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Document 62015CC0155

Conclusões da advogada-geral E. Sharpston apresentadas em 17 de março de 2016.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2016:189

CONCLUSÕES DA ADVOGADA-GERAL

ELEANOR SHARPSTON

apresentadas em 17 de março de 2016 ( 1 )

Processo C‑155/15

George Karim

contra

Migrationsverket

[Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Kammarrätten i Stockholm (Tribunal Administrativo de Recurso de Estocolmo decidindo em matéria de imigração, Suécia)]

«Asilo — Análise de um pedido de proteção internacional — Critérios de determinação do Estado‑Membro responsável — Interpretação do artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 604/2013 — Alcance do direito de recurso ou de pedido de revisão — Significado do artigo 19.o, n.o 2»

Introdução

1.

O presente pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Kammarrätten i Stockholm (Tribunal Administrativo de Recurso de Estocolmo decidindo em matéria de imigração) (a seguir «órgão jurisdicional de reenvio») e o apresentado no processo C‑63/15, Ghezelbash, estão ligados. Em cada um destes processos, um requerente de asilo pretende impugnar a decisão tomada pelas autoridades competentes do Estado‑Membro onde se encontra, de o transferir para outro Estado, que acordou com o primeiro assumir a responsabilidade pela análise do pedido de asilo. Os processos suscitam uma questão importante. O Regulamento n.o 604/2013 (a seguir «Regulamento de Dublim III») ( 2 ), tal como o seu antecessor, Regulamento n.o 343/2003 (a seguir «Regulamento de Dublim II») ( 3 ), constitui um mero mecanismo interestatal, que não permite a um indivíduo requerente de asilo impugnar tal decisão? Ou pode presentemente essa pessoa instaurar um processo de recurso ou de pedido de revisão, ao abrigo do artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento de Dublim III, para impugnar uma decisão de transferência com fundamento na aplicação errada dos critérios previstos no capítulo III para determinação do Estado‑Membro responsável?

2.

Uma vez que as circunstâncias de facto do pedido de cada requerente são diferentes, as questões específicas que se colocam não são as mesmas. Apresentarei, por conseguinte, conclusões duas conclusões no mesmo dia. Nas minhas conclusões no processo Ghezelbash (n.os 54 a 84) expus, de forma pormenorizada, a minha análise sobre a interpretação do artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento de Dublim III. Aplico esse raciocínio ao caso de G. Karim, nos n.os 20 a 35, infra.

3.

O Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA) engloba várias medidas, incluindo regulamentos, que se destinam a determinar com rapidez o Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de asilo de um indivíduo. Tais medidas são coletivamente designadas como «sistema de Dublim» ( 4 ). Quando um nacional de um país terceiro tenha uma ligação a mais do que um Estado‑Membro (por exemplo, porque entrou na União Europeia através de um Estado‑Membro, mas apresentou o seu pedido de asilo num segundo Estado), é necessário determinar qual é o Estado responsável pela análise do pedido de asilo. Os critérios de determinação do Estado‑Membro responsável estão definidos de forma estritamente hierárquica (a seguir «critérios previstos no capítulo III») no Regulamento de Dublim III. Se o Estado‑Membro onde é apresentado um pedido de asilo considerar, com base nesses critérios, que outro Estado‑Membro é responsável pela decisão do pedido, o primeiro Estado poderá solicitar ao segundo Estado que retome o requerente a cargo (ou que o tome a cargo). Resolvida essa questão, a análise do pedido de asilo é regulada pelas regras previstas no ato relevante do SECA ( 5 ).

4.

No acórdão Abdullahi ( 6 ), o Tribunal de Justiça declarou, no âmbito da interpretação do artigo 19.o, n.o 2, do Regulamento de Dublim II, que os fundamentos de um recurso ou de um pedido de revisão invocados contra uma decisão de transferência são limitados numa situação em que um Estado‑Membro aceita a tomada a cargo de um requerente de asilo. Com efeito, o requerente só pode pôr em causa tal decisão, se invocar a existência de deficiências sistémicas do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes de asilo nesse Estado‑Membro que constituam razões sérias e verosímeis para acreditar que o referido requerente corre um risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia ( 7 ).

5.

