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Document 62018CJ0786

Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 11 de junho de 2020.
ratiopharm GmbH contra Novartis Consumer Health GmbH.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesgerichtshof.
Reenvio prejudicial — Proteção da saúde pública — Mercado interno — Medicamentos para uso humano — Diretiva 2001/83/CE — Publicidade — Artigo 96.o — Distribuição de amostras gratuitas de medicamentos sujeitos a receita apenas às pessoas habilitadas a receitar — Exclusão da distribuição em relação aos farmacêuticos — Inaplicabilidade à distribuição de amostras de medicamentos não sujeitos a receita — Consequências para os Estados‑Membros.
Processo C-786/18.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2020:459

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

11 de junho de 2020 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Proteção da saúde pública — Mercado interno — Medicamentos para uso humano — Diretiva 2001/83/CE — Publicidade — Artigo 96.o — Distribuição de amostras gratuitas de medicamentos sujeitos a receita apenas às pessoas habilitadas a receitar — Exclusão da distribuição em relação aos farmacêuticos — Inaplicabilidade à distribuição de amostras de medicamentos não sujeitos a receita — Consequências para os Estados‑Membros»

No processo C‑786/18,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal, Alemanha), por Decisão de 31 de outubro de 2018, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 14 de dezembro de 2018, no processo

ratiopharm GmbH

contra

Novartis Consumer Health GmbH,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: A. Prechal, presidente de secção, L. S. Rossi, J. Malenovský (relator), F. Biltgen e N. Wahl, juízes,

advogado‑geral: G. Pitruzzella,

secretário: M. Krausenböck, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 21 de novembro de 2019,

vistas as observações apresentadas:

em representação da ratiopharm GmbH, por I.‑M. Schulte‑Franzheim e M. Viefhues, Rechtsänwalte,

em representação da Novartis Consumer Health GmbH, por D. Bruhn, Rechtsanwalt,

em representação do Governo alemão, por J. Möller e R. Kanitz, na qualidade de agentes,

em representação do Governo helénico, por V. Karra, Z. Chatzipavlou e E. Tsaousi, na qualidade de agentes,

em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por M. Russo, avvocato dello Stato,

em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por M. Noll‑Ehlers e A. Sipos, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 30 de janeiro de 2020,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 96.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano (JO 2001, L 311, p. 67), conforme alterada pela Diretiva 2004/27/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004 (JO 2004, L 136, p. 34) (a seguir «Diretiva 2001/83»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a ratiopharm GmbH à Novartis Consumer Health GmbH (a seguir «Novartis») a respeito de um pedido da Novartis por meio do qual se requer que a ratiopharm seja proibida de distribuir aos farmacêuticos amostras gratuitas de medicamentos.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Os considerandos 2 a 4, 14, 45 a 47, 50 e 51 da Diretiva 2001/83 têm a seguinte redação:

«(2)

Toda a regulamentação em matéria de produção, de distribuição ou de utilização de medicamentos deve ter por objetivo essencial garantir a proteção da saúde pública.

(3)

Todavia, este objetivo deve ser atingido por meios que não possam travar o desenvolvimento da indústria farmacêutica e o comércio de medicamentos na Comunidade.

(4)

As disparidades entre certas disposições nacionais, e nomeadamente as disposições relativas aos medicamentos, com exceção das substâncias ou composições que são géneros alimentícios, alimentos destinados aos animais ou produtos de higiene, têm por efeito entravar o comércio de medicamentos na Comunidade e têm, devido a este facto, uma incidência direta sobre o funcionamento do mercado interno.

[…]

(14)

A presente diretiva constitui uma fase importante na realização do objetivo da livre circulação de medicamentos. Mas novas medidas poderão ser necessárias para esse fim, tendo em conta a experiência adquirida, nomeadamente no seio do dito Comité das Especialidades Farmacêuticas, com o objetivo de eliminar os obstáculos à livre circulação que ainda subsistem.

[…]

(45)

A publicidade junto do público em geral de medicamentos vendidos sem receita médica poderia afetar a saúde pública se fosse excessiva e irrefletida. Tal publicidade, aquando da sua autorização, deve portanto satisfazer determinados critérios essenciais, que importa definir.

(46)

Além disso, deve ser proibida a distribuição gratuita de amostras ao público para efeitos de promoção.

