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Document 62023CJ0297

Acórdão do Tribunal de Justiça (Quarta Secção) de 21 de novembro de 2024.
Harley-Davidson Europe Ltd e Neovia Logistics Services International contra Comissão Europeia.
Recurso de decisão do Tribunal Geral — Política comercial comum — Medidas destinadas a assegurar o exercício pela União Europeia dos direitos que lhe são conferidos ao abrigo das regras do comércio internacional — Regulamento (UE) n.o 654/2014 — Regulamento de Execução (UE) 2018/886 — União aduaneira — Regulamento (UE) n.o 952/2013 — Código Aduaneiro da União — Decisões relativas às informações vinculativas em matéria de origem (IVO) adotadas pelas autoridades aduaneiras nacionais — Regulamento Delegado (UE) 2015/2446 — Determinação da origem não preferencial de certos motociclos da Harley‑Davidson — Conceito de “operações de complemento de fabrico ou de transformação economicamente não justificadas” — Decisão de Execução da Comissão Europeia sobre a revogação de decisões em matéria de IVO — Delegação de poderes — Confiança legítima — Direito a uma boa administração — Direito de audiência.
Processo C-297/23 P.

Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2024:971

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

21 de novembro de 2024 ( *1 )

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Política comercial comum — Medidas destinadas a assegurar o exercício pela União Europeia dos direitos que lhe são conferidos ao abrigo das regras do comércio internacional — Regulamento (UE) n.o 654/2014 — Regulamento de Execução (UE) 2018/886 — União aduaneira — Regulamento (UE) n.o 952/2013 — Código Aduaneiro da União — Decisões relativas às informações vinculativas em matéria de origem (IVO) adotadas pelas autoridades aduaneiras nacionais — Regulamento Delegado (UE) 2015/2446 — Determinação da origem não preferencial de certos motociclos da Harley‑Davidson — Conceito de “operações de complemento de fabrico ou de transformação economicamente não justificadas” — Decisão de Execução da Comissão Europeia sobre a revogação de decisões em matéria de IVO — Delegação de poderes — Confiança legítima — Direito a uma boa administração — Direito de audiência»

No processo C‑297/23 P,

que tem por objeto um recurso de um acórdão do Tribunal Geral nos termos do artigo 56.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, interposto em 11 de maio de 2023,

Harley‑Davidson Europe Ltd, com sede em Oxford (Reino Unido),

Neovia Logistics Services International NV, com sede em Vilvorde (Bélgica),

representadas por E. Righini, avvocato, e S. Völcker, Rechtsanwalt,

recorrentes,

sendo a outra parte no processo:

Comissão Europeia, representada por F. Clotuche‑Duvieusart, M. Kocjan e F. Moro, na qualidade de agentes,

recorrida em primeira instância,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de presidente da Quarta Secção, C. Lycourgos (relator), presidente da Terceira Secção, S. Rodin, N. Jääskinen e O. Spineanu‑Matei, juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 30 de maio de 2024,

profere o presente

Acórdão

1

Com o presente recurso, a Harley‑Davidson Europe Ltd e a Neovia Logistics Services International NV pedem a anulação do Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 1 de março de 2023, Harley‑Davidson Europe e Neovia Logistics Services International/Comissão (T‑324/21, a seguir «acórdão recorrido, EU:T:2023:101), que negou provimento ao seu recurso de anulação da Decisão de Execução (UE) 2021/563 da Comissão, de 31 de março de 2021, sobre a validade de certas decisões relativas às informações vinculativas em matéria de origem (JO 2021, L 119, p. 117; a seguir «decisão controvertida»), dirigida ao Reino da Bélgica.

Quadro jurídico

Direito internacional

2

O artigo 2.o do Acordo sobre as Regras de Origem (JO 1994, L 336, p. 144), que figura no anexo 1 A do Acordo que institui a Organização Mundial do Comércio (OMC) (JO 1994, L 336, p. 3), dispõe:

«Até à completa execução do programa de trabalho de harmonização das regras de origem […], os membros deverão assegurar que:

[…]

b)

não obstante as medidas ou instrumentos de política comercial a que se encontrem associadas, as respetivas regras de origem não sejam utilizadas para realizar, direta ou indiretamente, objetivos de índole comercial;

c)

As regras de origem não produzam, por si próprias, efeitos de restrição, de distorção ou de desorganização do comércio internacional. Não deverão impor condições indevidamente rigorosas, nem exigir, como condição prévia para a determinação do país de origem, a observância de qualquer requisito sem relação com o fabrico ou a transformação. Contudo, poderão ser tidos em conta, para efeitos de aplicação do critério da percentagem ad valorem […] custos que não se relacionem diretamente com o fabrico ou a transformação;

[…]»

Direito da União

Legislação em matéria aduaneira

– Código Aduaneiro Comunitário

3

O artigo 25.o do Regulamento (CEE) n.o 2913/92 do Conselho, de 12 de outubro de 1992, que estabelece o Código Aduaneiro Comunitário (JO 1992, L 302, p. 1; a seguir «Código Aduaneiro Comunitário»), tinha a seguinte redação:

«Uma transformação ou operação de complemento de fabrico relativamente à qual os factos constatados justifiquem a presunção de que teve por único objetivo iludir as disposições aplicáveis, na Comunidade [Europeia], às mercadorias de determinados países, não poderá em caso algum ser considerada como conferindo […] às mercadorias assim obtidas, a origem do país onde se efetuou.»

– Código Aduaneiro da União

4

Os considerandos 9 e 55 do Regulamento (UE) n.o 952/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de outubro de 2013, que estabelece o Código Aduaneiro da União (JO 2013, L 269, p. 1, a seguir «Código Aduaneiro da União»), enunciam:

«(9)

A União [Europeia] baseia‑se numa união aduaneira. No interesse dos operadores económicos e das autoridades aduaneiras da União, afigura‑se aconselhável reunir a atual legislação aduaneira da União num Código. Baseado no conceito de um mercado interno, o Código em questão deverá conter normas e procedimentos gerais que assegurem a aplicação das medidas pautais e de outras medidas de política comum adotadas a nível da União no âmbito do comércio de mercadorias entre a União e os países ou territórios situados fora do território aduaneiro da União, tendo em conta as exigências dessas políticas comuns. […]

[…]

(55)

Em conformidade com o princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 5.o [TUE], para a consecução dos objetivos básicos inerentes ao funcionamento eficaz da união aduaneira e à execução da política comercial comum, é necessário e conveniente definir as normas e procedimentos gerais aplicáveis às mercadorias que entram no território aduaneiro da União ou dele são retiradas. […]»

5

O artigo 33.o deste código dispõe:

«1.   As autoridades aduaneiras tomam […], mediante pedido, […] decisões relativas a informações vinculativas em matéria de origem [(a seguir “decisões IVO”)] […].

[…]

3.   As decisões […] IVO são válidas pelo prazo de três anos a contar da data em que a decisão produz efeitos.

[…]»

6

Nos termos do artigo 34.o, n.o 11, do referido código:

«A Comissão [Europeia] pode tomar decisões que exijam que os Estados‑Membros revoguem decisões […] IVO, a fim de garantir a correta e uniforme classificação pautal ou a determinação da origem das mercadorias.»

7

O artigo 59.o do mesmo código dispõe:

«Os artigos 60.o e 61.o do Código Aduaneiro definem as normas para a determinação da origem não preferencial das mercadorias para efeitos da aplicação:

a)

Pauta Aduaneira Comum […];

b)

Das medidas não pautais estabelecidas por disposições específicas da União no âmbito do comércio de mercadorias; e

c)

De outras medidas da União relacionadas com a origem das mercadorias.»

8

O artigo 60.o do Código Aduaneiro da União prevê:

«1.   Consideram‑se originárias de um único país ou território as mercadorias inteiramente obtidas nesse país ou território.

