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Document 62021CC0608

Conclusões do advogado-geral P. Pikamäe apresentadas em 12 de janeiro de 2023.
Processo penal contra XN.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sofiyski rayonen sad.
Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Diretiva 2012/13/UE — Direito à informação em processo penal — Artigo 6.o — Direito à informação sobre a acusação — Artigo 7.o — Direito de acesso aos elementos do processo — Exercício efetivo dos direitos da defesa — Artigo 6.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Direito à liberdade e à segurança — Comunicação das razões da detenção da pessoa suspeita ou acusada num documento distinto — Momento em que deve ser efetuada essa comunicação.
Processo C-608/21.

Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2023:23

 CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PRIIT PIKAMÄE

apresentadas em 12 de janeiro de 2023 ( 1 )

Processo C‑608/21

Processo penal

entre

XN

e

Politseyski organ pri 02 RU SDVR

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sofiyski Rayonen sad (Tribunal de Comarca de Sófia, Bulgária)]

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Direito à informação em processo penal — Diretiva 2012/13/EU — Direito de ser informado da acusação — Artigo 6.o, n.o 2 — Comunicação das razões de uma decisão de detenção ao suspeito ou acusado — Prazo — Conteúdo»

1.

«Preso! Como é que pode ser isso? E desta maneira?», «Lá está o senhor outra vez —, replicou o guarda, enquanto metia o pão com manteiga num potezinho de mel — nós não respondemos a perguntas dessas» ( 2 ). Este excerto da primeira cena de O Processo, célebre romance do escritor natural de Praga Franz Kafka, mostra‑nos uma sociedade governada por um Estado de Direito fictício no qual as autoridades podem privar os indivíduos da sua liberdade sem os informar das razões que justificam tal decisão. Ao longo da história, K. esforça‑se, em vão, por descobrir as razões da sua prisão (e da sua posterior condenação).

2.

Longe dos excessos inquisitórios ficcionados por Kafka, o legislador da União Europeia codificou no artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13/UE ( 3 ) o direito dos suspeitos ou acusados, detidos ou presos, serem informados das razões para a privação da sua liberdade. Com o presente reenvio prejudicial, o Sofiyski Rayonen sad (Tribunal de Comarca de Sófia, Bulgária) pede ao Tribunal de Justiça que interprete esta disposição e que forneça esclarecimentos quanto ao momento em que estas razões devem ser comunicadas e quanto ao conteúdo da comunicação.

Quadro jurídico

Direito da União

3.

No presente processo, são pertinentes os considerandos 10, 14 e 28 da Diretiva 2012/13, os seus artigos 1.o, 2.o, 3.o, 4.o e 6.o, bem como o artigo 6.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

Direito búlgaro

4.

O artigo 72.o da Zakon za ministerstvoto na vatreshnite raboti (Lei relativa ao Ministério da Administração Interna) (DV n.o 53, de 27 de junho de 2014), na versão aplicável ao litígio do processo principal, prevê:

«(1)   As autoridades policiais podem deter uma pessoa:

1.

relativamente à qual haja indícios da prática de infração;

[…]

(4)   A pessoa detida tem o direito de impugnar a legalidade da detenção perante o Rayonen sad [(Tribunal de Comarca)] competente em função da sede da autoridade. O tribunal decide imediatamente a impugnação, por decisão contra a qual pode ser interposto recurso de cassação, ao abrigo do Administrativnoprotsesualen kodeks [(Código de Processo Administrativo) (DV n.o 30, de 11 de abril de 2006)], para o Administrativen sad (Tribunal Administrativo, Bulgária) competente.

(5)   A pessoa em causa tem direito a defensor desde o momento da sua detenção, sendo que deve ser informada de que pode renunciar a este direito, das consequências dessa renúncia, bem como do direito ao silêncio, nos casos em que a detenção tem como fundamento o disposto no n.o 1, ponto 1.

[…]»

5.

Nos termos do artigo 73.o desta lei, a pessoa detida com fundamento no artigo 72.o, n.o 1, pontos 1 a 4, não pode ser sujeita a outras restrições para além da de livre circulação. Nestes casos, o período de detenção não pode exceder as 24 horas.

6.

O artigo 74.o da Lei relativa ao Ministério da Administração Interna dispõe:

«(1)   Para as pessoas referidas no artigo 72.o, n.o 1, será emitida uma ordem de detenção escrita (zapoved).

(2)   A ordem de detenção referida no n.o 1 contém:

1.

O nome, a função e o endereço do posto do agente de polícia emitente;

2.

Os fundamentos materiais e jurídicos da detenção;

3.

Elementos de identificação da pessoa detida;

4.

Data e hora da detenção;

5.

As restrições dos direitos a que a pessoa fica sujeita, nos termos do artigo 73.o;

6.

Indicação dos direitos:

(a)

de impugnação judicial da legalidade da detenção;

(b)

a defensor, desde o momento da detenção;

[…]

(3)   A pessoa detida preenche um formulário declarando que tomou conhecimento dos direitos que lhe assistem e que pretende, ou não, exercer os direitos que lhe são conferidos pelo n.o 2, ponto 6, alíneas b) a f). A ordem de detenção é assinada pelo agente de polícia e pela pessoa detida.

(4)   A recusa ou a impossibilidade de a pessoa detida assinar a ordem de detenção é confirmada pela assinatura de uma testemunha.

[…]

(6)   A pessoa detida recebe uma cópia da ordem de detenção, contra-assinatura».

7.

Nos termos do artigo 22.o da Zakon za administrativnite narushenia i nakazania (Lei relativa às Infrações e às Sanções Administrativas) (DV n.o 92, de 28 de novembro de 1968), para impedir e pôr fim à prática de infrações administrativas, bem como para impedir e eliminar as suas consequências adversas, podem ser adotadas medidas administrativas coercivas.

8.