(47)

A publicidade de medicamentos junto de pessoas habilitadas para os receitar ou fornecer contribui para a informação dessas pessoas. Importa, todavia, submetê‑la a condições estritas e a um controlo efetivo, com base, nomeadamente, nos trabalhos efetuados no âmbito do Conselho da Europa.

[…]

(50)

As pessoas habilitadas a receitar medicamentos devem ser capazes de exercer essas funções com toda a objetividade, sem serem influenciadas por estímulos financeiros diretos ou indiretos.

(51)

Importa que possam ser fornecidas amostras gratuitas de medicamentos, observando determinadas condições restritivas, às pessoas habilitadas a receitar ou fornecer medicamentos, por forma a que se familiarizem com os novos medicamentos e adquiram experiência da sua utilização.»

4

O artigo 1.o da referida diretiva enuncia:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

2)

“Medicamento”:

a)

Toda a substância ou associação de substâncias apresentada como possuindo propriedades curativas ou preventivas relativas a doenças em seres humanos; ou

b)

Toda a substância ou associação de substâncias que possa ser utilizada ou administrada em seres humanos com vista a estabelecer um diagnóstico médico ou a restaurar, corrigir ou modificar funções fisiológicas ao exercer uma ação farmacológica, imunológica ou metabólica, ou a estabelecer um diagnóstico médico.

[…]

19)

“Receita médica”: Qualquer receita de medicamentos prescrita por um profissional habilitado para esse efeito.

[…]»

5

Ao abrigo do artigo 70.o, n.o 1, da mesma diretiva:

«Sempre que autorizarem a introdução de um dado medicamento no mercado, as autoridades competentes especificarão a classificação do medicamento em:

medicamento sujeito a receita médica,

medicamento não sujeito a receita médica.

Para o efeito, aplicarão os critérios enunciados no n.o 1 do artigo 71.o»

6

Segundo o artigo 71.o da Diretiva 2001/83:

«1.   Estão sujeitos a receita médica os medicamentos que:

possam constituir, direta ou indiretamente um risco, mesmo quando usados para o fim a que se destinam, se não forem utilizados sob vigilância médica,

ou

sejam com frequência utilizados em quantidade considerável para fins diferentes daquele a que se destinam, se daí puder resultar qualquer risco direto ou indireto para a saúde,

ou

contenham substâncias ou preparações à base dessas substâncias, cuja atividade e/ou reações adversas seja indispensável aprofundar,

ou

salvo exceção, sejam prescritos pelo médico para ser administrados por via parentérica.

2.   Na previsão da subcategoria de medicamentos para os quais é obrigatória uma receita médica especial, os Estados‑Membros devem ter em consideração os seguintes elementos:

o medicamento contém, em dose não dispensada de receita, uma substância classificada como estupefaciente ou psicotrópico, nos termos das convenções internacionais, como a Convenção das Nações Unidas de 1961 e 1971,

[…]»

7

Ao abrigo do artigo 72.o desta diretiva:

«Os medicamentos não sujeitos a receita médica são os que não correspondem aos critérios enunciados no artigo 71.o»

8

O título VIII da Diretiva 2001/83, sob a epígrafe «Publicidade», contém os artigos 86.o a 88.o desta.

9

O artigo 86.o, n.o 1, da referida diretiva tem a seguinte redação:

«Para efeitos do presente título, entende‑se por “publicidade dos medicamentos”: qualquer ação de informação, de prospeção ou de incentivo destinada a promover a prescrição, o fornecimento, a venda ou o consumo de medicamentos; abrange, em especial:

a publicidade dos medicamentos junto do público em geral,

a publicidade dos medicamentos junto das pessoas habilitadas a receitá‑los ou a fornecê‑los,

a visita de delegados de propaganda médica a pessoas habilitadas a receitar ou a fornecer medicamentos,

o fornecimento de amostras de medicamentos,

o incentivo à prescrição ou ao fornecimento de medicamentos, através da concessão, oferta ou promessa de benefícios pecuniários ou em espécie, exceto quando o seu valor intrínseco seja insignificante,

[…]»

10

Ao abrigo do artigo 88.o da mesma diretiva:

«1.   Os Estados‑Membros proíbem a publicidade junto do público em geral dos medicamentos que:

a)

Só possam ser obtidos mediante receita médica, nos termos do título VI,

b)

Contenham substâncias definidas como psicotrópicas ou estupefacientes por convenções internacionais, como as Convenções das Nações Unidas de 1961 e de 1971.

