EUR-Lex Access to European Union law

Back to EUR-Lex homepage

This document is an excerpt from the EUR-Lex website

Document 62012CC0355

Conclusões da advogada-geral Sharpston apresentadas em 19 de Março de 2013.
Nintendo Co. Ltd e outros contra PC Box Srl e 9Net Srl.
Pedido de decisão prejudicial: Tribunale di Milano - Itália.
Diretiva 2001/29/CE - Direito de autor e direitos conexos na sociedade da informação - Noção de ‘medidas de caráter tecnológico’ - Dispositivo de proteção - Aparelho e produtos complementares protegidos - Dispositivos, produtos ou componentes complementares semelhantes provenientes de outras empresas - Exclusão de toda a interoperabilidade entre si - Efeito dessas medidas de caráter tecnológico - Pertinência.
Processo C-355/12.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2013:581

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

ELEANOR SHARPSTON

apresentadas em 19 de setembro de 2013 ( 1 )

Processo C‑355/12

Nintendo Co. Ltd

Nintendo of America Inc.

Nintendo of Europe GmbH

contra

PC Box Srl

9Net Srl

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunale di Milano (Itália)]

«Direito de autor e direitos conexos na sociedade da informação — Proteção de medidas de caráter tecnológico concebidas para impedir ou restringir atos não autorizados pelo titular do direito — Consolas de videojogos concebidas para impedir a utilização de jogos não autorizados pelo fabricante da consola — Dispositivos capazes de neutralizar essas medidas — Relevância da utilização a que se destinam as consolas — Relevância da medida, natureza e importância de diferentes utilizações possíveis dos dispositivos»

1. 

O artigo 6.o da Diretiva 2001/29 ( 2 ) exige aos Estados‑Membros que assegurem proteção jurídica adequada contra uma variedade de atos ou de atividades que neutralizem, ou cujo objetivo seja neutralizar, medidas eficazes de caráter tecnológico concebidas para impedir ou restringir atos que não são autorizados pelo titular de um direito de autor ou direito conexo.

2. 

Um fabricante de videojogos e de consolas, concebe ambos os artigos de maneira a que devam reconhecer‑se mutuamente através da troca de informação codificada por forma a que os jogos possam ser jogados nas consolas. A intenção declarada é garantir que apenas os jogos produzidos pelo ou sob licença do fabricante (os quais se encontram protegidos nos termos da Diretiva 2001/29) possam utilizar‑se nessas consolas (em relação às quais não se alega encontrarem‑se protegidas nos termos dessa diretiva) e, assim, impedir a utilização das consolas com cópias não autorizadas dos jogos protegidos.

3. 

Um outro operador comercializa dispositivos que podem ser utilizados para permitir que outros jogos, incluindo os que não são cópias daqueles produzidos ou autorizados pelo fabricante da consola, sejam jogados nas consolas. Alega que o objetivo do fabricante — que deseja impedir a comercialização desses dispositivos — não é impedir a cópia não autorizada dos seus jogos (um objetivo que deve ser protegido contra a neutralização nos termos do artigo 6.o da Diretiva 2001/29), mas aumentar as vendas desses jogos (um objetivo para o qual tal proteção não é exigida).

4. 

Tendo em conta este pano de fundo, o Tribunale di Milano (Tribunal de Milão) pergunta, essencialmente, i) se o artigo 6.o da Diretiva 2001/29 abrange dispositivos de reconhecimento instalados em hardware (consolas) bem como códigos encriptados no próprio material protegido por direito de autor, ainda que a interoperabilidade entre aparelhos e produtos seja dessa forma limitada, e ii), ao determinar se outros dispositivos têm finalidades comerciais relevantes ou utilizações para além da neutralização, que importância deve atribuir à utilização prevista para as consolas e como deve avaliar as várias utilizações que podem ser dadas aos outros dispositivos.

5. 

O órgão jurisdicional nacional limita as suas questões à interpretação da Diretiva 2001/29. Contudo, um videojogo é em larga medida um tipo de programa de computador (embora também possa incorporar outros tipos de obra intelectual, tanto narrativa como gráfica), e os jogos de computador caem no âmbito da Diretiva 2009/24 ( 3 ).

Resumo da legislação relevante da União Europeia

6.

Os principais aspetos relevantes da Diretiva 2001/29 e da Diretiva 2009/24 podem ser resumidos da forma seguinte.

Diretiva 2001/29

7.