2.   Considera‑se que uma mercadoria em cuja produção intervêm dois ou mais países ou territórios é originária do país ou território onde se realizou o último processamento ou operação de complemento de fabrico substancial, economicamente justificado, efetuado numa empresa equipada para esse efeito, que resulte na obtenção de um produto novo ou que represente uma fase importante do fabrico.»

9

O artigo 62.o deste código enuncia:

«A Comissão fica habilitada a adotar atos delegados […], que estabeleçam as regras por força das quais se considera que as mercadorias cuja determinação da origem não preferencial é necessária, para efeitos de aplicação das medidas da União referidas no artigo 59.o, foram inteiramente obtidas num mesmo país ou território ou foram objeto do último processamento ou operação de complemento de fabrico substancial, economicamente justificado, efetuado numa empresa equipada para esse efeito, que resulte na obtenção de um produto novo ou que represente uma fase importante do fabrico, num dado país ou território, em conformidade com o artigo 60.o»

– Regulamento Delegado (UE) 2015/2446

10

Nos termos do considerando 21 do Regulamento Delegado (UE) 2015/2446 da Comissão, de 28 de julho de 2015, que completa o Regulamento (UE) n.o 952/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, com regras pormenorizadas relativamente a determinadas disposições do Código Aduaneiro da União (JO 2015, L 343, p. 1):

«A fim de evitar a manipulação da origem das mercadorias importadas com o objetivo de evitar a aplicação de medidas de política comercial, a última operação de complemento de fabrico ou de transformação substancial deve, em certos casos, ser considerada como economicamente não justificada.»

11

O artigo 33.o do Regulamento Delegado 2015/2446, sob a epígrafe «Operações de complemento de fabrico ou de transformação que não sejam economicamente justificadas (artigo 60.o, n.o 2, do Código [Aduaneiro da União])», tinha a seguinte redação:

«Uma operação de complemento de fabrico ou de transformação realizada noutro país ou território deve ser considerada economicamente não justificada se for estabelecido com base nos dados disponíveis que o objetivo dessa operação era evitar a aplicação das medidas previstas no artigo 59.o do Código [Aduaneiro da União].

[…]

No que diz respeito aos produtos não abrangidos pelo anexo 22‑01, sempre que a última operação de complemento de fabrico ou de transformação for considerada como economicamente não justificada, as mercadorias devem ser consideradas como tendo sofrido a sua última operação de processamento ou de complemento de fabrico substancial, que resulta na obtenção de um produto novo ou representa uma fase importante do fabrico, no país ou território de origem da maior parte das matérias, tal como determinado com base no valor das matérias.»

Regulamentação relativa à política comercial comum

– Regulamento (UE) n.o 654/2014

12

O artigo 3.o do Regulamento (UE) n.o 654/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, relativo ao exercício dos direitos da União tendo em vista a aplicação e o cumprimento das regras do comércio internacional, e que altera o Regulamento (CE) n.o 3286/94 do Conselho que estabelece procedimentos comunitários no domínio da política comercial comum para assegurar o exercício pela Comunidade dos seus direitos ao abrigo das regras do comércio internacional, nomeadamente as estabelecidas sob os auspícios da Organização Mundial do Comércio (JO 2014, L 189, p. 50), tem a seguinte redação:

«O presente regulamento é aplicável:

[…]

c)

Para o reequilíbrio de concessões ou de outras obrigações às quais a aplicação de uma medida de salvaguarda por um país terceiro possa dar direito, nos termos do artigo 8.o do Acordo da OMC sobre as Medidas de Salvaguarda ou das disposições em matéria de salvaguardas incluídas noutros acordos internacionais de comércio, incluindo acordos regionais ou bilaterais;

[…]»

13

O artigo 4.odo Regulamento n.o 654/2014 prevê:

«1.   Caso seja necessário adotar medidas para salvaguardar os interesses da União nos casos referidos no artigo 3.o, a Comissão adota atos de execução que determinem as medidas de política comercial adequadas. […]

2.   Os atos de execução adotados nos termos do n.o 1 devem satisfazer as seguintes condições:

[…]

c)

Em caso de reequilíbrio de concessões ou de outras obrigações ao abrigo das disposições em matéria de salvaguardas no âmbito de acordos internacionais de comércio, as medidas adotadas pela União devem ser substancialmente equivalentes ao nível das concessões ou de outras obrigações afetadas pela medida de salvaguarda, de acordo com as condições estabelecidas no Acordo da OMC sobre as Medidas de Salvaguarda ou com as disposições em matéria de salvaguardas previstas noutros acordos comerciais internacionais, incluindo acordos bilaterais ou regionais, ao abrigo dos quais a medida de salvaguarda é aplicada;

[…]»

– Regulamento de Execução (UE) 2018/724

14

O artigo 1.o do Regulamento de Execução (UE) 2018/724 da Comissão, de 16 de maio de 2018, relativo a certas medidas de política comercial respeitantes a determinados produtos originários dos Estados Unidos da América (JO 2018, L 122, p. 14), tem a seguinte redação:

«A Comissão deve imediatamente e, em qualquer caso, o mais tardar em 18 de maio de 2018, notificar por escrito ao Conselho do Comércio de Mercadorias da OMC que, na ausência de objeções por parte do Conselho do Comércio de Mercadorias, a União suspende, a partir de 20 de junho de 2018, a aplicação ao comércio dos Estados Unidos de concessões do direito aduaneiro ao abrigo do [Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio de 1994 (GATT)], no que respeita aos produtos incluídos na lista do anexo I e do anexo II, de forma a permitir a aplicação de direitos aduaneiros adicionais à importação destes produtos originários dos Estados Unidos.»

– Regulamento de Execução (UE) 2018/886

15

Nos termos do artigo 1.o do Regulamento de Execução (UE) 2018/886 da Comissão, de 20 de junho de 2018, relativo a certas medidas de política comercial respeitantes a determinados produtos originários dos Estados Unidos da América e que altera o Regulamento de Execução (UE) 2018/724 (JO 2018, L 158, p. 5), a União aplica direitos aduaneiros adicionais sobre as importações na União de determinados produtos originários dos Estados Unidos da América, entre os quais figuram os motociclos com motor de pistão alternativo de cilindrada superior a 800 cm3. Resulta do artigo 2.o do Regulamento de Execução 2018/886 que, além da taxa do direito convencional de 6 %, esses produtos são objeto de direitos aduaneiros adicionais à taxa de 25 %, numa primeira etapa, a partir de 22 de junho de 2018, e, posteriormente, numa segunda etapa, de outros direitos aduaneiros adicionais à taxa de 25 %, a contar, em substância, de 1 de junho de 2021, o mais tardar.

Antecedentes do litígio

16

Os antecedentes do litígio estão expostos nos n.os 20 a 38 do acórdão recorrido. Para efeitos do presente processo, podem ser resumidos da seguinte forma.

17

Em junho de 2018, o Governo dos Estados Unidos da América instituiu direitos aduaneiros adicionais de 25 % e de 10 %, respetivamente, sobre as importações de aço e sobre as importações de alumínio provenientes da União com o objetivo de favorecer e aumentar a produção nacional desses produtos. Em resposta à instituição desses direitos aduaneiros adicionais, a Comissão adotou o Regulamento de Execução 2018/886, que prevê a aplicação de direitos aduaneiros adicionais sobre a importação de certos produtos originários dos Estados Unidos, incluindo os motociclos com motor de pistão alternativo de cilindrada superior a 800 cm3.

18

A Harley‑Davidson Inc., empresa americana especializada na construção de motociclos, tomou conhecimento destes direitos aduaneiros adicionais na sequência da publicação deste regulamento de execução no Jornal Oficial da União Europeia.

19

Em 25 de junho de 2018, a Harley‑Davidson apresentou à Securities and Exchange Commission (Comissão das Operações de Bolsa, Estados Unidos) um relatório intitulado «Form 8‑K Current Report» (a seguir «formulário 8‑K»), destinado a informar os seus acionistas da aplicação dos direitos aduaneiros adicionais adotados pela União através do Regulamento de Execução 2018/886, bem como das suas consequências para a sua atividade.

