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Document 62024CC0017
Opinion of Advocate General Biondi delivered on 6 February 2025.###
Conclusões do advogado-geral Biondi apresentadas em 6 de fevereiro de 2025.
Conclusões do advogado-geral Biondi apresentadas em 6 de fevereiro de 2025.
ECLI identifier: ECLI:EU:C:2025:62
Edição provisória
CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
ANDREA BIONDI
apresentadas em 6 de fevereiro de 2025 (1)
Processo C‑17/24
CeramTec GmbH
contra
Coorstek Bioceramics LLC
[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Cour de cassation Tribunal de Cassação (França)]
« Reenvio prejudicial — Marca da União Europeia — Má‑fé do requerente — Motivos absolutos de recusa de registo — Sinal exclusivamente composto pela forma funcional do produto — Inexistência de ligação entre a solução técnica e as marcas registadas »
I. Introdução
1. No presente pedido de decisão prejudicial, a Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França) interroga o Tribunal de Justiça sobre as possíveis sobreposições entre os respetivos âmbitos de aplicação das causas de nulidade absoluta da marca comunitária (atual marca da União Europeia) previstas no artigo 52.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Regulamento (CE) n.° 207/2009 (2), baseadas, respetivamente, na existência de um dos motivos absolutos de recusa de registo enumerados no artigo 7.°, n.° 1, deste regulamento e na má‑fé do requerente.
2. Mais especificamente, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas sobre a questão de saber se a intenção de perpetuar os direitos sobre uma solução técnica, detidos ao abrigo de uma patente que expirou, basta para caracterizar a má‑fé do requerente à data do depósito do pedido registo de marca, quando se verifique, após essa data, que o sinal cujo registo foi pedido não incorpora nenhuma solução técnica e que, por conseguinte, a marca em causa não é suscetível de ser declarada nula com base no artigo 52.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 207/2009, lido em conjugação com o motivo absoluto de recusa de registo previsto no artigo 7.°, n.° 1, alínea e), ii), deste regulamento, que visa impedir o registo de sinais que conferem ao titular da marca um monopólio sobre essas soluções.
3. Para o efeito, esse órgão jurisdicional submete ao Tribunal de Justiça três questões, a primeira relativa à articulação entre as causas de nulidade absoluta previstas no artigo 52.°, n.° 1, respetivamente nas alíneas a) e b), do Regulamento n.° 207/2009, a segunda e a terceira relativas à interpretação do artigo 52.° n.° 1, alínea b), deste regulamento.
4. O pedido de decisão prejudicial foi apresentado no âmbito de um litígio que tem por objeto uma ação de contrafação intentada pela CeramTec GmbH (a seguir «CeramTec») contra a Coorstek Bioceramics LLC (a seguir «Coorstek»), no âmbito da qual esta última apresentou um pedido reconvencional de declaração de nulidade de três marcas da União Europeia detidas pela CeramTec.
II. Quadro jurídico
5. O Regulamento n.° 207/2009 foi alterado pelo Regulamento (UE) 2015/2424 (3), que entrou em vigor em 23 de março de 2016, e foi posteriormente revogado e substituído, com efeitos a partir de 1 de outubro de 2017, pelo Regulamento (UE) 2017/1001 (4). No caso vertente, todos os factos do litígio no processo principal estão abrangidos ratione temporis pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.° 207/2009 na sua versão inicial (5).
6. O artigo 7.°, n.° 1, alínea e), ii), do Regulamento n.° 207/2009, na sua versão aplicável aos factos do processo principal, previa que era recusado o registo dos sinais «exclusivamente compostos pela forma do produto necessária para obter um resultado técnico».
7. O artigo 52.°, n.° 1, do Regulamento n.° 207/2009 tinha a seguinte redação:
«A nulidade da marca [da União Europeia] é declarada na sequência de pedido apresentado ao Instituto [de Harmonização do Mercado Interno (marcas, desenhos e modelos)] ou de pedido reconvencional numa ação de contrafação:
a) Sempre que a marca [da União Europeia] tenha sido registada contrariamente ao disposto no artigo 7.°;
b) Sempre que o titular da marca não tenha agido de boa‑fé no ato do depósito do pedido de marca.»
III. Litígio no processo principal, questões prejudiciais e tramitação processual no Tribunal de Justiça
8. A CeramTec é uma sociedade com sede na Alemanha especializada no desenvolvimento, no fabrico e na distribuição de componentes cerâmicos técnicos destinados, em especial, à composição de implantes de anca ou de joelho, que vende aos fabricantes de próteses para a construção de próteses completas de anca, as quais são depois vendidas a utilizadores finais, como hospitais ou cirurgiões ortopédicos.
9. A Coorstek é uma sociedade de direito americano que fabrica componentes médicos em cerâmicas técnicas avançadas, em especial para próteses articulares de anca e coluna dorsal e para próteses dentárias.
10. A CeramTec era titular da patente europeia n.° EP 0 542 815, que expirou em 5 de agosto de 2011, que designa França e diz respeito a um material compósito cerâmico.
11. Em 23 de agosto de 2011, a CeramTec apresentou pedidos de registo de três marcas da União Europeia (a seguir «marcas impugnadas»), a saber:
– a marca que abrange a cor rosa pantone 677C, edição de 2010, registada em 26 de março de 2013 sob o número 010214195, ao abrigo da prioridade de uma marca alemã de 21 de julho de 2011;
– a marca figurativa representada infra, que reivindica a cor rosa pantone 677, registada em 12 de abril de 2013 sob o número 010214112, ao abrigo da prioridade de uma marca alemã de 25 de julho de 2011;
– a marca tridimensional representada infra, que reivindica a cor rosa pantone 677, registada em 20 de junho de 2013 sob o número 010214179, devido à prioridade de uma marca alemã de 26 de julho de 2011.
12. Em 13 de dezembro de 2013, a CeramTec intentou uma ação contra a Coorstek por contrafação de marcas e concorrência parasitária. A Coorstek deduziu um pedido reconvencional, invocando a nulidade das marcas impugnadas.
13. Por Acórdão de 25 de junho de 2021, a cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris, França) declarou nulas as marcas impugnadas por depósito do pedido de registo com má‑fé (a seguir «Acórdão do Tribunal de Recurso de Paris»).