O artigo 21.o, n.o 1, do Código de Processo Administrativo, na sua versão aplicável ao litígio no processo principal, tem a seguinte redação:

«Considera‑se ato administrativo individual a manifestação de vontade expressa ou concludente, ainda que de natureza omissiva, de uma autoridade administrativa ou de outra entidade ou organização de pessoas legalmente competente para a sua prática, no prosseguimento de fins públicos, ou de organizações que prestem serviços públicos, constitutiva de direitos e obrigações ou que afete diretamente direitos, liberdades ou interesses legítimos de cidadãos ou organizações individuais e concretas, podendo a referida manifestação de vontade consistir também na recusa da prática de um tal ato.»

9.

O artigo 145.o deste código prevê:

«(1)   A legalidade dos atos administrativos pode ser impugnada contenciosamente.

(2)   Pode ser impugnado(a):

1.

O ato administrativo individual originário e a decisão de recusa da prática de um tal ato;

[…]»

10.

O artigo 1.o do Ukaz n.o 904 za borba s drebnoto khuliganstvo (Despacho n.o 904 de Combate ao Hooliganismo Simples), de 28 de dezembro de 1963, na sua versão aplicável ao litígio no processo principal, dispõe:

«(1)   Aplicam‑se ao hooliganismo simples as seguintes sanções administrativas, desde que o autor da prática dos factos tenha cumprido os dezasseis anos de idade:

1.

Detenção até 15 dias em unidade do Ministério da Administração Interna;

2.

Coima entre 100 e 500 lev búlgaros (BGN) [cerca de 51 e 256 euros, respetivamente];

(2)   Constitui “hooliganismo simples”, na aceção do presente despacho, qualquer comportamento indevido que consista na exteriorização de impropérios, ofensas ou outras expressões desadequadas em local público, perante terceiros, na adoção de uma postura ofensiva ou de outro comportamento ofensivo para com outros cidadãos, as autoridades ou o público em geral, ou na participação em desacatos, rixas ou outras atividades semelhantes que perturbem a ordem e a paz públicas, mas que, por causa da sua menor perigosidade para o público em geral, não constituam o crime previsto no artigo 325.o do Código Penal.»

Factos na origem do litígio, processo principal e questões prejudiciais

11.

Por ordem de detenção de 2 de setembro de 2020, emitida por RK, agente de polícia do 02 RU SDVR (Sófia, Bulgária), foi ordenada a detenção de XN, pelo período máximo de 24 horas, com início em 2 de setembro de 2020, às 11 h 20, como medida administrativa coerciva por suspeita da prática de uma infração.

12.

Na ordem de detenção em causa, assinada pelo agente de polícia RK, são indicados os seguintes fundamentos a respeito da detenção de XN: «artigo 72.o, n.o 1, ponto 1, da [Lei relativa ao Ministério da Administração Interna]» e «perturbação da ordem pública». No verso da ordem de detenção é referido que XN foi restituído à liberdade em 3 de setembro de 2020, às 11 h 10, o que foi confirmado pelo mesmo através de assinatura. Imediatamente após ser detido, XN foi sujeito a revista, da qual foi lavrado auto, tendo‑lhe sido entregue uma declaração, para ser completada, que enunciava os seus direitos ao abrigo dos artigos 72.o, 73.o e 74.o da Lei relativa ao Ministério da Administração Interna.

13.

Em 3 de setembro de 2020, deu entrada no órgão jurisdicional de reenvio, o Sofiyski Rayonen sad (Tribunal de Comarca de Sófia), uma ação de impugnação da legalidade da ordem de detenção intentada por XN.

14.

No âmbito da instrução do processo, foram juntos aos autos relatórios das autoridades policiais de 2, 3 e 4 de setembro de 2020, nos quais se afirma que, em 2 de setembro de 2020, por volta das 11 h 20, enquanto participava numa ação de protesto na cidade de Sófia, junto ao edifício do parlamento nacional, XN tentou atravessar a barreira policial, batendo com as mãos e os pés nos escudos de proteção dos polícias e dirigindo‑lhes comentários cínicos, tornando assim necessária a sua detenção. Não existem provas de que os relatórios dos agentes de polícia de 2 e 3 de setembro de 2020 tenham sido dados a conhecer a XN quando da sua detenção.

15.

Na sua declaração escrita de 2 de setembro de 2020, XN alega ter estado presente nas ações de protesto e, por força da tensão crescente, ter sido empurrado pela multidão na direção da barreira policial, tendo posteriormente sido detido pelas autoridades do Ministério da Administração Interna, que o submeteram a violência física ilegal. XN nega ter perturbado a ordem pública.

16.

Foram juntos ao processo relatórios médicos de 2 de setembro de 2020, segundo os quais, na sequência de uma perícia médico‑legal, XN apresentava uma ferida aberta na pálpebra e na região orbital.

17.

Em 8 de setembro de 2020, por ordem de um procurador do Ministério Público da região de Sófia, um agente de polícia do 02 RU SDVR de Sófia elaborou um relatório a respeito de XN, no qual se constatava a prática de atos de hooliganismo simples, e que foi posteriormente submetido ao Sofiyski Rayonen sad (Tribunal de Comarca de Sófia) para apreciação, alegando que XN tinha praticado uma contraordenação administrativa ao abrigo do artigo 1.o, n.o 2, do Despacho n.o 904 de combate ao hooliganismo simples. Por Decisão de 8 de setembro de 2020, o Sofiyski Rayonen sad (Tribunal de Comarca de Sófia) declarou XN não culpado e absolveu‑o por não se ter logrado provar a prática da contraordenação administrativa imputada. Esta decisão judicial constitui caso julgado.

18.

O órgão jurisdicional de reenvio refere que, no processo principal, é chamado a examinar a legalidade da ordem de detenção emitida pelo agente de polícia que ordenou a detenção efetiva de XN, por um período máximo de 24 horas, com base numa suspeita de infração.

19.

Esclarece que a detenção de cidadãos em relação aos quais há indícios da prática de infrações constitui uma medida administrativa coerciva na aceção do artigo 22.o da Lei relativa às infrações e às sanções administrativas, tendo a natureza de um ato administrativo individual, cujo objetivo é evitar que a pessoa em causa fuja ou pratique uma infração.

20.