O preâmbulo da Diretiva 2001/29 reconhece que as medidas de caráter tecnológico permitirão cada vez mais aos titulares dos direitos impedir ou restringir atos que não autorizaram, mas expressa uma preocupação de que os meios de ilicitamente neutralizar essas medidas se desenvolverão a um ritmo semelhante. As medidas postas em prática pelos titulares de direitos devem por isso ser protegidas juridicamente ( 4 ). Tal proteção jurídica deve incidir sobre as medidas de caráter tecnológico que restrinjam efetivamente atos não autorizados pelos titulares de direitos de autor ou dos direitos conexos ou do direito sui generis em bases de dados, sem no entanto impedir o funcionamento normal dos equipamentos eletrónicos e o seu desenvolvimento tecnológico. Tal proteção jurídica deve ser proporcionada e não deve proibir os dispositivos ou atividades que têm uma finalidade comercial significativa ou cuja utilização prossiga objetivos diferentes da neutralização da proteção técnica ( 5 ). Além disso, a proteção jurídica concedida pela Diretiva 2001/29 não deve sobrepor‑se àquela dada às medidas de caráter tecnológico utilizadas em relação com programas de computador nos termos da Diretiva 2009/24 ( 6 ).

8.

O artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2001/29, especifica portanto que a diretiva deixa intactas e não afeta de modo algum as disposições da União Europeia vigentes relativas à proteção jurídica de programas de computador.

9.

O artigo 6.o da mesma diretiva intitula‑se «Obrigações em relação a medidas de caráter tecnológico».

10.

O artigo 6.o, n.o 1, exige aos Estados‑Membros que assegurem proteção jurídica adequada contra a neutralização de qualquer medida eficaz de caráter tecnológico por pessoas que saibam ou devam razoavelmente saber que é esse o seu objetivo.

11.

O artigo 6.o, n.o 2, exige aos Estados‑Membros que assegurem proteção jurídica adequada contra o fabrico, a importação, a distribuição, a venda, o aluguer, a publicidade para efeitos de venda ou de aluguer, ou a posse para fins comerciais de dispositivos, produtos ou componentes ou as prestações de serviços que a) sejam promovidos, publicitados ou comercializados para neutralizar a proteção de medidas de caráter tecnológico eficazes, ou b) só tenham limitada finalidade comercial ou utilização para além da neutralização da proteção, ou c) sejam essencialmente concebidos, produzidos, adaptados ou executados com o objetivo de permitir ou facilitar a neutralização da proteção.

12.

O artigo 6.o, n.o 3, define «medidas de caráter tecnológico» como «quaisquer tecnologias, dispositivos ou componentes que, durante o seu funcionamento normal, se destinem a impedir ou restringir atos, no que se refere a obras ou outro material, que não sejam autorizados pelo titular de um direito […]». Estas são consideradas «eficazes» quando a utilização da obra ou de outro material protegido seja controlada pelos titulares dos direitos através de um controlo de acesso ou de um processo de proteção, como por exemplo a codificação, cifragem ou qualquer outra transformação da obra ou de outro material protegido, ou um mecanismo de controlo da cópia, que garanta a realização do objetivo de proteção.

Diretiva 2009/24

13.

O preâmbulo da Diretiva 2009/24 aparentemente define a expressão «programa de computador» como incluindo programas que estão incorporados no hardware ( 7 ) e torna claro que deve ser protegida unicamente «a expressão de um programa de computador» e não as ideias e princípios subjacentes em si mesmos ( 8 ). Especifica que «qualquer reprodução, tradução, adaptação ou transformação não autorizadas da forma do código em que uma cópia de um programa de computador foi criada» constitui uma infração aos direitos exclusivos do autor, mas reconhece que essa reprodução e tradução podem ser necessárias, por exemplo, para conseguir a interoperabilidade com outros programas ou para permitir que todos os elementos de um sistema informático, incluindo os de diferentes fabricantes, funcionem em conjunto. Em tais circunstâncias restritas, uma «pessoa que tem o direito de usar uma cópia do programa» fica dispensada da solicitação do consentimento do titular do direito ( 9 ). A proteção dos programas de computador ao abrigo do direito de autor não deverá prejudicar, nos casos apropriados, a aplicação de outras formas de proteção. Todavia, devem considerar‑se nulos os termos contratuais contrários às disposições da diretiva a respeito, inter alia, da descompilação ( 10 ).

14.

Por conseguinte, os n.os 1 e 2 do artigo 1.o exigem aos Estados‑Membros que estabeleçam uma proteção jurídica dos programas de computador mediante a concessão de direitos de autor (incluindo a sua expressão sob qualquer forma, mas não as ideias e princípios que lhes subjazem), enquanto obras literárias, no sentido da Convenção de Berna ( 11 ).

15.