20

No formulário 8‑K, a Harley‑Davidson indicou, em especial, o seguinte:

«A União Europeia adotou direitos aduaneiros sobre diversos produtos fabricados nos Estados Unidos, entre os quais os motociclos Harley‑Davidson. Estes direitos, que entraram em vigor em 22 de junho de 2018, foram impostos em resposta aos direitos aduaneiros que os Estados Unidos instituíram sobre o aço e sobre o alumínio exportados da [União] para os EUA.

Por conseguinte, os direitos aduaneiros da [União] sobre os motociclos Harley‑Davidson exportados a partir dos Estados Unidos passaram de 6 % para 31 %. A Harley‑Davidson considera que estes direitos aduaneiros provocarão um custo suplementar de cerca de 2200 [dólares americanos (USD)] por motociclo exportado dos EUA para a [União].

[…]

Para fazer frente ao custo substancial deste encargo pautal a longo prazo, a Harley‑Davidson irá executar um plano destinado a deslocar a produção de motociclos destinados à [União] dos EUA para as suas instalações internacionais, a fim de evitar o encargo pautal. A Harley‑Davidson prevê que o aumento da produção nas fábricas internacionais necessitará de investimentos suplementares e pode durar, pelo menos, 9 a 18 meses antes de estar completamente concluído.»

21

Na sequência da publicação do formulário 8‑K, a Harley‑Davidson escolheu a sua fábrica da Tailândia como instalação de produção de alguns dos seus motociclos destinados ao mercado da União.

22

A Harley‑Davidson pretendeu obter garantias a respeito da determinação do país de origem desses motociclos. Assim, a Harley‑Davidson e a Neovia Logistics Services International, um intermediário que presta serviços de assistência logística à Harley‑Davidson no âmbito das suas operações de importação de motociclos para a União através da Bélgica, apresentaram conjuntamente às autoridades aduaneiras belgas, em 25 de janeiro de 2019, dois primeiros pedidos formais de decisões IVO, relativos a duas famílias de motociclos. Foram posteriormente apresentados três outros pedidos de decisões IVO, relativos a três outras famílias de motociclos.

23

Em 31 de janeiro de 2019, as autoridades belgas participaram numa reunião com a Comissão a respeito dos dois primeiros pedidos de decisões IVO. No termo dessa reunião, a Comissão emitiu um parecer informal segundo o qual, devido às informações que figuravam no formulário 8‑K, o critério da justificação económica, na aceção do artigo 33.o do Regulamento Delegado 2015/2446, poderia não estar preenchido. Apesar dos pedidos das autoridades belgas, a Comissão nunca emitiu um parecer formal a respeito da aplicabilidade desta disposição aos factos do caso em apreço.

24

Em 24 de junho de 2019, em aplicação do artigo 33.o, n.o 1, do Código Aduaneiro da União, as autoridades aduaneiras belgas adotaram duas decisões IVO, pelas quais reconheceram e certificaram que as duas famílias de motociclos visadas nos dois primeiros pedidos de decisões IVO, mencionados no n.o 22 do presente acórdão, eram originárias da Tailândia. Os três outros pedidos de decisões IVO, também mencionados no n.o 22 do presente acórdão, foram posteriormente objeto do mesmo tratamento por parte dessas autoridades. As duas primeiras decisões IVO foram notificadas à Comissão pelas referidas autoridades em 21 de agosto de 2019.

25

Em 5 de outubro de 2020, a Comissão informou as autoridades belgas da sua intenção de lhes pedir que revogassem as duas primeiras decisões IVO. Em 13 de novembro de 2020, as autoridades belgas responderam à Comissão que se opunham a esse pedido de revogação. Em 23 de dezembro de 2020, a Comissão deu início a um procedimento formal com vista à adoção da decisão controvertida.

26

Em 5 de março de 2021, a Comissão submeteu o projeto de decisão controvertida a todas as delegações nacionais do Comité do Código Aduaneiro, secção «Origem», no âmbito de um procedimento consultivo escrito. Quatro Estados‑Membros enviaram observações sobre o projeto de decisão controvertida e opuseram‑se ao parecer emitido pela Comissão nesse projeto. Em 29 de março de 2021, a Comissão enviou uma nota de síntese ao Comité do Código Aduaneiro, secção «Origem», na qual indicou que os 23 Estados‑Membros que não tinham tomado posição tinham, tacitamente, dado o seu acordo ao projeto de decisão controvertida.

27

Em 31 de março de 2021, a Comissão adotou a decisão controvertida, que notificou ao Reino da Bélgica em 6 de abril de 2021 e que foi publicada no Jornal Oficial da União Europeia no dia seguinte, pedindo às autoridades belgas que revogassem as duas primeiras decisões IVO.

28

Nos considerandos 6, 7 e 9 da decisão impugnada, a Comissão indicou:

«(6)

Após a publicação das medidas de política comercial da União Europeia, [a Harley-Davidson] comunicou, através [do] formulário 8‑K […] apresentado em junho de 2018 à [Comissão das Operações de Bolsa] o seu plano de transferir a produção de determinados motociclos destinados ao mercado da União Europeia dos Estados Unidos da América para as suas instalações internacionais noutro país, a fim de evitar as medidas de política comercial da União Europeia.

(7)

Ainda que a evasão às medidas de política comercial possa não ser necessariamente o único objetivo da transferência da produção, as condições referidas no artigo 33.o, primeiro parágrafo, do [Regulamento Delegado 2015/2446] estão cumpridas com base nos dados disponíveis. As operações de complemento de fabrico ou de transformação efetuadas no último país de produção são, por conseguinte, consideradas economicamente não justificadas. Consequentemente, a determinação da origem não preferencial dos motociclos deve basear‑se no terceiro parágrafo do mesmo artigo.

[…]

(9)

Uma vez que a determinação da origem não preferencial dos motociclos abrangidos pelas decisões IVO referidas no anexo não se baseia na regra estabelecida no artigo 33.o, terceiro parágrafo, do [Regulamento Delegado 2015/2446], a Comissão considera que esta determinação da origem não preferencial é incompatível com o artigo 60.o, n.o 2, do [Código Aduaneiro da União], em conjugação com o artigo 33.o do [Regulamento Delegado 2015/2446].»

29

Na sequência da adoção da decisão controvertida, por carta de 16 de abril de 2021 dirigida à Neovia Logistics Services International, as autoridades belgas informaram as recorrentes de que revogavam as cinco decisões IVO adotadas em relação à importação para a União de motociclos fabricados na Tailândia pela Harley‑Davidson.

Recurso para o Tribunal Geral e acórdão recorrido

30

Com o seu recurso no Tribunal Geral, a Harley‑Davidson Europe e a Neovia Logistics Services International pediram, nomeadamente, a anulação da decisão controvertida.

31

No âmbito deste recurso, as recorrentes suscitaram seis fundamentos de anulação, relativos:

o primeiro, à violação do dever de fundamentação e do procedimento consultivo prévio à adoção da decisão controvertida;

o segundo, à existência de um erro manifesto de apreciação;

o terceiro, a uma interpretação e aplicação incorretas do artigo 33.o do Regulamento Delegado 2015/2446;

o quarto, à ilegalidade do artigo 33.o do Regulamento Delegado 2015/2446;

o quinto, à violação de princípios gerais do direito da União e da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e

o sexto, a um abuso de poder para fins políticos por parte da Comissão.

32

No acórdão recorrido, tendo julgado improcedentes estes seis fundamentos de anulação, o Tribunal Geral negou provimento ao recurso na íntegra.

Pedidos das partes no presente recurso

33

As recorrentes concluem pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

anular o acórdão recorrido;

anular a decisão controvertida, e

condenar a Comissão a suportar as despesas efetuadas pelas recorrentes perante o Tribunal de Justiça e perante o Tribunal Geral.

34

A Comissão conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

negar provimento ao recurso e

condenar as recorrentes nas despesas.