O órgão jurisdicional de reenvio considera que se colocam presentemente as seguintes questões: O acórdão Abdullahi continua a aplicar‑se no contexto do Regulamento de Dublim III? Um indivíduo nas circunstâncias de G. Karim está impossibilitado de impugnar a aplicação pelas autoridades competentes dos critérios previstos no capítulo III num processo de recurso ou de pedido de revisão ao abrigo do artigo 27.o, n.o 1, do referido regulamento? Quais são as consequências, para um requerente de asilo, da aplicação do artigo 19.o, n.o 2 ( 8 ), do Regulamento de Dublim III?

Quadro jurídico

6.

As disposições aplicáveis da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e o contexto jurídico do sistema de Dublim estão descritos nos n.os 6 a 8 e 9 a 25, respetivamente, das minhas conclusões no processo Ghezelbash. O sistema de Dublim é aplicável à Confederação Suíça por força de um acordo internacional bilateral celebrado entre a (então) Comunidade Europeia e a Confederação Suíça ( 9 ). Em consequência, e por força do artigo 5.o, n.o 2, do referido acordo, a Confederação Suíça apresentou observações escritas ao Tribunal de Justiça no presente processo.

7.

São pertinentes os seguintes elementos adicionais.

8.

O artigo 13.o, n.o 1, do Regulamento de Dublim III, incluído no capítulo III que estabelece os critérios de determinação do Estado‑Membro responsável, refere que: «[c]aso se comprove, com base nos elementos de prova ou nos indícios descritos nas duas listas referidas no artigo 22.o, n.o 3, do presente regulamento […] que o requerente de asilo atravessou ilegalmente a fronteira de um Estado‑Membro por via terrestre, marítima ou aérea e que entrou nesse Estado‑Membro a partir de um país terceiro, esse Estado‑Membro é responsável pela análise do pedido de proteção internacional. Essa responsabilidade cessa 12 meses após a data em que teve lugar a passagem ilegal da fronteira.

[…]»

9.

O capítulo V intitula‑se «Obrigações do Estado‑Membro responsável». O artigo 18.o prevê:

«1.   O Estado‑Membro responsável por força do presente regulamento é obrigado a:

a)

Tomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 21.°, 22.° e 29.°, o requerente que tenha apresentado um pedido noutro Estado‑Membro;

b)

Retomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 23.°, 24.°, 25.° e 29.°, o requerente cujo pedido esteja a ser analisado e que tenha apresentado um pedido noutro Estado‑Membro, ou que se encontre no território de outro Estado‑Membro sem possuir um título de residência;

c)

Retomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 23.°, 24.°, 25.° e 29.°, o nacional de um país terceiro ou o apátrida que tenha retirado o seu pedido durante o processo de análise e que tenha formulado um pedido noutro Estado‑Membro, ou que se encontre no território de outro Estado‑Membro sem possuir um título de residência;

d)

Retomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 23.°, 24.°, 25.° e 29.°, o nacional de um país terceiro ou o apátrida cujo pedido tenha sido indeferido e que tenha apresentado um pedido noutro Estado‑Membro, ou que se encontre no território de outro Estado‑Membro sem possuir um título de residência.

[…]»

10.

O artigo 19.o refere:

«1.   Se um Estado‑Membro conceder um título de residência ao requerente, as obrigações previstas no artigo 18.o, n.o 1, são transferidas para esse Estado‑Membro.

2.   As obrigações previstas no artigo 18.o, n.o 1, cessam se o Estado‑Membro responsável puder comprovar, quando lhe for solicitado para tomar ou retomar a cargo um requerente ou outra pessoa referida no artigo 18.o, n.o 1, alíneas c) ou d), que a pessoa em causa abandonou o território dos Estados‑Membros durante um período mínimo de três meses, a menos que seja titular de um título de residência válido emitido pelo Estado‑Membro responsável.

Os pedidos apresentados depois do período de ausência referido no primeiro parágrafo são considerados novos pedidos e dão lugar a um novo procedimento de determinação do Estado‑Membro responsável.

[…]»

11.

A base de dados EURODAC é um instrumento de implementação do sistema de Dublim. É um repositório de impressões digitais de, nomeadamente, requerentes de asilo. Serve para determinar a sua identidade, para saber se apresentaram anteriormente pedidos num Estado‑Membro da UE e para assegurar a aplicação efetiva dos Regulamentos de Dublim ( 10 ).

Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

12.