2.   Podem ser objeto de publicidade junto do público em geral os medicamentos que, dada a sua composição e finalidade, sejam previstos e concebidos para serem utilizados sem intervenção médica para efeitos de diagnóstico, prescrição ou vigilância do tratamento, e se necessário com o conselho do farmacêutico.

3.   Os Estados‑Membros podem proibir no seu território a publicidade junto do público em geral dos medicamentos que possam ser comparticipados.

[…]

6.   Os Estados‑Membros proíbem a distribuição direta de medicamentos ao público pela indústria, para efeitos de promoção.»

11

O título VIII‑A da Diretiva 2001/83, sob a epígrafe «Informação e publicidade», contém os artigos 88.o‑A a 100.o desta.

12

O artigo 89.o, n.o 1, da referida diretiva prevê:

«Sem prejuízo do disposto no artigo 88.o, toda a publicidade de um dado medicamento junto do público em geral deve:

a)

Ser concebida por forma a que o caráter publicitário da mensagem seja evidente e o produto seja claramente identificado como medicamento;

[…]»

13

O artigo 90.o da mesma diretiva dispõe:

«A publicidade de um dado medicamento junto do público em geral não pode incluir qualquer elemento que:

[…]»

14

O artigo 94.o, n.os 1 a 3, da Diretiva 2001/83 enuncia:

«1.   No âmbito da promoção de medicamentos junto das pessoas habilitadas para os receitar ou fornecer, é proibido conceder, oferecer ou prometer a essas pessoas quaisquer prémios, benefícios pecuniários ou benefícios em espécie, exceto quando se trate de objetos de valor insignificante e não estejam relacionados com a prática da medicina ou da farmacologia.

2.   Nas ações de promoção de vendas, o acolhimento deve sempre limitar‑se estritamente ao objetivo principal da ação e não pode ser alargado a pessoas que não sejam profissionais da saúde.

3.   As pessoas habilitadas a receitar ou fornecer medicamentos não podem solicitar nem aceitar qualquer dos incentivos proibidos por força do n.o 1 ou contrários ao n.o 2.»

15

O artigo 96.o desta diretiva prevê:

«1.   As amostras gratuitas apenas podem ser entregues a título excecional às pessoas habilitadas a receitar e nas seguintes condições:

a)

Um número limitado de amostras de cada medicamento por ano e por pessoa habilitada a receitar;

b)

Cada fornecimento de amostras deve ter por base um pedido escrito, datado e assinado, proveniente da pessoa habilitada a receitar;

c)

As entidades que fornecem as amostras devem criar um sistema adequado de controlo e de responsabilização;

d)

As amostras não devem ser maiores que a mais pequena das embalagens comercializadas;

e)

As amostras devem conter a menção “amostra médica gratuita ‑ venda proibida” ou qualquer outra indicação de significado análogo;

f)

As amostras devem ser acompanhadas de um exemplar do resumo das características do produto;

g)

Não pode ser fornecida qualquer amostra de medicamentos contendo psicotrópicos ou estupefacientes, nos termos das convenções internacionais, como a Convenção das Nações Unidas de 1961 e 1971.

2.   Os Estados‑Membros podem restringir ainda mais a distribuição de amostras de determinados medicamentos.»

Direito alemão

16

O § 47 da Arzneimittelgesetz (Lei sobre os Medicamentos), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «AMG»), sob a epígrafe «Circuito de distribuição», dispõe, nos seus n.os 3 e 4:

«3)   As empresas farmacêuticas estão autorizadas a distribuir ou a providenciar a distribuição de amostras de medicamentos (produtos acabados):

1.

A médicos, dentistas e veterinários,

2.

A outros profissionais da medicina ou da medicina dentária, com exceção dos medicamentos sujeitos a receita médica,

3.

A estabelecimentos de formação de profissionais de saúde.