O órgão jurisdicional de reenvio realça que, nos termos do artigo 74.o, n.o 2, da Lei relativa ao Ministério da Administração Interna, a indicação dos fundamentos materiais e jurídicos da detenção constitui a principal exigência da ordem de detenção emitida por um agente de polícia. A este respeito, afirma que o Varhoven administrativen sad (Supremo Tribunal Administrativo, Bulgária) interpreta esta disposição de modo corretivo, ao considerar admissível que estas informações não figurem na ordem de detenção escrita, mas sim noutros documentos anexos (anteriores e posteriores), apesar de estes últimos não serem fornecidos à pessoa em causa no momento em que a sua liberdade de circulação é restringida. Ora, o órgão jurisdicional de reenvio considera que esta jurisprudência, que tem sido seguida pelas instâncias nacionais inferiores, não é compatível com o artigo 5.o, n.o 1, alínea c), da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), conforme é interpretado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (a seguir «TEDH»), nem com os artigos 6.o, n.o 2, e 8.o, n.o 1, da Diretiva 2012/13.

21.

Com efeito, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, há que ter em conta que o direito de acesso aos elementos do processo dos indivíduos na qualidade de «suspeitos», previsto do artigo 7.o da Diretiva 2012/13, não foi transposto para o direito búlgaro e, portanto, não lhes é garantido. Este acesso só é garantido aos «acusados», ao abrigo do Código de Processo Penal. Assim, na falta de informação concreta sobre os fundamentos materiais e jurídicos da detenção, e uma vez que o direito de acesso aos elementos do processo, no qual constam estes fundamentos, não lhe é garantido, a pessoa suspeita de ter praticado uma infração fica privada da possibilidade de organizar adequada e efetivamente o seu direito de defesa e de impugnar judicialmente a legalidade do ato que ordenou a sua detenção.

22.

O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, além disso, sobre a questão de saber que elementos devem constar das informações relativas ao ato criminoso de que uma pessoa detida é suspeita, na aceção do artigo 6.o da Diretiva 2012/13.

23.

Nestas condições, o Sofiyski Rayonen sad (Tribunal de Comarca de Sófia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as questões prejudiciais seguintes:

«1)

Deve o artigo 8.o, n.o 1, em conjugação com o artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva [2012/13], ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que, com base em jurisprudência constante do Estado‑Membro em causa, é aplicada corretivamente de modo a permitir que a informação acerca dos motivos da detenção de pessoa suspeita, incluindo a infração cuja prática é imputada à pessoa detida, não figure na ordem de detenção escrita, mas sim noutros documentos anexos (anteriores ou posteriores), que não são imediatamente entregues e dos quais a pessoa em causa pode tomar conhecimento posteriormente, no quadro de uma eventual impugnação judicial da legalidade da detenção?

2)

Deve o artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva [2012/13] ser interpretado no sentido de que a informação acerca da atuação punível da qual a pessoa detida é suspeita deve incluir indicações relativas ao momento, ao local e ao modo como os factos ilícitos foram praticados, a participação concreta da pessoa nesses factos e a respetiva subsunção nos tipos de ilícito, a fim de permitir o exercício efetivo dos direitos de defesa?»

Análise

Quanto à aplicabilidade da Diretiva 2012/13

24.

A título preliminar, há que tratar da questão da aplicabilidade da Diretiva 2012/13 no caso em apreço.

25.

Com efeito, resulta da decisão de reenvio que, no direito búlgaro, a detenção com fundamento no artigo 72.o, n.o 1, ponto 1, da Lei relativa ao Ministério da Administração Interna, constitui uma medida administrativa coerciva com a natureza de ato administrativo individual, o que poderia levar a pensar que o processo principal deve ser qualificado de administrativo, não sendo, como tal, abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2012/13.

26.

Segundo o artigo 1.o desta diretiva, a mesma estabelece regras relativas ao direito à informação dos suspeitos ou acusados sobre os seus direitos em processo penal e sobre a acusação contra eles formulada. Não existindo dúvidas de que, quando foi detido e preso, XN foi necessariamente informado de que as autoridades policiais o consideravam suspeito ( 4 ), concentrar‑me‑ei brevemente sobre a questão de saber se o processo que levou até ao presente pedido de decisão prejudicial é um «processo penal» na aceção do referido artigo, de modo que a Diretiva 2012/13 deva ser aplicada no caso vertente.

27.

A este respeito, observo que a detenção concretizada em conformidade com a legislação búlgara visa, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, cidadãos em relação aos quais existem indícios da prática de uma infração penal. Enquanto a responsabilidade da pessoa em causa é examinada separadamente no âmbito de um processo penal, a detenção só pode ser ordenada havendo informações que indiciem a prática de uma infração penal e que fundamentem a suspeita de que, presumivelmente, essa pessoa participou na referida infração.

28.

Além disso, importa constatar que, segundo o considerando 14 da Diretiva 2012/13, esta alicerça‑se nos direitos estabelecidos na Carta, nomeadamente nos artigos 6.o, 47.o e 48.o, que por sua vez assentam nos artigos 5.o e 6.o da CEDH, conforme interpretados pelo TEDH, e que o termo «acusação» é utilizado nesta diretiva para descrever o mesmo conceito que o termo «acusação» utilizado no artigo 6.o, n.o 1, da CEDH ( 5 ).

29.

Conforme sublinha a Comissão Europeia nas suas observações escritas, o Tribunal de Justiça já confirmou, no Acórdão IS (Ilegalidade do despacho de reenvio) ( 6 ), que os direitos conferidos pela Diretiva 2012/13 se aplicam ao suspeito preso ou detido, recordando a jurisprudência do TEDH relativa à aplicabilidade das garantias que decorrem da parte penal do artigo 6.o da CEDH, segundo a qual existe «acusação em matéria penal» quando uma pessoa é oficialmente acusada pelas autoridades competentes ou quando os atos por estas praticados devido às suspeitas que lhe são imputadas têm repercussões significativas na sua situação. Assim, pode considerar‑se que uma pessoa, como XN no caso vertente, que tenha sido detida (ou presa) pelo facto de ser suspeita da prática de uma infração penal, pode ser considerada «acusada de uma infração penal» e invocar a proteção do artigo 6.o da CEDH ( 7 ).

30.

Daí decorre que a Diretiva 2012/13 é aplicável ao processo principal.