14. O referido órgão jurisdicional salientou que, no dia do depósito dos pedidos de registo das marcas impugnadas, a CeramTec estava convencida do efeito técnico do óxido de crómio para garantir a dureza e a resistência das esferas de cerâmica utilizadas na constituição de próteses médicas e que tinha procurado proteger a cor rosa das esferas, que resultava do efeito induzido pela presença de óxido de crómio na cerâmica. Daqui deduziu que esta sociedade tinha a intenção de prolongar o monopólio que detinha sobre a solução técnica anteriormente protegida por uma patente que acabara de expirar e de impedir os concorrentes de entrarem no mercado em que tinha a posição dominante graças a essa patente. A CeramTec pretendia assim obter um direito exclusivo para fins diferentes dos correspondentes à função da marca.
15. A CeramTec interpôs recurso de cassação do Acórdão do Tribunal de Recurso de Paris. Alega que uma interpretação do artigo 52.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 207/2009 que permita anular uma marca apenas pelo facto de o seu requerente ter tido a intenção de perpetuar direitos sobre uma solução técnica, sem que seja demonstrado que o direito sobre essa marca assegura ou perpetua efetivamente a proteção dessa solução técnica, equivaleria a contornar o âmbito de aplicação do artigo 7.°, n.° 1, alínea e), ii), daquele regulamento e a violar os âmbitos de aplicação respetivos destas duas disposições. No caso em apreço, a CeramTec descobriu, após a sua patente ter expirado e após o depósito das marcas impugnadas, que o óxido de crómio que conferia a cor rosa reivindicada por essas marcas não tinha na realidade nenhum efeito técnico. Nestas circunstâncias, na sua opinião, as marcas impugnadas não podiam ter sido utilizadas para desvirtuar a finalidade do direito das marcas. Sustenta que a mera intenção do depositante é inoperante e que adotar a solução contrária equivaleria a utilizar o conceito de «má‑fé» como um meio indireto para aplicar a causa de nulidade baseada na aplicação combinada do artigo 7.°, n.° 1, alínea e), ii), e do artigo 52.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 207/2009 sem exigir a reunião das suas condições de aplicação.
16. A Coorstek alega que o artigo 52.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 207/2009, lido em conjugação com o artigo 7.°, n.° 1, alínea e), ii), deste regulamento, e o seu artigo 52.°, n.° 1, alínea b), respondem a objetivos diferentes e que não se pode considerar que o primeiro constitui uma disposição especial que prevalece sobre o segundo. Trata‑se de duas hipóteses de nulidade de uma marca que assentam em fundamentos totalmente distintos. De acordo com a Coorstek, o depósito de um sinal efetuado com vista a reservar para si uma solução técnica prejudicaria o jogo leal da concorrência, mesmo que o efeito técnico patenteado, caído no domínio público, acabe por se revelar ineficaz.
17. O órgão jurisdicional de reenvio considera que o recurso de cassação da CeramTec suscita, pela primeira vez, a questão da articulação entre o artigo 7.° do Regulamento n.° 207/2009, para o qual remete o artigo 52.°, n.° 1, alínea a), deste regulamento, e o seu artigo 52.°, n.° 1, alínea b). Salienta que a CeramTec também intentou ações de contrafação das marcas impugnadas contra a Coorstek na Alemanha, nos Estados Unidos da América e na Suíça e que, no âmbito do processo iniciado na Alemanha, o Oberlandesgericht Stuttgart (Tribunal Regional Superior de Estugarda, Alemanha) seguiu, por Sentença de 13 de março de 2023, uma abordagem diferente da adotada no da cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris) (6). O órgão jurisdicional de reenvio deduz daí que existe uma divergência de interpretação entre os órgãos jurisdicionais de recurso dos Estados‑Membros.
18. É nestas circunstâncias que a Cour de cassation (Tribunal de Cassação) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) Deve o artigo 52.o do [Regulamento n.o 207/2009], ser interpretado no sentido de que os motivos de nulidade constantes do artigo 7.°, previstos no n.o 1, alínea a), são autónomos e exclusivos da má‑fé prevista no n.o 1, alínea b), desta disposição?
2) Em caso de resposta negativa à primeira questão, pode a má‑fé do requerente ser apreciada à luz do único motivo absoluto de recusa de registo previsto no artigo 7.°, n.o 1, alínea e), ii), do Regulamento n.o 207/2009, sem que tenha sido demonstrado que o sinal cujo registo foi pedido como marca é constituído exclusivamente pela forma do produto necessária para obter um resultado técnico?
3) Deve o artigo 52.°, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 207/2009 ser interpretado no sentido de que exclui a má‑fé de um requerente que tenha apresentado um pedido de registo de marca com a intenção de proteger uma solução técnica quando, depois de esse pedido ter sido apresentado, se tenha descoberto que não existia nenhuma ligação entre a solução técnica em causa e os sinais que constituem a marca requerida?»
19. Foram apresentadas observações escritas pelas partes no processo principal, pelo Governo Francês e pela Comissão Europeia. Estes interessados apresentaram observações orais na audiência de 13 de novembro de 2024.
IV. Análise
20. Em conformidade com o pedido do Tribunal de Justiça, as presentes conclusões limitar‑se‑ão à primeira e segunda questões prejudiciais.
21. Antes de proceder à sua análise, recordarei rapidamente a jurisprudência pertinente em matéria de má‑fé do requerente aquando do registo de uma marca da União Europeia.
A. Breve resumo da jurisprudência pertinente
22. O conceito de «má‑fé» que figura no artigo 52.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 207/2009 é um conceito autónomo do direito da União (7). Na ausência de uma definição deste conceito neste regulamento, a determinação do seu significado e do seu alcance deve ser feita de acordo com o seu sentido habitual na linguagem corrente, tendo em conta o contexto em que é utilizado e os objetivos prosseguidos pelo referido regulamento (8).
23. Apesar de, em conformidade com o seu sentido habitual na linguagem comum, o conceito de «má‑fé» pressupor a existência de um estado de espírito ou de uma intenção desonesta, este conceito deve, além disso, ser interpretado no contexto do direito das marcas, que é o da vida comercial (9). Assim, o Tribunal de Justiça esclareceu, no Acórdão Koton, que a causa de nulidade absoluta prevista no artigo 52.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 207/2009 é aplicável quando resulte de indícios pertinentes e concordantes que o titular de uma marca da União Europeia apresentou o pedido de registo desta marca não com o objetivo de participar de forma leal no jogo da concorrência, mas com a intenção de afetar, de maneira não conforme com os usos honestos, os interesses de terceiros ou com a intenção de obter, mesmo sem visar um terceiro em particular, um direito exclusivo para fins diferentes dos que fazem parte das funções de uma marca, nomeadamente da função essencial de indicação de origem (10).
