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Document 62018CJ0688

Acórdão do Tribunal de Justiça (Sexta Secção) de 13 de fevereiro de 2020.
Processo penal contra TX e UW.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Spetsializiran nakazatelen sad.
Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Diretiva (UE) 2016/343 — Presunção de inocência e direito de comparecer em julgamento em processo penal — Artigo 8.o, n.os 1 e 2 — Requisitos impostos por uma regulamentação nacional para efeitos de um julgamento à revelia — Não comparência dos arguidos em determinadas audiências por motivos dependentes ou independentes da sua vontade — Direito a um processo equitativo.
Processo C-688/18.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2020:94

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção)

13 de fevereiro de 2020 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Diretiva (UE) 2016/343 — Presunção de inocência e direito de comparecer em julgamento em processo penal — Artigo 8.o, n.os 1 e 2 — Requisitos impostos por uma regulamentação nacional para efeitos de um julgamento à revelia — Não comparência dos arguidos em determinadas audiências por motivos dependentes ou independentes da sua vontade — Direito a um processo equitativo»

No processo C‑688/18,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária), por Decisão de 22 de outubro de 2018, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 6 de novembro de 2018, no processo penal contra

TX,

UW,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção),

composto por: M. Safjan (relator), presidente de secção, L. Bay Larsen e C. Toader, juízes,

advogado‑geral: P. Pikamäe,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, P. Barros da Costa, L. Medeiros e D. Pires, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por R. Troosters e Y. Marinova, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 8.o, n.os 1 e 2, da Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal (JO 2016, L 65, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado contra TX e UW devido à sua participação numa organização criminosa.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Nos termos dos considerandos 9, 33 a 37, 44 e 47 da Diretiva 2016/343:

«(9)

A presente diretiva tem por objeto reforçar o direito a um processo equitativo em processo penal, estabelecendo normas mínimas comuns relativas a certos aspetos da presunção de inocência e ao direito de comparecer em julgamento.

[…]

(33)

O direito a um processo equitativo constitui um dos princípios fundamentais de uma sociedade democrática. Este direito está na base do direito dos suspeitos ou dos arguidos de comparecerem em julgamento e deverá estar garantido em toda a União [Europeia].

(34)

Se, por motivos alheios à sua vontade, o suspeito ou o arguido não puderem comparecer no julgamento, deverão poder requerer nova data para o mesmo no prazo previsto no direito nacional.

(35)

O direito do suspeito e do arguido de comparecerem no próprio julgamento não tem caráter absoluto. Em determinadas condições, o suspeito e o arguido deverão poder renunciar a esse direito, expressa ou tacitamente, mas de forma inequívoca.

(36)

Em determinadas circunstâncias, a decisão sobre a culpa ou a inocência do suspeito ou do arguido é passível de ser proferida mesmo se estes não comparecerem em julgamento. Este pode ser o caso quando o suspeito ou o arguido foi atempadamente informado do julgamento e das consequências da não comparência, mas mesmo assim não compareceu. Informar o suspeito ou o arguido do julgamento deve ser entendido no sentido de o notificar pessoalmente ou lhe fornecer, por outros meios, informação oficial sobre a data e o local do julgamento, de modo a permitir‑lhe tomar conhecimento do julgamento. Informar o suspeito ou o arguido das consequências da não comparência deverá ser entendido, nomeadamente, no sentido de os informar de que pode ser proferida uma decisão mesmo se não comparecerem ao julgamento.

(37)

Um julgamento passível de resultar numa decisão sobre a culpa ou a inocência também deverá poder ser realizado na ausência do suspeito ou do arguido se este tiver sido informado da realização do julgamento e tiver mandatado um advogado, nomeado por si ou pelo Estado, para o representar em juízo e o advogado comparecer em julgamento em representação do suspeito ou do arguido.

[…]

(44)

O princípio da eficácia do direito da União impõe aos Estados‑Membros que instaurem vias de recurso adequadas e efetivas em caso de violação de um direito individual previsto pelo direito da União. Uma via de recurso efetiva, disponível em caso de violação de um dos direitos enunciados na presente diretiva, deverá, na medida do possível, ter por efeito colocar o suspeito ou o arguido na mesma situação que teriam caso não tivesse ocorrido essa violação, a fim de preservar o direito a um processo equitativo e os direitos de defesa.

