Parecer do Comité Económico e Social sobre «O seguro complementar de doença»
Jornal Oficial nº C 204 de 18/07/2000 p. 0051 - 0054
Parecer do Comité Económico e Social sobre "O seguro complementar de doença" (2000/C 204/11) Em 11 de Abril de 2000, o Parlamento Europeu decidiu, nos termos do último parágrafo do artigo 262.o do Tratado, consultar o Comité Económico e Social sobre "O seguro complementar de doença". Foi incumbida da preparação dos correspondentes trabalhos a Secção de Emprego, Assuntos Sociais e Cidadania, que emitiu parecer em 5 de Maio de 2000 (Relator: Bloch-Laine). Na 373.a reunião plenária (sessão de 24 de Maio de 2000), o Comité Económico e Social aprovou o presente parecer por 113 votos a favor, 2 votos contra e 2 abstenções. 1. INTRODUÇÃO 1.1. A Comissão do Emprego e dos Assuntos Sociais do Parlamento Europeu submeteu a parecer do Comité Económico e Social o documento de trabalho relativo ao seguro complementar de doença (PE.286.183 - DT/402.876). O Comité acolheu este pedido de consulta com bastante satisfação por dois tipos de razões: por um lado, pela importância e gravidade do assunto, por outro, pelo papel que o CES considera poder e dever vir a desempenhar na elaboração progressiva de actos constitutivos de um modelo social europeu. 1.2. No preâmbulo do presente parecer, o Comité observa e sublinha que o documento que lhe foi submetido vem na sequência de reflexões e actos tendentes a definir e alicerçar melhor a vocação social da União. A iniciativa tomada pela Comissão do Emprego e dos Assuntos Sociais do PE testemunha a atenção crescente, que desde o início dos anos 90, é dedicada à protecção social, de que a cobertura de doença é um elemento fundamental na luta contra a exclusão. As principais manifestações deste reconhecimento foram, após a recomendação de 27 de Julho de 1992 sobre a convergência dos objectivos e políticas de protecção social(1), três comunicações da Comissão de 1995, 1997 e 1999(2). O Comité emitiu em 1 de Março de 2000 parecer sobre a Comunicação da Comissão - "Uma estratégia concertada de modernização da protecção social"(3). 1.3. O documento de trabalho sobre que o CES é agora consultado constitui uma nova etapa nesta via. I. Análise do documento de trabalho Distinguem-se nele três vertentes: uma resenha de algumas regras fundamentais instituídas pelos Tratados da União, que regem a abordagem e tratamento desta questão (A); a constatação de uma situação preocupante (B); propostas (C). A. Limites postos pelo contexto institucional 1. O documento recorda que a organização e o financiamento dos sistemas nacionais de protecção social são da responsabilidade dos Estados-Membros. 2. Sublinha que a protecção social corresponde a modelos e procede das arbitragens sociais e políticas herdadas do passado e próprias de cada Estado. 3. Insiste em que, nesta matéria, os Estados-Membros devem conservar as suas próprias responsabilidades, em aplicação directa do princípio da subsidiariedade. 4. Assinala que a livre concorrência, um dos princípios fundamentais da União Europeia, continua evidentemente a nortear as regras do seguro. 5. Refere que, segundo os regimes previstos pelos Tratados, também neste domínio a acção da União é exercida "por intermédio da instauração de normas MÍNIMAS" destinadas a criar "redes de segurança". 6. Precisa que as denominadas "prestações de conforto" se situam fora do âmbito do que defende. O Comité fez questão de reunir e dar saliência a estas notas que perpassam o documento para evidenciar a preocupação manifesta dos seus autores de não subestimar nenhuma das limitações a respeitar, nem as dificuldades a ultrapassar para enfrentar, de modo pertinente, os desafios inerentes ao problema. B. Constatação alarmante Em suma, apesar da diversidade das situações nacionais, observa-se em todos os Estados da União o aparecimento ou o agravamento de factores discriminatórios no acesso a cuidados de saúde de qualidade em tempo útil; esta desigualdade, de que não se espera uma atenuação espontânea, é uma forma particularmente perniciosa e chocante de exclusão social que só pode prejudicar a imagem e o futuro da construção europeia. 