As empresas farmacêuticas só podem distribuir ou providenciar a distribuição de amostras de um medicamento (produto acabado) aos estabelecimentos de formação de profissionais de saúde para fins de formação. As amostras não devem conter nenhuma substância ou preparação:

1.

na aceção do § 2 da Betäubungsmittelgesetz [(Lei sobre os Estupefacientes)] que consta do anexo II ou do anexo III da Lei sobre os Estupefacientes, ou

2.

que, em conformidade com o § 48, n.o 2, terceira frase, só possa ser receitada através de receita médica específica.

4)   As empresas farmacêuticas só estão autorizadas a distribuir ou a providenciar a distribuição às pessoas visadas no n.o 3, primeira frase, mediante pedido escrito ou efetuado por via eletrónica, amostras de um medicamento (produto acabado) do tamanho da mais pequena das embalagens comercializadas, à razão no máximo de duas amostras por ano por medicamento (produto acabado). As amostras devem ser acompanhadas do resumo das características do produto, sempre que este esteja previsto no § 11a. A amostra visa, especialmente, informar o médico sobre o objeto do medicamento. No que respeita aos destinatários das amostras, bem como à natureza, ao alcance e à data da distribuição das amostras, as provas devem ser fornecidas separadamente para cada destinatário e devem ser apresentadas a pedido da autoridade competente.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

17

A Novartis fabrica e comercializa o medicamento Voltaren Schmerzgel, que contém a substância ativa Diclofenac.

18

Por sua vez, a ratiopharm comercializa o medicamento Diclo‑ratiopharm‑Schmerzgel, que também contém a substância ativa Diclofenac, o qual só é fornecido em farmácias. Durante o ano de 2013, colaboradores da ratiopharm entregaram gratuitamente a farmacêuticos alemães embalagens deste medicamento destinadas à venda, num formato reduzido, e que continham a menção «para efeitos de demonstração».

19

A Novartis considerou que tal distribuição era contrária ao § 47, n.o 3, da AMG e que se assemelhava a uma concessão de brindes publicitários proibida pela legislação alemã.

20

Por conseguinte, a Novartis requereu ao órgão jurisdicional de primeira instância que ordenasse à ratiopharm que deixasse de distribuir gratuitamente amostras de medicamentos aos farmacêuticos. Este órgão jurisdicional julgou procedente o pedido apresentado pela Novartis.

21

O órgão jurisdicional junto do qual a ratiopharm interpôs recurso confirmou a decisão de primeira instância, baseando‑se no facto de o § 47, n.o 3, da AMG não mencionar os farmacêuticos de entre as pessoas às quais as amostras gratuitas de medicamentos podem ser distribuídas.

22

A ratiopharm interpôs recurso de Revision no Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal, Alemanha).

23

Este órgão jurisdicional entende que o litígio no processo principal suscita questões de interpretação do direito da União que são determinantes para a resolução do referido litígio. Com efeito, devendo o § 47, n.o 3, da AMG ser interpretado em conformidade com o artigo 96.o da Diretiva 2001/83, há que, em primeiro lugar, determinar se esta última disposição regula de forma exaustiva a distribuição de amostras gratuitas de medicamentos, excluindo assim os farmacêuticos da referida distribuição.

24

A este respeito, embora o considerando 51 da Diretiva 2001/83 se refira simultaneamente aos farmacêuticos e aos médicos, a redação do artigo 96.o desta diretiva não é unívoca consoante a versão linguística considerada e pode ser interpretada no sentido de que se limita a regulamentar a questão da distribuição das amostras gratuitas de medicamentos aos médicos sem tomar posição sobre a da distribuição destas amostras gratuitas aos farmacêuticos. Além disso, e uma vez que os médicos e os farmacêuticos têm necessidades semelhantes de serem informados gratuitamente dos novos medicamentos e de fazerem a demonstração da respetiva utilização aos seus pacientes ou clientes, o facto de tratar de modo diferente estas duas categorias profissionais não se justifica de forma objetiva e contraria a liberdade profissional e a liberdade de empresa.

25

Em segundo lugar, admitindo que o artigo 96.o, n.o 1, da Diretiva 2001/83 não proíbe, enquanto tal, a distribuição de amostras gratuitas de medicamentos aos farmacêuticos, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta‑se se o artigo 96.o, n.o 2, desta diretiva, que permite que os Estados‑Membros restrinjam ainda mais a distribuição de amostras de determinados medicamentos, habilita os referidos Estados‑Membros a adotar, sendo caso disso, uma regulamentação que preveja semelhante proibição. A este respeito, o referido órgão jurisdicional salienta, todavia, que a redação desta última disposição, uma vez que se refere a «determinados medicamentos» e não a determinados destinatários da distribuição em causa, bem como o considerando 51 da referida diretiva podem militar em favor de uma interpretação contrária.