Quanto ao mérito

Quanto à primeira questão prejudicial

31.

Com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2012/13, em conjugação com o seu artigo 6.o, n.o 2, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, aplicada em conformidade com a jurisprudência constante do Estado‑Membro em causa, segundo a qual os motivos da detenção de um suspeito ou acusado não têm necessariamente de figurar na ordem de detenção escrita, podendo igualmente figurar noutros documentos dos quais o interessado só tomará conhecimento no quadro de uma eventual impugnação judicial da legalidade da referida ordem.

32.

Antes de iniciar a minha análise, há que recordar que o artigo 8.o, n.o 1, desta diretiva exige que, sempre que forem prestadas informações aos suspeitos ou acusados nos termos dos artigos 3.o a 6.o da referida diretiva, tal seja consignado em registo, lavrado de acordo com o procedimento de registo previsto no direito do Estado‑Membro em causa. Ora, não me parece que decorra dos autos que a interpretação desta disposição tenha pertinência para responder à presente questão. Assim, no acórdão que venha a proferir, o Tribunal de Justiça deverá, no meu entender, reformulá‑la de modo a abranger apenas o artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13.

33.

A Diretiva 2012/13 visa, através da adoção de regras mínimas comuns sobre o direito à informação nos processos penais, reforçar a confiança mútua entre os Estados‑Membros nos respetivos sistemas de justiça penal ( 8 ). O artigo 1.o desta diretiva indica, como já se observou, que a mesma estabelece regras relativas ao direito à informação dos suspeitos ou acusados sobre os seus direitos em processo penal e sobre a acusação contra eles formulada.

34.

Como o Tribunal de Justiça já declarou ( 9 ), resulta da leitura conjugada dos artigos 3.o e 6.o da Diretiva 2012/13 que o direito referido no artigo 1.o desta diretiva diz respeito a, pelo menos, dois direitos diferentes. Por um lado, os suspeitos ou os arguidos devem, em conformidade com o artigo 3.o desta diretiva, ser informados sobre, pelo menos, certos direitos processuais, a saber, o direito de assistência de um advogado, o direito a aconselhamento jurídico gratuito e as condições para a sua obtenção, o direito de ser informado da acusação, o direito à interpretação e tradução, bem como o direito ao silêncio. Quando os suspeitos ou os acusados são detidos ou presos, o artigo 4.o da Diretiva 2012/13 impõe que os Estados‑Membros lhes forneçam uma Carta de Direitos por escrito, que deve conter também a informação relativa a certos direitos processuais suplementares. Por outro lado, esta diretiva define, no seu artigo 6.o, regras relativas ao direito de ser informado da acusação.

35.

O artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13, que é objeto da presente questão prejudicial, impõe que os suspeitos ou acusados que são detidos ou presos sejam informados das razões para a sua detenção ou prisão, incluindo do ato criminoso de que são suspeitos ou acusados de ter praticado.

36.

A finalidade específica desta disposição é permitir às pessoas em causa impugnar a legalidade da privação da sua liberdade, protegendo‑se assim contra uma detenção ou prisão arbitrária. Isto resulta da jurisprudência do TEDH.

37.

Recordo, a este respeito, que, uma vez que o artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13 regula uma condição da legalidade da privação da liberdade, a sua interpretação deve necessariamente basear‑se no artigo 6.o da Carta, relativo ao direito à liberdade e à segurança. Os direitos nela consagrados, segundo a regra de equiparação prevista no artigo 52.o, n.o 3, da Carta, gozam do mesmo sentido e alcance que os direitos conferidos pelo artigo 5.o da CEDH. Ora, o TEDH tem declarado reiteradamente que o dever de informação que incumbe às autoridades competentes por força do artigo 5.o, n.o 2, da CEDH ( 10 ) visa garantir às pessoas presas ou detidas o direito de impugnarem judicialmente a legalidade da privação da sua liberdade ao abrigo do n.o 4 desta última disposição ( 11 ).

38.

Quanto ao momento em que deve ser feita a comunicação das informações relativas às razões da detenção ou prisão, o texto do artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13 não contém nenhuma indicação clara. Consequentemente, há que verificar se tal indicação pode ser deduzida de uma leitura sistemática desta disposição, atendendo ao modo como a mesma se articula com os outros elementos do regime jurídico estabelecido por este artigo 6.o

39.

O artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2012/13 prevê que os suspeitos ou acusados recebem informações, que são prestadas prontamente e com os detalhes necessários, sobre o ato criminoso de que sejam suspeitos ou acusados de ter cometido, a fim de garantir a equidade do processo e de permitir o exercício dos direitos de defesa. O considerando 28 da diretiva precisa que estas informações deverão ser prestadas aos suspeitos ou acusados pelo menos antes da sua primeira entrevista oficial pela polícia. O n.o 3 do referido artigo prevê que, pelo menos aquando da apresentação da fundamentação da acusação perante um tribunal, são prestadas informações detalhadas sobre a acusação, incluindo a natureza e qualificação jurídica da infração penal, bem como a natureza da participação do acusado, ao passo que o seu n.o 4 dispõe que os suspeitos ou acusados são prontamente informados das alterações nas informações prestadas caso tal seja necessário para salvaguardar a equidade do processo.

40.

Tendo em conta o objeto da questão do órgão jurisdicional de reenvio, irei examinar a relação entre os dois primeiros números do artigo 6.o da Diretiva 2012/13.

41.

O n.o 1 desta disposição prevê um dever geral de informação sobre o ato criminoso, que deve ser prontamente cumprido e com os detalhes necessários, a fim de garantir a equidade do processo e de permitir o exercício efetivo dos direitos de defesa. O seu n.o 2 estabelece um dever suplementar que impende sobre as autoridades competentes em caso de detenção ou de prisão, que não se limita à comunicação das informações sobre o ato criminoso, mas que abrange em geral as razões que justificam a detenção ou a prisão ( 12 ). Assim, não surpreende que este último número não refira o momento em que devem ser comunicadas ao suspeito ou acusado as informações que aí figuram, dado que o critério temporal previsto no n.o 1 também se aplica em caso de detenção ou prisão.