[…]

(47)

A presente diretiva respeita os direitos e os princípios fundamentais reconhecidos pela Carta [dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a seguir “Carta”,] e pela [Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950, a seguir “CEDH”], nomeadamente a proibição da tortura e de penas ou tratamentos desumanos ou degradantes, o direito à liberdade e à segurança, o respeito pela vida privada e familiar, o direito à integridade do ser humano, o respeito pelos direitos da criança, a integração das pessoas com deficiências, o direito de ação e o direito a um tribunal imparcial, o direito à presunção de inocência e os direitos de defesa. Deverá ter‑se especialmente em conta o artigo 6.o do Tratado da União Europeia (TUE), nos termos do qual a União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta e nos termos do qual os direitos fundamentais, tal como garantidos pela CEDH e como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros, constituem princípios gerais do direito da União.»

4

O artigo 1.o desta diretiva, sob a epígrafe «Objeto», enuncia:

«A presente diretiva estabelece normas mínimas comuns respeitantes:

a)

A certos aspetos do direito à presunção de inocência em processo penal;

b)

Ao direito de comparecer em julgamento em processo penal.»

5

O artigo 8.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Direito de comparecer em julgamento», prevê, nos seus n.os 1 e 2:

«1.   Os Estados‑Membros asseguram que o suspeito ou o arguido tem o direito de comparecer no próprio julgamento.

2.   Os Estados‑Membros podem prever que um julgamento passível de resultar numa decisão sobre a culpa ou inocência de um suspeito ou de um arguido pode realizar‑se na sua ausência, desde que:

a)

O suspeito ou o arguido tenha atempadamente sido informado do julgamento e das consequências da não comparência; ou

b)

O suspeito ou o arguido, tendo sido informado do julgamento, se faça representar por um advogado mandatado, nomeado por si ou pelo Estado.»

Direito búlgaro

6

O artigo 55.o, n.o 1, do Nakazatelno‑protsesualen kodeks (Código de Processo Penal, a seguir «NPK») enuncia:

«O arguido tem os seguintes direitos:

[…]

participar no processo penal […]»

7

O artigo 94.o, n.o 1, do NPK prevê:

«A constituição de um defensor em processo penal é obrigatória, quando:

[…]

8.

a tramitação do processo se realiza na ausência do arguido;

[…]»

8

O artigo 247.o‑B, n.o 1, do NPK dispõe:

«A pedido do juiz‑relator, é notificada ao arguido uma cópia do ato de constituição de arguido. Através da notificação do ato de constituição de arguido, o arguido é informado da realização da audiência preliminar e das questões referidas no artigo 248.o, n.o 1, do seu direito de comparecer com um defensor e da possibilidade de lhe ser nomeado um defensor nos casos previstos no artigo 94.o, n.o 1, bem como do facto de o processo poder ser examinado e dirimido na sua ausência, desde que estejam preenchidos os requisitos previstos no artigo 269.o»

9

O artigo 269.o do NPK tem a seguinte redação:

«1)   Nos processos em que o arguido foi acusado de uma infração penal grave, é obrigatória a sua presença na audiência.

2)   O órgão jurisdicional pode ordenar que o arguido compareça igualmente nos casos em que a sua presença não seja exigida quando essa comparência for necessária para a determinação da verdade material.

3)   Se não se opuser à determinação da verdade material, o processo pode ser tramitado na ausência do arguido se:

[…]

3.

este tiver sido devidamente notificado, não tiver apresentado uma justificação válida para a sua ausência e tiver sido respeitado o procedimento regulado no artigo 247.o‑B, n.o 1;

[…]»

10

O artigo 423.o do NPK enuncia:

«1)   No prazo de seis meses a contar da tomada de conhecimento da condenação penal transitada em julgado ou da sua transmissão efetiva à República da Bulgária por um país terceiro, a pessoa condenada à revelia pode requerer a reabertura da instrução penal invocando a sua ausência no processo penal. O pedido é deferido, salvo, por um lado, no caso de a pessoa condenada ter fugido após a comunicação das acusações no âmbito do processo preliminar, com o efeito de não poder ser executado o processo previsto no artigo 247.o‑B, n.o 1, ou, por outro, uma vez executado o referido processo, a pessoa condenada não ter comparecido na audiência sem uma justificação válida.

2)   O pedido não suspende a execução da condenação penal, salvo se o órgão jurisdicional dispuser noutro sentido.

3)   É posto termo ao processo de reabertura da instância penal se a pessoa condenada à revelia não se apresentar na audiência sem uma justificação válida.

