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Document 62023CC0627
Opinion of Advocate General Richard de la Tour delivered on 5 September 2024.###
Conclusões do advogado-geral Richard de la Tour apresentadas em 5 de setembro de 2024.
Conclusões do advogado-geral Richard de la Tour apresentadas em 5 de setembro de 2024.
ECLI identifier: ECLI:EU:C:2024:692
Edição provisória
CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
JEAN RICHARD DE LA TOUR
apresentadas em 5 de setembro de 2024 (1)
Processo C‑627/23
Commune de Schaerbeek,
Commune de Linkebeek
contra
Holding Communal SA
[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Cour de Cassation (Tribunal de Cassação, Bélgica)]
« Reenvio prejudicial — Diretiva 2003/71/CE — Admissão à negociação de valores mobiliários — Aumento de capital — Prospeto a publicar — Conceito de “valor mobiliário negociável no mercado de capitais” — Ações de uma sociedade holding que só podem ser detidas pelas províncias e pelos municípios e cuja cessão está sujeita à aprovação do conselho de administração »
I. Introdução
1. O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2003/71/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003, relativa ao prospeto a publicar em caso de oferta pública de valores mobiliários ou da sua admissão à negociação e que altera a Diretiva 2001/34/CE (2), conforme alterada pela Diretiva 2008/11/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 2008 (3).
2. Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe os municípios de Schaerbeek e Linkebeek (Bélgica) à sociedade Holding Communal SA, a respeito de um aumento de capital desta última, subscrito por estes municípios e que foi deliberado sem ter sido precedido da publicação de um prospeto.
3. Irei propor ao Tribunal de Justiça que responda ao Tribunal de Cassação (Bélgica) que a operação de aumento de capital controvertida em causa, considerada uma oferta pública de valores mobiliários, deveria ter sido precedida da publicação de um prospeto, mesmo que a cessão posterior dessas ações esteja sujeita à aprovação do conselho de administração e que as mesmas ações só possam ser detidas por províncias e municípios.
II. Quadro jurídico
A. Direito da União
1. Diretiva 93/22/CEE
4. O décimo primeiro considerando da Diretiva 93/22/CEE do Conselho, de 10 de maio de 1993, relativa aos serviços de investimento no domínio dos valores mobiliários (4), enunciava:
«Considerando que a definição extremamente lata de valores mobiliários e de instrumentos do mercado monetário consagrada na presente diretiva é apenas válida para esta diretiva e que como tal em nada prejudica as diferentes definições de instrumentos financeiros consagradas nas legislações nacionais para outros fins, nomeadamente de ordem fiscal; que, por outro lado, a definição de valores mobiliários apenas abrange os instrumentos negociáveis e que, por conseguinte, as ações ou os valores equivalentes a ações emitidos por organismos tais como as “Building societies” ou as “Industrial and Provident societies”, cuja propriedade só pode, na prática, ser transferida através da sua recompra pelo organismo emitente, não estão abrangidos por esta definição.»
5. O artigo 1.°, ponto 4, desta diretiva dispunha:
«Na aceção da presente diretiva, entende‑se por:
[...]
4) “Valores mobiliários”:
– ações e outros valores equivalentes a ações,
– obrigações e outros títulos de dívida negociáveis no mercado de capitais
e
– quaisquer outros valores habitualmente negociados que confiram o direito à aquisição desses valores mobiliários por subscrição ou troca ou que deem origem a uma liquidação em dinheiro,
com exclusão dos meios de pagamento.»
2. Diretiva prospeto
6. Os considerandos 5, 10, 12, 16, 18 e 19, da Diretiva prospeto enunciam:
«(5) Em 17 de julho de 2000, o Conselho instituiu o Comité de Sábios sobre a regulamentação dos mercados europeus de valores mobiliários. No seu relatório inicial de 9 de novembro de 2000, o Comité salienta a falta de uma definição acordada de oferta pública de valores mobiliários, o que se traduz no facto de a mesma operação ser considerada uma colocação particular nalguns Estados‑Membros mas não noutros. O sistema atual desincentiva as empresas de mobilizar capitais a nível [da União Europeia], entravando assim o acesso efetivo a um vasto mercado financeiro líquido e integrado.
[...]
(10) O objetivo da presente diretiva e das respetivas medidas de execução é o de assegurar a proteção dos investidores e a eficácia do mercado, em conformidade com as normas regulamentares de elevada qualidade adotadas nas instâncias internacionais relevantes.
[...]
(12) Para assegurar a proteção dos investidores, é igualmente necessária a plena cobertura dos valores mobiliários representativos de capital e dos valores mobiliários não representativos de capital oferecidos ao público ou admitidos à negociação em mercados regulamentados, conforme definidos na Diretiva [93/22], e não apenas dos valores mobiliários admitidos à cotação oficial nas bolsas de valores. A definição lata de valores mobiliários constante da presente diretiva, e que inclui warrants, warrants autónomos (covered warrants) e certificados, é válida apenas para efeitos da mesma, não afetando consequentemente de modo algum as diversas definições de instrumentos financeiros utilizadas na legislação nacional para outros efeitos, tais como a fiscalidade. Alguns valores mobiliários definidos na presente diretiva habilitam o detentor a adquirir valores mobiliários negociáveis ou a receber um montante em numerário através de uma liquidação em dinheiro, determinado por referência a outros instrumentos, nomeadamente valores mobiliários negociáveis, divisas, taxas de juro ou rendimentos de títulos, mercadorias ou outros índices ou referentes. Os certificados representativos de ações e instrumentos convertíveis (convertible notes), como sejam valores mobiliários convertíveis por opção do investidor, são abrangidos pela definição de valores mobiliários não representativos de capital da presente diretiva.
[...]
(16) Um dos objetivos da presente diretiva consiste na proteção dos investidores, sendo assim conveniente tomar em consideração os diferentes requisitos para a proteção das diversas categorias de investidores, em função dos seus conhecimentos técnicos. A divulgação de informações através de um prospeto não é exigida para as ofertas que se circunscrevam aos investidores qualificados. [...]
[...]
(18) O fornecimento de informação completa sobre os valores mobiliários e respetivos emitentes, juntamente com regras de conduta, promove a proteção dos investidores. Além disso, tal informação representa um meio eficaz para reforçar a confiança nos valores mobiliários, contribuindo assim para o bom funcionamento e desenvolvimento dos mercados de valores mobiliários. Essa informação deve ser prestada mediante a publicação de um prospeto.