Nos termos das alíneas a) e c) do n.o 1 do artigo 4.o, os direitos exclusivos do titular do direito devem incluir, inter alia, «o direito de efetuar ou autorizar» a) «a reprodução permanente ou transitória de um programa de computador, seja por que meio for, e independentemente da forma de que se revestir, no todo ou em parte» e c) «qualquer forma de distribuição ao público, incluindo a locação, do original ou de cópias de um programa de computador».

16.

No entanto, o artigo 5.o prevê uma série de exceções a esses direitos exclusivos. Em especial, em relação a qualquer pessoa que se encontre legitimamente na posse de um programa de computador e que tenha o direito de utilizá‑lo, a autorização não é exigida para: a reprodução, sempre que esta seja necessária para a utilização do programa de acordo com o fim a que se destina, bem como para a correção de erros; a execução de uma cópia de apoio, na medida em que seja necessária para a utilização do programa; ou a observação, estudo ou teste do funcionamento do programa a fim de apurar as ideias e os princípios subjacentes a qualquer elemento do mesmo, se efetuados ao executar qualquer ato que a pessoa em questão tem o direito de praticar.

17.

O artigo 6.o da Diretiva 2009/24 tem a epígrafe «Descompilação», um termo que não se encontra posteriormente definido. Nos termos do n.o 1 do artigo 6.o, a autorização do titular do direito não é necessária quando a reprodução do código ou a tradução da sua forma sejam indispensáveis para conseguir a interoperabilidade entre programas de computador, desde que a) o ato seja realizado por uma pessoa que tenha o direito de utilizar o programa ou por alguém em seu nome b) que não tinha anteriormente à disposição as informações necessárias à interoperabilidade, e c) que se limite a partes do programa original que sejam necessárias para esse fim. O n.o 2 do artigo 6.o acrescenta que as informações obtidas através da aplicação do n.o 1 devem ser utilizadas apenas para esse fim e o n.o 3 do artigo 6.o que os legítimos interesses do titular do direito não podem ser lesados de forma injustificada.

18.

O artigo 7.o da Diretiva 2009/24 refere‑se a medidas de proteção especiais. Exige aos Estados‑Membros que tomem medidas adequadas contra, essencialmente, aqueles que, conscientemente e para fins comerciais, ponham em circulação ou detenham qualquer cópia ilícita de um programa de computador ou quaisquer meios cujo único objetivo seja facilitar a supressão não autorizada ou a neutralização de um dispositivo técnico utilizado para a proteção de um programa de computador.

Factos, procedimento e questões objeto do reenvio prejudicial

19.

O processo judicial nacional é intentado por três empresas do grupo Nintendo (a seguir, «Nintendo»), fabricantes de videojogos e consolas, contra a PC Box Srl (a seguir, «PC Box»), uma empresa que comercializa mod chips e game copiers (a seguir, «dispositivos da PC Box») através do seu sítio da internet. Ambos os tipos de dispositivo permitem que videojogos que não sejam fabricados pela Nintendo ou por fabricantes independentes licenciados pela Nintendo (a seguir, «jogos da Nintendo e licenciados pela Nintendo») possam ser jogados nas consolas da Nintendo. O fornecedor de serviços de internet que aloja o sítio da internet da PC Box é também réu ( 12 ). A Nintendo procura impedir a venda dos dispositivos da PC Box.

20.

O órgão jurisdicional de reenvio fornece um conjunto de pormenores técnicos (e a Nintendo ainda forneceu mais) quanto à forma como os dispositivos da PC Box permitem que jogos que não sejam da Nintendo e licenciados pela Nintendo possam ser jogados nas consolas da Nintendo. Muitos desses pormenores não me parecem relevantes para as questões jurídicas levantadas. É suficiente destacar o seguinte.

21.

O processo principal respeita a dois tipos de consolas fabricadas pela Nintendo (consolas «DS» e consolas «Wii») e os jogos da Nintendo e licenciados pela Nintendo concebidos para elas. A Nintendo afirma que presta apoio gratuito aos fabricantes dos jogos que licencia e que vende os seus jogos em concorrência com eles, não exigindo o pagamento de royalties, mas cobrando pelo fornecimento dos cartuchos ou DVD nos quais os jogos são gravados e que já contêm a informação codificada relevante. Os jogos para as consolas «DS» são gravados em cartuchos que são introduzidos na consola; os jogos para as consolas «Wii» são gravados em DVD, que são inseridos na consola. Os cartuchos e DVD contêm informação codificada que deve ser trocada com outra informação codificada contida nas consolas por forma a que os jogos possam ser utilizados nessas consolas.

22.

Não é contestado que os dispositivos da PC Box podem ser utilizados para neutralizar o efeito de bloqueio da troca de informação codificada exigida entre, por um lado, os jogos da Nintendo e licenciados pela Nintendo e, por outro, as consolas da Nintendo. Nem é contestado que o efeito de bloqueio das medidas da Nintendo impede que jogos que não sejam da Nintendo e licenciados pela Nintendo possam ser utilizados nas consolas da Nintendo e que os dispositivos da PC Box neutralizarão igualmente esse efeito.