1. Causas Embora o documento do Parlamento se limite ao seguro complementar de doença, o seu significado e o alcance dos problemas com ele relacionados mal serão percebidos se não forem enquadrados no contexto. Assim: - independentemente das especificidades de cada um, em todos os dispositivos europeus de protecção da saúde se verificam certas tendências acentuadas, como sejam: - um passado de 25 anos de crescimento em abrandamento, que originou desemprego e limitou as capacidades contributivas - impostos ou contribuições - das famílias e das empresas; - um envelhecimento da população; - o aparecimento de novas patologias e, devido aos progressos da investigação e da terapêutica, um aumento do custo dos cuidados. A confluência destas tendências tornou inevitável - salvo raras excepções - uma deriva da parte correspondente dos financiamentos públicos no total das despesas de saúde, que em quase todos os países cresce em percentagem dos PIB nacionais. Simultaneamente, assistiu-se em várias regiões da Europa a um decréscimo do acesso das pessoas de mais baixos recursos - as mais mal servidas - aos cuidados de qualidade em tempo útil e até a uma deterioração da qualidade dos cuidados dispensados aos mais desfavorecidos. Isto é, os sistemas de saúde obrigatórios, baseados na solidariedade, atingiram, em medida diversa, os seus limites. Correlativamente à diminuição global da cobertura financiada pelas contribuições calculadas numa base obrigatória, alargaram-se os campos do seguro complementar. Desenvolveram-se mecanismos de protecção social de iniciativa privada, com fins lucrativos ou não, segundo formas e ritmos diversos. Podem e devem considerar-se fundamentalmente úteis a possibilidade de recurso ao seguro complementar de doença e todas as melhorias susceptíveis de alargar a sua abertura. Esta abordagem decorre da observância do princípio da realidade. Mas, se se pretende respeitar este princípio, é necessário não o suavizar e, na medida do possível, contribuir para dissipar as ambiguidades. Para o efeito, e nesta fase do parecer, o Comité faz questão de salientar os seguintes pontos: a) Por razões compreensíveis, que seria demasiado fácil e pouco razoável estigmatizar, a linguagem política tem muitas vezes tendência a velar um pouco a realidade dos problemas, a alimentar nas opiniões públicas a ilusão de que os Estados estão e continuarão a estar em condições de corresponder às aspirações, independentemente da dimensão do universo dos contribuintes obrigatórios. Nesta matéria são desejáveis progressos corajosos em atenção às opiniões públicas e em nome de uma linguagem de verdade. b) Quer se queira quer não, os dispositivos de segurança complementar obedecem, segundo modalidades muito diversas, a lógicas de funcionamento essencialmente diferentes das dos mecanismos de cobertura obrigatória, pela conjugação de dois factores: - Os custos dependem da natureza dos riscos. A cobertura depende da capacidade financeira dos clientes ou membros. Os custos podem ser dissuasivos. Trata-se, portanto, independentemente das modalidades de um processo de selecção. - Independentemente das suas motivações, culturas, estratégias, estes dispositivos encontram-se em situação de concorrência. A adesão aos seus pactos ou contratos é voluntária. A menos que se negue a sua natureza, que se queira destruir o seu dinamismo profundo, que se queira descarregar neles o essencial das missões de solidariedade dos Estados, esses dispositivos não devem ser de modo algum transformados. Neste particular como noutros, o documento do Parlamento é claro e lúcido, o que não significa que se devam "cruzar os braços", que se observe apenas, por respeito pela concorrência, o desenvolvimento de lógicas criadoras de exclusão, financeiras e ou patológicas. Quer o afirmem mais ou menos claramente quer não, os Estados-Membros da União Europeia conhecem todos os dados para as opções que devem fazer: - ou aumentar as contribuições obrigatórias (impostos e ou contribuições); - ou permitir uma redução da qualidade e dos prazos das prestações; - ou optimizar o papel crescente dos sistemas de cobertura complementar; - ou aumentar a eficácia de funcionamento dos regimes obrigatórios. A questão que o documento submetido a parecer do CES suscita é: para avançar na terceira via, que preconizar? 2. Identificação dos obstáculos A este respeito, deve dizer-se que o terreno é muito difícil, devido à diversidade das situações, tradições e modos de actuação dos Estados-Membros da União: - nuns casos pagam-se impostos, noutros contribuições, aqui e ali pagam-se os dois em proporções variáveis; - nuns casos há tendência para legislar, noutros para negociar, contratualizar; - nuns casos diferenciam-se os processos, noutros uniformizam-se, etc. II. Observações na especialidade Indicação: Esta parte do parecer do Comité segue, pari passu, a apresentação das Partes II e III do documento do Parlamento. Preâmbulo - Parte II O Comité aprova e apoia a reafirmação das missões de protecção social que incumbem à União