(19) O investimento em valores mobiliários, tal como qualquer outra forma de investimento, pressupõe um risco. São necessárias salvaguardas para a proteção dos interesses dos investidores efetivos e potenciais em todos os Estados‑Membros, a fim de estes estarem em condições de proceder a uma avaliação informada de tais riscos, de modo a tomarem as decisões de investimento com pleno conhecimento dos factos.»
7. O artigo 1.° da Diretiva prospeto dispõe:
«1. A presente diretiva tem por objetivo harmonizar as condições de elaboração, aprovação e difusão do prospeto a publicar em caso de oferta pública de valores mobiliários ou da sua admissão à negociação num mercado regulamentado situado ou que funcione num Estado‑Membro.
2. A presente diretiva não é aplicável:
[...]
d) Aos valores mobiliários que gozem de garantia incondicional e irrevogável de um Estado‑Membro ou de uma das administrações regionais ou locais de um Estado‑Membro;
[...]»
8. O artigo 2.°, n.° 1, alínea a) e d), bem como a alínea e), ii), desta diretiva prevê:
«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:
a) “Valores mobiliários”: os valores mobiliários negociáveis conforme definidos no ponto 4 do artigo 1.° da Diretiva [93/22], excetuando os instrumentos do mercado monetário conforme definidos no ponto 5 do artigo 1.° da mesma diretiva, com um prazo de vencimento inferior a 12 meses. Em relação a esses instrumentos, pode ser aplicável a legislação nacional;
[...]
d) “Oferta de valores mobiliários ao público”: uma comunicação ao público, independentemente da forma e dos meios por ela assumidos, que apresente informações suficientes sobre as condições da oferta e os valores mobiliários em questão, a fim de permitir a um investidor decidir sobre a aquisição ou subscrição desses valores mobiliários. Esta definição é igualmente aplicável à colocação de valores mobiliários através de intermediários financeiros;
e) “Investidores qualificados”:
[...]
ii) as administrações nacionais e regionais, os bancos centrais, as instituições internacionais e supranacionais, tais como o Fundo Monetário Internacional [FMI], o Banco Central Europeu [BCE], o Banco Europeu de Investimento [BEI]e outras organizações internacionais semelhantes.»
9. Nos termos do artigo 3.° da Diretiva prospeto:
«1. Os Estados‑Membros não devem permitir que seja feita qualquer oferta de valores mobiliários ao público no respetivo território sem prévia publicação de um prospeto.
2. A obrigação de publicação de um prospeto não se aplica aos seguintes tipos de oferta:
a) Uma oferta de valores mobiliários dirigida unicamente a investidores qualificados; e/ou
b) Uma oferta de valores mobiliários dirigida a menos de 100 pessoas singulares ou coletivas por Estado‑Membro, que não sejam investidores qualificados; e/ou
c) Uma oferta de valores mobiliários dirigida a investidores que adquirem valores mobiliários por um valor mínimo de 50 000 euros por investidor, por cada oferta distinta; e/ou
d) Uma oferta de valores mobiliários cujo valor nominal unitário ascenda a pelo menos 50 000 euros; e/ou
e) Uma oferta de valores mobiliários com um valor total inferior a 100 000 euros, limite esse que será calculado ao longo de um período de 12 meses.
[...]»
10. O artigo 4.°, n.° 1, desta diretiva enuncia os tipos de valores mobiliários cuja oferta ao público não está sujeita à obrigação de publicar um prospeto.
11. Nos termos do artigo 13.°, n.os 1 e 4, da referida diretiva:
«1. Nenhum prospeto pode ser publicado sem prévia aprovação pela autoridade competente do Estado‑Membro de origem.
[...]
4. Se a autoridade competente considerar, de forma devidamente fundamentada, que os documentos que lhe foram apresentados estão incompletos ou que são necessárias informações suplementares, os prazos fixados nos n.os 2 e 3 só são aplicáveis a partir da data em que a informação for prestada pelo emitente, pelo oferente ou pela pessoa que solicita a admissão à negociação num mercado regulamentado.
No caso referido no n.° 2, a autoridade competente deverá notificar o emitente se os documentos são incompletos, num prazo de 10 dias úteis a partir da apresentação do pedido.»
12. O artigo 25.°, n.° 1, da mesma diretiva enuncia:
«Sem prejuízo do direito de imporem sanções penais ou do regime de responsabilidade civil neles vigente, os Estados‑Membros devem assegurar, em conformidade com o seu direito nacional, que possam ser tomadas medidas administrativas adequadas ou impostas sanções administrativas contra as pessoas responsáveis, em caso de incumprimento das disposições aprovadas em execução da presente diretiva. Os Estados‑Membros devem assegurar que estas medidas sejam efetivas, proporcionadas e dissuasivas.»
3. DiretivaMiFID I
13. Os considerandos 1 e 44 da Diretiva 2004/39/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de abril de 2004, relativa aos mercados de instrumentos financeiros, que altera as Diretivas 85/611/CEE e 93/6/CEE do Conselho e a Diretiva 2000/12/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e que revoga a Diretiva 93/22/CEE do Conselho (5), conforme alterada pela Diretiva 2006/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril de 2006 (6), enunciam:
«(1) A Diretiva [93/22] tinha por objetivo estabelecer as condições em que as empresas de investimento e os bancos autorizados podiam prestar determinados serviços específicos ou estabelecer sucursais em outros Estados‑Membros, com base na autorização e supervisão do país de origem. Para o efeito, aquela diretiva harmonizava os requisitos de autorização e as condições de exercício da atividade das empresas de investimento, incluindo certas normas de conduta. Previa igualmente a harmonização de algumas condições que regem o funcionamento dos mercados regulamentados.
[...]