23.

De acordo com o órgão jurisdicional de reenvio, a Nintendo alega que equipou legalmente as suas consolas e jogos com medidas de caráter tecnológico por forma a garantir que cópias não autorizadas de jogos da Nintendo e licenciados pela Nintendo não possam ser utilizadas com as suas consolas. Afirma também que o objetivo ou utilização principal dos dispositivos da PC Box é neutralizar essas medidas.

24.

A PC Box questiona se os videojogos devem ser considerados programas de computador ou obra intelectual. Em qualquer caso, alega que comercializa consolas originais da Nintendo com um pacote de software que inclui aplicações especificamente criadas por produtores independentes para utilização nessas consolas ( 13 ), em conjunto com mod chips ou game copiers concebidos para desativar o mecanismo de bloqueio incorporado na consola. A PC Box também considera que o verdadeiro propósito da Nintendo é i) impedir a utilização de software independente sem qualquer relação com o setor das cópias ilegais de videojogos, e ii) compartimentar os mercados tornando os jogos comprados numa zona geográfica incompatíveis com as consolas compradas noutra. Por isso, contesta a aplicação de medidas de caráter tecnológico pela Nintendo, não apenas aos seus videojogos mas também ao hardware, o que considera contrário ao artigo 6.o, n.o 3, da Diretiva 2001/29.

25.

O órgão jurisdicional de reenvio considera que, em linha com a jurisprudência dos tribunais italianos, os videojogos como os que estão em causa não podem ser considerados simplesmente como programas de computador, mas são obras complexas de multimédia que exprimem criações narrativas e gráficas conceptualmente autónomas. Esses jogos devem por isso ser considerados obras intelectuais protegidas por direito de autor. Nota também que as medidas de caráter tecnológico postas em prática pela Nintendo nas suas consolas contribuem apenas indiretamente para a prevenção da cópia não autorizada de jogos, e que a necessidade de intercâmbio de informação entre o jogo e a consola tem o efeito não apenas de permitir que os jogos da Nintendo e licenciados pela Nintendo possam ser usados nas consolas da Nintendo, mas também impedir que esses jogos sejam usados em qualquer outra consola, restringindo desta forma a interoperabilidade e a escolha do consumidor.

26.

Por conseguinte, o Tribunale di Milano solicita uma decisão prejudicial sobre as seguintes questões:

«1)

O artigo 6.o da Diretiva 2001/29/CE deve ser interpretado, também à luz do quadragésimo oitavo considerando da mesma diretiva, no sentido de que a proteção das medidas de caráter tecnológico de proteção relativas a obras ou outros materiais protegidos pelo direito de autor pode estender‑se também a um sistema produzido e comercializado pela mesma empresa em cujo hardware esteja instalado um dispositivo capaz de reconhecer[,] num suporte diferente que incorpore a obra protegida (jogo de vídeo produzido pela mesma empresa, bem como por terceiros, titulares das obras protegidas)[,] um código de reconhecimento, na falta do qual a referida obra não poderá ser visualizada nem utilizada no âmbito desse sistema, integrando deste modo o referido aparelho um sistema fechado à interoperabilidade com aparelhos e produtos complementares que não provenham da empresa fabricante do próprio sistema?

2)

O artigo 6.o da Diretiva 2001/29/CE pode ser interpretado, também à luz do quadragésimo oitavo considerando da mesma diretiva, no sentido de que, quando deva ser avaliado se o uso de um produto ou componente com a finalidade de neutralização das medidas de caráter tecnológico de proteção é ou não prevalecente relativamente a outras finalidades ou usos comercialmente relevantes, o órgão jurisdicional nacional deve recorrer a critérios de avaliação que deem ênfase à finalidade específica atribuída pelo titular dos direitos ao produto no qual está inserido o conteúdo protegido ou, de forma alternativa ou simultânea, a critérios de natureza quantitativa relativos à importância comparativa dos usos ou a critérios de natureza qualitativa, isto é, relativos à natureza e relevância dos próprios usos? [ ( 14 ) ]»

27.

Foram apresentadas observações por escrito pela Nintendo, pela PC Box, pelo Governo polaco e pela Comissão Europeia. Na audiência em 30 de maio de 2013, a Nintendo, a PC Box e a Comissão Europeia apresentaram alegações orais.

Apreciação

Observações preliminares

28.