G. Karim é um nacional sírio. Em 3 de março de 2014, apresentou um pedido de asilo na Suécia. As verificações efetuadas na base de dados EURODAC ( 11 ) permitiram constatar que o recorrente já tinha apresentado um pedido anterior na Eslovénia, em 14 de maio de 2013. As autoridades suecas pediram às suas homólogas eslovenas, a tomada a cargo do pedido de G. Karim, ao abrigo do artigo 18.o, n.o 1, do Regulamento de Dublim III, em 20 de março de 2014. As autoridades eslovenas aceitaram o pedido em 3 de abril de 2014. No dia seguinte, a Suécia informou a Eslovénia de que tinha informação adicional que indicava que G. Karim tinha abandonado o território dos Estados‑Membros durante um período superior a três meses, na aceção do artigo 19.o, n.o 2, do regulamento. Embora o seu passaporte não apresentasse quaisquer carimbos pertinentes de entrada e saída, mostrando a chegada e partida da Eslovénia, tinha um carimbo (de 20 de julho de 2013) que indicava que tinha entrado no Líbano. Em 12 de maio de 2014, a Eslovénia confirmou a sua disponibilidade para processar o pedido de asilo de G. Karim. As autoridades suecas indeferiram o seu pedido de asilo no dia seguinte e tomaram também a devida decisão de transferência.

13.

O recurso apresentado por G. Karim da referida decisão no Förvaltningsrätten i Stockholm, migrationsdomstolen (Tribunal Administrativo de Estocolmo decidindo em matéria de imigração) foi julgado improcedente pelas seguintes razões: (i) não se baseou no fundamento restritivo único, descrito no acórdão Abdullahi do Tribunal de Justiça; e (ii) a Eslovénia tinha aceitado processar o pedido de G. Karim — consequentemente, a questão de saber se este abandonou ou não o território dos Estados‑Membros durante três meses era irrelevante para a decisão que ordenou a sua transferência. A referida decisão é agora objeto de recurso no órgão jurisdicional de reenvio.

14.

O órgão jurisdicional de reenvio refere que, em seu entender, o artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento de Dublim III alterou a regra sobre as vias de recurso anteriormente contida no artigo 19.o, n.o 2, do Regulamento de Dublim II. Invoca, em especial, o facto de o considerando 19 fazer parte do preâmbulo do Regulamento de Dublim III, e de a redação do artigo 27.o, n.o 1, diferir significativamente da redação do seu antecessor. O órgão jurisdicional de reenvio sublinha igualmente que foram introduzidas no Regulamento de Dublim III outras disposições adicionais relativas, designadamente, à assistência jurídica, e que o Tribunal de Justiça ainda não clarificou o alcance do direito de recurso ou de pedido de revisão previsto no artigo 27.o, n.o 1.

15.

Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio pede uma decisão prejudicial, ao abrigo do artigo 267.o TFEU, sobre as seguintes questões:

«1)

As novas disposições em matéria de vias de recurso efetivas, constantes do [Regulamento de Dublim III] (considerando 19 e artigo 27.o, n.os 1 e 5), significam que um requerente de asilo também pode pôr em causa a escolha dos critérios previstos no capítulo III do Regulamento com base nos quais foi decidida a sua transferência para outro Estado‑Membro, que aceitou tomá‑lo ou retomá‑lo a cargo, ou deve entender‑se que o direito efetivo de recurso está limitado ao direito a uma avaliação da existência de eventuais deficiências sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento no Estado‑Membro para o qual o requerente deve ser transferido (em conformidade com o acórdão [Abdullahi] do Tribunal de Justiça […])?

2)

Caso o Tribunal de Justiça entenda que é possível pôr em causa a escolha dos critérios estabelecidos no capítulo III do regulamento, é também apresentada a seguinte questão. O artigo 19.o, n.o 2, do [Regulamento de Dublim III] implica que este regulamento não é aplicável se o requerente de asilo demonstrar que abandonou o território dos Estados‑Membros durante um período mínimo de três meses?»

16.

Foram apresentadas observações escritas ao Tribunal de Justiça pelos governos da República Checa, da França, da Grécia, dos Países Baixos e da Suíça, e pela Comissão Europeia. Na audiência, que teve lugar em 15 de dezembro de 2015, as mesmas partes, com exceção da República Checa e da Confederação Suíça mas, para além destas, G. Karim, o Migrationsverket (Serviços de Imigração) e a Suécia ‑ apresentaram alegações orais.