(44) Para prosseguir o duplo objetivo de proteger os investidores e assegurar o funcionamento harmonioso dos mercados de valores mobiliários, é necessário garantir a transparência das transações e a aplicação das regras estabelecidas para esse efeito às empresas de investimento quando estas intervêm nos mercados. A fim de permitir que os investidores ou participantes no mercado avaliem, numa base permanente, as condições de uma transação sobre ações que tenham em perspetiva e verifiquem posteriormente os termos em que essa transação foi efetuada, há que prever normas comuns para a publicação de informações sobre as transações de ações concluídas e a divulgação de informações pormenorizadas sobre as oportunidades existentes de negociação em ações. Estas normas são necessárias para assegurar a integração efetiva dos mercados de ações dos Estados‑Membros, para promover a eficiência do processo global de formação de preços dos instrumentos de capital e para assegurar o respeito efetivo das obrigações de “execução nas melhores condições”. Por estes motivos, é igualmente necessário um regime completo de transparência aplicável à totalidade das transações de ações, quer sejam efetuadas por uma empresa de investimento de forma bilateral quer através de mercados regulamentados ou MTF [sistema de negociação multilateral]. As obrigações impostas às empresas de investimento no âmbito da presente diretiva de indicarem um preço de compra e venda e de executarem uma ordem ao preço indicado, não dispensam a empresa de investimento da obrigação de encaminhar uma ordem para outro local de execução, sempre que esta internalização possa impedir a empresa de respeitar as obrigações de “execução nas melhores condições”.»
14. O artigo 4.°, n.° 1, pontos 14, 17 e 18, da Diretiva MiFID I dispõe:
«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:
[...]
14) “Mercado regulamentado”: um sistema multilateral, operado e/ou gerido por um operador de mercado, que permite o encontro ou facilita o encontro de múltiplos interesses de compra e venda de instrumentos financeiros manifestados por terceiros — dentro desse sistema e de acordo com as suas regras não discricionárias — por forma a que tal resulte num contrato relativo a instrumentos financeiros admitidos à negociação de acordo com as suas regras e/ou sistemas e que esteja autorizado e funcione de forma regular e em conformidade com o disposto no Título III;
[...]
17) “Instrumento financeiro”: qualquer dos instrumentos especificados na Secção C do Anexo I;
18) “Valores mobiliários”: as categorias de valores que são negociáveis no mercado de capitais, com exceção dos meios de pagamento, como por exemplo:
a) Ações de sociedades e outros valores equivalentes a ações de sociedades, de sociedades de responsabilidade ilimitada (partnership) ou de outras entidades, bem como certificados de depósito de ações;
b) Obrigações ou outras formas de dívida titularizada, incluindo certificados de depósito desses títulos;
c) Quaisquer outros valores que confiram o direito à compra ou venda desses valores mobiliários ou que deem origem a uma liquidação em dinheiro, determinada por referência a valores mobiliários, divisas, taxas de juro ou de rendimento, mercadorias ou outros índices ou indicadores.»
15. O artigo 40.°, n.° 1, desta diretiva prevê:
«Os Estados‑Membros devem exigir que os mercados regulamentados tenham normas claras e transparentes relativamente à admissão de instrumentos financeiros à negociação.
Essas normas devem assegurar que os instrumentos financeiros admitidos à negociação num mercado regulamentado possam ser negociados em condições equitativas, ordenadas e eficientes e, no caso dos valores mobiliários, sejam livremente negociáveis.»
16. Nos termos do artigo 69.° da referida diretiva:
«A Diretiva [93/22] é revogada com efeitos a partir de 1 de novembro de 2007. Todas as remissões para a Diretiva [93/22] devem ser entendidas como remissões para a presente diretiva. As remissões para os termos definidos na Diretiva [93/22] ou para os artigos desta devem ser entendidas como remissões para os termos equivalentes definidos na presente diretiva ou para os artigos desta.»
17. O anexo I da Diretiva MiFID I define a «[l]ista de serviços e atividades e instrumentos financeiros». Na secção C deste anexo, que enumera os «[i]nstrumentos financeiros», figuram, no ponto 1, os «[v]alores mobiliários».
4. Regulamento (CE) n.° 809/2004
18. O artigo 3.°, segundo parágrafo, do Regulamento (CE) n.° 809/2004 (7), conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.° 1289/2008 da Comissão, de 12 de dezembro de 2008 (8), enuncia:
«O prospeto deve conter os elementos de informação requeridos nos Anexos I a XVII, consoante o tipo de emitente e os valores mobiliários em causa [...]»
B. Direito belga
19. O artigo 3.°, n.° 1, da loi relative aux offres publiques d’instruments de placement et aux admissions d’instruments de placement à la négociation sur des marchés réglementés (Lei relativa às Ofertas Públicas de Instrumentos de Investimento e à Admissão de Instrumentos de Investimento à Negociação em Mercados Regulamentados), de 16 de junho de 2006 (9), dispõe:
«Para efeitos da aplicação da presente lei, deve entender‑se por “oferta pública” uma comunicação ao público, independentemente da forma e dos meios por ela assumidos, que apresente informações suficientes sobre as condições da oferta e os valores mobiliários em questão, a fim de permitir a um investidor decidir sobre a aquisição ou a subscrição desses valores mobiliários, e que é feita pela pessoa que está em condições de emitir ou de alienar os instrumentos de investimento ou por sua conta.
Presume‑se que age por conta da pessoa que está em condições de emitir ou de alienar os instrumentos de investimento, qualquer pessoa que receba, direta ou indiretamente, uma remuneração ou um benefício aquando da oferta.»
20. O artigo 4.°, n.° 1, pontos 1 e 10, desta lei prevê:
«Para efeitos da aplicação da presente lei, deve entender‑se por “instrumentos de investimento”:
1) os valores mobiliários;
[...]
10) quaisquer outros instrumentos que permitam efetuar um investimento de natureza financeira, quaisquer que sejam os ativos subjacentes.»
21. Nos termos do artigo 5.°, n.° 1, da referida lei:
«Para efeitos da aplicação da presente lei, entende‑se por “valores mobiliários” todas os tipos de instrumentos de investimento negociáveis no mercado de capitais (com exceção dos instrumentos de pagamento), tais como:
1) Ações de sociedades e outros instrumentos de investimento equivalentes a ações de sociedades, de sociedades de responsabilidade ilimitada (partnership) ou de outras entidades, incluindo os instrumentos de investimento emitidos por organismos de investimento coletivo, sob a forma de contrato ou de trust, e representativos de direitos dos participantes sobre os ativos desses organismos, bem como os certificados de depósito de ações;
2) Obrigações ou outras formas de dívida titularizada ou de empréstimo, incluindo certificados de depósito desses títulos e certificados de fundo de investimento imobiliário;
3) Quaisquer outros valores que confiram o direito à compra ou venda desses valores mobiliários ou que deem origem a uma liquidação em dinheiro, determinada por referência a valores mobiliários, divisas, taxas de juro ou de rendimento, mercadorias ou outros índices ou indicadores.»