24. A existência de má‑fé do requerente, na aceção do artigo 52.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 207/2009, deve ser apreciada globalmente, atendendo a todos os fatores relevantes do caso concreto (11). A intenção do requerente de uma marca é um elemento subjetivo que deve, no entanto, ser determinado de forma objetiva pelas autoridades administrativas e judiciais competentes (12).. De acordo com o Tribunal de Justiça, é apenas desta forma que a alegação de má‑fé pode ser apreciada objetivamente (13).
25. Entre os fatores pertinentes para esta apreciação figura, nomeadamente, o facto de o requerente ter ou dever ter conhecimento das circunstâncias invocadas na alegação de má‑fé suscitada a seu respeito (14). Como explica a advogada‑geral E. Sharpston nas suas Conclusões no processo Chocoladefabriken Lindt & Sprüngli (15), uma intenção só pode a priori ser qualificada como desonesta se a parte em causa tiver conhecimento do contexto factual em que essa qualificação se torna adequada (16). No entanto, esse conhecimento, ou presunção de conhecimento, não basta, por si só, para que fique demonstrada a existência de má‑fé (17).
26. Muitos outros fatores foram considerados pertinentes pelo Tribunal de Justiça e pelo Tribunal Geral da União Europeia, como, nomeadamente, o pedido de marca conforme depositado e o seu alcance (18), a origem e a utilização anterior do sinal cujo registo é pedido (19), bem como a natureza da marca pedida (20), as relações comerciais existentes entre o requerente da declaração de nulidade e o titular da marca impugnada, a lógica comercial em que se inscreve o depósito do pedido de registo e a cronologia dos eventos que caracterizaram este depósito (21), bem como o grau de notoriedade de que goza o sinal no momento do depósito do pedido de registo (22).
27. No entanto, todos estes fatores mais não são do que exemplos de um conjunto de elementos que podem ser tomados em consideração (23). Com efeito, como salientou a advogada‑geral E. Sharpston nas suas conclusões no processo Lindt, o conceito de «má‑fé», na aceção do artigo 52.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 207/2009, não pode ser confinado a uma categoria limitada de circunstâncias específicas (24).
28. Em conclusão, embora a jurisprudência do Tribunal de Justiça e do Tribunal Geral forneça indicações claras quanto à forma como deve ser apreciada a má‑fé do requerente de uma marca da União Europeia, este conceito permanece até à data indeterminado. Isto reflete o objetivo de interesse geral subjacente à causa de nulidade absoluta correspondente, que consiste em impedir registos de marcas abusivos ou contrários às atitudes honestas em matéria industrial e comercial. Esse objetivo ficaria comprometido se a má‑fé só pudesse ser definida de forma exaustiva e só pudesse ser demonstrada através de circunstâncias enumeradas de forma taxativa (25).
B. Quanto à primeira questão prejudicial
29. Com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, ao Tribunal de Justiça se as causas de nulidade absoluta previstas, respetivamente, no artigo 52.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Regulamento n.° 207/2009 são «autónomas» e «exclusivas».
30. Começarei por abordar a questão da autonomia destas causas de nulidade, e, a seguir, o seu eventual caráter exclusivo.
1. São as causas de nulidade absoluta previstas no artigo 52.°, n.° 1, do Regulamento n.° 207/2009 autónomas?
31. À semelhança de todos os interessados que apresentaram observações no âmbito do presente processo, sou da opinião que as causas de nulidade absoluta previstas no artigo 52.°, n.° 1, do Regulamento n.° 207/2009 são independentes umas das outras e autónomas, no sentido de que a aplicação de uma não pressupõe nem depende da aplicação ou da não aplicação da outra. Cada uma delas tem o seu próprio âmbito de aplicação e justifica, por si só, a declaração de nulidade de uma marca da União Europeia quando as condições que presidem à sua aplicação estão reunidas.
32. Desde logo, essa independência resulta da redação e da estrutura do artigo 52.°, n.° 1, do Regulamento n.° 207/2009. As duas causas de nulidade absoluta surgem como frases distintas nos dois parágrafos de uma enumeração da qual constituem os únicos elementos. Estão separadas entre si por um ponto e vírgula, o que reflete semanticamente a intenção do legislador da União de distinguir claramente as duas hipóteses. Por outro lado, esta disposição não contém, nem na sua frase introdutória nem na enumeração que se segue, expressões que indiquem que os elementos desta são cumulativos.
33. Seguidamente, a autonomia das causas de nulidade absoluta enumeradas no artigo 52.°, n.° 1, do Regulamento n.° 207/2009 é confirmada, por um lado, pela análise do contexto em que se inscrevem e, por outro, dos objetivos que prosseguem.
34. No que respeita ao contexto, essa autonomia deduz‑se, antes de mais, do facto de, contrariamente à causa de nulidade prevista na alínea b) dessa disposição, a causa de nulidade prevista na alínea a) remeter para os motivos absolutos de recusa de registo inscritos no artigo 7.° do referido regulamento e dever ser lido e interpretado em conjugação com este artigo. Em seguida, como observado por vários interessados que apresentaram observações no âmbito do presente processo, cada um dos motivos de recusa de registo enumerados no artigo 7.°, n.° 1, do Regulamento n.° 207/2009 é independente dos demais e exige um exame separado (26), pelo que o próprio artigo 52.°, n.° 1, alínea a), deste regulamento visa causas de nulidade absoluta que são autónomas umas das outras e com seu próprio âmbito de aplicação. A fortiori, essa autonomia deve ser reconhecida em relação à causa de nulidade prevista na alínea b) desta disposição. Por último, embora, no seu conjunto, o artigo 52.°, n.° 1, do Regulamento n.° 207/2009 forneça uma lista exaustiva de causas de nulidade de uma marca da União Europeia (27), as disposições que prevê nas alíneas a) e b) têm uma natureza diferente, sendo a primeira de natureza fechada e aplicável apenas nos casos taxativamente enumerados no artigo 7.°, n.° 1, do referido regulamento, ao passo que a segunda remete para o conceito aberto e evolutivo de «má‑fé», que é suscetível de se aplicar num número indeterminado de situações.
35. No que respeita aos objetivos, as causas de nulidade absoluta previstas no artigo 52.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Regulamento n.° 207/2009, apesar de partilharem o objetivo prosseguido pelas regras da União em matéria de marcas, que consiste em contribuir para o sistema de concorrência não falseada na União (28), têm, no entanto, finalidades distintas.
36. A causa de nulidade absoluta prevista na alínea a) desta disposição tem por finalidade invalidar as marcas que foram registadas apesar de não reunirem todas as condições previstas pelo artigo 7.°, n.° 1, do Regulamento n.° 207/2009 e que, por isso, são inaptas para registo. Esta causa censura uma falta da marca e visa proteger o interesse geral subjacente ao motivo absoluto de recusa ao qual está associada.
