como, por exemplo, manifestações de racismo ou de xenofobia.

1.4.3. Violação grave

O critério da violação grave aplica-se aos mecanismos de prevenção e de sanção: o risco manifesto deve dizer respeito a uma violação "grave" e a própria violação, caso se concretize, deve igualmente ser "grave".

Para determinar a gravidade da violação, será necessário atender a diversos critérios, como o objecto ou o resultado da violação.

No que se refere ao objecto da violação, poder-se-ão analisar, por exemplo, os estratos da população visados pelas medidas nacionais incriminadas. Esta análise poderá ser influenciada pelo facto de esses estratos serem vulneráveis, como sucede com as minorias nacionais, étnicas ou religiosas ou ainda com as populações imigradas.

O resultado da violação poderá estar relacionado com um ou mais dos princípios evocados no artigo 6º. Embora baste a violação, ou o risco de violação, de um só dos valores comuns para que possa ser accionado o artigo 7º, a verdade é que a violação simultânea de vários valores poderá vir a constituir uma indicação da gravidade da violação.

1.4.4. Violação persistente

Esta condição apenas diz respeito à aplicação do mecanismo de sanção de uma violação já concretizada.

É por definição persistente uma violação que se prolongue no tempo. No entanto, esta persistência pode manifestar-se de vários modos.

A violação dos princípios enumerados no artigo 6º poderá constar de um documento legislativo ou administrativo. Poderá também resultar de uma simples prática administrativa ou política das autoridades do Estado-Membro em causa. É possível que tal documento ou prática tenha sido objecto de queixas ou de recursos judiciais internos ou internacionais. A repetição sistemática de casos individuais de violação poderá justificar ainda mais a aplicação do artigo 7º do TUE.

Neste contexto, poderia dever atender-se ao facto de um Estado ter sido repetidamente condenado pelo mesmo tipo de violação durante um certo lapso de tempo por uma jurisdição internacional, como o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem , ou por organismos internacionais sem poderes jurisdicionais, como a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa ou a Comissão dos Direitos do Homem das Nações Unidas, sem ter manifestado a intenção de extrair as respectivas ilações práticas.

2. MEIOS PARA ASSEGURAR O RESPEITO E A PROMOÇÃO DOS VALORES COMUNS COM BASE NO ARTIGO 7º DO TUE

Independentemente do facto de as próprias políticas da União se destinarem a contribuir para o respeito e a promoção dos valores comuns, o quadro jurídico e político da aplicação do artigo 7º acima descrito, baseado na prevenção, requer medidas operacionais concretas que possibilitem o acompanhamento rigoroso e eficaz do respeito e promoção dos valores comuns.

2.1. Instauração de um acompanhamento regular do respeito pelos valores comuns e recurso a peritos independentes

As três instituições (Parlamento Europeu, Conselho e Comissão) envidaram já esforços notáveis nesta matéria. O relatório apresentado anualmente pelo Parlamento Europeu sobre a situação dos direitos fundamentais na União Europeia contribui de forma incontestável para a formulação de um diagnóstico preciso da situação em termos de protecção a nível dos Estados-Membros e da União [5].

[5] Cf. projecto de Relatório sobre a situação dos direitos fundamentais na União Europeia (2002) (2002/2013(INI)), Relator: Senhor Deputado Fodé Sylla, A5-0281/2003. Ver igualmente: em relação a 2001, o relatório da Senhora Deputada Joke Swiebel (PE 311.039/DEF) e, em relação a 2000, o relatório do Senhor Deputado Thierry Cornillet (PE 302.216/ DEF).

Encontram-se disponíveis várias outras fontes de informação, como os relatórios de organizações internacionais [6] e de ONG [7], bem como a jurisprudência de tribunais regionais e internacionais, nomeadamente do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem [8].

[6] De que são exemplo as resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas e os relatórios da Comissão dos Direitos do Homem , os relatórios do Conselho da Europa, nomeadamente do seu Comissário dos Direitos Humanos, e da OSCE.