22. O título IV da Lei de 16 de junho de 2006 diz respeito «[a]o prospeto». No capítulo 1 deste título, sob a epígrafe «Obrigação de publicação de um prospeto», na secção 1, relativa ao «[â]mbito de aplicação», figura o artigo 17.° que dispõe:
«O presente capítulo é aplicável a qualquer oferta pública de instrumentos de investimento efetuada no território belga e a qualquer admissão de instrumentos de investimento à negociação no mercado regulamentado belga.»
23. Na secção 2 deste capítulo, intitulada «Publicação do prospeto», o artigo 20.° da mesma lei tem a seguinte redação:
«Qualquer operação compreendida no presente capítulo requer a prévia publicação de um prospeto pelo emitente, o oferente ou a pessoa que solicita a admissão à negociação num mercado regulamentado, consoante o caso.»
III. Factos do litígio no processo principal e questão prejudicial
24. A Holding Communal, anteriormente denominada «Crédit communal de Belgique», foi inicialmente constituída, em 24 de novembro de 1860, com vista a financiar os investimentos das autarquias locais na Bélgica. Tem como acionistas os municípios e as províncias belgas, designadamente os municípios de Schaerbeek e de Linkebeek, por ela financiados.
25. Durante o ano de 1996, o Crédit communal de Belgique fundiu‑se com o Crédit local de France e deu origem ao Groupe Dexia. Dois anos depois, o Crédit communal de Belgique foi transformado numa sociedade holding e adotou a sua denominação atual, Holding Communal. Esta última detém uma participação significativa na sociedade anónima Dexia e na sociedade anónima Dexia Banque, atualmente Belfius Banque.
26. No contexto da crise financeira de 2008, a Holding Communal participou no aumento de capital da sociedade anónima Dexia no montante de 500 milhões de euros. Com vista a liberar esta subscrição depois de ter sido recusado um empréstimo no verão de 2009, o conselho de administração da Holding Communal decidiu recorrer aos acionistas propondo‑lhes, nomeadamente, um aumento de capital por entradas em dinheiro que deu origem à emissão de ações «cumulativamente preferenciais A» (a seguir, «operação de aumento de capital controvertida»).
27. Em setembro de 2009, foi agendada uma reunião de informação, na qual foram prestadas informações aos acionistas e o calendário da operação foi adaptado para atender ao processo decisório próprio dos municípios e das províncias. Em 30 de setembro de 2009, durante a assembleia geral, todos os acionistas da Holding Communal aprovaram este aumento de capital. No que respeita à operação de aumento de capital controvertida, foi decidido dividir a subscrição em duas fases. O município de Schaerbeek subscreveu 8 161 689,60 euros, na primeira fase, e 1 359 011,84 euros, na segunda fase, e a sua subscrição foi financiada por um empréstimo de 8 161 698 euros ao Dexia Banque. Quanto ao município de Linkebeek, o mesmo subscreveu 53 575,68 euros em cada uma das duas fases.
28. Em 7 de dezembro de 2011, a assembleia geral extraordinária da Holding Communal decidiu dissolver e liquidar esta sociedade. Dado que não podia ser distribuído nenhum saldo de liquidação, os acionistas perderam a totalidade das suas subscrições.
29. Os municípios de Schaerbeek e de Linkebeek propuseram uma ação contra a Holding Communal no tribunal de commerce francophone de Bruxelles (Tribunal de Comércio de Língua Francesa de Bruxelas, Bélgica) pedindo a anulação das respetivas subscrições na operação de aumento de capital controvertida por violação da Lei de 16 de junho de 2006. Alegaram que, previamente ao convite dirigido aos acionistas para a subscrição do aumento de capital, devia ter sido publicado um prospeto em conformidade com esta lei. O tribunal considerou que a referida lei, bem como a Diretiva prospeto, só regula a oferta de valores mobiliários caso estes sejam negociáveis no mercado de capitais e concluiu que as ações da Holding Communal não constituíam valores mobiliários negociáveis nesse mercado.
30. Esta decisão foi confirmada por um Acórdão da cour d’appel de Bruxelas (Tribunal de Recurso de Bruxelas, Bélgica), de 12 de abril de 2022, que conclui que a Lei de 16 de junho de 2006, que transpõe a Diretiva prospeto, só regula a oferta de valores mobiliários se estes forem negociáveis no mercado de capitais. No entanto, as ações emitidas em contrapartida das entradas em dinheiro na operação de aumento de capital controvertida eram valores mobiliários não negociáveis no mercado de capitais, uma vez que só podiam ser detidas por entidades municipais e provinciais e que a sua cessão estava sujeita à aprovação do conselho de administração.
31. Os municípios de Schaerbeek e de Linkebeek recorreram deste acórdão para a Cour de Cassation (Tribunal de Cassação, Bélgica) e alegam que as ações das sociedades continuam a ser negociáveis no mercado de capitais, mesmo que esta negociação conduza a uma operação restrita às autoridades municipais e provinciais e esteja sujeita à aprovação do conselho de administração.
32. Nestas circunstâncias, o Tribunal de Cassação (Bélgica) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:
«Deve o artigo 2.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva [prospeto] que, por sua vez, remete para o artigo 4.°, n.° 1, ponto 18, da Diretiva [MiFID I], ser interpretado no sentido de que o conceito de valor mobiliário negociável no mercado de capitais abrange as ações de uma sociedade holding que só podem ser detidas pelas províncias e pelos municípios e cuja cessão está sujeita à aprovação do conselho de administração?»
33. Os municípios de Schaerbeek e de Linkebeek, a Holding Communal e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas.
IV. Análise
34. Com a sua questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça sobre se as ações de uma sociedade holding que só podem ser detidas por províncias e municípios e cuja cessão está sujeita à aprovação do conselho de administração são valores mobiliários negociáveis no mercado de capitais cuja oferta pública exige a prévia publicação de um prospeto.
35. Para responder a esta questão, importa salientar que, dado que o artigo 3.° da Diretiva prospeto enuncia que os Estados‑Membros não autorizam nenhuma oferta de valores mobiliários ao público no respetivo território sem a prévia publicação de um prospeto, é necessário definir o que são, por um lado, os «valores mobiliários» e, por outro, a «oferta pública».
36. Quanto a estes conceitos, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, decorre tanto das exigências da aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição do direito da União que não comporte nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e alcance devem normalmente ser objeto, em toda a União, de uma interpretação autónoma e uniforme que deve ser procurada tendo em conta não só os termos dessa disposição, mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (10). Ora, no presente caso, não existe nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros, pelo que os referidos conceitos devem ser objeto de uma interpretação autónoma e uniforme.