Europeia, tanto no reconhecimento das especificidades como no objectivo comum de solidariedade. § 1-2. O Comité considera que os valores evocados seriam mais convincentes se se tratasse da parte das despesas comparticipadas. § 1-3. Seria útil, para apoiar a demonstração, apresentar dados globais e comparáveis a nível europeu, que permitiriam esclarecer quais são os cuidados ou serviços deixados total ou parcialmente a cargo das pessoas. Determinados Estados - para controlar as despesas mantendo bases mínimas - criaram novos sistemas: selectividade por situações pessoais prioritárias. Seria interessante ter informações sobre este ponto. § 1-5. O Comité considera que a solidariedade, enquanto princípio, diz primeiro respeito aos regimes obrigatórios. A questão de uma eventual partilha com os regimes complementares deverá ser claramente debatida. Este ponto não pode ser deixado por esclarecer. § 2. Seria conveniente conhecer os dados quantitativos sobre a parte da população coberta pelo seguro complementar de doença. § 2-3. O direito aos cuidados de saúde destina-se a garantir, em tempo útil, o acesso a cuidados de saúde considerados necessários a partir de critérios médicos objectivos. Só se pode tratar de necessidades reconhecidas do ponto de vista médico. § 3-5. No campo da oftalmologia e da estomatologia, seria necessário saber se os cuidados são cobertos pelos sistemas obrigatórios e, na afirmativa, como e em que proporções. Parte III do documento § 3. Diz-se que a lei do mercado "acarreta a selecção sistemática dos riscos". O Comité observa que todos os intervenientes neste mercado procuram clientes. Alguns propõem os níveis de prémios mais baixos, seleccionando os "bons riscos": pessoas jovens e saudáveis. Outros praticam uma mutualização que permite não rejeitar os menos favorecidos, os mais doentes ou os mais velhos. Numa concepção muito rude da lei do mercado, a selecção sistemática dos riscos só poderá levar à rejeição, à exclusão dos mais fracos do mercado. O documento preconiza a instituição de regras mínimas que permitam evitar a ausência de cobertura social. Trata-se, então, da ausência de recurso a cuidados mínimos cobertos pelos regimes obrigatórios? Mas com que nível de qualidade? E com que prazos para as prestações? Quanto aos "grandes riscos", será conveniente organizar uma mutualização, criando, por exemplo, fundos de garantia, a cargo dos operadores de seguros, que suportariam os prémios suplementares. § 5. O Comité aprova totalmente a observação. III. Parecer sobre as medidas propostas A. Carta dos Direitos Fundamentais O Comité é favorável a que a Carta estabeleça princípios fortes nesta matéria e se inspire na Carta Social do Conselho da Europa e na Carta dos Direitos Sociais da Europa. B. Instrumentos de acompanhamento Na opinião do Comité, a União Europeia deverá criar meios eficazes de vigilância europeia desta importante questão: - recorrendo a uma ou outra agência já constituída; - ou dotando das capacidades logísticas e orçamentais necessáris para o efeito o Comité da Protecção Social, cuja constituição foi recentemente aprovada; - ou, na ausência dessas dotações, criando um observatório. C. Base de regras mínimas 1. O Comité é favorável a que, em matéria de acesso aos cuidados de qualidade em tempo útil, se recorra a uma noção comum de serviço universal. 2. Considera que, em vez de legislar sobre uma matéria reconhecidamente complexa, se deveria apenas orientar. O objectivo seria estabelecer em cada Estado, em concertação com as seguradoras privadas, através de negociação, cadernos de encargos contratuais que constituiriam códigos de boa conduta, o que permitiria evitar as exclusões a que pode conduzir o exercício imoderado da lógica de selecção dos riscos. O Comité seria favorável a uma recomendação nesse sentido, nos termos do disposto no artigo 152o do Tratado. 3. O Comité é favorável a uma garantia vitalícia. 4. O Comité é favorável à mobilização, por todos os meios, dos agentes de seguros complementares para a acção de prevenção. 5. O Comité não é favorável à utilização da informação genética para efeitos de discriminação em matéria de seguros. 6. O Comité é favorável à instituição de um mediador em cada Estado para fomentar a avaliação e resolução de litígios entre seguradoras e segurados com base em códigos de boa conduta como os preconizados no ponto 2 supra. Bruxelas, 24 de Maio de 2000. A Presidente do Comité Económico e Social Beatrice Rangoni-Machiavelli (1) JO L 245 de 26.8.1992, pp. 49-52. (2) COM(95)466 final - COM(97)102 final - COM(1999) 347 final. (3) JO C 117 de 26.4.2000, p. 33.