37. No que se refere, nomeadamente, ao motivo inscrito no artigo 7.°, n.° 1, alínea e), ii), do Regulamento n.° 207/2009, que é o único pertinente para efeitos do presente processo (29), o Tribunal de Justiça declarou que o interesse geral que lhe está subjacente consiste em evitar que o direito das marcas acabe por conferir a uma empresa um monopólio de soluções técnicas ou de características utilitárias de um produto (30). O Tribunal de Justiça também esclareceu que esta disposição estabelece a ponderação de duas considerações que podem, cada uma delas, contribuir para a concretização de um sistema de concorrência equitativo e eficaz, a saber, por um lado, a de evitar que a proteção de uma solução técnica patenteada se perpetue além da caducidade da patente, e, por outro, a de limitar a inaptidão para registo apenas às marcas que impeçam realmente a utilização de uma solução técnica por outras empresas (31).
38. Por seu turno, a causa de nulidade absoluta prevista no artigo 52.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 207/2009, tem por finalidade garantir que os operadores económicos que pretendam utilizar o sistema de marcas da União Europeia participem no jogo leal da concorrência. Visa, assim, punir uma falta inerente ao pedido de registo e não à marca enquanto tal (32)..
39. A autonomia das causas de nulidade previstas pelo artigo 52.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Regulamento n.° 207/2009 não implica necessariamente que também sejam exclusivas.
2. São as cláusulas de nulidade absoluta previstas pelo artigo 52.°, n.° 1, do Regulamento n.° 207/2009 exclusivas?
40. A título preliminar, sublinho que a redação do artigo 52.°, n.° 1, do Regulamento n.° 207/2009 não contém, nem na sua frase introdutória nem na enumeração que se segue, expressões que indiquem que os dois elementos dessa enumeração se excluem mutuamente ou, pelo contrário, que podem coexistir. Por conseguinte, a questão de saber se existe entre esses elementos uma relação lógica de exclusividade deve ser analisada à luz, nomeadamente, do contexto e dos objetivos desta disposição.
41. A este respeito, em primeiro lugar, parece‑me que nada no Regulamento n.° 207/2009 impede que a nulidade de uma marca da União Europeia seja declarada com fundamento em várias causas absolutas de nulidade, visadas na alínea a) ou nas alíneas a) e b), do seu artigo 52.°, n.° 1. Esta eventualidade não será provavelmente frequente, dado que basta que uma destas causas de nulidade se aplique para que a marca da União Europeia seja declarada nula (33) e que as consequências da nulidade sejam as mesmas, independentemente da causa com base na qual foi declarada (34). Contudo, não se pode excluir, em particular, uma aplicação cumulativa do artigo 52.°, n.° 1, alínea a) e b), do Regulamento n.° 207/2009, tendo em conta, nomeadamente, que, nos termos do artigo 52.°, n.° 3, deste regulamento, se a causa de nulidade só se verificar em relação a uma parte dos produtos ou serviços para os quais a marca da União Europeia foi registada, a nulidade da marca só pode ser declarada para os produtos ou serviços na sua totalidade (35).
42. Em segundo lugar, também nada no Regulamento n.° 207/2009 permite considerar que a constatação da inaplicabilidade de uma das causas de nulidade absoluta visadas no artigo 52.°, n.° 1, alínea a) ou alínea b), respetivamente, do Regulamento n.° 207/2009 constitui um obstáculo à aplicação da outra. Decorre dos n.os 31 a 38 das presentes conclusões que estas causas de nulidade diferem tanto no que respeita às suas condições de aplicação quanto ao seu objeto e à sua finalidade. Por conseguinte, não se pode excluir a priori que, quando tenham sido invocadas conjuntamente em apoio de um pedido reconvencional de declaração de nulidade e uma delas tenha sido analisada e rejeitada, a outra possa, não obstante, ser aplicável. Assim, por exemplo, o facto de, em conformidade com o artigo 52.°, n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009, um pedido de declaração de nulidade baseado no n.° 1, alínea a), desta disposição, lido em conjugação com o artigo 7.°, n.° 1, alíneas b), c) ou d), do mesmo regulamento, não poder ser deferido pelo facto de a marca controvertida ter entretanto adquirido caráter distintivo, não constitui um obstáculo a que essa marca seja declarada nula na aceção do artigo 52.°, n.° 1, alínea b), do referido regulamento, igualmente invocado em apoio do referido pedido, se se demonstrar que o seu titular a registou de má‑fé.
3. Conclusão sobre a primeira questão prejudicial
43. Em conclusão, à luz das considerações precedentes, considero que se deve responder à primeira questão prejudicial que as causas de nulidade absoluta previstas pelo artigo 52.°, n.° 1, respetivamente na alínea a) e b), do Regulamento n.° 207/2009 são autónomas, mas não exclusivas.
C. Quanto à segunda questão prejudicial
44. Com a sua segunda questão prejudicial, que é submetida no caso de o Tribunal de Justiça responder negativamente à primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, em substância, sobre a questão de saber se a má‑fé de um requerente cuja intenção é proteger um sinal constituído exclusivamente pela forma necessária à obtenção de um resultado técnico pode ser caracterizada independentemente da questão de saber se o registo desse sinal é contrário ao motivo absoluto de recusa previsto no artigo 7.°, n.° 1, alínea e), ii), do Regulamento n.° 207/2009.
45. Resulta da análise da primeira questão prejudicial que a causa de nulidade absoluta da marca da União Europeia baseada na má‑fé do requerente tem um âmbito de aplicação e uma finalidade próprios em relação às causas de nulidade absoluta associadas à existência de um motivo absoluto de recusa de registo.
46. O estabelecimento da má‑fé não depende da questão de saber se o sinal objeto do pedido de marca é ou não registável, mas exige que se aprecie a intenção do requerente à luz de todas as circunstâncias pertinentes e que se verifique a sua conformidade com as normas de conduta reconhecidas como aceitáveis no contexto específico do direito das marcas e da vida empresarial (36).
47. Assim, como a Comissão acertadamente alega nas suas observações, a má‑fé não pode ser deduzida do simples facto objetivo de o pedido de marca ter sido depositado para proteger um sinal cujo registo está excluído em aplicação de um dos motivos absolutos de recusa previstos pelo artigo 7.° do Regulamento n.° 207/2009. Tal seria contrário quer à autonomia das causas de nulidade absolutas previstas no artigo 52.°, n.° 1, alínea a) e alínea b), respetivamente, desse regulamento, quer ao princípio da presunção da boa‑fé até prova em contrário (37). Ao invés, a constatação de que um sinal foi registado contrariamente a um motivo absoluto de recusa de registo implica que estejam reunidas todas as condições objetivas que presidem à aplicação desse motivo, independentemente da intenção do requerente.