Apreciação

Observações preliminares

17.

Como salientei nas minhas conclusões no processo Ghezelbash, o CEAS baseia‑se no pressuposto de que todos os Estados que nele participam respeitam os direitos fundamentais, incluindo os direitos com fundamento na Convenção de Genebra relativa ao estatuto dos refugiados ( 12 ) e na Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, e que os Estados‑Membros podem e deveriam ter confiança mútua no nível de proteção por eles garantida. O Regulamento de Dublim III foi adotado à luz desse princípio de confiança mútua com vista a racionalizar o tratamento dos pedidos de asilo e a evitar o estrangulamento do sistema devido à obrigação de as autoridades nos diferentes Estados tratarem pedidos múltiplos apresentados pelo mesmo requerente, a aumentar a segurança jurídica no que diz respeito à determinação do Estado responsável pelo tratamento do pedido de asilo e a evitar o «forum shopping». Na prática, o objetivo primordial do sistema de Dublim é, assim, acelerar o tratamento dos pedidos no interesse dos requerentes de asilo e dos Estados participantes ( 13 ).

18.

O órgão jurisdicional de reenvio refere que o pedido de asilo inicial de G. Karim foi apresentado em 14 de maio de 2013, na Eslovénia. Porém, o presente pedido de decisão prejudicial decorre do pedido de asilo por ele apresentado em 3 de março de 2014 na Suécia. O referido pedido é regulado pelo Regulamento de Dublim III ( 14 ). Ao aplicarem os critérios previstos no artigo 13.o, n.o 1, do capítulo III, as autoridades suecas identificaram a Eslovénia como o Estado‑Membro responsável e estabeleceram o necessário contacto com os seus homólogos eslovenos, que aceitaram a responsabilidade pela análise do pedido de G. Karim.

19.

G. Karim sustenta que não deve ser transferido para a Eslovénia por duas razões. Em primeiro lugar, a obrigação desse país de analisar o seu pedido cessou por força do artigo 19.o, n.o 2, do Regulamento de Dublim III. Em segundo lugar, não deve ser transferido para esse país por razões humanitárias, porque as condições de receção de requerentes de asilo na Eslovénia apresentam deficiências sistémicas tais que existe o risco de que os seus direitos humanos sejam violados. O órgão jurisdicional de reenvio não pediu esclarecimentos adicionais quanto ao segundo aspeto do fundamento de recurso (que estaria abrangido, em todo o caso, pelo acórdão do Tribunal de Justiça no processo Abdullahi e pelo segundo parágrafo do artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento de Dublim III) ( 15 ), nem fez quaisquer constatações. Não aprofundarei, nas minhas conclusões, a análise deste aspeto do recurso de G. Karim.

Questão 1

20.

A Questão 1 suscita questões semelhantes às suscitadas na Questão 1 no processo Ghezelbash. Em substância, o órgão jurisdicional de reenvio pretende igualmente, neste processo, ser esclarecido sobre a interpretação e o alcance do artigo 27.o, n.o 1, lido em conjugação com o considerando 19 do Regulamento de Dublim III. Pretende saber se, nos casos em que um Estado‑Membro aplica os critérios previstos no capítulo III e identifica outro Estado‑Membro, no qual o requerente de asilo entrou anteriormente, como responsável pela análise do seu pedido e esse Estado aceita a tomada a cargo, o requerente pode impugnar a decisão de transferência com fundamento na aplicação errada desses critérios; ou se as impugnações ao abrigo do artigo 27.o, n.o 1, estão limitadas à situação identificada pelo Tribunal de Justiça no acórdão Abdullahi.

21.

G. Karim e a República Checa alegam que os requerentes de asilo podem impugnar as decisões de transferência, ao abrigo do artigo 27.o, n.o 1, do regulamento, com base nos critérios previstos no capítulo III. Nas minhas conclusões no processo Ghezelbash descrevi a interpretação assim proposta como «terceira opção». Porém, a República Checa salienta que, em seu entender, um requerente não dispõe do direito generalizado de escolher o Estado‑Membro que deverá tratar o seu pedido de asilo.

22.