37. Em primeiro lugar, quanto ao conceito de «oferta pública», este é definido pelo artigo 2.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva prospeto como «uma comunicação ao público, independentemente da forma e dos meios por ela assumidos, que apresente informações suficientes sobre as condições da oferta e os valores mobiliários em questão, a fim de permitir a um investidor decidir sobre a aquisição ou subscrição desses valores mobiliários». Os termos utilizados são muito amplos, sem restrições quanto às pessoas a que respeita ou às vias formais da comunicação. Em contrapartida, é necessário que esta comunicação comporte informação suficiente sobre as condições de aquisição dos títulos.
38. Por outro lado, a Diretiva prospeto enumera certos tipos de ofertas aos quais não se aplica a obrigação de publicação de um prospeto em face do tipo de pessoas visadas pela oferta, do montante mínimo do investimento individual ou do montante máximo total da oferta (artigo 3.°, n.° 2) ou certos tipos de valores mobiliários oferecidos ao público ou admitidos à negociação num mercado regulamentado que também não necessitam da publicação desse prospeto (artigo 4.°). Podia suscitar‑se a questão de saber se a oferta impugnada preenchia as condições de alguma das derrogações previstas, nomeadamente, no artigo 3.°, n.° 2, alínea b) (11), alínea c) (12), ou alínea d) (13), desta diretiva.
39. Destas derrogações resulta que uma oferta dirigida a mais de 100 pessoas, que não sejam investidores qualificados [que podem ser administrações nacionais e regionais nos termos do artigo 2.°, n.° 1, alínea e), ii), da Diretiva prospeto], está sujeita à publicação de um prospeto. Ora, os elementos constantes do pedido de decisão prejudicial não permitem saber a quantos municípios e províncias foi dirigida a oferta para a operação de aumento de capital controvertida e se as províncias constituem administrações regionais na aceção desta diretiva. Compete ao juiz de reenvio verificar esses elementos. De qualquer modo, o limiar de 100 pessoas é muito baixo e, sempre que seja ultrapassado, deve ser publicado um prospeto.
40. Além disso, o pedido de decisão prejudicial também não permite determinar o montante total de valores mobiliários adquiridos por cada investidor ou o valor nominal do valor mobiliário oferecido. Por conseguinte, não é possível saber se foi ultrapassado o limiar de 50 000 euros, acima do qual não é obrigatório um prospeto. O juiz de reenvio deve proceder a esta verificação. No entanto, tal demonstra, a contrario, que, até ao limiar de 50 000 euros adquirido por cada investidor, ou de 50 000 euros correspondente ao montante da ação oferecida, é necessário um prospeto.
41. Assim, com exceção destas ofertas específicas previstas nos artigos 3.° e 4.° da Diretiva prospeto, qualquer oferta de valores mobiliários deve ser considerada pública e, consequentemente, ser precedida da publicação de um prospeto.
42. O contexto em que se insere esta diretiva confirma essa interpretação ampla do conceito de «oferta pública» por uma questão de harmonização. Com efeito, o considerando 5 da referida diretiva recordou que o relatório inicial de 9 de novembro de 2000 do Comité de Sábios sobre a regulamentação dos mercados europeus de valores mobiliários salienta a falta de uma definição acordada de «oferta pública de valores mobiliários», «o que se traduz no facto de a mesma operação ser considerada uma colocação particular nalguns Estados‑Membros mas não noutros». Foi igualmente referida a falta de uma definição acordada da «oferta pública» no relatório final deste Comité de Sábios (14). Além do mais, a exposição de motivos da proposta de diretiva da Comissão (15) recorda, na parte relativa ao artigo 2.°, que «a introdução do conceito de “oferta pública” constitui uma importante inovação. Aquando da adoção da Diretiva 89/298/CEE [do Conselho, de 17 de abril de 1989, que coordena as condições de estabelecimento, controlo e difusão do prospeto a publicar em caso de oferta pública de valores mobiliários (16)], revelou‑se impossível chegar a um consenso sobre uma definição comum (cf. o considerando 7 da referida diretiva)». Por conseguinte, a partir do momento em que é instituída uma definição harmonizada, as derrogações devem ser interpretadas estritamente e os termos da definição devem ser objeto de uma interpretação ampla.
43. A consequência desta falta de definição acordada de «oferta pública» era que, segundo os Estados‑Membros, para um mesmo tipo de ofertas, a publicação de um prospeto podia ser ou não obrigatória, comprometendo assim a eficácia do mercado na União. Ora, esta eficácia do mercado é um dos objetivos, bem como a proteção dos investidores, prosseguidos pela Diretiva prospeto, como é referido no considerando 10 desta diretiva. Com efeito, a publicação de um prospeto tem lugar na sequência de um processo que compreende várias etapas descritas no artigo 1.°, n.° 1, da referida diretiva, a saber, a elaboração, aprovação e difusão do prospeto.
44. O objetivo da eficácia do mercado exige a criação de um prospeto que pode servir de salvo‑conduto na União, uma vez que permite que uma informação mínima da mesma natureza seja difundida no mesmo tipo de ofertas para os investidores na União e que, por conseguinte, possa ser elaborado um único prospeto para uma oferta em vários Estados‑Membros.
45. Efetivamente, a proteção dos investidores resulta do facto de a mesma informação ser dada a todos os potenciais investidores, mas também do facto de a autoridade competente designada pelo Estado‑Membro aprovar ou não o conteúdo do prospeto depois de solicitar, se for caso disso, informações complementares, tal como previsto no artigo 13.°, n.os 1 e 4, da Diretiva prospeto. Assim, os potenciais investidores têm a certeza de que um prospeto publicado é verificado por essa autoridade.
46. A prossecução destes dois objetivos, aliada à generalidade dos termos utilizados na definição da «oferta pública», leva a pensar que uma oferta como a proposta pela Holding Communal é uma oferta pública, mesmo que se afigure reservada aos acionistas residuais, desde que não se verifique em nenhum dos tipos de ofertas ao público isentos da obrigação de publicar um prospeto em aplicação do artigo 3.°, n.° 2, da Diretiva prospeto.
47. Em segundo lugar, quanto ao conceito de «valores mobiliários», o mesmo é definido no artigo 2.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva prospeto por remissão para a definição prevista no artigo 1.°, ponto 4, da Diretiva 93/22.