48. A autonomia das causas de nulidade absoluta não exclui, porém, a possibilidade de sobreposições na apreciação da validade de uma marca num caso concreto.
49. Pela sua natureza, os registos de má‑fé podem caracterizar‑se por diversas circunstâncias de facto e de direito. Isso torna particularmente difícil definir de maneira abstrata o que caracteriza um registo deste tipo e leva, como vimos, a apreciar cada alegação de má‑fé com base em todos os fatores pertinentes apresentados pelo requerente de uma declaração de nulidade.
50. Neste contexto, não se pode excluir que alguns dos elementos a ter em conta no âmbito desta apreciação possam igualmente entrar em linha de conta para apreciar se a marca foi registada contrariamente a um dos motivos absolutos de recusa de registo, sem, todavia, ser necessário estarem reunidas todas as condições de aplicação desse motivo.
51. O Tribunal de Justiça chegou, aliás, a uma conclusão semelhante no Acórdão Koton, quando teve de explorar as eventuais sobreposições entre a causa de nulidade absoluta baseada na má‑fé do requerente e a causa de nulidade relativa prevista no artigo 53.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 207/2009, relacionada com a existência de uma marca anterior que se presta a confusões com o sinal requerido (38).
52. Numa situação como a do processo principal em que, no âmbito de um pedido reconvencional de declaração de nulidade, se contesta, em substância, que o titular de uma marca da União Europeia tenha prosseguido, através do seu registo, uma estratégia destinada a impedir os seus concorrentes de oferecerem no mercado produtos que incorporam uma solução técnica sobre a qual beneficiava de um monopólio graças a uma patente entretanto expirada, a questão de saber se se deve considerar que esse registo foi efetuado de má‑fé distingue‑se da questão de saber se a marca em causa é exclusivamente composta pela forma necessária para obter um resultado técnico e se, por este motivo, está abrangida pelo âmbito de aplicação da causa de nulidade absoluta prevista no artigo 52.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 207/2009, lido em conjugação com o artigo 7.°, n.° 1, alínea e), ii), do mesmo regulamento. No primeiro caso, é a legitimidade dos objetivos prosseguidos pelo requerente que está posta em causa, ao passo que, no segundo, é a validade da marca.
53. Daqui decorre que o facto de não estarem reunidas as condições para a aplicação conjunta do artigo 52.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 207/2009 e do artigo 7.°, n.° 1, alínea e), ii), deste regulamento não constitui, em si mesmo, um obstáculo a que o órgão jurisdicional nacional chamado a pronunciar‑se sobre aquela ação conclua que a marca em causa foi registada de má‑fé, quando devia resultar de indícios pertinentes e concordantes que o titular de uma marca não apresentou o pedido de registo desta marca com o objetivo de participar de forma leal no jogo da concorrência, mas com uma intenção desonesta.
54. Na apreciação da existência dessa intenção, o órgão jurisdicional nacional chamado a decidir pode tomar em consideração circunstâncias que poderiam ter sido tidas em conta para verificar a validade da marca em causa à luz do artigo 52.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 207/2009, lido em conjugação com o artigo 7.°, n.° 1, alínea e), ii), deste regulamento, como, por exemplo, a natureza da marca em causa e o facto de certas características dessa marca estarem protegidas por uma patente que entretanto expirou. Admitir esta possibilidade não conduz a uma apreciação da má‑fé do requerente «à luz do único motivo absoluto de recusa de registo referido no artigo 7.°, n.° 1, alínea e), ii), do Regulamento n.° 207/2009», nem a uma leitura «combinada» desta disposição e do artigo 52.°, n.° 1, alínea b), deste regulamento (39), ou a suprir, através de uma remissão para o conceito de «má‑fé», a não reunião das condições de aplicação do referido motivo.
55. Todavia, em circunstâncias como as que acabo de descrever, a má‑fé não pode, a meu ver, ser deduzida da simples circunstância de o registo do sinal em causa ter sido pedido com a finalidade de proteger características da aparência de um produto protegidas por uma patente anterior, quando esse sinal não está abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 7.°, n.° 1, alínea e), ii), do Regulamento n.° 207/2009 (40). Outros elementos pertinentes devem então apoiar a alegação de que o requerente não agiu com o objetivo de participar de forma leal no jogo da concorrência, mas com uma intenção desonesta.
56. Reconheço que, neste contexto, a linha divisória entre uma estratégia comercial legítima e a má‑fé pode ser bastante ténue.
57. Para determinar a intenção real do requerente, caberá ao órgão jurisdicional nacional chamado a decidir apreciar todos os elementos que caracterizam o caso em apreço, entre os quais, nomeadamente, a natureza da marca em causa (41), a origem do sinal protegido e a sua utilização desde a sua criação, o âmbito de aplicação da patente e a cronologia dos acontecimentos. Se forem fundados, podem constituir elementos a favor da má‑fé a convicção do titular da marca, à data do depósito do pedido de registo, de que o sinal requerido abrangia a solução técnica anteriormente protegida pela sua patente, a circunstância de, na mesma data, essa convicção ser partilhada pelos seus concorrentes, pelos utilizadores dos produtos em causa e pela comunidade científica, bem como o facto de o requerente ter tentado manter essa convicção entre os seus clientes, por exemplo, associando intencionalmente o sinal coberto pela sua marca à solução técnica protegida pela sua patente, desviando assim a marca das suas funções, nomeadamente de indicador de origem. De um modo mais geral, é suscetível de ser tida em conta nessa apreciação qualquer conduta do titular da marca que permita sustentar a sua intenção de utilizar o registo pedido para fins diferentes dos prosseguidos pela regulamentação da União em matéria de marcas, nomeadamente com vista a impedir os concorrentes de entrarem no mercado utilizando a solução técnica sobre a qual detinha um monopólio em razão da sua patente.