Quanto ao presente recurso

35

As recorrentes invocam três fundamentos de recurso, relativos, o primeiro, a uma interpretação errada do artigo 33.o do Regulamento Delegado 2015/2446, o segundo, apresentado a título subsidiário, a uma ultrapassagem dos limites da delegação contida no artigo 62.o do Código Aduaneiro da União e, o terceiro, a uma violação do direito a uma boa administração.

Quanto ao primeiro fundamento, relativo a uma interpretação errada do artigo 33.o do Regulamento Delegado 2015/2446

Argumentos das partes

36

O primeiro fundamento do recurso, que está dividido em três partes, tem por objeto a interpretação levada a cabo pelo Tribunal Geral do artigo 33.o do Regulamento Delegado 2015/2446.

37

Na primeira parte deste fundamento, as recorrentes sustentam que o Tribunal Geral ignorou o objetivo e o contexto desta disposição.

38

O objetivo da referida disposição consiste, segundo as recorrentes, em precisar o conteúdo do artigo 60.o, n.o 2, do Código Aduaneiro da União, que define a origem de um produto de acordo com um critério factual, que consiste em identificar o último país ou território no qual foi dado um valor acrescentado significativo. O Tribunal Geral teria transformado este critério objetivo num critério subjetivo, permitindo assim à Comissão proceder a uma apreciação hierarquizada de elementos subjetivos.

39

Ora, o artigo 25.o do Código Aduaneiro Comunitário, que assentava num critério subjetivo, foi suprimido devido aos problemas sistémicos e às dificuldades de execução que suscitava. Este critério era, segundo as recorrentes, um fator de insegurança jurídica e estava em contradição com o artigo 2.o do Acordo sobre as Regras de Origem, que proíbe que estas regras sejam utilizadas como instrumentos destinados a favorecer a realização dos objetivos em matéria de comércio ou que as mesmas prevejam condições não associadas ao fabrico ou ao complemento de fabrico.

40

O artigo 33.o do Regulamento Delegado 2015/2446, conforme interpretado no acórdão recorrido, introduz, no entender das recorrentes, uma presunção extremamente difícil de ilidir, segundo a qual, se uma deslocalização coincidir com a adoção de uma medida de política comercial, a evasão a essa medida é o principal motivo dessa deslocalização, independentemente das justificações económicas desta última.

41

Por outro lado, à luz do objetivo indicado no considerando 21 do Regulamento Delegado 2015/2446, que consiste em impedir qualquer «manipulação» da origem das mercadorias importadas com o objetivo de evitar a aplicação de medidas de política comercial, o artigo 33.o deste regulamento delegado corresponde a uma cláusula antievasão, que, à semelhança do que acontece em matéria fiscal ou de direitos antidumping, deve ser objeto de interpretação estrita. Esta disposição apenas visa as deslocalizações manifestamente desprovidas de sentido caso as medidas de política comercial em causa não tivessem sido adotadas, à semelhança do artigo 13.o do Regulamento (UE) 2016/1036 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2016, relativo à defesa contra as importações objeto de dumping dos países não membros da União Europeia (JO 2016, L 176, p. 21).

42

Com a segunda parte do primeiro fundamento, as recorrentes alegam que a interpretação do artigo 33.o do Regulamento Delegado 2015/2446 pelo Tribunal Geral faz com que qualquer reação de uma empresa a medidas de política comercial da União constitua, de forma praticamente inilidível, uma violação desta disposição.

43

Em vez de determinar se a deslocalização tinha um motivo razoável, não relacionado com a evasão a medidas de política comercial da União, o Tribunal Geral autorizou, na prática, a Comissão a redefinir o país de origem de forma que este correspondesse aos objetivos dessas medidas. O Tribunal Geral impôs às recorrentes o ónus de ilidir a presunção de violação do artigo 33.o do Regulamento Delegado 2015/2446, apesar de os operadores económicos serem livres de determinar a sua própria política comercial em função de considerações relacionadas com a eficácia comercial, como por exemplo quando exercem o seu direito de estruturar a sua atividade de forma que limite as dívidas fiscais, direito esse que foi reconhecido no n.o 73 do Acórdão de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C‑255/02, EU:C:2006:121).

44

Além disso, o Tribunal Geral considerou erradamente que o artigo 33.o do Regulamento Delegado 2015/2446 não restringe a liberdade de empresa, apesar de a interpretação adotada no acórdão recorrido limitar indevidamente a liberdade das empresas de escolherem o seu local de produção. O facto de, seguindo o raciocínio do Tribunal Geral, ser de considerar que os novos modelos de motociclos, que só foram construídos na Tailândia, têm origem nos Estados Unidos, constitui uma limitação adicional desta liberdade.

45

Na terceira parte do primeiro fundamento, as recorrentes afirmam que o acórdão recorrido contém um erro de direito quanto ao nível de prova que a Comissão deve atingir para fazer recair sobre o operador económico o ónus de demonstrar que a deslocalização da sua atividade é economicamente justificada. O Tribunal Geral cometeu um erro ao considerar que uma coincidência temporal entre a adoção de uma medida de política comercial e a deslocalização é suficiente para gerar a presunção de que tal medida não é economicamente justificada. Com o seu raciocínio, o Tribunal Geral interpretou erradamente o n.o 29 do Acórdão de 13 de dezembro de 1989, Brother International (C‑26/88, EU:C:1989:637).

46

Por outro lado, de acordo com as recorrentes, o Tribunal Geral interpretou de forma seletiva o conceito de «dados disponíveis», na aceção do artigo 33.o do Regulamento Delegado 2015/2446, apoiando‑se exclusivamente no formulário 8‑K para fazer recair o ónus da prova sobre as recorrentes. Uma vez que esta disposição obrigava o Tribunal Geral a examinar todos os dados disponíveis, este último, ao não tomar em consideração elementos de prova posteriores à publicação desse formulário, desvirtuou esses elementos e cometeu um erro manifesto de apreciação. À luz dos elementos de prova existentes, o Tribunal de Justiça deve concluir que o Tribunal Geral cometeu um erro, uma vez que, embora a adoção da medida de política comercial em causa tenha efetivamente sido o facto gerador da deslocalização, esta não teve necessariamente por objetivo principal ou dominante a evasão a essa medida.

47

A Comissão considera que os argumentos desenvolvidos no âmbito da terceira parte do primeiro fundamento, relativos à desvirtuação dos elementos de prova, são inadmissíveis, uma vez que as recorrentes não explicaram precisamente quais seriam os erros de análise do Tribunal Geral. Em todo o caso, segundo a Comissão, este fundamento é improcedente.

Apreciação do Tribunal de Justiça

48

Com as duas primeiras partes do primeiro fundamento de recurso, que devem ser tratadas em conjunto, as recorrentes defendem que o Tribunal Geral interpretou erradamente o critério previsto no artigo 33.o, primeiro parágrafo, do Regulamento Delegado 2015/2446, nos termos do qual qualquer operação de complemento de fabrico ou de transformação efetuada noutro país ou território é considerada economicamente não justificada «se for estabelecido com base nos dados disponíveis que o objetivo dessa operação era evitar a aplicação das medidas previstas no artigo 59.o do Código [Aduaneiro da União]», como as que estão em causa no caso em apreço.

49

Em primeiro lugar, no n.o 58 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral interpretou a expressão «o objetivo dessa operação era evitar», que figura naquela disposição, tendo em conta que o termo «objetivo» é aí utilizado no singular, no sentido de que, embora a opção de deslocalizar a produção possa não ter por único objetivo evitar uma medida de política comercial, esse objetivo deve, no entanto, ser determinante. No n.o 62 deste acórdão, o Tribunal Geral concluiu que a referida disposição deve ser interpretada no sentido de que, se, com base nos dados disponíveis, se verificar que o objetivo principal ou dominante de uma operação de deslocalização era evitar a aplicação de medidas de política comercial da União, se deve então considerar que essa operação não pode, por princípio, ser economicamente justificada.