48. Nesta diretiva, os valores mobiliários eram definidos como «ações e outros valores equivalentes a ações, obrigações e outros títulos de dívida negociáveis no mercado de capitais e quaisquer outros valores habitualmente negociados que confiram o direito à aquisição desses valores mobiliários por subscrição ou troca ou que deem origem a uma liquidação em dinheiro, com exclusão dos meios de pagamento». Assim, as ações eram por si só valores mobiliários e não necessitavam de ser negociáveis no mercado de capitais, contrariamente às obrigações e outros títulos de dívida.
49. Contudo, a Diretiva 93/22 foi revogada, com efeitos a partir de 1 de novembro de 2007, pela Diretiva MiFID I, cujo artigo 69.° dispõe que «[t]odas as remissões para a Diretiva [93/22] devem ser entendidas como remissões para a presente diretiva. As remissões para os termos definidos na Diretiva [93/22] ou para os artigos desta devem ser entendidas como remissões para os termos equivalentes definidos na presente diretiva ou para os artigos desta». Uma vez que a Diretiva MiFID I define o conceito de «valores mobiliários», é esta definição que há que analisar.
50. Ora, o artigo 4.°, n.° 1, ponto 18, da Diretiva MiFID I define os valores mobiliários como «as categorias de valores que são negociáveis no mercado de capitais, com exceção dos meios de pagamento» e dá uma lista de exemplos que incluem nomeadamente «ações de sociedades e outros valores equivalentes a ações de sociedades, de sociedades de responsabilidade ilimitada (partnership) ou de outras entidades, bem como certificados de depósito de ações». Nesta nova definição, as ações só constituem «valores mobiliários» na aceção desta diretiva se forem negociáveis no mercado de capitais, contrariamente ao previsto na Diretiva 93/22 e na proposta da Comissão que dá origem à Diretiva prospeto (17). Doravante, há que ter em conta a negociabilidade das ações no mercado de capitais para que as mesmas possam ser qualificadas de «valores mobiliários» na aceção da Diretiva MiFID I.
51. Em primeiro lugar, de um ponto de vista literal, a qualificação de «valores mobiliários» baseia‑se em dois conceitos: a «negociabilidade» e o «mercado de capitais».
52. Por um lado, o adjetivo «negociável» pode ser definido como o que pode ser negociado, ser objeto de uma negociação, e especialmente no âmbito da bolsa de valores: diz‑se de um valor mobiliário ou de um fundo público que é objeto de transações correntes e não está sujeito a nenhuma restrição específica (18).
53. Assim, a interpretação literal da palavra «negociável» remete para a possibilidade de uma cessão em termos gerais ou para a inexistência de qualquer restrição específica à cessão. Por conseguinte, não permite, por si só, responder à questão do juiz de reenvio, uma vez que a aprovação pelo conselho de administração poderia ser analisada como uma restrição à cessão.
54. Por outro lado, quanto ao conceito de «mercado de capitais», no âmbito da bolsa de valores, o mercado designa as diversas formas negociais que regem as transações dos valores mobiliários (19). Assim, o mercado de capitais tem uma definição muito ampla e não faz referência apenas ao mercado regulamentado ou à cotação em bolsa: remete para o conceito de transações sobre uma categoria de bens, aqui os valores mobiliários.
55. Em segundo lugar, a interpretação dos conceitos de «negociabilidade» e de «mercado de capitais» deve ter em consideração o contexto em que são utilizados.
56. Quanto a este ponto, o considerando 12 da Diretiva prospeto enuncia claramente que é necessária «a plena cobertura dos valores mobiliários representativos de capital e dos valores mobiliários não representativos de capital oferecidos ao público ou admitidos à negociação em mercados regulamentados, conforme definidos na Diretiva [93/22], e não apenas dos valores mobiliários admitidos à cotação oficial nas bolsas de valores».
57. Além disso, o artigo 3.°, segundo parágrafo, do Regulamento n.° 809/2004, que estabelece normas de aplicação da Diretiva prospeto, especifica que o prospeto deve conter os elementos de informação requeridos nos anexos I a XVII deste regulamento, consoante o tipo de emitente e os valores mobiliários em causa. Assim, o ponto 21.2.3 dos anexos I e X do referido regulamento dispõe que deve ser apresentada uma descrição das restrições inerentes a cada uma das categorias de ações existentes. De uma forma ainda mais precisa, o ponto 4.8 do anexo III do mesmo regulamento obriga a descrever eventuais restrições à livre transferência dos títulos (20). A mesma obrigação de descrição existe em caso de acordo de bloqueio de valores mobiliários: o prospeto deve identificar as partes envolvidas, descrever o teor e exceções do acordo, e indicar o período de bloqueio (21).
58. No entanto, como salienta a Comissão, essas restrições ou acordos de bloqueio não devem ter como resultado a impossibilidade ou a extrema dificuldade de cessão, pois, nesta hipótese, os valores mobiliários não podem ser considerados como negociáveis. Essa hipótese poderia existir em caso de impossibilidade de cessão a um terceiro porque só o emitente poderia adquirir o valor mobiliário emitido.
59. Por conseguinte, é claro que, no contexto da Diretiva prospeto, restrições à transferência dos valores mobiliários, ou até mesmo acordos de bloqueio, por si só, não constituem um obstáculo a que os títulos em causa sejam abrangidos na definição de valores mobiliários sujeitos à obrigação de publicação de um prospeto em caso de oferta pública, sob a condição, todavia, de essas restrições e acordos não tornarem impossível ou extremamente difícil uma cessão.
60. No contexto da Diretiva 93/22, cuja definição de valores mobiliários foi substituída pela adotada pela Diretiva MiFID I, aplicável no presente caso, a interpretação deve ser a mesma, a saber, uma visão ampla do conceito de «valores mobiliários». Assim, embora o décimo primeiro considerando da Diretiva 93/22 referisse que a definição de valores mobiliários adotada era extremamente lata, precisava igualmente que a mesma apenas abrangia os instrumentos negociáveis e que, por conseguinte, ficavam excluídas desta definição as ações cuja propriedade só podia, na prática, ser transferida através da sua recompra pelo organismo emitente, como as «Building societies» ou as «Industrial and Provident societies». Esta hipótese é ainda prevista em relação a determinados criptoativos (22).