42.

Uma leitura sistemática parece, pois, indicar apenas que as autoridades competentes estão obrigadas a comunicar à pessoa em causa as razões da sua detenção ou prisão com a maior celeridade possível para lhe permitir, caso considere útil, impugnar a legalidade da privação da sua liberdade, de modo que lhe seja permitido o exercício efetivo dos seus direitos de defesa e que a equidade do processo seja garantida.

43.

É alcançada a mesma interpretação com base na jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, que exprime a necessidade de conferir ao artigo 6.o da Diretiva 2012/13 um efeito útil, ao precisar que, embora esta diretiva não regule as modalidades segundo as quais a informação sobre a acusação deve ser comunicada aos suspeitos ou acusados, estas modalidades não podem pôr em causa o objetivo visado nomeadamente neste artigo 6.o, que consiste em permitir aos suspeitos ou aos acusados de uma infração penal preparar a sua defesa e em garantir a equidade do processo ( 13 ).

44.

Com efeito, poder‑se‑ia sustentar que só uma comunicação célere destas informações, quando do momento da privação da liberdade ou pouco depois do seu início pode permitir à pessoa detida ou presa avaliar as suas hipóteses de impugnar eficazmente a legalidade da sua prisão e, consoante o caso, impugnar a legalidade da mesma.

45.

Pelo contrário, este objetivo não poderia ser atingido se as informações relativas às razões da detenção ou da prisão só fossem fornecidas depois de o interessado ter procedido a essa impugnação. Com efeito, é forçoso reconhecer que, se fosse obrigada a impugnar a legalidade de um ato para poder tomar conhecimento das respetivas razões, a pessoa detida ou presa não teria tido tempo para avaliar as hipóteses de sucesso da sua impugnação, nem eventualmente de a preparar eficazmente. Não basta, por isso, que as razões em causa possam ser deduzidas dos autos do processo judicial ( 14 ).

46.

A interpretação feita até ao momento parece‑me sustentada por jurisprudência consolidada do TEDH, inaugurada pelo Acórdão van der Leer c. Países Baixos ( 15 ), segundo a qual qualquer pessoa que tenha o direito de interpor recurso para obter uma decisão rápida sobre a legalidade da sua detenção não pode fazê‑lo eficazmente se não lhe forem comunicadas no prazo mais curto possível, e com detalhe suficiente, as razões pelas quais foi privada da sua liberdade ( 16 ).

47.

Consciente de que o momento preciso que corresponde a tal «exigência de celeridade» não pode ser determinado em abstrato, o TEDH afirmou que a questão de saber se as referidas razões foram comunicadas com celeridade suficiente à pessoa detida ou presa depende das particularidades do caso concreto.

48.

Todavia, resulta dessa mesma jurisprudência que os agentes de polícia que procedem à detenção (ou prisão) não são obrigados a fornecer todas as informações no momento exato da detenção ( 17 ). As restrições temporais impostas pela exigência de celeridade foram consideradas cumpridas quando a pessoa detida (ou presa) tenha sido informada das razões da privação da sua liberdade no prazo de umas horas ( 18 ), ao passo que, até ao momento, tem‑se invariavelmente considerado que esta exigência é violada quando a pessoa em causa recebe essa informação num prazo superior a cerca de um dia ( 19 ).

49.

Atendendo a estas considerações, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à primeira questão prejudicial que o artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13, em conjugação com o seu artigo 6.o, n.o 1, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, aplicada em conformidade com a jurisprudência constante do Estado‑Membro em causa, segundo a qual os motivos da detenção de um suspeito ou de um acusado não têm necessariamente de figurar na ordem de detenção escrita, podendo igualmente figurar noutros documentos dos quais o interessado só tomará conhecimento no quadro de uma eventual impugnação judicial da legalidade da referida ordem. Com efeito, estes motivos devem ser‑lhe comunicados com a maior celeridade possível para lhe permitir, caso considere útil, proceder a tal impugnação e, em todo o caso, antes da primeira entrevista oficial pela polícia.

Quanto à segunda questão prejudicial

50.

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13 deve ser interpretado no sentido de que as informações a comunicar a uma pessoa detida ou presa devem incluir indicações relativas ao momento, ao local e ao modo como os factos ilícitos foram praticados, à participação concreta da pessoa nesses factos e à respetiva subsunção nos tipos de ilícito, para que lhe seja assegurada a possibilidade de impugnar eficazmente a privação da sua liberdade e, assim, o exercício efetivo dos seus direitos de defesa.

51.

Por outras palavras, interroga‑se o Tribunal de Justiça sobre o conteúdo e o grau de detalhe das razões que, por força do artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13, devem ser comunicadas à pessoa detida ou presa.

52.

Como expliquei acima, esta disposição prevê um dever de informação suplementar em relação ao dever geral constante do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2012/13, devendo por isso ser lida em conjugação com este último. No entanto, a redação destas disposições não permite responder à presente questão prejudicial. Com efeito, só se pode deduzir dos seus termos que, em primeiro lugar, as referidas razões devem ser comunicadas com os detalhes necessários e que, em segundo lugar, devem incluir, pelo menos, a indicação do ato criminoso que a pessoa em causa é suspeita de ter cometido.

53.

Por conseguinte, é necessário atender ao considerando 28 da Diretiva 2012/13, que me parece particularmente esclarecedor quanto ao alcance dos deveres de informar os suspeitos e os acusados da acusação contra eles formulada e que consta dos primeiros três números do artigo 6.o da mesma.

54.

Dado que, nos números seguintes, me irei basear amplamente neste considerando, incumbe‑me, antes de mais, recordar que, embora os considerandos geralmente não tenham valor jurídico vinculativo ( 20 ), o Tribunal de Justiça inspira‑se frequentemente neles para interpretar as disposições de atos jurídicos da União.

55.

O referido considerando alude, nomeadamente, à necessidade de fornecer, com detalhes suficientes, uma descrição dos factos constitutivos do ato criminoso de que as pessoas sejam suspeitas ou acusadas de terem cometido, incluindo, caso se conheça, a hora e o local, e a eventual qualificação jurídica da alegada infração, tendo em conta a fase do processo penal em que essa descrição for dada, a fim de salvaguardar a equidade do processo e permitir o exercício efetivo dos direitos de defesa.