50

Ora, esta interpretação não padece de nenhum erro de direito. Em especial, ao contrário do que alegam as recorrentes, o artigo 33.o, primeiro parágrafo, do Regulamento Delegado 2015/2446 não pode ser interpretado no sentido de que apenas visa as deslocalizações que seriam manifestamente desprovidas de sentido se as medidas de política comercial em causa não tivessem sido adotadas.

51

Primeiro, dado que as recorrentes invocam, por analogia, o Acórdão de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C‑255/02, EU:C:2006:121), em cujo n.o 73 o Tribunal de Justiça declarou, em matéria de imposto sobre o valor acrescentado, que os operadores económicos estão autorizados a estruturar a sua atividade de forma que limite a sua dívida fiscal, há que observar que, mesmo admitindo que esse acórdão possa ser aplicado por analogia à situação em causa no caso em apreço, o argumento das recorrentes assenta numa leitura parcial do referido acórdão.

52

Com efeito, no n.o 62 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral deu ao artigo 33.o, primeiro parágrafo, do Regulamento Delegado 2015/2446 uma interpretação análoga à adotada pelo Tribunal de Justiça em matéria de imposto sobre o valor acrescentado nos n.os 75 e 86 do Acórdão de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C‑255/02, EU:C:2006:121), a saber, que a constatação da existência de uma prática abusiva exige, nomeadamente, que resulte de um conjunto de elementos objetivos que as operações em causa têm por finalidade essencial a obtenção de uma vantagem fiscal.

53

Segundo, a interpretação levada a cabo pelo Tribunal Geral no n.o 62 do acórdão recorrido, segundo a qual o critério decisivo para aplicar este artigo 33.o é o objetivo principal ou dominante de uma operação, é necessária para assegurar o efeito útil desta mesma disposição. Com efeito, esta última seria amplamente privada da sua eficácia se fosse interpretada no sentido de que não é aplicável pelo simples facto de, além do objetivo principal ou dominante de evitar a aplicação de medidas de política comercial da União, a deslocalização também visar outros objetivos de ordem secundária.

54

Terceiro, quanto ao argumento das recorrentes segundo o qual a interpretação do Tribunal Geral do artigo 33.o, primeiro parágrafo, do Regulamento Delegado 2015/2446, que, em substância, confirma a interpretação adotada pela Comissão na decisão controvertida, viola a liberdade de empresa das recorrentes, há que constatar que estas últimas criticam o n.o 184 desse acórdão, que está inserido no âmbito da resposta do Tribunal Geral a um argumento análogo que foi invocado perante ele. Em contrapartida, no seu recurso, as recorrentes não visam o n.o 183 do referido acórdão, através do qual o Tribunal Geral constatou que as recorrentes não indicaram os elementos de facto suscetíveis de demonstrar que a decisão controvertida limitou de forma desproporcionada o seu direito de propriedade ou a sua liberdade de empresa.

55

Além disso, no que respeita ao n.o 184 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral afirmou, a título exaustivo, que uma eventual limitação do direito de propriedade ou da liberdade de empresa das recorrentes, mesmo admitindo que estivesse provada, seria uma consequência, não da decisão controvertida, mas sim do Regulamento de Execução 2018/886, que instituiu os direitos aduaneiros adicionais.

56

Por conseguinte, a argumentação das recorrentes a respeito de uma alegada violação da sua liberdade de empresa é inoperante.

57

Quarto, contrariamente ao que alegam as recorrentes, do considerando 21 do Regulamento Delegado 2015/2446, que prevê que importa impedir a «manipulação» da origem das mercadorias importadas com o objetivo de evitar a aplicação de medidas de política comercial, não é possível deduzir que o artigo 33.o, primeiro parágrafo, deste regulamento delegado deva ser interpretado no sentido de que apenas visa as deslocalizações que seriam manifestamente desprovidas de sentido caso as medidas de política comercial em causa não tivessem sido adotadas, como seria o caso da «evasão» aos direitos antidumping, definida no artigo 13.o do Regulamento 2016/1036.

58

Antes de mais, desta última disposição não se pode retirar nenhum ensinamento com vista à interpretação do artigo 33.o, primeiro parágrafo, do Regulamento Delegado 2015/2446, uma vez que a mesma diz respeito a outra matéria e está redigida em termos muito diferentes daqueles que são usados neste artigo 33.o, que não contém o termo «evasão» nem a definição detalhada que o artigo 13.o do Regulamento 2016/1036 dá deste termo.

59

Em seguida, há que salientar que a expressão «a manipulação», que figura no considerando 21 deste regulamento delegado, é suscetível de abranger uma vasta gama de ações voluntárias que conduzem a que as mercadorias importadas mudem de origem. Resulta dos próprios termos deste considerando que as ações que devem ser impedidas são as efetuadas com o objetivo de evitar a aplicação de medidas de política comercial. Ora, a referência a este objetivo, aliás sem indicação de que o mesmo tem caráter exclusivo, seria supérflua e não teria efeito útil se o termo«manipulação» fosse interpretado no sentido de que, enquanto tal, se refere apenas às ações que não têm outro objetivo que não seja evitar a aplicação de medidas de política comercial da União, como as que resultam do Regulamento de Execução 2018/886.

60

Por último, uma vez que o termo «manipulação» não consta do artigo 33.o, primeiro parágrafo, do Regulamento Delegado 2015/2446, o mesmo não pode, de qualquer modo, permitir que esta disposição seja interpretada de forma incompatível com a sua redação e com a sua inserção sistemática. Ora, a interpretação proposta pelas recorrentes não só não tem nenhum apoio na redação e na inserção sistemática da referida disposição como também prejudicaria o seu efeito útil, como foi salientado no n.o 53 do presente acórdão.

61

Decorre do exposto que o Tribunal Geral não cometeu um erro nos n.os 58 e 62 do acórdão recorrido ao declarar que o critério decisivo para aplicar o artigo 33.o do Regulamento Delegado 2015/2446 corresponde ao objetivo principal ou dominante da operação em causa.

62

Em segundo lugar, com base nesta interpretação, o Tribunal Geral considerou, no n.o 63 do acórdão recorrido, que, quando, com base nos dados disponíveis, se verificar que o objetivo principal ou dominante de uma deslocalização era evitar a aplicação de medidas de política comercial da União, cabe ao operador económico em causa fazer prova de que o objetivo principal ou dominante dessa deslocalização não era, no momento em que foi tomada a decisão relativa à mesma, evitar a aplicação de tais medidas. Segundo o Tribunal Geral, tal prova distingue‑se da investigação a posteriori da justificação económica ou da racionalidade económica da referida operação de deslocalização.

63

Com este raciocínio, o Tribunal Geral não estabeleceu de forma alguma uma presunção inilidível ou, pelo menos, extremamente difícil de refutar. Pelo contrário, o Tribunal Geral limitou‑se a retirar consequências do facto de o objetivo principal ou dominante da operação em causa dever poder ser determinado com base em elementos objetivos, a saber, os dados disponíveis.

64

Com efeito, resulta da redação clara do artigo 33.o, primeiro parágrafo, do Regulamento Delegado 2015/2446 que esta disposição só é aplicável quando os dados disponíveis forem suscetíveis de demonstrar que o objetivo do comportamento da empresa em causa era evitar a aplicação da medida de política comercial em questão. Por conseguinte, só quando for esse efetivamente o caso é que as autoridades competentes são obrigadas, por força dessa disposição, a considerar que a referida operação não é economicamente justificada.

65

Ora, nesse caso, ou não existem elementos factuais suscetíveis de demonstrar que o objetivo principal ou dominante da referida operação é outro, caso em que a aplicação do artigo 33.o do Regulamento Delegado 2015/2446 é obrigatória, ou tais elementos de facto existem, mas as autoridades competentes não dispõem deles. Neste contexto, justifica‑se que seja a empresa em causa, que está em melhores condições, ou que é mesmo a única suscetível de dispor desses elementos, a fornecê‑los às autoridades competentes.