61. Além disso, mesmo sendo relativo à admissão num mercado regulamentado, o artigo 40.°, n.° 1, segundo parágrafo, da Diretiva MiFID I prevê que os valores mobiliários devem poder ser aí livremente negociáveis.
62. Esta abordagem foi reforçada pela própria Comissão numa FAQ relativa esta diretiva. Indicou, nesta ocasião, que a essência da definição dos valores mobiliários é que, enquanto categoria, são negociáveis no mercado de capitais (23). Acrescentou, em relação a este mercado, que a sua definição incluía todos os contextos em que haja cruzamento de interesses de compra e venda de títulos (24).
63. Desta interpretação decorre, tendo em consideração o contexto, que as restrições à negociabilidade das ações da Holding Communal relativas à necessidade da aprovação do conselho de administração para alienar as suas ações a um número limitado de categorias de pessoas (as províncias e os municípios) não são suficientes para impedir, por princípio, a livre negociabilidade das ações neste âmbito, exceto se o órgão jurisdicional de reenvio verificar que existe uma impossibilidade ou uma extrema dificuldade de proceder a uma cessão. Além disso, considero que existe um mercado de capitais para essas ações atendendo ao número de pessoas coletivas que podem ser acionistas. Com efeito, a Comissão refere que existem 581 municípios e 10 províncias na Bélgica: é este o número de pessoas coletivas acionistas ou suscetíveis de o virem a ser ao adquirirem ações pertencentes a outros acionistas. Ora, como recordei no n.° 39 das presentes conclusões, acima de 100 potenciais investidores, a Diretiva prospeto prevê que deve ser publicado um prospeto, o que confirma o facto de o reduzido número de acionistas e, portanto, a dimensão restrita do mercado secundário, aquele onde são revendidas as ações, não constituírem, por si só, um obstáculo que impeça considerar que as ações são negociáveis. Estas ações incluem‑se, por conseguinte, na definição de valores mobiliários cuja oferta pública exige a publicação de um prospeto.
64. Em terceiro lugar, os conceitos de «negociabilidade» e de «mercado de capitais» devem ser interpretados à luz dos objetivos da Diretiva prospeto e da Diretiva MiFID I, das quais consta a definição de valores mobiliários.
65. Conforme referido no n.° 43 das presentes conclusões, a Diretiva prospeto prossegue dois objetivos: assegurar a proteção dos investidores e a eficácia do mercado. São também estes os objetivos prosseguidos pela Diretiva MiFID I (25).
66. Por conseguinte, os referidos objetivos conduzem à adoção de uma definição ampla de «negociabilidade» e de «mercado de capitais», dado que o prospeto assegura uma melhor informação dos investidores, sendo ponto assente que as mesmas informações mínimas devem ser previstas no prospeto, cujo conteúdo é controlado por uma autoridade nacional, e uma melhor eficácia do mercado, uma vez que um único prospeto pode ser utilizado em vários Estados‑Membros.
67. O Tribunal de Justiça já declarou que resulta dos considerandos 10, 18 e 19 da Diretiva prospeto que a mesma tem «por objetivo assegurar a proteção dos investidores e a eficácia do mercado», que a informação completa sobre os valores mobiliários «representa um meio eficaz para reforçar a confiança [nesses valores], contribuindo assim para o bom funcionamento e desenvolvimento dos mercados», e que «são necessárias salvaguardas para a proteção dos interesses dos investidores efetivos e potenciais em todos os Estados‑Membros, a fim de estes estarem em condições de proceder a uma avaliação informada [dos] riscos [que o investimento em valores mobiliários pressupõe], de modo a tomarem as decisões de investimento com pleno conhecimento dos factos» (26).
68. Declarou igualmente que, atendendo a estes objetivos, a publicação de um prospeto visa, por um lado, permitir aos investidores avaliar os riscos inerentes às operações de oferta pública de valores mobiliários e da sua admissão à negociação, para tomarem uma decisão com pleno conhecimento dos factos e, por outro, assegurar que o bom funcionamento dos mercados em causa não seja prejudicado por irregularidades (27).
69. No processo que deu origem ao Acórdão de 17 de setembro de 2014, Almer Beheer e Daedalus Holding (28), o Tribunal de Justiça baseou‑se nos referidos objetivos para declarar que uma venda judicial de valores mobiliários a pedido de um credor não necessita da publicação de um prospeto, uma vez que não tinha os mesmos objetivos que os prosseguidos pela Diretiva prospeto. Contudo, não se pode argumentar de forma semelhante quanto à questão submetida ao Tribunal de Justiça no presente processo, uma vez que, por um lado, a venda ocorreu em condições normais, e não no âmbito de um processo judicial a pedido de terceiro, e, por outro, a sociedade Holding Communal era efetivamente responsável pela elaboração do eventual prospeto enquanto emitente dos valores mobiliários e dispunha de todas as informações necessárias para essa elaboração.
70. Assim, a interpretação teleológica também leva a adotar uma visão ampla dos conceitos de «negociabilidade» e de «mercado de capitais».
71. Por conseguinte, as ações da Holding Communal, que só podem ser cedidas a províncias ou a municípios belgas com a aprovação do conselho de administração, integram‑se na categoria de valores mobiliários na aceção da Diretiva prospeto e a sua emissão deveria ter sido precedida da publicação de um prospeto, uma vez que podem ser objeto de troca entre 581 municípios e 10 províncias.
72. No entanto, compete ao juiz de reenvio acautelar‑se em relação a várias questões: primeiro, se se encontram ou não preenchidas as condições das derrogações previstas no artigo 3.°, n.° 2, da Diretiva prospeto, segundo, se as condições de aprovação do conselho de administração e das cessões apenas possíveis entre províncias e municípios belgas não tornam impossível ou extremamente difícil qualquer cessão com base noutros elementos não referidos no pedido de decisão prejudicial, e, terceiro, que, em conformidade com as disposições do artigo 25.°, n.° 1, desta diretiva, as medidas ou sanções administrativas impostas pelos Estados‑Membros em caso de incumprimento das disposições da referida diretiva sejam efetivas, proporcionadas e dissuasivas.
73. Atendendo a todos estes elementos, proponho responder ao órgão jurisdicional de reenvio que o artigo 2.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva prospeto deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «valor mobiliário negociável no mercado de capitais» abrange as ações de uma sociedade holding que só podem ser detidas pelas províncias e pelos municípios e cuja cessão está sujeita à aprovação do conselho de administração, desde que essas restrições não tornem impossível ou extremamente difícil a negociabilidade dessas ações no mercado de capitais.