O Migrationsverket, a França, a Grécia, a Suécia e a Comissão discordam deste entendimento. Consideram que o direito de recurso ou de pedido de revisão previsto no artigo 27.o, n.o 1, está limitado aos casos em que são invocados os critérios do acórdão Abdullahi ou em que estão em causa os direitos de um requerente expressamente garantidos nos termos do Regulamento de Dublim III, tais como o seu direito a uma vida familiar. Nas minhas conclusões no processo Ghezelbash descrevi esta interpretação como «segunda opção».

23.

Os Países Baixos alegam que o direito de recurso ou de pedido de revisão está exclusivamente limitado às situações em que se aplicam os fundamentos do acórdão Abdullahi (nas minhas conclusões no processo Ghezelbash está descrito como «primeira opção»).

24.

Tal como no processo Ghezelbash, sugiro que a conclusão do Tribunal de Justiça no acórdão Abdullahi não pode ser automaticamente aplicada para responder à primeira questão no sentido da primeira opção.

25.

Em primeiro lugar, os factos muito específicos (e bastante complexos) do acórdão Abdullahi ( 16 ) encontram pouco eco no caso de G. Karim. Embora se tenha demonstrado que G. Karim pediu asilo em primeiro lugar na Eslovénia e que o pedido que apresentou na Suécia é, por conseguinte, um segundo pedido, não há nada que indique que este tivesse uma ligação a mais de um Estado‑Membro da UE antes de apresentar o seu pedido na Suécia. Em vez disso, a questão que se coloca neste caso é a de saber se ele abandonou o território da União durante um período mínimo de três meses antes de apresentar um segundo pedido e se, consequentemente, as responsabilidades da Eslovénia para com ele cessaram, por força do artigo 19.o, n.o 2, do Regulamento de Dublim III. Essa questão não se levantou no acórdão Abdullahi, que tinha por objeto uma situação diferente, que não envolvia dois, mas três Estados‑Membros.

26.

Em segundo lugar, os termos do artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento de Dublim III, cuja interpretação é agora pedida ao Tribunal de Justiça, diferem significativamente da redação do artigo 19.o, n.o 2, do Regulamento de Dublim II, sobre o qual o Tribunal de Justiça se pronunciou no acórdão Abdullahi. Assim, o raciocínio seguido no acórdão Abdullahi não pode ser automaticamente transposto.

27.

Como expliquei nas minhas Conclusões no processo Ghezelbash, o artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento de Dublim III não estabelece expressamente o alcance da revisão para os efeitos do referido regulamento. Porém, não há dúvida de que, ao contrário do artigo 19.o, n.o 2, do Regulamento de Dublim II, o direito de recurso de uma decisão de transferência é obrigatório. Antes de ser tomada tal decisão, o Estado‑Membro onde se encontra o requerente de asilo deve aplicar os critérios previstos no capítulo III e averiguar se ele próprio ou outro Estado‑Membro é o Estado responsável. Se o segundo Estado aceitar ser o Estado‑Membro responsável, o primeiro Estado‑Membro pode tomar uma decisão de transferência. Um requerente não pode apresentar um recurso ou um pedido de revisão antes de o Estado requerente tomar uma decisão de transferência. Assim, nenhum recurso ou pedido de revisão pode basear‑se exclusivamente no facto de o Estado‑Membro requerido ter aceitado a tomada a cargo ( 17 ).

28.

Na falta de indicação expressa sobre se o alcance do recurso ou do pedido de revisão é suficientemente extensivo para englobar a aplicação, em termos gerais, do Regulamento de Dublim III, ou se está limitado ao fundamento previsto no acórdão Abdullahi, é necessário analisar os objetivos e o contexto do regulamento ( 18 ).

29.

O considerando 19 do Regulamento de Dublim III (que encontra repercussão enquanto disposição substantiva no artigo 27.o, n.o 1, refere explicitamente que, a fim de garantir a proteção efetiva dos direitos dos requerentes, as garantias legais e o direito a um recurso efetivo no que respeita às decisões relativas às transferências devem abranger simultaneamente a «aplicação do presente regulamento» e a «situação jurídica e factual no Estado‑Membro para o qual o requerente [poderá ser] transferido».

30.

A segunda parte dessa garantia parece‑me identificar o que se encontra atualmente codificado no artigo 3.o, n.o 2, segundo parágrafo, do Regulamento de Dublim III. Assim, caso seja impossível transferir um requerente para o Estado‑Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no processo de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado‑Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.o da Carta, o Estado‑Membro que procede à determinação do Estado‑Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado‑Membro seja designado responsável ( 19 ).