58. Na presença de indícios que permitam sustentar uma intenção desonesta e ilidir a presunção de depósito de boa‑fé, caberá ao titular da marca provar que o registo da marca se insere numa estratégia comercial legítima ou que agiu por motivos relacionados com a defesa dos seus interesses legítimos (42). No entanto, neste contexto, a má‑fé não poderá ser excluída pelo simples facto de a solução técnica presumida pelo titular da marca no momento do depósito do pedido de registo se ter revelado, após essa data, objetivamente inexistente. Com efeito, as circunstâncias que apenas surgem após a data relevante para efeitos de apreciação da má‑fé só podem ser tidas em conta se forem indicativas da intenção do requerente naquela data (43). Por outro lado, o simples facto de uma marca registada de má‑fé cumprir as funções próprias de uma marca, nomeadamente a função de origem, não constitui, em si mesmo, um obstáculo à sua declaração de invalidade, como é claramente demonstrado pela inaplicabilidade, aos registos de má‑fé, da regra prevista no artigo 52.°, n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009.
59. Antes de concluir, gostaria de abordar brevemente um ponto suscitado pela CeramTec nas suas observações. Esta sociedade argumenta que a má‑fé se caracteriza no contexto de um comportamento abusivo e implica um prejuízo objetivo para a concorrência, que está excluído quando a marca em causa, por um lado, não impede os concorrentes do titular de utilizarem uma solução técnica, e, por outro, cumpre a função de origem própria de uma marca.
60. A este respeito, recordo que, aplicada ao direito das marcas, a má‑fé consiste na «intenção» quer «de afetar, de maneira não conforme com os usos honestos, os interesses de terceiros» quer «de obter, mesmo sem visar um terceiro em particular, um direito exclusivo para fins diferentes dos que fazem parte das funções de uma marca» (44). O Tribunal de Justiça distinguiu, assim, duas categorias de casos suscetíveis de justificar a aplicação do artigo 52.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 207/2009, englobando a segunda categoria as situações em que o direito exclusivo visado pelo pedido de registo não é compatível com uma das funções da marca.
61. Embora abranja qualquer estratégia de depósito abusiva (45), não resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça e do Tribunal Geral que esta categoria se limite apenas aos comportamentos qualificáveis de «abuso de direito» (46). Também não decorre desta jurisprudência que a demonstração da má‑fé, nos casos que se enquadram nesta segunda categoria, esteja subordinada à prova da existência de um prejuízo ou de um risco de prejuízo para a concorrência ou à prova de que o titular da marca pôde retirar uma vantagem indevida do seu comportamento abusivo (47). De qualquer modo, uma vez que o momento relevante para efeitos da apreciação da existência de má‑fé do requerente é o do depósito, pelo interessado, do pedido de registo (48), é à luz das circunstâncias existentes nessa data que devem, se for caso disso, ser apreciados tanto um risco objetivo de prejuízo para a concorrência como a possibilidade de o titular retirar uma vantagem indevida do registo da marca, e não, como parece sugerir a CeramTec, numa fase posterior (49).
62. Em conclusão, à luz das considerações anteriores, sou da opinião que se deve responder à segunda questão prejudicial que o artigo 52.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 207/2009 deve ser interpretado no sentido de que, para efeitos da apreciação da má‑fé do requerente, podem ser tidos em conta fatores suscetíveis de contribuir para caracterizar a nulidade absoluta da marca impugnada com fundamento no artigo 52.°, n.° 1, alínea a), deste regulamento, lido em conjugação com o seu artigo 7.°, n.° 1, alínea e), ii). A simples circunstância de as condições de aplicação do motivo absoluto de recusa de registo previsto por esta última disposição não estarem inteiramente reunidas não se opõe nem a que esse motivo seja tido em conta, nem a que a referida marca seja declarada nula por má‑fé do requerente, quando se verifique, com base em todos os elementos pertinentes próprios ao caso e existentes no momento do depósito do pedido de marca, que este pedido não foi depositado com o objetivo de participar de forma leal no jogo da concorrência, mas com uma intenção desonesta.
V. Conclusão
63. Com base em todas as considerações anteriores, proponho que o Tribunal de Justiça responda à primeira e segunda questões prejudiciais apresentadas pela Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França) como se segue:
1) O artigo 52.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 207/2009 do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, sobre a marca da União Europeia,
deve ser interpretado no sentido de que:
as causas de nulidade absoluta da marca da União Europeia previstas nas alíneas a) e b) desta disposição, constituídas, respetivamente, pelo registo de uma marca contrariamente ao disposto no artigo 7.° deste regulamento e pela má‑fé do requerente no ato do depósito do pedido de marca, são autónomas, mas não exclusivas;
2) Para efeitos da apreciação da má‑fé do requerente, podem ser tidos em consideração elementos suscetíveis de conduzir à nulidade absoluta da marca impugnada com fundamento no artigo 52.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 207/2009, lido em conjugação com o seu artigo 7.°, n.° 1, alínea e), ii), deste regulamento. A simples circunstância de não estarem inteiramente reunidas as condições para a aplicação do motivo absoluto de recusa de registo previsto nesta última disposição não impede a tomada em consideração desses elementos, nem a que a referida marca seja declarada nula por má‑fé do requerente, quando se verifique, com base em todos os elementos pertinentes próprios do caso em apreço e existentes no momento do depósito do pedido de marca, que este pedido não foi depositado com o objetivo de participar de forma leal no jogo da concorrência, mas com uma intenção desonesta.
1 Língua original: francês.
2 Regulamento (CE) do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, sobre a marca comunitária (JO 2009, L 78, p. 1).
3 Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2015, que altera o Regulamento (CE) n.o 207/2009 do Conselho sobre a marca comunitária e o Regulamento (CE) n.° 2868/95 da Comissão relativo à execução do Regulamento (CE) n.° 40/94 do Conselho sobre a marca comunitária, e que revoga o Regulamento (CE) n.° 2869/95 da Comissão relativo às taxas a pagar ao Instituto de Harmonização do Mercado Interno (marcas, desenhos e modelos) (JO 2015, L 341, p. 21).
4 Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2017, sobre a marca da União Europeia (JO 2017, L 154, p. 1).
5 Resulta da decisão de reenvio que tanto os alegados atos de contrafação como a data dos pedidos de registo das marcas controvertidas, que é a única data pertinente para identificar o direito material aplicável ao pedido reconvencional de declaração de nulidade [v., neste sentido, Acórdão de 29 de janeiro de 2020, Sky e o. (C‑371/18, a seguir «Acórdão Sky», EU:C:2020:45 n.° 49)], ocorreram antes de 23 de março de 2016.
6 Resulta do processo nacional apresentado na Secretaria do Tribunal de Justiça que a decisão do Oberlandesgericht Stuttgart (Tribunal Regional Superior de Estugarda), de 13 de março de 2023, tinha por objeto levantar a suspensão do processo de contrafação iniciado pela CeramTec nos órgãos jurisdicionais alemães, na sequência do registo, em 2019, de novas marcas da União Europeia correspondentes às marcas impugnadas e do pedido de anulação dessas marcas apresentado pela Coorstek no Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO).