56.

No meu entender, são‑nos assim facultados alguns elementos relativos ao alcance do dever de informação que incumbe às autoridades competentes por força do artigo 6.o da Diretiva 2012/13.

57.

Em primeiro lugar, as informações que devem ser comunicadas incluem uma descrição dos factos constitutivos da alegada infração penal e a eventual qualificação jurídica desta infração, independentemente da fase do processo em que essa comunicação é feita.

58.

A respeito dos casos de detenção ou de prisão, há que reconhecer que, em virtude da multiplicidade de situações que podem justificar tais medidas de privação da liberdade, qualquer esforço para enumerar exaustivamente os elementos atinentes à «descrição dos factos» estaria, evidentemente, condenado ao fracasso. No entanto, parece‑me razoável considerar que tal descrição não deve omitir, além da hora e do local conhecidos dos factos, a natureza da participação da pessoa em causa na referida infração ( 21 ). Além disso, a referência desse considerando à eventual qualificação jurídica ( 22 ) deve ser interpretada no sentido de que também é necessário que a pessoa detida ou presa seja informada da qualificação jurídica provisoriamente considerada da infração penal que é suspeita de ter cometido.

59.

Na falta de uma comunicação com esse conteúdo, não poderia, de resto, ser assegurado o efeito útil do artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13, conjugado com o n.o 1 deste artigo. Com efeito, só a comunicação das razões factuais e jurídicas da detenção ou prisão, assim caracterizadas, parecem permitir à pessoa em causa e/ou ao seu advogado compreenderem a razão pela qual a pessoa é privada da sua liberdade e, assim, exercerem, sendo caso disso, de modo efetivo, o seu direito de impugnar a legalidade da detenção ou da prisão, e, ao fazê‑lo, exercerem os seus direitos de defesa.

60.

Em segundo lugar, o grau de detalhe das informações em causa varia em função fase do processo. A este respeito, o considerando 28 da Diretiva 2012/13 exprime, de facto, a exigência de uma ponderação entre os imperativos em presença, isto é, por um lado, a equidade do processo e o respeito dos direitos de defesa, e, por outro, as necessidades relativas ao processo. Assim, deve entender‑se o artigo 6.o da Diretiva 2012/13 no sentido de que estabelece uma gradação do dever de informação, reforçando o grau de detalhe a que a autoridade competente está sujeita à medida que o processo se aproxima da fase de julgamento. O n.o 1 deste artigo exige a prestação de informações sobre o ato criminoso, que abrange também, em caso de detenção ou de prisão, o conjunto das razões subjacentes nos termos do seu n.o 2, ao passo que o n.o 3 do referido artigo exige uma informação detalhada na fase de julgamento.

61.

Resulta também deste considerando 28 que a comunicação das informações acima mencionadas não deve prejudicar as investigações em curso, o que implica uma avaliação prévia da adequação do grau de detalhe das referidas informações. Com efeito, não se exclui que a autoridade competente possua informações que não podem ser reveladas à pessoa detida ou presa sob pena de prejudicar o avanço das investigações. Essa autoridade deve, assim, encontrar um justo equilíbrio para evitar a ocorrência desse prejuízo, garantindo em simultâneo à pessoa em causa a comunicação de informações suficientes que lhe permitam compreender as razões da privação da sua liberdade e impugnar eficazmente a respetiva legalidade ( 23 ).

62.

Daí se conclui, por um lado, que as informações exigidas pelo artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13, conjugado com o n.o 1 deste artigo, parecem não ter o caráter preciso e exaustivo das informações exigidas pelo seu n.o 3, e, por outro, que se referem aos mesmos elementos que são enumerados neste último número.

63.

A interpretação que acabo de expor parece‑me plenamente corroborada pela jurisprudência relativa ao artigo 5.o, n.o 2, da CEDH.

64.

Embora decorra dessa jurisprudência que a questão de saber se uma pessoa detida ou presa recebeu informações suficientes para exercer o seu direito de impugnar a legalidade da sua privação de liberdade deve ser apreciada em função das especificidades do caso concreto, o TEDH enunciou, contudo, alguns princípios orientadores dessa apreciação ( 24 ).

65.

Em primeiro lugar, a indicação do fundamento jurídico da privação da liberdade não constitui, por si só, uma informação suficiente para efeitos do direito de ser informado das razões da detenção ou da prisão. Por exemplo, no seu Acórdão Murray c. Reino Unido, o TEDH concluiu pela existência de uma violação do artigo 5.o, n.o 2, da CEDH pelo facto de o agente de polícia que deteve Murray se ter limitado a comunicar‑lhe a disposição da lei penal com base na qual procedeu à sua detenção ( 25 ). Do mesmo modo, no seu Acórdão Fox, Campbell e Hartley c. Reino Unido, o TEDH considerou que a informação fornecida inicialmente a estes requerentes pela polícia, segundo a qual tinham sido detidos com fundamento numa disposição específica da lei penal por serem suspeitos de terrorismo ( 26 ), não era conforme com o referido artigo.

66.

Em segundo lugar, é necessário indicar à pessoa detida ou presa, numa linguagem que lhe seja simples e acessível, as razões jurídicas e factuais da privação da sua liberdade, para que possa impugnar judicialmente a respetiva legalidade ( 27 ). Estas razões devem incluir, além da qualificação jurídica provisoriamente considerada da infração penal imputada, a natureza da participação da pessoa detida ou presa nessa infração. Com efeito, há que recordar, ainda a respeito do Acórdão Fox, Campbell e Hartley c. Reino Unido, que estes requerentes tinham sido informados, num segundo momento, da sua alegada participação em atos criminosos específicos e da sua pretensa filiação em organizações proibidas, o que, conjugado com as informações comunicadas anteriormente satisfaz, segundo o TEDH, as exigências decorrentes do artigo 5.o, n.o 2, da CEDH ( 28 ). O referido tribunal declarou igualmente a inexistência de violação dessa disposição no Acórdão Gasiņš c. Letónia, na medida em que a polícia tinha explicado ao requerente que era suspeito da prática do homicídio de J.O., em 20 de maio de 2000, e que o mesmo era punível pelo artigo 116.o do Código Penal letão ( 29 ).