[…]»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

11

A Spetsializirana prokuratura (Procuradoria Especializada, Bulgária) instaurou processos penais contra treze indivíduos, acusados de serem os líderes e/ou membros de uma organização criminosa, cuja finalidade era a prática de homicídios, roubos e furtos, bem como de terem cometido outros crimes no âmbito dessa organização criminosa. Entre os arguidos constam TX e UW, acusados de terem participado na referida organização criminosa, crime punível com pena de prisão de três a dez anos.

12

TX e UW foram informados sobre as condições em que o seu julgamento se podia realizar na sua ausência, nomeadamente em caso de não comparência sem justificação válida, e do facto de que, nesse caso, a decisão final quanto ao mérito seria para eles vinculativa e insuscetível de recurso fundado no facto de não terem participado pessoalmente no julgamento.

13

No âmbito do processo de TX e de UW no Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária), foram realizadas, num primeiro momento, sete audiências. Em cada uma dessas audiências, o processo foi adiado. Devido à ausência de certos arguidos por motivo de doença na data das referidas audiências, o órgão jurisdicional de reenvio não adotou medidas de instrução e não procedeu à administração das provas. Esse órgão jurisdicional verificou a veracidade do motivo dessas ausências, mas, embora tendo dúvidas significativas a esse respeito, não pôde pôr em causa a validade da justificação da ausência desses arguidos.

14

Por Decisões de 19 e 26 de abril de 2017, o órgão jurisdicional de reenvio pronunciou‑se sobre a possibilidade, no processo principal, de realizar uma audiência na ausência dos referidos arguidos.

15

A este respeito, por um lado, constatou que a presença desses arguidos não era necessária para efeitos da «determinação da verdade material» na aceção da regulamentação nacional, no que respeita aos crimes imputados.

16

Por outro lado, no que se refere ao exame do processo principal na ausência de um dos arguidos, o órgão jurisdicional de reenvio estabeleceu, com base na legislação nacional, as seguintes condições:

a presença obrigatória do advogado do interessado, que tem de o defender efetivamente;

o envio de uma cópia da ata da audiência ao interessado, de forma a permitir que este último tome conhecimento das medidas de instrução tomadas e das provas produzidas na sua ausência;

a possibilidade de o interessado manifestar a vontade de que seja efetuada uma nova produção dessas provas na sua presença;

o direito de o interessado que não compareceu por um motivo independente da sua vontade de que sejam repetidos, na sua presença, os atos praticados;

o direito de o interessado que não compareceu por um motivo que lhe é imputável de que sejam repetidos, a seu pedido, os atos praticados quando a sua participação pessoal no ato concreto de produção de provas seja necessária para a proteção dos seus interesses.

17

Nas doze audiências realizadas posteriormente às Decisões de 19 e 26 de abril de 2017, alguns dos arguidos não compareceram por diferentes razões.

18

Com efeito, TX não compareceu na audiência de 16 de maio de 2018 por um motivo independente da sua vontade, a saber, por motivo de doença. Quanto a UW, não desejou comparecer nessa audiência. Ambos foram representados pelos advogados que tinham mandatado. Foram transmitidas a TX e a UW cópias da ata da referida audiência para que pudessem tomar conhecimento da prova produzida na sua ausência.

19

TX e a UW compareceram na audiência seguinte, que se efetuou em 30 de maio de 2018. Depois de consultarem os seus advogados, declararam que tinham tomado conhecimento da ata da audiência de 16 de maio de 2018 e da prova produzida na sua ausência e que não queriam participar numa nova produção da prova. Os atos praticados na sua ausência não foram repetidos.

20

TX não compareceu na audiência que se efetuou em 1 de outubro de 2018, novamente por motivo de doença. Foi representado nessa audiência por um advogado. Na ausência de TX, o órgão jurisdicional de reenvio procedeu à produção de determinadas provas e ouviu, nomeadamente, a testemunha principal de acusação arrolada pela procuradoria. Foi enviada uma cópia da ata dessa audiência a TX, para que pudesse tomar conhecimento da prova produzida na sua ausência.

21

TX compareceu na audiência seguinte, realizada em 17 de outubro de 2018. Após consultar o seu advogado, declarou que tinha tomado conhecimento da ata da audiência de 1 de outubro de 2018, da prova produzida na sua ausência e que pretendia participar pessoalmente na inquirição da testemunha principal de acusação. O órgão jurisdicional de reenvio deferiu este pedido e procedeu a uma inquirição adicional dessa testemunha. TX pôde participar de forma adequada nesta audição e colocar todas as questões que pretendia.