66

A este respeito, o artigo 33.o do Regulamento Delegado 2015/2446 não define nenhuma característica específica que os dados «disponíveis» devam apresentar, nomeadamente no plano temporal. Por conseguinte, não está excluído que alguns dados fiquem «disponíveis» após a decisão de realizar a operação em causa, ou mesmo após a realização dessa operação. Todavia, o objetivo principal ou dominante da referida operação só pode ser apreciado, o mais tardar, no momento em que a mesma foi decidida, como confirma a utilização do passado na expressão «o objetivo […] era evitar a aplicação». É, aliás, impossível que esta decisão tenha sido influenciada por considerações que lhe são posteriores.

67

Em terceiro lugar, contrariamente à argumentação das recorrentes, não resulta do raciocínio do Tribunal Geral que a Comissão possa proceder a uma apreciação subjetiva dos objetivos de uma operação ou presumir a respetiva importância desses objetivos.

68

É certo que o artigo 33.o, primeiro parágrafo, do Regulamento Delegado 2015/2446 impõe que se identifique um elemento subjetivo, a saber, a intenção de evitar a aplicação de uma medida de política comercial. Todavia, esta disposição visa estabelecer o objetivo principal ou dominante da operação examinada de forma objetiva, baseando‑se nos dados disponíveis. Por conseguinte, como indicado no n.o 75 do acórdão recorrido, a constatação do caráter determinante da intenção de evitar a aplicação de uma medida de política comercial deve assentar em elementos de prova objetivos.

69

A este respeito, o artigo 33.o, primeiro parágrafo, do Regulamento Delegado 2015/2446 tem diferenças fundamentais em relação ao artigo 25.o do Código Aduaneiro Comunitário, que, referindo‑se à operação em causa, utilizava a expressão «teve como único objetivo iludir as disposições aplicáveis» e previa a possibilidade de recorrer a uma presunção para estabelecer esse objeto. Por conseguinte, não existe nenhuma incompatibilidade entre o acórdão recorrido e a vontade do legislador de suprimir esta última disposição.

70

Decorre das considerações precedentes que a incompatibilidade, invocada pelas recorrentes, entre o artigo 25.o do Código Aduaneiro Comunitário e o artigo 2.o do Acordo sobre as Regras de Origem, não pode ser considerada relevante para efeitos da apreciação da interpretação dada ao artigo 33.o, primeiro parágrafo, do Regulamento Delegado 2015/2446 no acórdão recorrido. Com efeito, este argumento das recorrentes baseia‑se na premissa de que o Tribunal Geral transformou o critério objetivo contido nesse artigo 33.o, primeiro parágrafo, num critério subjetivo. Ora, pelos fundamentos anteriormente expostos nos n.os 67 e 68 do presente acórdão, esta premissa está errada.

71

Atendendo ao acima exposto, há que julgar improcedentes as duas primeiras partes do primeiro fundamento de recurso.

72

A terceira parte do primeiro fundamento tem por objeto o regime probatório estabelecido nos n.os 70 e 71 do acórdão recorrido. No n.o 70, o Tribunal Geral constatou uma coincidência temporal entre a entrada em vigor do Regulamento de Execução 2018/886, que instituiu os direitos aduaneiros adicionais, e o anúncio da operação de deslocalização em causa. Referindo‑se ao n.o 29 do Acórdão de 13 de dezembro de 1989, Brother International (C‑26/88, EU:C:1989:637), o Tribunal Geral considerou que essa coincidência temporal era suscetível de justificar a presunção segundo a qual uma deslocalização tem por objetivo evitar a aplicação de medidas de política comercial.

73

Na primeira frase do n.o 71 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral indicou que resulta desse n.o 29 que, perante tal coincidência temporal, cabe ao operador económico em causa fazer prova de um motivo razoável, que não seja o de escapar às consequências decorrentes das disposições em causa, para a realização das operações de fabrico no país onde a produção foi deslocalizada.

74

A este respeito, há que observar que os n.os 70 e 71 do acórdão recorrido não violam o sentido do n.o 29 do Acórdão de 13 de dezembro de 1989, Brother International (C‑26/88, EU:C:1989:637), invocado pelas recorrentes no Tribunal Geral. Nesse n.o 29, o Tribunal de Justiça declarou que, em caso de coincidência temporal entre a entrada em vigor da legislação pertinente e a transferência da montagem dos componentes de um produto, cabe ao operador económico em causa fazer prova de um motivo razoável dessa transferência a fim de ilidir a presunção de que a referida transferência foi efetuada para escapar às consequências decorrentes dessa regulamentação.

75

Este n.o 29 contém efetivamente uma interpretação do artigo 6.o do Regulamento (CEE) n.o 802/68 do Conselho, de 27 de junho de 1968, relativo à definição comum da noção de origem das mercadorias (JO 1968, L 148, p. 1). Esta disposição corresponde, em substância, ao artigo 25.o do Código Aduaneiro Comunitário, que, como indicado no n.o 69 do presente acórdão, se caracteriza por diferenças fundamentais em relação ao artigo 33.o, primeiro parágrafo, do Regulamento Delegado 2015/2446, uma vez que previa expressamente a possibilidade de recorrer a uma presunção.

76

No entanto, o raciocínio do Tribunal Geral não enferma de erro, uma vez que o artigo 33.o, primeiro parágrafo, do Regulamento Delegado 2015/2446 exige que, com base nos dados disponíveis, se determine o objetivo da operação, que deve ser entendido como objetivo principal ou dominante, como decidiu corretamente o Tribunal Geral nos n.os 58 e 62 do acórdão recorrido.

77

Ora, no n.o 70 do seu acórdão, o Tribunal Geral baseou‑se efetivamente nos dados disponíveis, ao visar tanto o objetivo da deslocalização da sua produção, indicado pela Harley‑Davidson no formulário 8‑K, como a coincidência temporal entre a entrada em vigor do Regulamento de Execução 2018/886 e o anúncio desta operação de deslocalização.

78

Assim, no n.o 70 do seu acórdão, o Tribunal Geral constatou nomeadamente que, ao indicar unicamente, no formulário 8‑K, que, ao deslocalizar a sua produção, pretendia «evitar o encargo pautal» resultante da entrada em vigor dos direitos aduaneiros adicionais, a Harley‑Davidson tinha por objetivo principal ou dominante evitar a aplicação dessas medidas de política comercial. O Tribunal Geral sublinhou a este respeito que resulta claramente do objeto e do conteúdo do formulário 8‑K que este último, datado de 25 de junho de 2018, foi publicado em reação imediata à publicação do Regulamento de Execução 2018/886, apenas cinco dias após a referida publicação e três dias após a sua entrada em vigor.

79

Com base nestes elementos, o Tribunal Geral podia, sem violar o artigo 33.o, primeiro parágrafo, do Regulamento Delegado 2015/2446, considerar que, à primeira vista, estava demonstrado que a deslocalização em causa tinha por objetivo evitar a aplicação das medidas de política comercial. Incumbia então ao operador económico em causa fazer prova de um motivo razoável diferente, que demonstrasse que o objetivo principal ou dominante da operação era alheio a essa finalidade.

80

Quanto à alegada desvirtuação dos elementos de prova pelo Tribunal Geral, há que constatar que as recorrentes pedem, na realidade, uma nova apreciação dos elementos de prova, sem indicarem de forma suficientemente precisa a desvirtuação imputada ao Tribunal Geral nem demonstrarem os erros de análise que, do seu ponto de vista, levaram o Tribunal Geral a essa desvirtuação. Por conseguinte, tal contestação é inadmissível em sede de recurso (v., neste sentido, Acórdão de 8 de junho de 2023, Severstal e NLMK/Comissão, C‑747/21 P e C‑748/21 P, EU:C:2023:459, n.o 52).

81

Decorre do acima exposto que a terceira parte do primeiro fundamento é improcedente e que, por conseguinte, o primeiro fundamento deve ser julgado improcedente na íntegra.