67.

Em terceiro lugar, as autoridades competentes não são obrigadas a comunicar ao interessado, no momento da sua prisão (ou da sua detenção), uma enumeração completa de todos os pontos da acusação que lhe são imputados ( 30 ), uma vez que este grau de detalhe da informação só é exigido no momento em que são comunicadas, ao acusado, as acusações que lhe são imputadas ( 31 ).

68.

É à luz das considerações expostas que o órgão jurisdicional de reenvio deve interpretar o artigo 74.o, n.o 2, da Lei relativa ao Ministério da Administração Interna, segundo o qual a ordem de detenção emitida ao abrigo do artigo 72.o, n.o 1, ponto 1, da mesma lei deve conter uma série de informações, entre as quais «os fundamentos materiais e jurídicos da detenção».

69.

Por conseguinte, sugiro ao Tribunal de Justiça que responda à segunda questão prejudicial que o artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13, em conjugação com o artigo 6.o, n.o 1, desta diretiva, deve ser interpretado no sentido de que a pessoa detida ou presa deve receber todas as informações necessárias, sem prejuízo das investigações em curso, que lhe permitam impugnar eficazmente a privação da sua liberdade e, assim, exercer efetivamente os seus direitos de defesa. Estas informações devem conter, a título das razões da detenção ou da prisão, uma descrição dos factos, incluindo, caso se conheça, a hora e o local, bem como a natureza da participação dessa pessoa na infração que é suspeita de ter cometido, e a qualificação jurídica provisoriamente considerada pela autoridade competente.

Conclusão

70.

À luz de todas as considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Sofiyski Rayonen sad (Tribunal de Comarca de Sófia) do seguinte modo:

1)

O artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal, em conjugação com o artigo 6.o, n.o 1, desta diretiva,

deve ser interpretado no sentido de que:

se opõe a uma legislação nacional, aplicada em conformidade com a jurisprudência constante do Estado‑Membro em causa, segundo a qual os motivos da detenção de um suspeito ou de um acusado não têm necessariamente de figurar na ordem de detenção escrita, podendo igualmente figurar noutros documentos dos quais o interessado só tomará conhecimento no quadro de uma eventual impugnação judicial da legalidade da referida ordem. Com efeito, estes motivos devem ser‑lhe comunicados com a maior celeridade possível para lhe permitir, caso considere útil, proceder a tal impugnação e, em todo o caso, antes da primeira entrevista oficial pela polícia.

2)

O artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13, em conjugação com o artigo 6.o, n.o 1, desta diretiva,

deve ser interpretado no sentido de que:

a pessoa detida ou presa deve receber todas as informações necessárias, sem prejuízo das investigações em curso, que lhe permitam impugnar eficazmente a privação da sua liberdade e, assim, exercer efetivamente os seus direitos de defesa. Estas informações devem conter, a título das razões da detenção ou da prisão, uma descrição dos factos, incluindo, caso se conheça, a hora e o local, bem como a natureza da participação dessa pessoa na infração que é suspeita de ter cometido, e a qualificação jurídica provisoriamente considerada pela autoridade competente.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) Kafka, F., O Processo, tradução de Gervásio Álvaro, Coleção Biblioteca Visão, Abril/Controljornal Editora, Lisboa, 2000, p. 7.

( 3 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal (JO 2012, L 142, p. 1).

( 4 ) Deve notar‑se que o facto, mencionado pelo órgão jurisdicional de reenvio, de o conceito de «suspeito» não existir no direito búlgaro não suscita dúvidas a este respeito, uma vez que se trata seguramente de um conceito autónomo do direito da União, que, por definição, não depende de qualificações nacionais.

( 5 ) Nos termos do artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, da CEDH: «[q]ualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela».

( 6 ) Acórdão de 23 de novembro de 2021 (C‑564/19, EU:C:2021:949, n.o 121).

( 7 ) TEDH, 12 de maio de 2017, Simeonovi c. Bulgária (CE:ECHR:2017:0512JUD002198004, §§ 110‑111).

( 8 ) V. considerandos 10 e 14 desta diretiva.

( 9 ) V., nomeadamente, Acórdão de 13 de junho de 2019, Moro (C‑646/17, EU:C:2019:489, n.os 42 e 43).

( 10 ) O artigo 5.o, n.o 2, da CEDH tem a seguinte redação: «[q]ualquer pessoa presa deve ser informada, no mais breve prazo e em língua que compreenda, das razões da sua prisão e de qualquer acusação formulada contra ela».

( 11 ) Trata‑se de uma jurisprudência que remonta ao Acórdão do TEDH de 21 de fevereiro de 1990, van der Leer c. Países Baixos (CE:ECHR:1990:0221JUD001150985, § 28).

( 12 ) Esta interpretação parece‑me, aliás, corroborada pelos trabalhos preparatórios da Diretiva 2012/13, na medida em que tal dever de informação a respeito das pessoas detidas ou presas não constava da versão do artigo 6.o da proposta da Comissão que levou à adoção desta diretiva e só foi acrescentado ao texto desta disposição posteriormente pelo Parlamento. V. Proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao direito à informação nos processos penais, bem como o Relatório sobre a proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao direito de informação nos processos penais [COM(2010) 392 final — C7‑0189/2010 — 2010/0215(COD)].

( 13 ) V., nomeadamente, Acórdão de 23 de novembro de 2021, IS (Ilegalidade do despacho de reenvio) (C‑564/19, EU:C:2021:949, n.o 128 e jurisprudência referida).

( 14 ) O órgão jurisdicional de reenvio precisa, aliás, que, por não existir o conceito de «suspeito» no direito búlgaro, as pessoas detidas ou presas não têm acesso aos elementos do processo, conforme exige o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2012/13.

( 15 ) TEDH, 21 de fevereiro de 1990 (CE:ECHR:1990:0221JUD001150985).