26

Nestas condições, o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 96.o, n.o 1, da Diretiva [2001/83] ser interpretado no sentido de que as empresas farmacêuticas podem entregar gratuitamente também a farmacêuticos medicamentos [produtos] acabados, quando as respetivas embalagens contêm a menção “amostra para efeitos de demonstração”, esses medicamentos se destinam a serem experimentados pelos farmacêuticos, não há o risco de serem redistribuídos (em embalagens fechadas) a consumidores finais e se verificam as restantes condições de entrega previstas no artigo 96.o, n.o 1, alíneas a) a d), f) e g), dessa diretiva?

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão: o artigo 96.o, n.o [2], da Diretiva 2001/83 obsta a uma disposição nacional como o § 47, n.o 3, da [AMG], se esta for interpretada no sentido de que as empresas farmacêuticas não podem entregar gratuitamente a farmacêuticos medicamentos acabados, quando as embalagens contêm a menção “para efeitos de demonstração”, esses medicamentos se destinam a serem experimentados pelos farmacêuticos, não há o risco de serem redistribuídos (em embalagens fechadas) a consumidores finais e se verificam as restantes condições de entrega previstas no artigo 96.o, n.o 1, alíneas a) a d), f) e g), dessa diretiva [, bem como no § 47, n.o 4, da AMG]?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

27

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, em substância, saber se o artigo 96.o, n.o 1, da Diretiva 2001/83 deve ser interpretado no sentido de que permite que, em determinadas condições, as empresas farmacêuticas também distribuam gratuitamente amostras de medicamentos aos farmacêuticos.

28

Em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, para interpretar uma disposição de direito da União, há que ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (Acórdão de 18 de janeiro de 2017, NEW WAVE CZ, C‑427/15, EU:C:2017:18, n.o 19 e jurisprudência referida).

29

No que respeita à redação do artigo 96.o, n.o 1, da Diretiva 2001/83, importa salientar antes de mais que esta disposição, em quase todas as suas versões linguísticas, reserva o direito de receber amostras gratuitas de medicamentos às «pessoas habilitadas a receitar». Em contrapartida, os termos, em si mesmos, da referida disposição não permitem determinar se esta restrição diz respeito a todos os medicamentos definidos no artigo 1.o, ponto 2, da referida diretiva, ou unicamente àqueles que estão sujeitos a receita médica, na aceção do artigo 1.o, ponto 19, da mesma diretiva.

30

Nestas condições, e na medida, nomeadamente, em que, segundo jurisprudência constante, a formulação utilizada numa das versões linguísticas de uma disposição do direito da União não pode servir de base única à interpretação dessa disposição ou ter caráter prioritário em relação às outras versões linguísticas (Acórdão de 12 de setembro de 2019, A e o., C‑347/17, EU:C:2019:720, n.o 38 e jurisprudência referida), há que interpretar o artigo 96.o, n.o 1, da Diretiva 2001/83 de maneira uniforme, recorrendo igualmente aos outros critérios recordados no n.o 28 do presente acórdão.

31

No que se refere aos objetivos prosseguidos pela Diretiva 2001/83, que diz respeito, como resulta do seu título, aos «medicamentos para uso humano», resulta do seu considerando 2 que esta diretiva tem por objetivo essencial garantir a proteção da saúde pública (Acórdão de 5 de maio de 2011, Novo Nordisk, C‑249/09, EU:C:2011:272, n.o 37 e jurisprudência referida).

32

No entanto, há que recordar, por um lado, que a Diretiva 2001/83 também visa, como enunciam nomeadamente os seus considerandos 4 e 14, a livre circulação de medicamentos no mercado interno através da eliminação dos entraves ao comércio destes na União Europeia.

33

Por outro lado, o Tribunal de Justiça já declarou que esta diretiva procedeu a uma harmonização completa no domínio da publicidade aos medicamentos, enumerando expressamente os casos em que os Estados‑Membros estão autorizados a adotar disposições que se afastem das regras fixadas na referida diretiva (Acórdão de 8 de novembro de 2007, Gintec, C‑374/05, EU:C:2007:654, n.o 39).