Quanto ao segundo fundamento, relativo a uma ultrapassagem dos limites da delegação contida no artigo 62.o do Código Aduaneiro da União

Argumentos das partes

82

Com o segundo fundamento, apresentado a título subsidiário, as recorrentes acusam o Tribunal Geral de um erro de direito contido nos n.os 86 a 90 do acórdão recorrido. Segundos elas, o artigo 33.o do Regulamento Delegado 2015/2446, conforme interpretado no acórdão recorrido, viola o artigo 290.o TFUE, ao alterar certos elementos essenciais do artigo 60.o, n.o 2, do Código Aduaneiro da União.

83

Esta interpretação substitui o critério objetivo previsto nesse artigo 60.o, n.o 2, baseado na justificação económica da operação, por um critério subjetivo, baseado na intenção do operador económico. A referida interpretação equivale a admitir que a Comissão fez uma opção política, contrária à opção política do legislador que consistia, ao suprimir o artigo 25.o do Código Aduaneiro Comunitário, em renunciar a esse critério subjetivo. Essa mesma interpretação também violaria a hierarquia das normas e a segurança jurídica ao criar, no ato delegado, um direito diferente do criado no ato legislativo.

84

A Comissão contesta essa argumentação.

Apreciação do Tribunal de Justiça

85

O segundo fundamento visa obter a declaração de ilegalidade do artigo 33.o do Regulamento Delegado 2015/2446, conforme interpretado pelo Tribunal Geral.

86

Uma vez que as disposições do direito da União não podem ser consideradas inválidas quando possam ser objeto de uma interpretação que assegure a sua conformidade com as normas de direito superiores [v., neste sentido, Acórdão de 16 de novembro de 2023, Ligue des droits humains (Verificação do tratamento de dados pela autoridade de controlo),C‑333/22, EU:C:2023:874, n.o 57], este fundamento só pode ser entendido no sentido de que, em substância, visa contestar a interpretação levada a cabo pelo Tribunal Geral do artigo 33.o, primeiro parágrafo, do Regulamento Delegado 2015/2446.

87

No entanto, a argumentação das recorrentes parte da premissa de que o Tribunal Geral interpretou o artigo 33.o, primeiro parágrafo, do Regulamento Delegado 2015/2446 no sentido de que inclui um critério subjetivo. Ora, pelos fundamentos anteriormente expostos nos n.os 67 e 68 do presente acórdão, esta premissa está errada.

88

Por conseguinte, o segundo fundamento de recurso deve ser julgado improcedente.

Quanto ao terceiro fundamento, relativo a uma violação do princípio da boa administração

Argumentos das partes

89

O terceiro fundamento divide‑se em duas partes.

90

Com a primeira parte, as recorrentes sustentam que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao declarar, nos n.os 166 a 169 do acórdão recorrido, que o facto de a Comissão ter violado o direito de audiência não justifica a anulação da decisão controvertida. Segundo as recorrentes, decorre do n.o 46 do Acórdão de 21 de setembro de 2017, Feralpi/Comissão (C‑85/15 P, EU:C:2017:709), e do n.o 56 do Acórdão de 16 de janeiro de 2019, Comissão/United Parcel Service (C‑265/17 P, EU:C:2019:23), que este direito constitui uma formalidade essencial. A questão decisiva é a de saber se a empresa em causa poderia ter tido uma possibilidade, ainda que reduzida, de melhor assegurar a sua defesa.

91

Este critério estaria preenchido no caso em apreço, uma vez que as recorrentes podiam ter apresentado no Tribunal Geral numerosas provas factuais de que a deslocalização era economicamente justificada. Segundo as recorrentes, devido à presunção prevista na aplicação do artigo 33.o do Regulamento Delegado 2015/2446, haveria igualmente que ter em conta a inversão do ónus da prova.

92

Mesmo que, no caso em apreço, a correta aplicação do artigo 33.o do Regulamento Delegado 2015/2446 dependesse exclusivamente de questões de direito, o que as recorrentes contestam à luz dos n.os 64 e 72 do acórdão recorrido, o direito de apresentar argumentos jurídicos faz parte do direito de audiência, em especial tendo em conta as divergências de pontos de vista entre a Comissão e as autoridades belgas e a recusa desta instituição em dar um parecer formal sobre a interpretação do artigo 33.o do Regulamento Delegado 2015/2446.

93

Com a segunda parte do terceiro fundamento, as recorrentes alegam que o Tribunal Geral interpretou de forma errada os princípios da confiança legítima e da segurança jurídica, bem como o direito a uma boa administração.

94

Em primeiro lugar, segundo as recorrentes, nos n.os 145 a 147 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral ignorou os n.os 10 a 12 do Acórdão de 3 de março de 1982, Alpha Steel/Comissão (14/81, EU:C:1982:76), e os n.os 35 a 38 do Acórdão de 17 de abril de 1997, de Compte/Parlamento (C‑90/95 P, EU:C:1997:198), dos quais resulta que a incompatibilidade de um ato jurídico com o direito da União não constitui um obstáculo absoluto à aplicação do princípio da confiança legítima. A este respeito, o ponto decisivo é o de saber se esse ato confere uma vantagem a um indivíduo.

95

No caso em apreço, as decisões IVO criaram expectativas legítimas, com base nas quais foram adotadas decisões comerciais importantes com efeitos a longo prazo. Por conseguinte, a decisão controvertida deveria ter sido tomada num prazo razoável. Uma vez que as decisões IVO são válidas por três anos nos termos do artigo 33.o, n.o 3, do Código Aduaneiro da União, a revogação das mesmas cerca de dois anos após a sua adoção violaria manifestamente o princípio da segurança jurídica e geraria um prejuízo para as recorrentes. Além disso, o artigo 33.o do Regulamento Delegado 2015/2446 não pode ser qualificado de «preciso», qualificação que está em contradição com o caráter inédito da revogação de uma decisão IVO pela Comissão.

96

Em segundo lugar, segundo as recorrentes, a análise relativa à duração do procedimento seguido pela Comissão, que consta dos n.os 175 e 176 do acórdão recorrido, não tem fundamento jurídico. A este respeito, o Tribunal Geral devia ter tido em conta a importância do processo para a pessoa em causa. O período relevante é o compreendido entre, por um lado, 31 de janeiro de 2019, data das primeiras conversações da Comissão com as autoridades belgas, ou, a título subsidiário, 24 de junho de 2019, data de adoção das duas primeiras decisões IVO pelas autoridades belgas, e, por outro, 7 de abril de 2021, data da publicação da decisão controvertida. A duração do processo de adoção da decisão controvertida, de 21 ou 26 meses, não é justificada atendendo ao caráter alegadamente evidente da ilegalidade das decisões IVO. Em todo o caso, a referida duração iria muito além do aceitável.

97

No entender das recorrentes, a violação do direito a uma boa administração e do princípio geral do direito da União que exige uma atuação num prazo razoável, impõe, quer esse atraso tenha ou não dado origem a uma violação dos direitos de defesa, que o acórdão recorrido e a decisão controvertida sejam anulados, dado que a Comissão está proibida de agir tardiamente.

98

A Comissão contesta essa argumentação.

Apreciação do Tribunal de Justiça

99

A primeira parte do terceiro fundamento visa os n.os 166 a 169 do acórdão recorrido, nos quais, embora tendo reconhecido que a Comissão não tinha cumprido a sua obrigação de ouvir as recorrentes antes da adoção da decisão controvertida, o Tribunal Geral considerou que essa irregularidade não bastava para conduzir à anulação dessa decisão. Ao fazê‑lo, o Tribunal Geral aplicou critérios diferentes dos que resultam da jurisprudência do Tribunal de Justiça.

100

A este respeito, no n.o 162 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral referiu‑se à jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual, para que uma violação do direito de audiência possa levar à anulação do ato em causa, deve existir uma possibilidade de que o procedimento administrativo pudesse ter conduzido a um resultado diferente (Acórdão de 5 de maio de 2022, Zhejiang Jiuli Hi‑Tech Metals/Comissão, C‑718/20 P, EU:C:2022:362, n.o 49). Este critério também é recordado, no essencial, no n.o 167 do acórdão recorrido.