( 16 ) TEDH, 12 de abril de 2005, Chamaïev e outros c. Geórgia e Rússia (CE:ECHR:2005:0412JUD003637802, § 413) e TEDH, 17 de setembro de 2020, Grubnyk c. Ucrânia (CE:ECHR:2020:0917JUD005844415, §§ 97 e 99).

( 17 ) TEDH, 30 de agosto de 1990, Fox, Campbell e Hartley c. Reino Unido (CE:ECHR:1990:0830JUD001224486, § 40); TEDH, 28 de outubro de 1994, Murray c. Reino Unido (CE:ECHR:1994:1028JUD001431088, § 72), e TEDH, 15 de dezembro de 2016, Khlaifia e o. c. Itália (CE:ECHR:2016:1215JUD001648312, § 115).

( 18 ) TEDH, 30 de agosto de 1990, Fox, Campbell e Hartley c. Reino Unido (CE:ECHR:1990:0830JUD001224486, § 42) (prazo de 7 horas), e TEDH, 28 de outubro de 1994, Murray c. Reino Unido (CE:ECHR:1994:1028JUD001431088, § 78) (prazo de uma hora e vinte minutos).

( 19 ) V., nomeadamente, TEDH, 12 de abril de 2005, Chamaïev e o. c. Geórgia e Rússia (CE:ECHR:2005:0412JUD003637802, § 416) (prazo de 4 dias); TEDH, 29 de janeiro de 2008, Saadi c. Reino Unido (CE:ECHR:2008:0129JUD001322903, § 84) (76 horas); TEDH, 2 de outubro de 2008, Rusu c. Áustria (CE:ECHR:2008:1002JUD003408202, § 43) (prazo de 10 dias); TEDH, 15 de dezembro de 2009, Leva c. Moldávia (CE:ECHR:2009:1215JUD001244405, § 62) (prazo superior a 3 dias), TEDH, de 12 de junho de 2012, Kortesis c. Grécia (CE:ECHR:2012:0612JUD006059310, § 62) (prazo de 29 horas).

( 20 ) V. Acórdão de 25 de novembro de 2020, Istituto nazionale della previdenza sociale (Prestações familiares a favor de residentes de longa duração) (C‑303/19, EU:C:2020:958, n.o 26 e jurisprudência referida).

( 21 ) Salvo no caso de não se poder deduzir essa informação do contexto factual. V., a este respeito, TEDH, 17 de setembro de 2020, Grubnyk c. Ucrânia (CE:ECHR:2020:0917JUD005844415, § 98).

( 22 ) V., a este respeito, as versões espanhola («posible»), inglesa («possible») e italiana («possibile»), bem como a estónia («võimalik», que corresponde ao francês «éventuelle»).

( 23 ) Cumpre‑me recordar que, tanto quanto é do meu conhecimento, o TEDH apenas se pronunciou até agora sobre a ponderação entre o direito de uma pessoa detida de aceder ao seu processo de inquérito e a salvaguarda de um objetivo de ordem pública importante, como a segurança nacional, a necessidade de manter secretos certos métodos policiais ou a proteção de direitos fundamentais de terceiros. V., nomeadamente, TEDH, Acórdão de 19 de fevereiro de 2009, A. e o. c. Reino Unido (CE:ECHR:2009:0219JUD000345505).

( 24 ) Deve observar‑se que a jurisprudência relativa ao artigo 5.o, n.o 1, alínea c), da CEDH, citada pelo órgão jurisdicional de reenvio e pela Comissão, tem uma relevância quando muito limitada para determinar que informações devem ser fornecidas à pessoa detida ou presa. No seu Acórdão de 24 de junho de 2014, Petkov e Profirov c. Bulgária (CE:ECHR:2014:0624JUD005002708, §§ 46 e 47), o TEDH declarou que este artigo «exige que a detenção de uma pessoa seja feita com base em “razões plausíveis” que permitam suspeitar que praticou uma infração. Tais suspeitas não podem ser gerais e abstratas […], o que significa que devem existir factos ou informações suscetíveis de convencer um observador objetivo de que a pessoa em causa pode ter praticado uma dada infração». Parece evidente que, nesse acórdão, o TEDH se pronunciou apenas sobre as informações que a autoridade competente é obrigada a prestar para deter legalmente uma pessoa. Embora se possa inferir que os elementos comunicados à pessoa detida ou presa devem ser concretos, e não gerais ou abstratos, considero que tal constatação não acrescenta nada às considerações expostas nos números seguintes das presentes conclusões.

( 25 ) TEDH, 28 de outubro de 1994 (CE:ECHR:1994:1028JUD001431088, § 76).

( 26 ) TEDH, 30 de agosto de 1990 (CE:ECHR:1990:0830JUD001224486, § 41). V., igualmente, TEDH, 12 de junho de 2012, Kortesis c. Grécia (CE:ECHR:2012:0612JUD006059310, §§ 61 e 62).

( 27 ) TEDH, 30 de agosto de 1990, Fox, Campbell e Hartley c. Reino Unido (CE:ECHR:1990:0830JUD001224486, § 40); TEDH, 28 de outubro de 1994, Murray c. Reino Unido (CE:ECHR:1994:1028JUD001431088, § 72); TEDH, 15 de dezembro de 2016, Khlaifia e o. c. Itália (CE:ECHR:2016:1215JUD001648312, § 115), e TEDH, 25 de janeiro de 2018, J.R. e o. c. Grécia (CE:ECHR:2018:0125JUD002269616, §§ 123 e 124).

( 28 ) TEDH, 30 de agosto de 1990 (CE:ECHR:1990:0830JUD001224486, § 41).

( 29 ) TEDH, 19 de abril de 2011 (CE:ECHR:2011:0419JUD006945801, § 54).

( 30 ) TEDH, de 19 abril de 2011, Gasiņš c. Letónia (CE:ECHR:2011:0419JUD006945801, § 53).

( 31 ) É o que resulta do artigo 6.o, n.o 3, alínea a), da CEDH, conforme interpretado pelo TEDH. V., nomeadamente, TEDH, 19 de dezembro de 1989, Brozicek c. Itália (CE:ECHR:1989:1219JUD001096484, § 42).

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