31.

A forma natural de interpretar a primeira parte da garantia é a de que o alcance do artigo 27.o, n.o 1, inclui a forma como o Regulamento de Dublim III é aplicado pelos Estados‑Membros.

32.

Nas minhas conclusões no processo Ghezelbash, enveredei por uma análise pormenorizada das três opções apresentadas no Tribunal de Justiça quanto à interpretação adequada do artigo 27.o, n.o 1, e concluí a favor da terceira opção, que permitiria impugnar uma decisão de transferência com base no artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento de Dublim III, com fundamento na aplicação errada pelas autoridades competentes dos critérios previstos no capítulo III. Remeto respeitosamente o Tribunal de Justiça para a análise pormenorizada (contida nos n.os 54 a 84 das minhas conclusões no referido processo) e formulo a mesma recomendação que fiz no processo Ghezelbash. Acrescento apenas algumas considerações.

33.

Em primeiro lugar, G. Karim (tal como M. Ghezelbash) pretende impugnar o que ele alega ser uma aplicação errada dos critérios previstos no capítulo III. Caso possa dar a conhecer o seu ponto de vista de um modo eficaz sobre a decisão de transferência, deve poder invocar a aplicação errada desses critérios no âmbito de um recurso ou de um pedido de revisão.

34.

Em segundo lugar, observo que (tal como M. Ghezelbash) G. Karim não invoca a violação de um direito processual ou substantivo específicos conferidos pelo Regulamento de Dublim III, como os previstos nos artigos 4.° e 5.°, ou os direitos ao reagrupamento familiar contidos nos artigos 9.° a 11.° No âmbito da segunda opção, não teria, portanto, nenhum direito a recurso ou pedido de revisão. O mesmo só poderá gozar de uma proteção judicial integral e efetiva se a terceira opção (e não a segunda opção) for considerada a interpretação correta do artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento de Dublim III.

35.

Concluo, por conseguinte, que o Regulamento de Dublim III deve ser interpretado no sentido de que um requerente, em circunstâncias como as do processo principal, pode, ao abrigo do artigo 27.o, n.o 1, através de recurso ou de pedido de revisão, pedir a um tribunal que verifique se as autoridades competentes aplicaram corretamente os critérios previstos no capítulo III quando tomaram a decisão de o transferir para outro Estado‑Membro para análise do seu pedido de proteção internacional.

Questão 2

36.

O órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 19.o, n.o 2, do Regulamento de Dublim III implica que este regulamento não deva ser aplicável se o requerente de asilo demonstrar que abandonou o território dos Estados‑Membros durante um período mínimo de três meses.

37.

O Migrationsverket considera que o artigo 19.o, n.o 2, significa que o regulamento não se aplica nos casos em que o requerente abandona o território dos Estados‑Membros durante, pelo menos, três meses. Nessas circunstâncias, deve ser apresentado um novo pedido nos termos do regulamento.

38.

O Governo Suíço propõe uma resposta apenas à Questão 2. Alega que decorre do regime do Regulamento de Dublim III que os requerentes não devem poder impugnar a aplicação dos critérios previstos no capítulo III. Se o pudessem fazer, todo o sistema de Dublim ficaria comprometido. O artigo 19.o, que tem por objeto a cessação da responsabilidade, destina‑se a proteger os interesses do Estado‑Membro requerido. Cabe a esse Estado o ónus da prova de que o requerente abandonou o território da União durante, pelo menos, três meses. O artigo 19.o, n.o 2, não se destina a proteger os interesses individuais do requerente de asilo. Por conseguinte, não pode ser invocado perante órgãos jurisdicionais nacionais num recurso ou num pedido de revisão de uma decisão de transferência.

39.

Parece‑me que as Questões 1 e 2 estão estreitamente ligadas. G. Karim alega que as obrigações da Eslovénia, enquanto Estado‑Membro responsável, cessaram, por força do artigo 19.o, n.o 2, a partir do momento em que ele abandonou o território da União Europeia durante mais de três meses, na aceção da referida disposição. Embora não tenha apresentado observações escritas no Tribunal de Justiça, entendo que a sua posição é essencialmente a de que o artigo 13.o, n.o 1, do regulamento (o critério pertinente do capítulo III) não se aplica, daí resultando que a Eslovénia não pode ser o Estado‑Membro responsável. A responsabilidade cabe, por conseguinte, à Suécia.