7 V. , neste sentido, Acórdão Sky, n.° 73.
8 V. Acórdão de 12 de setembro de 2019, Koton Mağazacilik Tekstil Sanayi ve Ticaret/EUIPO (C‑104/18 P, a seguir «Acórdão Koton», EU:C:2019:724, n.° 43). V., também, Acórdão Sky, n.° 74.
9 V. Acórdão Koton, n.° 45.
10 V. Acórdão Koton, n.° 46.
11 V., no que se refere ao Regulamento (CE) n.° 40/94 do Conselho, de 20 de dezembro de 1993, sobre a marca comunitária (JO 1994, L 11, p. 1), Acórdão de 11 de junho de 2009, Chocoladefabriken Lindt & Sprüngli (C‑529/07, a seguir «Acórdão Lindt», EU:C:2009:361, n.° 37).
12 V. Acórdãos Koton, n.° 47, e Lindt, n.° 42. V., também, no que se refere ao conceito de «má‑fé» na aceção do Regulamento (CE) n.° 874/2004 da Comissão, de 28 de abril de 2004, que estabelece as regras de política de interesse público relativas à implementação e às funções do domínio de topo .eu, e os princípios que regem o registo (JO 2004, L 162, p. 40), Acórdão de 3 de junho de 2010, Internetportal und Marketing (C‑569/08, EU:C:2010:311, n.° 45).
13 V. Acórdão Koton, n.° 47.
14 V. Acórdão Lindt, n.° 39.
15 C‑529/07, a seguir «Conclusões da advogada‑geral E. Sharpston no processo Lindt», EU:C:2009:148, n.° 60.
16 V. Conclusões da advogada‑geral E. Sharpston no processo Lindt, n.° 61.
17 V. Acórdão Lindt, n.os 40 e 41, e Acórdão de 27 de junho de 2013, Malaysia Dairy Industries (C‑320/12, EU:C:2013:435, n.° 37).
18 V. Acórdão Koton, n.° 65.
19 V. Acórdão de 8 de maio de 2014, Simca Europe/IHMI ‑ PSA Peugeot Citroën (Simca) (T‑327/12, EU:T:2014:240, n.os 40 e 46); v., também, Acórdão de 21 de abril de 2021, Hasbro/EUIPO ‑ Kreativni Dogadaji (MONOPOLY) (T‑663/19, a seguir «Acórdão Hasbro», EU:T:2021:211, n.° 38).
20 V. Acórdão Lindt, n.° 50.
21 V. Acórdão Koton, n.os 62 a 64.
22 V. Acórdão Lindt, n.° 51.
23 V., entre outros, Acórdão de 6 de julho de 2022, Zdút/EUIPO — Nehera e o. (nehera) (T‑250/21, EU:T:2022:430, n.° 28).
24 V. Conclusões da advogada‑geral E. Sharpston no processo Lindt, n.° 60.
25 V., neste sentido, por referência às circunstâncias tomadas em conta pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Lindt, Acórdão Hasbro, n.° 37. V., também, no que respeita ao conceito de «má‑fé» no setor do registo de nomes de domínio, Acórdão de 3 de junho de 2010, Internetportal und Marketing (C‑569/08, EU:C:2010:311, n.° 37).
26 V., no que respeita ao Regulamento n.° 40/94, Acórdão de 8 de maio de 2008, Eurohypo/IHMI (C‑304/06 P, EU:C:2008:261, n.° 54).
27 V. Acórdão Sky, n.os 57 e 58.
28 V., entre outros, Acórdão Sky, n.° 74 e jurisprudência referida.
29 Recordo que o artigo 7.°, n.° 1, alínea e), ii), do Regulamento n.° 207/2009, na sua versão inicial, aplicável ao litígio no processo principal, previa que era recusado registo dos sinais exclusivamente compostos pela «forma do produto necessária para obter um resultado técnico». O alcance deste motivo absoluto de recusa foi alterado pelo Regulamento 2015/2424, que introduziu a formulação atualmente utilizada no artigo 7.°, n.° 1, alínea e), ii), do Regulamento 2017/100, que se refere aos sinais exclusivamente compostos pela «pela forma ou por outra característica dos produtos necessária para obter um resultado técnico». No entanto, para responder às questões prejudiciais, não é necessário apreciar a questão de saber se o artigo 7.°, n.° 1, alínea e), ii), do Regulamento n.° 207/2009 podia ser invocado para impedir o registo da cor de um produto, uma vez que estas questões partem da premissa de que o motivo absoluto de recusa previsto por esta disposição não é, em todo o caso, aplicável nas circunstâncias do processo principal.
30 V. Acórdão de 14 de setembro de 2010, Lego Juris/IHMI (C‑48/09 P, EU:C:2010:516, n.° 43).
31 V., neste sentido, Acórdão de 14 de setembro de 2010, Lego Juris/IHMI (C‑48/09 P, EU:C:2010:516, n.os 44 a 48).
32 V., neste sentido, Conclusões da advogada‑geral E. Sharpston no processo Lindt, n.° 41.
33 V., neste sentido, Acórdão de 11 de julho de 2013, SA.PAR./IHMI — Salini Costruttori (GRUPPO SALINI) (T‑321/10, EU:T:2013:372, n.° 46).
34 V. artigo 55.° do Regulamento n.° 207/2009.
35 Recordo que, à semelhança das causas de nulidade associadas aos motivos absolutos de recusa de registo, visadas no artigo 52.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 207/2009, a má‑fé só pode dizer respeito a determinados produtos ou serviços para os quais a marca controvertida foi registada; v., neste sentido, acórdão Sky, n.os 79 e 80 e n.° 2 do dispositivo).
36 V., neste sentido, Acórdão de 13 de novembro de 2019, Outsource Professional Services/EUIPO (C‑528/18 P, EU:C:2019:961, n.° 69), em que estava em causa a apropriação, pelo requerente, de um sinal descritivo utilizado por um terceiro.
37 A marca da União Europeia beneficia de uma presunção de validade (v. artigo 99.°, n.° 1, do Regulamento n.° 207/2009). Por conseguinte, cabe ao requerente de uma declaração de nulidade que pretenda basear o seu pedido na causa de nulidade referida no artigo 52.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 207/2009 fazer prova das circunstâncias que permitem concluir pela má‑fé do requerente no momento do depósito do pedido de registo. Em seguida, compete a este último, em virtude da inversão da presunção de boa‑fé de que beneficiava, fornecer explicações plausíveis quanto aos objetivos e à lógica comercial prosseguidos pelo pedido de registo da referida marca; v., neste sentido, Acórdão Hasbro, n.os 42 e 43.