[7] Cf, por exemplo, os documentos e relatórios publicados pela Amnistia Internacional, pelo Human Rights Watch e pela Fédération Internationale des Droits de l'Homme os.

[8] Bem como o Tribunal Internacional de Justiça e, futuramente, o Tribunal Penal Internacional.

O elevado número de queixas individuais apresentadas à Comissão ou ao Parlamento Europeu constituem igualmente uma importante fonte de informação. Embora na maior parte dos casos não seja possível a intervenção da Comissão no que respeita à análise de uma violação do direito comunitário e à eventual introdução de uma acção por incumprimento junto do Tribunal de Justiça, dado tratar-se de situações abrangidas pela acção autónoma dos Estados-Membros e não de um direito da União, estas queixas permitem no entanto inventariar as principais preocupações dos cidadãos em matéria de direitos fundamentais.

No seu relatório sobre a situação dos direitos fundamentais na União Europeia em 2000, o Parlamento Europeu [9] recomendou a criação de uma rede de peritos em matéria de direitos fundamentais, a fim de assegurar um elevado grau de competência em relação a todos os Estados-Membros e à União Europeia. Efectuou-se uma experiência-piloto que envolveu a criação em 2002 de uma rede pela Comissão Europeia [10]. Ela constitui um bom exemplo de colaboração entre a Comissão e o Parlamento Europeu, dado que, embora se destine a contribuir para os trabalhos da Comissão, permite igualmente apresentar ao Parlamento Europeu importantes elementos informativos.

[9] 2000/2231(INI).

[10] O anúncio de concurso da rede foi publicado no JO S 60, de 26 de Março de 2002.

A principal tarefa da rede é a elaboração de um relatório anual sobre a situação dos direitos fundamentais na União [11], que permite apresentar uma imagem precisa da situação em cada Estado-Membro. O relatório tornado público está a ser objecto de grande divulgação.

[11] http://europa.eu.int/comm/justice_home/ cfr_cdf/index_en.htm

A informação recolhida deveria permitir detectar situações anómalas em matéria de direitos fundamentais ou situações que possam conduzir a violações, ou ao risco de violação, destes direitos, na acepção do artigo 7º do TUE.

Esta rede pode igualmente contribuir, através das suas análises, para a pesquisa de soluções em relação às anomalias constatadas ou para evitar possíveis violações.

Tal acompanhamento desempenha igualmente uma função preventiva essencial, na medida em que pode alimentar a reflexão sobre a realização do espaço de liberdade, segurança e justiça, ou pode alertar as instituições para divergências na evolução dos padrões de protecção dos Estados-Membros, o que poderia conduzir a uma quebra da confiança mútua em que as políticas da União assentam.

É importante que os Estados-Membros sejam associados ao exercício de avaliação e interpretação dos resultados dos trabalhos da rede de peritos independentes. Para a troca de informações e o intercâmbio de experiência, a Comissão poderia organizar encontros regulares, centrados nas informações recolhidas pela rede, com as instâncias nacionais competentes no domínio dos direitos do Homem.

Esta rede de peritos é independente da Comissão e do Parlamento Europeu e a sua independência deve ser preservada. Naturalmente que as análises por ela efectuadas não traduzem necessariamente o parecer nem da Comissão, nem do Parlamento.

Actualmente, esta rede funciona com base num contrato limitado no tempo concluído entre a Comissão e um centro universitário [12].

[12] A rede é composta por peritos de alto nível de todos os Estados-Membros, coordenados por O. De Schutter, da UCL.

O seu actual papel só poderá ser adequadamente desempenhado se for plenamente assegurada a sua continuidade, ou até mesmo perenidade. Para esse efeito, importa que a acção da rede assente numa base jurídica adequada.