Em primeiro lugar, ficou claro que o litígio em causa entre as partes no processo principal respeita não apenas ao direito de autor mas também à questão de saber se as medidas postas em prática pela Nintendo são legais à luz das regras do direito da concorrência. Dado que as questões do órgão jurisdicional nacional se confinam a problemas de direito de autor, não me parece apropriado expressar qualquer opinião quanto ao último aspeto no contexto deste reenvio prejudicial.

29.

Em segundo lugar, parece que as medidas de caráter tecnológico postas em prática pela Nintendo procuram impedir ou restringir atos não autorizados a respeito não apenas do próprio material protegido pelo direito de autor de que a Nintendo é titular (os seus próprios jogos) mas também material protegido por direitos de autor cujos titulares são produtores independentes licenciados ( 15 ). Quanto à questão de saber se, para beneficiar da proteção nos termos do artigo 6.o da Diretiva 2001/29, as medidas de caráter tecnológico têm de ser postas em prática pelo próprio titular do direito, é‑lhe feita alusão pelo órgão jurisdicional de reenvio na questão 1, mas não é nem mencionada na sua argumentação nem abordada nas questões submetidas ao Tribunal de Justiça. Por conseguinte, também não a abordarei.

30.

Em terceiro lugar, o resultado do processo principal dependerá das apreciações dos factos que podem apenas ser feitas pelo órgão jurisdicional nacional (e concordaria aqui com a Comissão no sentido de que essas apreciações devem ser feitas separadamente para cada um dos dispositivos da PC Box e para cada tipo de consola da Nintendo). O Tribunal de Justiça não pode, por exemplo, chegar a qualquer conclusão ou expressar qualquer opinião quanto a saber em que medida o objetivo ou a intenção da Nintendo é de facto impedir a cópia não autorizada dos seus jogos e/ou ganhar uma vantagem comercial ao excluir a interoperabilidade com outros produtos. Nem pode decidir se os dispositivos da PC Box preenchem efetivamente um ou mais dos critérios previstos no artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2001/29. Pode meramente dar uma orientação quanto aos tipos de facto que podem ser relevantes na aplicação da legislação nacional que transpõe esse artigo.

Relevância da Diretiva 2009/24

31.

Resulta de forma clara da decisão de reenvio que o órgão jurisdicional nacional chegou a determinadas conclusões de facto quanto à natureza dos jogos da Nintendo e licenciados pela Nintendo e concluiu que, contrariamente ao alegado pela PC Box, esses jogos não devem ser considerados programas de computador no sentido da Diretiva 2009/24, mas obras complexas de multimédia que caem no âmbito de aplicação da Diretiva 2001/29.

32.

Nas suas observações escritas, a Polónia sugeriu que essas apreciações podiam ser questionadas, embora a sua análise, não inteiramente conclusiva, pareça conduzi‑la na mesma direção. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça pediu às partes presentes na audiência (a Nintendo, a PC Box e a Comissão) que abordassem a questão da aplicabilidade da Diretiva 2001/29 em circunstâncias como as do processo principal. A Nintendo e a Comissão concordaram com a abordagem efetuada pelo órgão jurisdicional nacional. A PC Box, por outro lado, sustentou que era relevante para as circunstâncias em causa a Diretiva 2009/24 e não a Diretiva 2001/29; afirmou que a descompilação levada a cabo pela PC Box se limitava às partes do programa estritamente necessárias para garantir a interoperabilidade entre as consolas da Nintendo e os jogos «homebrew» que não violavam qualquer direito de autor ou direito conexo.

33.

Parece‑me que o Tribunal de Justiça não tem fundamento nem competência para reavaliar os factos apurados pelo órgão jurisdicional de reenvio e que a conclusão que este infere das suas constatações neste ponto é difícil de ser tratada como uma questão de direito da União Europeia.

34.

A Diretiva 2009/24 diz respeito apenas aos programas de computador, ao passo que a Diretiva 2001/29 diz respeito ao direito de autor e direitos conexos das obras intelectuais em geral. A última deixa intacta e não afeta de modo algum as disposições do direito da União Europeia existentes em matéria de, inter alia, proteção jurídica dos programas de computador. O Tribunal de Justiça declarou portanto que a Diretiva 2009/24 constitui uma lex specialis relativamente às disposições da Diretiva 2001/29 ( 16 ). Na minha opinião, essa declaração deve ser lida como significando que as disposições da Diretiva 2009/24 prevalecem sobre as da Diretiva 2001/29, mas apenas quando o material protegido cai inteiramente no âmbito da primeira. Se os jogos da Nintendo e licenciados pela Nintendo forem só programas de computador, a Diretiva 2009/24 aplicar‑se‑ia, afastando a Diretiva 2001/29. Na realidade, se a Nintendo aplicasse medidas de caráter tecnológico distintas para proteger os programas de computador e outro material, a Diretiva 2009/24 podia aplicar‑se aos primeiros, e a Diretiva 2001/29 ao último.