22

No que respeita a UW, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que, tendo em vista a tramitação do processo à revelia após o acordo dado com conhecimento de causa pelo arguido, a regulamentação nacional prevê que essa pessoa seja informada do julgamento no processo penal, das consequências da sua não comparência, bem como a participação obrigatória de um advogado, garantias que estão previstas no artigo 8.o, n.o 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2016/343.

23

O referido órgão jurisdicional sublinha que tem dúvidas quanto à conformidade com o direito da União da regulamentação nacional em causa no processo principal, nomeadamente à luz do considerando 35 da Diretiva 2016/343, e que essas dúvidas têm por objeto as condições em que pode validamente ocorrer a renúncia a comparecer no julgamento.

24

No que respeita a TX, que não compareceu em determinadas audiências por motivos independentes da sua vontade, a saber, por motivo de doença, o órgão jurisdicional de reenvio considera que, à luz do considerando 34 da Diretiva 2016/343, pode ser declarada a violação do seu direito de comparecer no julgamento, na medida em que a sua ausência era justificada. Interroga‑se sobre a questão de saber se essa violação ocorreu efetivamente, tendo em conta os atos que ocorreram na sequência dessas audiências a pedido de TX.

25

A este respeito, quanto à audiência realizada em 16 de maio de 2018, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a declaração de TX que consiste em não pedir a repetição dos atos praticados constitui uma renúncia válida ao direito de comparecer no seu julgamento e se a possibilidade de renunciar ao direito de comparecer no seu julgamento, prevista no considerando 35 da Diretiva 2016/343, é igualmente aplicável aos atos processuais já praticados. Quanto à audiência que se efetuou em 1 de outubro de 2018, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se a inquirição suplementar, na presença de TX, da testemunha de acusação arrolada pela procuradoria constitui um ato suficiente à luz do considerando 44 da Diretiva 2016/343.

26

O órgão jurisdicional de reenvio precisa que os advogados de TX e de UW compareceram em todas as audiências realizadas no processo principal.

27

Nestas circunstâncias, o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O direito de o arguido comparecer no julgamento ao abrigo do artigo 8.o, n.os 1 e 2, em conjugação com os considerandos 35 e 44 da Diretiva (UE) 2016/343, é violado se uma das audiências no quadro do processo penal tiver tido lugar na ausência do arguido e este tiver sido devidamente notificado, informado das consequências da sua não comparência e tiver sido representado por um advogado que escolheu, no caso de:

a)

Não ter comparecido por um motivo que lhe é imputável (ou seja, porque decidiu não participar nessa audiência em concreto);

b)

Não ter comparecido por um motivo que não lhe é imputável (nomeadamente por doença), se tiver sido posteriormente informado sobre os atos realizados na sua ausência e tiver decidido e declarado com conhecimento de causa que:

não questiona a legalidade destes atos invocando a sua não comparência e não exige a sua repetição na sua presença;

pretende participar nestes atos, razão pela qual o tribunal realizou uma inquirição adicional da pessoa indicada pelo arguido, possibilitando‑lhe participar de forma adequada nessa inquirição?»

Quanto à questão prejudicial

28

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 8.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2016/343 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que prevê, numa situação em que o arguido foi atempadamente informado do seu julgamento e das consequências da não comparência nesse julgamento e em que foi representado por um advogado mandatado nomeado por si, que o direito de o arguido comparecer no seu julgamento não é violado quando:

decidiu de forma inequívoca não comparecer numa das audiências realizadas no âmbito do seu julgamento ou

não compareceu numa dessas audiências por um motivo alheio à sua vontade se, após essa audiência, tiver sido informado dos atos praticados na sua ausência e, com conhecimento de causa, tenha tomado uma decisão pela qual declarou que não invocaria a sua ausência para contestar a legalidade desses atos ou que pretendia participar nesses atos, levando o órgão jurisdicional nacional chamado a pronunciar‑se a repetir os referidos atos, nomeadamente procedendo à inquirição adicional de uma testemunha, na qual o arguido teve a possibilidade de participar de forma adequada.

29

A título preliminar, há que salientar que o objeto da Diretiva 2016/343 é, como resulta do artigo 1.o e do considerando 9 da mesma, estabelecer normas mínimas comuns aplicáveis aos processos penais respeitantes a certos aspetos do direito à presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento [Acórdãos de 19 de setembro de 2018, Milev, C‑310/18 PPU, EU:C:2018:732, n.o 45; e de 5 de setembro de 2019, AH e o. (Presunção de inocência), C‑377/18, EU:C:2019:670, n.o 38].