Em todo o caso, importa zelar por uma boa coordenação e eliminar o risco de duplicação do trabalho do Observatório Europeu dos Fenómenos Racistas e da Xenofobia [13], que desempenha há vários anos um papel importante na recolha de dados sobre o racismo e a xenofobia nos Estados-Membros e assenta numa rede de pontos de contacto nacionais (RAXEN).

[13] Regulamento (CE) nº 1035/97, de 2 de Junho de 1997, JO L 151 de 10.6.1997.

Para todos os fins úteis, esta situação poderia ser reexaminada a médio prazo, tendo em conta a experiência obtida com o trabalho da rede.

2.2. Concertação entre as instituições e com os Estados-Membros

O desencadeamento do mecanismo do artigo 7º do TUE teria implicações não só para o Estado-Membro incriminado, como também para o conjunto da União Europeia. Dada a gravidade da situação daí resultante, é provável que haja necessidade de concertação, em especial com o Parlamento Europeu e o Estado-Membro em causa.

Caso venha a contemplar a apresentação de uma proposta, no respeito pleno das suas prerrogativas, a Comissão procuraria criar, nas várias fases que a precedem, contactos estreitos com esses dois intervenientes, a fim de, por exemplo, identificar situações possivelmente abrangidas pelo artigo 7º, analisar tais situações ou dar seguimento aos primeiros contactos informais com as autoridades do Estado-Membro em causa.

Tal Estado-Membro poderia ser contactado para emitir o seu parecer sobre a situação. Estes contactos poderiam permitir que a Comissão apresentasse os factos de que esse Estado-Membro fosse acusado e que este expusesse simultaneamente o seu ponto de vista.

Todos estes contactos informais não constituiriam de forma alguma procedimentos obrigatórios e em nada prejudicariam a decisão que, em última análise, a Comissão entendesse dever tomar.

Além disso, a Comissão considera útil que os Estados-Membros designem pontos de contacto nesta matéria, que poderiam funcionar em rede com a Comissão e o Parlamento Europeu e constituir um instrumento de apoio à rede de peritos independentes.

2.3. Cooperação com o Comissário dos Direitos Humanos do Conselho da Europa

Criado em 1999 como órgão independente do Conselho da Europa [14], o Comissário dos Direitos Humanos constitui uma instância não judicial responsável pela promoção do respeito, da educação e da sensibilização em relação aos direitos humanos, na forma em que são expressos nos instrumentos do Conselho da Europa. Este comissário apresenta um relatório anual ao Comité de Ministros e à Assembleia Parlamentar.

[14] Resolução (99)50 sobre o Comissário dos Direitos Humanos do Conselho da Europa, adoptada pelo Comité dos Ministros em 7 de Maio de 1999, na sua 104ª sessão.

No âmbito da cooperação entre o Conselho da Europa e a Comunidade Europeia, afigura-se desejável estabelecer contactos entre o Comissário do Conselho da Europa e as instituições comunitárias. A Comissão propõe-se estabelecer tais contactos, por exemplo com vista à troca recíproca de informações.

2.4. Diálogo regular com a sociedade civil

A sociedade civil desempenha funções particularmente importantes a nível quer da protecção quer da promoção dos direitos fundamentais e desempenha um papel de vigilância muito importante. É frequentemente graças aos relatórios das várias organizações não governamentais que é chamada a atenção do público e das instituições para as eventuais violações, embora também para as boas práticas.

Por este motivo, a Comissão pretende desenvolver um diálogo regular com as ONG responsáveis em matéria de direitos fundamentais na União, a exemplo do que sucede com o que se verifica já no âmbito da política externa.

2.5. Informação e educação do público

Existem já projectos educativos e de promoção dos direitos fundamentais apoiados pelos programas comunitários Sócrates, Juventude e Leonardo da Vinci, por outras iniciativas educativas e culturais, bem como por iniciativas que se integram no quadro da política de informação da Comissão sobre a Carta dos Direitos Fundamentais [15].