35.

Contudo, o órgão jurisdicional nacional considerou que os jogos da Nintendo e licenciados pela Nintendo não se podem reduzir apenas à categoria de programas de computador. Incluem também obras intelectuais na forma narrativa e gráfica, que parecem ser indissociáveis dos próprios programas. As medidas da Nintendo afetam o acesso e a utilização dos jogos como um todo, não apenas a sua componente de programa de computador. A proteção que a Diretiva 2009/24 confere contra atos não autorizados a respeito de programas de computador é ligeiramente menos generosa (em virtude das exceções previstas nos artigos 5.° e 6.° ( 17 )) do que aquela que a Diretiva 2001/29 confere contra a neutralização de medidas de caráter tecnológico concebidas para impedir ou restringir atos não autorizados a respeito de obras intelectuais em geral. Quando estão em causa obras intelectuais complexas que compreendem tanto programas de computador como outro material — e quando os dois não podem ser separados — parece‑me que deve ser concedida a maior proteção e não a menor. Se assim não fosse, os titulares de direitos não obteriam quanto a esse outro material o grau de proteção a que têm direito nos termos da Diretiva 2001/29.

36.

Em qualquer caso, não parece que os atos tornados possíveis pela utilização dos dispositivos da PC Box, e aos quais diz respeito o processo principal, se enquadrem nalguma das exceções estabelecidas nos artigos 5.° e 6.° da Diretiva 2009/24, embora novamente essa seja uma questão que cabe ao órgão jurisdicional nacional esclarecer no âmbito da apreciação dos factos.

37.

Finalmente, tenho conhecimento de que o Bundesgerichtshof (Tribunal Federal alemão) decidiu submeter uma questão ao Tribunal de Justiça quanto à aplicabilidade da Diretiva 2009/24 a videojogos do tipo em questão ( 18 ). Julgo preferível que o Tribunal de Justiça decida tal questão à luz dos argumentos mais completos que lhe serão apresentados nesse processo e limite a sua apreciação no presente processo às questões específicas de interpretação levantadas pelo órgão jurisdicional nacional.

38.

Por conseguinte, abordarei as questões por referência apenas à Diretiva 2001/29.

As questões objeto do reenvio prejudicial

39.

O Tribunale di Milano coloca duas questões, embora talvez não de forma tão clara como teria sido desejável ( 19 ).

40.

Tal como a entendo, a primeira questão compreende duas partes. Em primeiro lugar, as «medidas de caráter tecnológico» no sentido do artigo 6.o da Diretiva 2001/29 incluem não apenas aquelas que estão fisicamente ligadas ao próprio material protegido por direito de autor (aqui, por incorporação nos cartuchos ou DVD nos quais os jogos são gravados) mas também aquelas que estão fisicamente ligadas a aparelhos necessários para utilizar ou usufruir desse material (aqui, por incorporação nas consolas nas quais os jogos são jogados)? Em segundo lugar, cumprem essas medidas os requisitos para poderem ser objeto de proteção de acordo com essa disposição quando (ou mesmo se) o seu efeito não é apenas restringir a reprodução não autorizada do material protegido por direito de autor, mas também impedir qualquer utilização desse material com outros aparelhos ou de outro material com esses aparelhos?

41.

A segunda questão parece dizer respeito essencialmente aos critérios a aplicar quando se avalia, no contexto do artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2001/29, a finalidade ou a utilização de dispositivos como os da PC Box, que de facto neutralizam, ou podem neutralizar, as medidas de caráter tecnológico que podem ser objeto de proteção. O órgão jurisdicional nacional refere‑se a esse respeito, por um lado, à «finalidade específica atribuída pelo titular dos direitos ao produto no qual está inserido o conteúdo protegido» (neste caso, as consolas da Nintendo) e, por outro, à medida, natureza e importância das utilizações do dispositivo, produto ou componente em si mesmo (neste caso, os dispositivos da PC Box).

42.

Deduzo daí que o órgão jurisdicional nacional pretenda, em primeiro lugar, determinar se as medidas de caráter tecnológico da Nintendo cumprem os requisitos para poderem ser objeto de proteção porque são concebidas para impedir ou restringir atos não autorizados pelo titular do direito, mesmo que também restrinjam a interoperabilidade; depois, se for o caso, em segundo lugar e separadamente, se essa proteção deve ser conferida contra o fornecimento dos dispositivos da PC Box porque permitem ou facilitam a prática desses atos não autorizados. Considero, no entanto, que as duas questões não podem ser completamente separadas e que fatores mencionados em relação a uma podem ser relevantes para a solução da outra.