101

Referindo‑se, por analogia, ao n.o 98 do Acórdão de 29 de junho de 2006, SGL Carbon/Comissão (C‑308/04 P, EU:C:2006:433), o Tribunal Geral considerou igualmente, no n.o 162 do acórdão recorrido, que incumbe ao recorrente fazer prova, apresentando elementos concretos ou pelo menos argumentos ou indícios suficientemente fiáveis e precisos, de que a decisão da Comissão poderia ter sido diferente, permitindo, assim, caracterizar concretamente uma violação dos direitos de defesa.

102

Assim sendo, o Tribunal Geral identificou corretamente a jurisprudência relevante do Tribunal de Justiça no que respeita ao direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afete desfavoravelmente, como decorre do artigo 41.o, n.o 2, alínea a), da Carta dos Direitos Fundamentais.

103

Com efeito, por um lado, o n.o 46 do Acórdão de 21 de setembro de 2017, Feralpi/Comissão (C‑85/15 P, EU:C:2017:709), invocado pelas recorrentes, refere‑se ao direito a uma audição conforme previsto no âmbito específico do Regulamento (CE) n.o 773/2004 da Comissão, de 7 de abril de 2004, relativo à instrução de processos pela Comissão para efeitos dos artigos [101.o e 102.o TFUE] (JO 2004, L 123, p. 18).

104

Por outro lado, para obter a anulação de um ato impugnado com fundamento no artigo 263.o TFUE, cabe a quem invoca uma violação dos seus direitos de defesa demonstrar que existia uma possibilidade de o procedimento administrativo que levou à adoção desse ato ter conduzido a um resultado diferente (v., neste sentido, Acórdão de 26 de setembro de 2018, Infineon Technologies/Comissão, C‑99/17 P, EU:C:2018:773, n.o 79 e jurisprudência referida). A este respeito, embora não seja possível exigir que quem invoca essa irregularidade demonstre que, caso a mesma não tivesse ocorrido, o ato em causa teria tido um conteúdo mais favorável aos seus interesses, essa pessoa deve, no entanto, provar, em concreto, que tal hipótese não está inteiramente excluída (Acórdão de 28 de setembro de 2023, Changmao Biochemical Engineering/Comissão, C‑123/21 P, EU:C:2023:708, n.o 170 e jurisprudência referida).

105

Em aplicação deste critério, o Tribunal Geral não cometeu um erro de direito quando, após ter declarado, no n.o 166 do acórdão recorrido, uma violação do direito de audiência das recorrentes, considerou, nos n.os 167 a 170, que as provas factuais de que a deslocalização era «economicamente justificada», em razão dos ganhos de eficiência económica esperados, não eram suscetíveis de criar a possibilidade de o procedimento administrativo poder conduzir a um resultado diferente.

106

Com efeito, a este respeito, basta salientar que, no n.o 170 do acórdão recorrido, que não é diretamente visado no presente recurso e que remete para os n.os 65 e 66 do referido acórdão, o Tribunal Geral declarou que as recorrentes não apresentaram elementos concretos suscetíveis de demonstrar que a deslocalização em causa tinha sido justificada principalmente por considerações estranhas à instituição dos direitos aduaneiros adicionais previstos pelo Regulamento de Execução 2018/886.

107

Nestas condições, a primeira parte do terceiro fundamento deve ser julgada improcedente.

108

A segunda parte do terceiro fundamento é relativa à violação do princípio da confiança legítima e à violação do direito das recorrentes a uma boa administração, alegadamente decorrente da duração do procedimento da Comissão.

109

Em primeiro lugar, no n.o 144 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral declarou, sem que isso seja contestado no âmbito do presente recurso, que uma decisão IVO, adotada em aplicação do artigo 33.o do Código Aduaneiro da União, não tem por objetivo e não pode ter por efeito garantir definitivamente ao operador económico que a origem das mercadorias a que essa decisão se refere não será posteriormente alterada, dado que, nos termos do artigo 34.o, n.o 11, deste código, a Comissão pode adotar decisões nas quais solicita aos Estados‑Membros que revoguem decisões IVO a fim de garantir uma classificação pautal ou uma determinação da origem corretas e uniformes das mercadorias.

110

Assim sendo, o Tribunal Geral fez uma interpretação exata do artigo 33.o e do artigo 34.o, n.o 11, do Código Aduaneiro da União, que, aliás, não foi criticada pelas recorrentes no âmbito do presente recurso. Esta interpretação constitui um fundamento suficiente para afastar a argumentação apresentada em primeira instância sobre a violação do princípio do respeito da confiança legítima. Por conseguinte, como salienta a advogada‑geral no n.o 105 das suas conclusões, os fundamentos através dos quais o Tribunal Geral, nos n.os 145 a 147 do acórdão recorrido, rejeitou esta argumentação revestem caráter superabundante relativamente aos que figuram no n.o 144 desse acórdão. Os argumentos das recorrentes relativos aos n.os 145 a 147 do referido acórdão devem, portanto, ser julgados inoperantes.

111

Em segundo lugar, no n.o 164 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral recordou, baseando‑se na jurisprudência do Tribunal de Justiça, que o caráter razoável da duração do processo deve ser apreciado em função das circunstâncias próprias de cada processo. É certo que a importância do litígio para o interessado faz parte dessas circunstâncias, mas essa é uma circunstância entre outras (v., neste sentido, Acórdão de 12 de maio de 2022, Klein/Comissão, C‑430/20 P, EU:C:2022:377, n.o 72 e jurisprudência referida) que cabe ao Tribunal Geral apreciar enquanto elemento de facto.

112

Além disso, o caráter razoável da duração de um processo não pode ser fixado por referência a um limite máximo preciso, determinado de forma abstrata (Acórdão de 12 de maio de 2022, Klein/Comissão, C‑430/20 P, EU:C:2022:377, n.o 86). O mesmo se aplica à determinação do ponto de partida para o cálculo dessa duração, quando, como no caso em apreço, não forem dadas indicações precisas nas disposições aplicáveis.

113

Neste contexto, os argumentos das recorrentes só poderiam ser acolhidos se se demonstrasse que o Tribunal Geral desvirtuou os factos. Ora, as recorrentes não invocam essa desvirtuação, limitando‑se, em substância, a pedir uma nova apreciação dos factos, para a qual o Tribunal de Justiça não é competente no âmbito do recurso de uma decisão do Tribunal Geral (v., neste sentido, Acórdão de 12 de setembro de 2024, Anglo Austrian AAB/BCE e Far‑East, C‑579/22 P, EU:C:2024:731, n.o 147 e jurisprudência referida).

114

Nestas condições, a segunda parte do terceiro fundamento também deve ser julgada improcedente. Por conseguinte, este fundamento deve ser julgado improcedente na íntegra.

115

Tendo em conta todas as considerações precedentes, uma vez que nenhum dos fundamentos de recurso é procedente, deve ser negado provimento ao recurso.

Quanto às despesas

116

Nos termos do artigo 184.o, n.o 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, se negar provimento ao recurso, o Tribunal de Justiça decidirá sobre as despesas.

117

Em conformidade com o artigo 138.o, n.o 1, daquele regulamento, aplicável aos processos de recursos de decisões do Tribunal Geral por força do artigo 184.o, n.o 1, do mesmo regulamento, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido.

118

Tendo as recorridas sido vencidas, há que condená‑las nas despesas relativas ao recurso da decisão do Tribunal Geral, em conformidade com os pedidos da Comissão.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) decide:

 

1)

É negado provimento ao recurso.

 

2)

A Harley‑Davidson Europe Ltd e a Neovia Logistics Services International NV são condenadas a suportar, além das suas próprias despesas, as despesas efetuadas pela Comissão Europeia.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: inglês.

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