[15] A Comissão aprovou a contribuição financeira comunitária para vários projectos que foram seleccionados na sequência de um convite à apresentação de propostas. Estes projectos destinam-se a prestar aos cidadãos informações sobre os direitos fundamentais, designadamente sobre a Carta.

A Comissão considera oportuno desenvolver uma política de sensibilização e educação do público em matéria de direitos fundamentais em coordenação com os Estados-Membros e com organizações internacionais que tenham uma prática nesta matéria, como é o caso do Conselho da Europa ou das ONG activas no domínio dos direitos fundamentais.

Conclusão

A União Europeia é sobretudo uma união de valores. A conquista destes valores é o fruto da nossa História. Eles estão no cerne da identidade da União e permitem que todos os cidadãos com ela se identifiquem.

A Comissão permanece convicta de que, nesta união de valores, será desnecessária a aplicação de sanções em conformidade com o disposto no artigo 7º do TUE e no artigo 309º do TCE.

No entanto, a preservação dos valores comuns deve enformar as considerações de carácter político e todas as acções empreendidas pela União de promoção da paz e do bem-estar dos povos que a constituem.

A Comissão considera contribuir para a concretização deste objectivo ao insistir em medidas baseadas na prevenção, no acompanhamento rigoroso da situação nos Estados-Membros, na cooperação entre as instituições e com os Estados-Membros e, por último, na informação e educação do público.

ANEXO

Artigo 7º do Tratado da União Europeia.

1. Sob proposta fundamentada de um terço dos Estados-Membros, do Parlamento Europeu ou da Comissão, o Conselho, deliberando por maioria qualificada de quatro quintos dos seus membros, e após parecer favorável do Parlamento Europeu, pode verificar a existência de um risco manifesto de violação grave de algum dos princípios enunciados no n° 1 do artigo 6° por parte de um Estado-Membro e dirigir-lhe recomendações apropriadas. Antes de proceder a essa constatação, o Conselho deve ouvir o Estado-Membro em questão e pode, deliberando segundo o mesmo processo, pedir a personalidades independentes que lhe apresentem num prazo razoável um relatório sobre a situação nesse Estado-Membro.

O Conselho deve verificar regularmente se continuam válidos os motivos que conduziram a essa constatação.

2. O Conselho, reunido a nível de Chefes de Estado ou de Governo e deliberando por unanimidade, sob proposta de um terço dos Estados-Membros ou da Comissão, e após parecer favorável do Parlamento Europeu, pode verificar a existência de uma violação grave e persistente, por parte de um Estado-Membro, de algum dos princípios enunciados no nº 1 do artigo 6º, após ter convidado o Governo desse Estado-Membro a apresentar as suas observações sobre a questão.

3. Se tiver sido verificada a existência da violação a que se refere o n° 2, o Conselho, deliberando por maioria qualificada, pode decidir suspender alguns dos direitos decorrentes da aplicação do presente Tratado ao Estado-Membro em causa, incluindo o direito de voto do representante do Governo desse Estado-Membro no Conselho. Ao fazê-lo, o Conselho terá em conta as eventuais consequências dessa suspensão nos direitos e obrigações das pessoas singulares e colectivas.

O Estado-Membro em questão continuará, de qualquer modo, vinculado às obrigações que lhe incumbem por força do presente Tratado.

4. O Conselho, deliberando por maioria qualificada, pode posteriormente decidir alterar ou revogar as medidas tomadas ao abrigo do n° 3, se se alterar a situação que motivou a imposição dessas medidas.

5. Para efeitos do presente artigo, o Conselho delibera sem tomar em consideração os votos do representante do Governo do Estado-Membro em questão. As abstenções dos membros presentes ou representados não impedem a adopção das decisões a que se refere o nº 2. A maioria qualificada é definida de acordo com a proporção dos votos ponderados dos membros do Conselho em causa fixada no nº 2 do artigo 205º do Tratado que institui a Comunidade Europeia.