V. Conclusão
74. Tendo em conta as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda do seguinte modo à questão prejudicial submetida pela Cour de Cassation (Tribunal de Cassação, Bélgica):
O artigo 2.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2003/71/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003, relativa ao prospeto a publicar em caso de oferta pública de valores mobiliários ou da sua admissão à negociação e que altera a Diretiva 2001/34/CE, conforme alterada pela Diretiva 2008/11/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 2008,
deve ser interpretado no sentido de que:
o conceito de «valor mobiliário negociável no mercado de capitais» abrange as ações de uma sociedade holding que só podem ser detidas pelas províncias e pelos municípios e cuja cessão está sujeita à aprovação do conselho de administração, desde que essas restrições não tornem impossível ou extremamente difícil a negociabilidade dessas ações no mercado de capitais.
1 Língua original: francês.
2 JO 2003, L 345, p. 64.
3 JO 2008, L 76, p. 37, a seguir, «Diretiva prospeto».
4 JO 1993, L 141, p. 27.
5 JO 2004, L 145, p. 1.
6 JO 2006, L 114, p. 60, a seguir, «Diretiva MiFID I».
7 Regulamento da Comissão, de 29 de abril de 2004, que estabelece normas de aplicação da Diretiva 2003/71/CE do Parlamento Europeu e do Conselho no que diz respeito à informação contida nos prospetos, bem como os respetivos modelos, à inserção por remissão, à publicação dos referidos prospetos e divulgação de anúncios publicitários (JO 2004, L 149, p. 1).
8 JO 2008, L 340, p. 17, a seguir, «Regulamento n.° 809/2004».
9 Moniteur belge de 21 de junho de 2006, p. 31352, a seguir, «Lei de 16 de junho de 2006».
10 V. Acórdão de 30 de abril de 2024, M.N. (EncroChat) (C‑670/22, EU:C:2024:372, n.° 109 e jurisprudência referida).
11 Uma oferta de valores mobiliários dirigida a menos de 100 pessoas singulares ou coletivas por Estado‑Membro, que não sejam investidores qualificados.
12 Uma oferta de valores mobiliários dirigida a investidores que adquirem valores mobiliários por um valor mínimo de 50 000 euros por investidor, por cada oferta distinta.
13 Uma oferta de valores mobiliários cujo valor nominal unitário ascenda a pelo menos 50 000 euros.
14 V. relatório final do Comité de Sábios sobre a regulamentação dos mercados europeus de valores mobiliários de 15 de fevereiro de 2001, disponível, em língua inglesa, no endereço Internet seguinte: https://www.esma.europa.eu/sites/default/files/library/2015/11/lamfalussy_report.pdf (pp. 12 e 15).
15 Proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao prospeto a publicar em caso de oferta ao público de valores mobiliários ou da sua admissão à negociação [COM(2001) 280 final].
16 JO 1989, L 124, p. 8.
17 V. artigo 2.°, n.° 1, alínea a), da proposta de diretiva referida na nota de rodapé 15 das presentes conclusões: «Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por “valores mobiliários”, as ações e outros títulos negociáveis equiparáveis a ações de empresas, as obrigações e outros tipos de títulos de dívida negociáveis em mercados regulamentados, bem como quaisquer outros títulos neles negociados, que conferem o direito de adquirir tais valores mobiliários mediante a subscrição ou a troca, que deem origem a uma liquidação em numerário.»
18 V. Dictionnaire de l’Académie française.
19 V. Dictionnaire de l’Académie française.
20 O mesmo acontece em relação a um determinado número de outros valores mobiliários, v. anexo V, ponto 4.13; anexo X, pontos 27.10 e 28.10; anexo XII, ponto 4.1.10; anexo XIII, ponto 4.14, bem como o anexo XIV, ponto 1.8, do Regulamento n.° 809/2004.
21 V. anexo III, ponto 7.3, e anexo X, ponto 27.14, do Regulamento n.° 809/2004.
22 V., neste sentido, consulta de 29 de janeiro de 2024 da Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (ESMA) quanto à proposta de recomendação relativa às condições e aos critérios da qualificação dos criptoativos enquanto instrumento financeiro, disponível, em língua inglesa, no endereço Internet seguinte: https://www.esma.europa.eu/sites/default/files/2024‑01/ESMA75‑453128700‑52_MiCA_Consultation_Paper_‑_Guidelines_on_the_qualification_of_crypto‑assets_as_financial_instruments.pdf (n.° 109).
23 V. Perguntas e respostas da Comissão relativas à Diretiva MiFID I, disponíveis no endereço Internet seguinte:https://finance.ec.europa.eu/system/files/2020‑01/mifid‑2004‑0039‑commission‑questions‑answers_en_0.pdf (p. 22): «A essência da definição dos valores mobiliários enunciada no artigo 4.°, ponto 18, da Diretiva MiFID I é que, enquanto categoria, são negociáveis no mercado de capitais. [...] As participações em ações de sociedades de responsabilidade limitada (partnership) que não são “negociáveis no mercado de capitais” não são equivalentes às ações negociáveis. Por conseguinte, o fator determinante é o de saber se estas participações nas sociedades de responsabilidade limitada (partnership) são negociáveis no mercado de capitais. Embora a natureza dos títulos em questão lhes permita serem negociados num mercado regulamentado ou num MTF, trata‑se de uma indicação conclusiva de que são valores mobiliários, mesmo que os títulos individuais não sejam efetivamente negociados. Pelo contrário, se não podem ser negociados nesses sistemas multilaterais, isso pode significar que não se trata de valores mobiliários, o que não é, todavia, conclusivo. [...] O conceito de negociabilidade inclui a noção de que o instrumento é negociável. Embora as restrições à transferência impeçam um instrumento de ser negociável nesse contexto, não se trata de um valor mobiliário.» (tradução livre).
24 V. Perguntas e respostas referidas na nota de rodapé 23 das presentes conclusões (p. 1).
25 V. considerandos 5, 44 e 71 da Diretiva MiFID I.
26 V. Acórdão de 17 de setembro de 2014, Almer Beheer e Daedalus Holding (C‑441/12, EU:C:2014:2226, n.° 31)
27 V. Acórdão de 17 de setembro de 2014, Almer Beheer e Daedalus Holding (C‑441/12, EU:C:2014:2226, n.° 33)
28 C‑441/12, EU:C:2014:2226.