30

Além disso, importa recordar que essa diretiva não pode ser interpretada, atendendo ao caráter mínimo do objetivo de harmonização que prossegue, como sendo um instrumento completo e exaustivo (v., neste sentido, Despacho de 12 de fevereiro de 2019, RH, C‑8/19 PPU, EU:C:2019:110, n.o 59 e jurisprudência referida).

31

A este respeito, o artigo 8.o, n.o 1, da referida diretiva enuncia que os Estados‑Membros asseguram que o suspeito ou o arguido tem o direito de comparecer no próprio julgamento.

32

O considerando 35 dessa mesma diretiva precisa que o direito do suspeito e do arguido de comparecerem no próprio julgamento não tem caráter absoluto e que, em determinadas condições, o suspeito e o arguido deverão poder renunciar a esse direito, expressa ou tacitamente, mas de forma inequívoca.

33

Assim, o artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2016/343 dispõe que os Estados‑Membros podem prever que um julgamento passível de resultar numa decisão sobre a culpa ou inocência de um suspeito ou de um arguido pode realizar‑se na sua ausência, desde que, nos termos da alínea a) desta disposição, o suspeito ou o arguido tenha atempadamente sido informado do julgamento e das consequências da não comparência no seu julgamento ou que, nos termos da alínea b) da referida disposição, o suspeito ou o arguido, tendo sido informado do julgamento, se faça representar por um advogado mandatado, nomeado por si ou pelo Estado.

34

Por outro lado, o considerando 47 da Diretiva 2016/343 enuncia que esta respeita os direitos e os princípios fundamentais reconhecidos pela Carta e pela CEDH, nomeadamente o direito a um tribunal imparcial, o direito à presunção de inocência e os direitos de defesa.

35

Como resulta do considerando 33 desta diretiva, o direito dos suspeitos ou dos arguidos de comparecerem em julgamento assenta no direito a um processo equitativo, que está consagrado no artigo 6.o da CEDH, ao qual correspondem, como explicam as Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais (JO 2007, C 303, p. 17), o artigo 47.o, segundo e terceiro parágrafos, e o artigo 48.o da Carta.

36

A este respeito, decorre da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que a realização de uma audiência pública constitui um princípio fundamental consagrado no artigo 6.o da CEDH. Este princípio reveste uma importância particular em matéria penal, em que deve geralmente existir um tribunal de primeira instância que cumpra plenamente as exigências do artigo 6.o da CEDH e em que um particular pode legitimamente exigir ser «ouvido» e beneficiar, nomeadamente, da possibilidade de expor oralmente os seus fundamentos de defesa, de ouvir os depoimentos de acusação, de interrogar e contra interrogar as testemunhas (TEDH, 23 de novembro de 2006, Jussila c. Finlândia, CE:ECHR:2006:1123JUD007305301, § 40; e TEDH, 4 de março de 2008, Hüseyin Turan c. Turquia, CE:ECHR:2008:0304JUD001152902, § 31).

37

Segundo essa jurisprudência, nem a redação nem o espírito do artigo 6.o da CEDH impedem uma pessoa de renunciar de sua livre vontade às garantias de um processo equitativo de forma expressa ou tácita. Contudo, a renúncia ao direito de participar na audiência deve ser determinada de forma inequívoca e rodear‑se de um mínimo de garantias correspondentes à sua gravidade. Além disso, não deve colidir com nenhum interesse público importante (TEDH, 1 de março de 2006, Sejdovic c. Itália, CE:ECHR:2006:0301JUD005658100, § 86; e TEDH, 13 de março de 2018, Vilches Coronado e o. c. Espanha, CE:ECHR:2018:0313JUD005551714, § 36).

38

No processo principal, foram instaurados processos penais contra várias pessoas por terem liderado e/ou participado numa organização criminosa. Na fase inicial do seu julgamento, os arguidos foram informados, com base na regulamentação nacional, das condições em que esse julgamento, em caso de falta de comparência sem justificação válida, poderia decorrer apesar da sua ausência. Por outro lado, os advogados dos arguidos compareceram em todas as audiências realizadas no âmbito do seu julgamento.

39

A questão prejudicial tem por objeto, em primeiro lugar, a situação em que um arguido renuncia deliberadamente a comparecer numa das audiências realizadas no âmbito do seu julgamento.