40.

Os próprios termos do artigo 19.o, n.o 2, significam que as obrigações do Estado‑Membro requerido (neste caso, a Eslovénia) de tomar a cargo um requerente na situação de G. Karim cessam nos casos em que o Estado puder comprovar que a pessoa em causa abandonou o território dos Estados‑Membros durante um período mínimo de três meses. A referida disposição permite ao Estado‑Membro requerido avaliar se é, de facto, o Estado‑Membro responsável para os efeitos do Regulamento de Dublim III, tomando em consideração quaisquer elementos de prova ou indícios pertinentes, conforme estipulado no artigo 22.o, n.o 2.

41.

No caso em apreço, as autoridades suecas informaram a Eslovénia sobre a declaração de G. Karim de que tinha estado fora da União Europeia durante, pelo menos, três meses. As autoridades eslovenas mantiveram o seu acordo de assunção da responsabilidade nos termos do Regulamento de Dublim III.

42.

A confirmação pela Eslovénia do seu acordo de assunção da responsabilidade não é uma decisão de transferência e não pode, portanto, em si mesma, ser objeto de um recurso ou de um pedido de revisão pelos tribunais suecos, ao abrigo do artigo 27.o, n.o 1, do regulamento.

43.

É, no entanto, concebível que o valor probatório e o peso atribuído pelas autoridades suecas à informação que G. Karim lhes forneceu quando decidiram transferi‑lo para a Eslovénia, sejam suscetíveis de recurso ou pedido de revisão na medida em que sejam pertinentes para saber se estas autoridades aplicaram corretamente os critérios previstos no capítulo III ao tomarem a própria decisão de transferência.

44.

A intensidade de qualquer processo de recurso ou de pedido de revisão não está prevista no regulamento e deve, por conseguinte, ser resolvida pelas regras processuais nacionais, sem prejuízo do princípio da efetividade.

45.

Por último, no caso de G. Karim poder demonstrar que abandonou o território da União durante, pelo menos, de três meses, qualquer pedido de asilo apresentado posteriormente às autoridades competentes de um Estado‑Membro constitui um novo pedido que dá lugar a um novo procedimento de determinação do Estado‑Membro responsável para efeitos do segundo parágrafo do artigo 19.o, n.o 2. Nessa medida, parece‑me que a verdadeira questão não reside — como a formulação da segunda questão submetida pelo órgão jurisdicional nacional poderia sugerir — em saber se o Regulamento de Dublim III «deixa de ser aplicável». O regulamento é aplicável; mas o resultado da sua aplicação seria diferente — com base nesses factos — na medida em que Suécia permaneceria o Estado‑Membro responsável pela decisão do pedido de asilo de G. Karim.

Conclusão

46.

À luz das considerações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões suscitadas pelo Kammarrätten i Stockholm (Tribunal Administrativo de Recurso de Estocolmo decidindo em matéria de imigração, Suécia) do seguinte modo:

O Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida deve ser interpretado no sentido de que um requerente, em circunstâncias como as do processo principal, pode, ao abrigo do artigo 27.o, n.o 1, através de recurso ou de pedido de revisão, pedir a um tribunal que verifique se as autoridades competentes aplicaram corretamente os critérios previstos no capítulo III quando tomaram a decisão de o transferir para outro Estado‑Membro para análise do seu pedido de proteção internacional.

Nos casos em que um requerente de asilo possa demonstrar que preenche as condições previstas no primeiro parágrafo do artigo 19.o, n.o 2, porque abandonou o território dos Estados‑Membros durante, pelo menos, três meses, qualquer pedido de asilo apresentado posteriormente às autoridades competentes de um Estado‑Membro constitui um novo pedido que dá lugar a um novo procedimento de determinação do Estado‑Membro responsável para efeitos do segundo parágrafo do artigo 19.o, n.o 2, do Regulamento n.o 604/2013.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida (JO 2013, L 180, p. 31).

( 3 ) Regulamento (CE) n.o 343/2003 do Conselho, de 18 de fevereiro de 2003, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro (JO 2003, L 50, p. 1).