Questão 1

43.

A primeira parte da questão pode, na minha opinião, ser considerada de forma separada e parece não colocar grande dificuldade. Nada na redação do artigo 6.o da Diretiva 2001/29 exclui medidas como aquelas em questão, que são incorporadas parcialmente nos jogos e parcialmente nas consolas, e que envolvem a sua interação. A definição do artigo 6.o, n.o 3 — «quaisquer tecnologias, dispositivos ou componentes que, durante o seu funcionamento normal, se destinem a impedir ou restringir atos, no que se refere a obras ou outro material, que não sejam autorizados pelo titular de um direito» — é ampla, e inclui «um controlo de acesso ou de um processo de proteção, como por exemplo a codificação, cifragem ou qualquer outra transformação da obra ou de outro material protegido, ou um mecanismo de controlo da cópia». Excluir medidas que são, em parte, incorporadas em dispositivos que não aqueles onde está alojado o próprio material protegido por direito de autor, seria provavelmente negar a uma ampla gama de medidas de caráter tecnológico a proteção que a diretiva visa assegurar.

44.

A segunda parte da questão é menos simples.

45.

Tanto a Nintendo como a Comissão assinalaram acertadamente que, para beneficiar de proteção jurídica de acordo com o artigo 6.o da Diretiva 2001/29, uma medida de caráter tecnológico tem de ser eficaz. Assim, em conformidade com o n.o 3 do artigo 6.o, não deve apenas ser concebida para, durante o seu funcionamento normal, impedir ou restringir atos não autorizados, mas deve também permitir o controlo da utilização do material pelo titular do direito. Além disso, como sustenta corretamente a Comissão, os atos que deve impedir ou restringir são aqueles para os quais é exigida a autorização do titular do direito nos termos da diretiva — nomeadamente, a reprodução (artigo 2.o), a comunicação ou colocação à disposição do público (artigo 3.o) ou a distribuição (artigo 4.o) da obra do titular do direito.

46.

A Comissão considera que os atos especificamente em causa no processo principal são, em primeiro lugar, a reprodução e, em segundo lugar (porque as cópias podem ser distribuídas subsequentemente), a distribuição de jogos da Nintendo e licenciados pela Nintendo. Não vejo razão para discordar desse entendimento.

47.

Como sublinhei, as apreciações de facto incumbem ao órgão jurisdicional nacional, mas as medidas de caráter tecnológico da Nintendo parecem‑me provavelmente eficazes para, se não impedir, pelo menos restringir a reprodução não autorizada dos jogos da Nintendo e licenciados pela Nintendo. É verdade que o órgão jurisdicional nacional considerou a esse respeito que o seu efeito é em grande medida indireto (sendo o efeito imediato impedir a utilização de cópias não autorizadas nas consolas da Nintendo), mas não entendo que o artigo 6.o da Diretiva 2001/29 contenha qualquer condição ou faça qualquer distinção quanto à natureza direta do efeito. Se as cópias não autorizadas não podem ser utilizadas (pelo menos nas consolas da Nintendo), é provável que tal tenha um efeito restritivo significativo na sua produção e, deste modo, na sua subsequente distribuição. Também parece provável que as medidas terão esse efeito «durante o seu funcionamento normal». Para efeitos do que segue, por conseguinte, presumirei que isso é verdade.

48.

Se esses fossem os seus únicos efeitos, as medidas de caráter tecnológico em causa cairiam claramente no âmbito do artigo 6.o da Diretiva 2001/29 e deveriam beneficiar da proteção jurídica exigida.

49.

Contudo, a questão do órgão jurisdicional nacional baseia‑se na premissa de que essas medidas também impedem ou restringem atos que não exigem a autorização do titular do direito nos termos da Diretiva 2001/29 — tais como a utilização das consolas da Nintendo para jogar jogos diferentes dos da Nintendo ou licenciados pela Nintendo ou cópias dos mesmos, ou jogar os jogos da Nintendo e licenciados pela Nintendo em consolas não fabricadas pela Nintendo.

50.

Na medida em que se produzam esses outros efeitos, a Diretiva 2001/29 não exige a proteção jurídica das medidas de caráter tecnológico em causa. Na realidade, não pareceria haver qualquer justificação para essa proteção, se fosse concedida.

51.

A dificuldade reside no facto de que as mesmas medidas impedem ou restringem atos que exigem autorização e outros que não.

52.