38 Nesse acórdão, embora sublinhando que a causa de nulidade absoluta prevista no artigo 52.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 207/2009 é fundamentalmente distinta da causa de nulidade relativa prevista no artigo 53.°, n.° 1, alínea a), deste regulamento, o Tribunal de Justiça reconheceu, no entanto, que uma das condições de aplicação desta última disposição, a saber, a utilização por um terceiro de um sinal idêntico ou semelhante à marca controvertida, podia muito bem constituir um elemento do contexto pertinente para efeitos da apreciação da má‑fé, sem que tal signifique que deva necessário ser demonstrado que todas essas condições de aplicação estão reunidas, nomeadamente a condição relativa à existência de um risco de confusão [v. Acórdão Koton, n.os 49, 53 e 54; v., também, Acórdão de 13 de novembro de 2019, Outsource Professional Services/EUIPO (C‑528/18 P, EU:C:2019:961, n.° 61)].
39 Essa leitura combinada deve, de qualquer modo, ser excluída; v., por analogia, Acórdão de 16 de setembro de 2015, Société des Produits Nestlé (C‑215/14, EU:C:2015:604, n.° 50).
40 A Quarta Câmara de Recurso do EUIPO decidiu, em substância, neste sentido numa Decisão de 6 de dezembro de 2024, Processo R 12/2024‑4, disponível em https://euipo.europa.eu/eSearchCLW/#key/trademark/APL_20241206_R0012_2024‑4_001620566. Após ter constatado que a marca em causa não estava abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 7.°, n.° 1, alínea e), ii), do Regulamento 2017/1001, esta Câmara de Recurso, embora tenha sublinhado que a alegação de má‑fé se baseava num único argumento — a saber, que a marca tinha sido requerida para substituir artificialmente a proteção da patente pela proteção da marca — concluiu que essa alegação devia ser rejeitada pois assentava numa premissa errada.
41 No que respeita à natureza da marca, importa recordar que, no Acórdão Lindt, o Tribunal de Justiça esclareceu que, no caso de o sinal em causa consistir conjuntamente na forma e na apresentação do produto, a existência de má‑fé do requerente pode ser demonstrada mais facilmente se a liberdade de escolha dos concorrentes quanto à forma e à apresentação de um produto estiver limitada por considerações de ordem técnica ou comercial, de modo que o titular da marca está em condições de impedir os seus concorrentes não só de utilizarem um sinal idêntico ou semelhante mas também de comercializarem produtos comparáveis (v. n.° 50 deste acórdão).
42 V. Acórdão Lindt, n.os 47 e 48; v., também, Acórdão de 13 de dezembro de 2023, Good Services/EUIPO ‑ ITV Studios Global Distribution (EL ROSCO) (T‑383/22, EU:T:2023:801, n.° 29).
43 V., a este respeito, Acórdão Lindt, n.os 35 e 41. Esta questão é abordada mais especificamente na terceira questão prejudicial, que não é objeto das presentes conclusões.
44 V., nomeadamente, n.° 46 do Acórdão Koton.
45 V., neste sentido, Acórdãos de 7 de julho de 2016, Copernicus‑Trademarks/EUIPO — Maquet (LUCEO) (T‑82/14, EU:T:2016:396, n.os 28 a 33 e 48 a 52, negado provimento ao recurso por Despacho de 14 de dezembro de 2017, Verus/EUIPO, C‑101/17 P, EU:C:2017:979), e de 13 de julho de 2022, Pejovič/EUIPO — ETA živilska industrija (TALIS) (T‑283/21, EU:T:2022:438, n.os 30 a 32), bem como, no mesmo sentido, mas num contexto diferente, Acórdãos de 17 de janeiro de 2024, Athlet/EUIPO — Heuver Banden Groothandel (ATHLET) (T‑650/22, EU:T:2024:11, n.° 52), e de 7 de setembro de 2022, Segimerus/EUIPO — Karsten Manufacturing (MONSOON) (T‑627/21, EU:T:2022:530, n.° 37).
46 No Acórdão Hasbro (n.° 72) para o qual a CeramTec remete, o Tribunal Geral limitou‑se a observar que a estratégia de depósito utilizada pela recorrente no processo que deu origem a esse acórdão, que visava contornar a regra relativa à prova da utilização, «remet[ia] para o instituto do abuso de direito». Nas suas Conclusões no processo Koton (C‑104/18 P, EU:C:2019:287), a advogada‑geral J. Kokott indicou que «ao analisar a má‑fé, a jurisprudência relativa à determinação da existência de um comportamento abusivo pode fornecer orientações» (v. n.° 31), deixando em aberto a questão de saber se «a má‑fé, ao contrário do que sucede com o abuso, não depende do facto de o objetivo não ser atingido e de uma vantagem indevida, mas […] constitui uma conduta que se afasta de princípios aceites de comportamento ético ou de usos honestos em matéria industrial e comercial» (n.° 37). O Tribunal de Justiça, por seu lado, não abordou abertamente a questão no Acórdão Koton, limitando‑se a introduzir a dicotomia que figura no n.° 46 desse acórdão.
47 É certo que, no n.° 74 do Acórdão Hasbro, para o qual a CeramTec remete, o Tribunal Geral baseou‑se na constatação do EUIPO de que a recorrente tinha efetivamente beneficiado da sua estratégia de depósito reiterado. No entanto, decorre deste n.° 74, que indica que esta constatação foi feita «não obstante os elementos de prova demonstrarem que a recorrente tinha como intenção evitar, nomeadamente, ter de apresentar provas da utilização da marca controvertida», que o Tribunal Geral considerou que o benefício obtido com a estratégia em causa era um elemento posterior que apoiava a intenção desonesta requerente no momento do depósito do pedido de registo, e não como um elemento necessário para demonstrar a má‑fé.
48 V. Acórdão Lindt, n.° 35.
49 É, aliás, o que resulta do Acórdão de 6 de julho de 2022, Zdút/EUIPO — Nehera e o. (nehera) (T‑250/21, EU:T:2022:430), para o qual a CeramTec remete nas suas observações. Com efeito, no processo que deu origem a esse acórdão, a alegação de má‑fé baseada na intenção do requerente de praticar um comportamento de parasitismo, que consistia em retirar partido indevido do prestígio de uma marca anterior, foi rejeitada pelo Tribunal Geral após ter constatado, designadamente, que essa marca já não gozava de nenhum prestígio à data do depósito do pedido de registo da marca (n.os 45 a 53, 66, 69 e 70 deste acórdão).