34

No que se refere ao contexto em que o artigo 96.o, n.o 1, da Diretiva 2001/83 se inscreve, importa nomeadamente sublinhar que o artigo 70.o, n.o 1, desta diretiva prevê que, sempre que autorizarem a introdução de um dado medicamento no mercado, as autoridades competentes devem especificar se este se enquadra na categoria dos medicamentos sujeitos a receita médica ou na dos medicamentos não sujeitos a receita médica.

35

No que se refere aos medicamentos sujeitos a receita médica, os critérios que estes devem observar, conforme estão enumerados no artigo 71.o, n.o 1, da Diretiva 2001/83, traduzem a ideia de que estes medicamentos não podem ser utilizados sem vigilância médica devido aos riscos que o seu uso pode constituir ou às incertezas relacionadas com as respetivas reações.

36

Por sua vez, como especificado no artigo 72.o desta diretiva, os medicamentos não sujeitos a receita médica são aqueles que não têm de observar aos critérios enunciados no artigo 71.o, n.o 1, da referida diretiva, por a sua utilização não apresentar, em princípio, riscos análogos aos dos medicamentos sujeitos a receita médica.

37

Semelhante distinção entre os medicamentos sujeitos a receita médica e os medicamentos não sujeitos a receita implica que os primeiros devam necessariamente, como sublinha iterativamente a Diretiva 2001/83 nos seus considerandos e nas suas disposições, nomeadamente no seu artigo 1.o, ponto 19, ser prescritos por pessoas devidamente «habilitadas a receitar», isto é, por médicos que são formados para conhecer os riscos inerentes à respetiva utilização por um dado paciente.

38

Em contrapartida, uma vez que não estão legalmente autorizados a receitar medicamentos, os farmacêuticos não se enquadram na categoria das «pessoas habilitadas a receitar», na aceção da Diretiva 2001/83, mas na das «pessoas habilitadas a fornecer» medicamentos, na aceção desta diretiva.

39

Ora, a distinção assim efetuada entre os medicamentos sujeitos a receita e os medicamentos não sujeitos a receita também é pertinente no contexto das disposições dos títulos VIII e VIII‑A da Diretiva 2001/83 relativos, nomeadamente, às atividades publicitárias (v., neste sentido, Acórdão de 11 de dezembro de 2003, Deutscher Apothekerverband, C‑322/01, EU:C:2003:664, n.o 109).

40

A este respeito, resulta do artigo 88.o, n.os 1 e 2, bem como dos artigos 89.o e 90.o da Diretiva 2001/83, que constam do título VIII‑A desta última, lidos à luz do seu considerando 45, que a publicidade junto do público geral dos medicamentos não sujeitos a receita médica não é proibida mas permitida, desde que observadas as condições e as restrições previstas na referida diretiva.

41

Assim, resulta da estrutura da Diretiva 2001/83 que não se pode entender que as disposições pertinentes dos seus títulos VIII e VIII‑A, incluindo o artigo 96.o, n.o 1, desta diretiva, se referem a todos os medicamentos, independentemente da categoria a que pertencem.

42

Com efeito, este artigo 96.o, n.o 1, fixa as condições estritas às quais a entrega de amostras gratuitas está sujeita, condições que traduzem, no seu conjunto, o caráter potencialmente arriscado dos medicamentos a que esta disposição se refere, caráter que não é comum a todos os medicamentos.

43

Ora, tal risco potencial é, particularmente, inerente à utilização de medicamentos sujeitos a receita médica, como foi recordado no n.o 35 do presente acórdão. Por conseguinte, a distribuição de tais medicamentos sob a forma de amostras gratuitas deve respeitar as condições fixadas no artigo 96.o, n.o 1, da Diretiva 2001/83, condições que tornam nomeadamente possível um controlo consequente no que respeita tanto à natureza das amostras entregues como aos seus destinatários.

44

À luz de tal objetivo, e para afastar qualquer risco de desvio às regras relativas ao fornecimento dos medicamentos sujeitos a receita médica, esta disposição deve assim ser interpretada no sentido de que só as pessoas habilitadas a receitar estes medicamentos, na aceção da Diretiva 2001/83, têm o direito de receber amostras gratuitas desses medicamentos, o que tem por efeito excluir os farmacêuticos deste direito.