40

Atendendo à própria redação do artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2016/343, há que salientar que, num processo como o principal, foram respeitadas tanto as condições previstas na alínea a) como as referidas na alínea b) desta disposição.

41

Por outro lado, resulta da decisão de reenvio que a renúncia de UW ao seu direito de participar na audiência foi rodeada de um mínimo de garantias correspondentes à sua gravidade e que essa renúncia não parece colidir com nenhum interesse público importante.

42

Nestas condições, há que concluir que o artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2016/343 não se opõe a uma regulamentação nacional que prevê que o direito de um arguido de comparecer no seu julgamento não é violado quando este tenha decidido, de forma inequívoca, não comparecer numa das audiências realizadas no âmbito do seu julgamento, desde que tenha sido informado da realização dessa audiência e tenha sido representado, na referida audiência, por um advogado mandatado.

43

A questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio diz respeito, em segundo lugar, à situação em que o arguido não pôde comparecer em audiências realizadas no âmbito do seu julgamento por um motivo independente da sua vontade, a saber, por motivo de doença.

44

Nos termos do considerando 34 da Diretiva 2016/343, se, por motivos alheios à sua vontade, o suspeito ou o arguido não puder comparecer no julgamento, deverá poder requerer nova data para o mesmo no prazo previsto no direito nacional.

45

O órgão jurisdicional de reenvio questiona o Tribunal de Justiça, por um lado, sobre a situação em que o arguido, que não pôde comparecer, por um motivo independente da sua vontade, numa audiência que se realizou no âmbito do seu julgamento e que foi informado dos atos praticados na sua ausência nessa audiência, declarou que não invocaria a referida ausência para contestar a legalidade dos atos praticados e que não pretendia que estes fossem repetidos na sua presença.

46

Neste contexto, importa constatar que se pode considerar que tal posição constitui uma renúncia de forma inequívoca ao direito de comparecer na audiência em causa.

47

Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio refere a situação em que o arguido declarou que pretendia a repetição na sua presença dos atos praticados na sua ausência, o que levou a organizar a inquirição adicional de uma testemunha, na qual o arguido teve a possibilidade de participar de forma adequada.

48

A este respeito, não se pode considerar que uma pessoa esteve ausente do seu julgamento, quando essa pessoa obteve a repetição, na sua presença, dos atos praticados em audiências às quais não pôde comparecer.

49

Atendendo às considerações precedentes, importa responder à questão submetida que o artigo 8.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2016/343 deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma regulamentação nacional que prevê, numa situação em que o arguido foi atempadamente informado do seu julgamento e das consequências da não comparência nesse julgamento e em que foi representado por um advogado mandatado nomeado por si, que o direito desse arguido de comparecer no seu julgamento não é violado quando:

decidiu de forma inequívoca não comparecer numa das audiências realizadas no âmbito do seu julgamento ou

não compareceu numa dessas audiências por um motivo alheio à sua vontade se, após essa audiência, tiver sido informado dos atos praticados na sua ausência e, com conhecimento de causa, tenha tomado uma decisão pela qual declarou que não invocaria a sua ausência para contestar a legalidade desses atos ou que pretendia participar nesses atos, levando o órgão jurisdicional nacional chamado a pronunciar‑se a repetir os referidos atos, nomeadamente procedendo à inquirição adicional de uma testemunha, na qual o arguido teve a possibilidade de participar de forma adequada.

Quanto às despesas

50

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sexta Secção) declara:

 

O artigo 8.o, n.os 1 e 2, da Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma regulamentação nacional que prevê, numa situação em que o arguido foi atempadamente informado do seu julgamento e das consequências da não comparência nesse julgamento e em que foi representado por um advogado mandatado nomeado por si, que o direito desse arguido de comparecer no seu julgamento não é violado quando:

 

decidiu de forma inequívoca não comparecer numa das audiências realizadas no âmbito do seu julgamento ou

 

não compareceu numa dessas audiências por um motivo alheio à sua vontade se, após essa audiência, tiver sido informado dos atos praticados na sua ausência e, com conhecimento de causa, tenha tomado uma decisão pela qual declarou que não invocaria a sua ausência para contestar a legalidade desses atos ou que pretendia participar nesses atos, levando o órgão jurisdicional nacional chamado a pronunciar‑se a repetir os referidos atos, nomeadamente procedendo à inquirição adicional de uma testemunha, na qual o arguido teve a possibilidade de participar de forma adequada.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: búlgaro.

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