( 4 ) Os atos aplicáveis são, atualmente, os seguintes: (i) o Regulamento de Dublim III, que substitui o Regulamento de Dublim II; (ii) o Regulamento (CE) n.o 1560/2003 da Comissão, de 2 de setembro de 2003, relativo às modalidades de aplicação do Regulamento (CE) n.o 343/2003 do Conselho, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro (JO 2003, L 222, p. 3) — este regulamento foi parcialmente revogado pelo Regulamento de Dublim III e significativamente alterado pelo Regulamento de Execução (UE) n.o 118/2014 da Comissão, de 30 de janeiro de 2014, que altera o Regulamento (CE) n.o 1560/2003 (JO 2014, L 39, p. 1) (a seguir «regulamento de execução»); e (iii) o Regulamento EURODAC. No que se refere a esta última medida, v., igualmente, n.o 11 e notas de rodapé n.os 10 e 11, infra.

( 5 ) Os referidos atos incluem a Diretiva 2013/32/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa a procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional (reformulação) (JO 2013, L 180, p. 60) (a seguir «diretiva procedimentos»), e a Diretiva 2011/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011 que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida (reformulação) (JO L 337, p. 9) (a seguir «diretiva condições a preencher»). A referida diretiva revogou e substituiu a Diretiva 2004/82/CE que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção internacional, bem como relativas ao respetivo estatuto, e relativas ao conteúdo da proteção concedida (JO 2004, L 304, p. 12) de 21 de dezembro de 2013.

( 6 ) Acórdão Abdullahi, C‑394/12, EU:C:2013:813, n.os 60 e 62. No referido processo, o Tribunal de Justiça interpretou o artigo 19.o, n.o 2, do Regulamento de Dublim II.

( 7 ) JO 2010, C 83, p. 389 (a seguir «Carta»).

( 8 ) Integralmente reproduzido no n.o 10 das presentes conclusões.

( 9 ) O Acordo entre a Comunidade Europeia e a Confederação Suíça relativo aos critérios e mecanismos de determinação do Estado responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num Estado‑Membro ou na Suíça entrou em vigor em 1 de março de 2008 (JO 2008, L 53, p. 5).

( 10 ) Regulamento (UE) n.o 603/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativo à criação do sistema «Eurodac» de comparação de impressões digitais para efeitos da aplicação efetiva do Regulamento (UE) n.o 604/2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou um apátrida, e de pedidos de comparação com os dados Eurodac apresentados pelas autoridades responsáveis dos Estados‑Membros e pela Europol para fins de aplicação da lei e que altera o Regulamento (UE) n.o 1077/2011 que cria uma Agência europeia para a gestão operacional de sistemas informáticos de grande escala no espaço de liberdade, segurança e justiça (reformulação) (JO 2013, L 180, p. 1). O referido regulamento é aplicável com efeitos a contar de 19 de julho de 2015 e está atualmente em vigor. Contudo, não era aplicável à data dos factos.

( 11 ) Nessa altura, a base jurídica da base de dados EURODAC era o Regulamento (CE) n.o 2725/2000 do Conselho, de 11 de dezembro de 2000, relativo à criação do sistema «Eurodac» de comparação de impressões digitais para efeitos da aplicação efetiva da Convenção de Dublim (JO 2000, L 316, p. 1).

( 12 ) Assinada em Genebra em 28 de julho de 1951 e que entrou em vigor em 22 de abril de 1954 (Recueil des traités des Nations unies, vol. 189, p. 150, n.o 2545, 1954), conforme complementada pelo Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados, celebrado em Nova Iorque em 31 de janeiro de 1967, que entrou em vigor em 4 de outubro de 1967.

( 13 ) Acórdão NS, C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.os 78 e 79.

( 14 ) O regulamento entrou em vigor em 1 de janeiro de 2014.

( 15 ) V., igualmente, n.o 30 das presentes conclusões.

( 16 ) O acórdão Abdullahi foi resumido e analisado nos n.os 48 a 53 das Conclusões que apresentei no processo Ghezelbash.

( 17 ) V. as minhas conclusões no processo Ghezelbash, n.os 57 a 59.

( 18 ) Acórdão Petrosian e o., C‑19/08, EU:C:2009:41, n.o 34.

( 19 ) V. nota de rodapé 49 e n.o 60 das minhas conclusões no processo Ghezelbach.

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