45

Além disso, esta interpretação do artigo 96.o, n.o 1, da Diretiva 2001/83 é corroborada pelo facto de que a categoria das «pessoas habilitadas a receitar» é a única categoria de pessoas a que as alíneas a) e b) desta disposição se referem expressamente.

46

Por último, no que respeita ao artigo 96.o, n.o 2, desta diretiva, este dispõe que os Estados‑Membros podem restringir «ainda mais» a distribuição de amostras de determinados medicamentos. Decorre da utilização dos termos «ainda mais» que esta disposição deve ser lida em conjugação com o artigo 96.o, n.o 1, da referida diretiva e tem o mesmo âmbito de aplicação que este último. Por conseguinte, esta disposição só tem por objeto os medicamentos sujeitos a receita.

47

A interpretação do artigo 96.o da Diretiva 2001/83 feita nos números anteriores do presente acórdão não significa, porém, como demonstram vários considerandos desta, que os farmacêuticos ficam totalmente privados da possibilidade de receber amostras gratuitas ao abrigo desta diretiva.

48

Com efeito, por um lado, embora o considerando 46 da Diretiva 2001/83 enuncie que a distribuição gratuita de amostras ao público para efeitos de promoção é proibida, não prevê semelhante proibição em relação aos profissionais de saúde, particularmente em relação às pessoas habilitadas a fornecer medicamentos. Assim, no contexto da promoção de medicamentos, não se pode, por conseguinte, presumir que existe uma proibição de distribuição gratuita de amostras aos farmacêuticos.

49

Por outro lado, resulta expressamente do considerando 51 desta diretiva que podem ser fornecidas amostras gratuitas de medicamentos, desde que observadas determinadas condições restritivas, nomeadamente às pessoas habilitadas a fornecer medicamentos, justificando‑se tal possibilidade, aos olhos do legislador da União, porque o fornecimento de tais amostras lhes permite familiarizarem‑se com os novos medicamentos e adquirir experiência quanto à sua utilização.

50

Por outro lado, no contexto da promoção dos medicamentos, nomeadamente junto das pessoas habilitadas a fornecê‑los, o artigo 94.o, n.o 1, da referida diretiva, lido à luz dos considerandos 46 e 51 desta, é suscetível de abranger, entre outras formas de publicidade, ainda que não o mencione expressamente, o fornecimento dessas amostras, desde que os benefícios que decorrem para essas pessoas não excedam um valor negligenciável.

51

Daqui resulta que a Diretiva 2001/83 admite a possibilidade de serem fornecidas amostras gratuitas aos farmacêuticos no âmbito do direito nacional, sujeitando‑a a condições restritivas, no respeito pelos objetivos prosseguidos por esta diretiva.

52

No entanto, e em todo o caso, esta possibilidade não pode prejudicar as exigências decorrentes do artigo 96.o, n.o 1, da referida diretiva e, por conseguinte, não pode implicar a possibilidade de serem distribuídas aos farmacêuticos amostras gratuitas de medicamentos abrangidos por esta disposição, a saber, os medicamentos sujeitos a receita.

53

Atendendo às considerações que precedem, há que responder à questão submetida que o artigo 96.o, n.o 1, da Diretiva 2001/83 deve ser interpretado no sentido de que não permite que as empresas farmacêuticas distribuam gratuitamente amostras de medicamentos sujeitos a receita aos farmacêuticos. Em contrapartida, a referida disposição não impede que sejam distribuídas gratuitamente amostras de medicamentos não sujeitos a receita aos farmacêuticos.

Quanto à segunda questão

54

Atendendo à resposta dada à primeira questão, não há que responder à segunda questão.

Quanto às despesas

55

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

 

O artigo 96.o, n.o 1, da Diretiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano, conforme alterada pela Diretiva 2004/27/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, deve ser interpretado no sentido de que não permite que as empresas farmacêuticas distribuam gratuitamente amostras de medicamentos sujeitos a receita aos farmacêuticos. Em contrapartida, a referida disposição não impede que sejam distribuídas gratuitamente amostras de medicamentos não sujeitos a receita aos farmacêuticos.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.

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