A Nintendo entende que o facto de uma medida de caráter tecnológico impedir ou restringir atos que não exigem autorização é irrelevante, desde que esse efeito seja apenas ocasional ou incidental em relação ao objetivo e efeito principal de impedir ou restringir atos que exigem autorização. Pelo contrário, a PC Box realça os princípios da proporcionalidade e interoperabilidade estabelecidos no quadragésimo oitavo e quinquagésimo quarto considerandos do preâmbulo da Diretiva 2001/29, respetivamente: medidas de caráter tecnológico que vão para além do que é necessário para proteger o próprio material protegido por direito de autor ou que excluam a interoperabilidade não devem por isso beneficiar de proteção. A Comissão considera que se essas medidas impedem também atos que não exigem autorização, e se podiam ter sido concebidas por forma a impedir apenas atos que exigem autorização, então são desproporcionadas e não podem ser objeto de proteção; no entanto, se for inevitável que elas também impeçam atos que não exigem autorização, podem não ser desproporcionadas e podem portanto ser objeto de proteção; a avaliação requer que seja tido em conta o estado atual da tecnologia. Tanto a Nintendo como o Governo polaco referem que as consolas da Nintendo não são aparelhos computacionais de fins genéricos; são concebidas e comercializadas com o único e explícito fim de permitir que nelas sejam jogados os jogos da Nintendo e licenciados pela Nintendo.

53.

Assim, existe de facto um amplo acordo entre os que apresentam observações (e eu também concordo) que deve ser aplicado um critério de proporcionalidade, princípio referido no quadragésimo oitavo considerando do preâmbulo da Diretiva 2001/29. A Nintendo e a PC Box, contudo, abordam esse critério de pontos de partida opostos e defendem resultados opostos.

54.

Concordo com a Comissão que é necessário que o órgão jurisdicional nacional examine se, no estado atual da tecnologia, o pretendido efeito de impedir ou restringir atos que exigem a autorização do titular do direito pode ser atingido sem também impedir ou restringir atos que não exigem essa autorização. Por outras palavras, podia a Nintendo ter protegido os seus próprios jogos ou os jogos por si licenciados sem impedir ou restringir a utilização das suas consolas para jogar jogos «homebrew»?

55.

Concordo igualmente com a forma cautelosa e matizada com que a Comissão exprime a sua opinião. O critério de proporcionalidade não pode ser reduzido a uma mera afirmação de que a interferência com uma atividade legítima é irrelevante desde que seja apenas incidental (Nintendo) ou de que qualquer restrição à interoperabilidade é necessariamente desproporcionada (PC Box).

56.

Na sua forma clássica, conforme aplicado pelo Tribunal de Justiça, esse critério implica determinar se uma medida prossegue um objetivo legítimo, se é adequada a atingir esse objetivo e se não vai além do que é necessário para atingi‑lo.

57.

Quanto ao primeiro elemento do critério, o objetivo de impedir ou restringir atos não autorizados pelo titular do direito é inerente a qualquer sistema de direitos autorais e é especificamente encorajado pela proteção jurídica exigida nos termos do artigo 6.o da Diretiva 2001/29.

58.

Na medida em que as medidas de caráter tecnológico da Nintendo prossigam apenas esse objetivo legítimo, a questão da sua adequação para atingi‑lo está ligada à da sua eficácia, que abordei nos n.os 45 a 47, supra. O órgão jurisdicional nacional tem de decidir, com base nos elementos que lhe são apresentados, que medidas de caráter tecnológico, entre as atualmente disponíveis, podem conferir uma proteção eficaz contra a reprodução não autorizada de jogos da Nintendo e licenciados pela Nintendo. Talvez não haja medidas capazes de impedir totalmente semelhantes atos. Contudo, medidas diferentes podem conduzir a graus diferentes de restrição. O órgão jurisdicional nacional tem de determinar se o grau de restrição obtido pela medida de caráter tecnológico em causa oferece uma proteção eficaz contra os atos não autorizados.

59.

Se, por outro lado, o órgão jurisdicional nacional concluísse que a Nintendo estava a prosseguir adicionalmente qualquer outro objetivo não justificado no contexto dessa diretiva, a medida em que a natureza das medidas de caráter tecnológico foi determinada por este último objetivo teria de ser tida em conta ao examinar se essas medidas eram adequadas para atingir o objetivo legítimo de impedir ou restringir atos não autorizados.

60.

A questão remanescente é a de saber se as medidas não vão além do que é necessário para atingir o objetivo de impedir ou restringir a reprodução não autorizada de jogos da Nintendo e licenciados pela Nintendo.

61.

A esse respeito, o órgão jurisdicional nacional tem de atentar ao grau de restrição de atos que não exigem a autorização do titular do direito. Que categorias de atos são de facto impedidas ou restringidas quando as medidas de caráter tecnológico em causa são aplicadas e não são neutralizadas? Quão importante é que esses atos não devam ser impedidos ou restringidos?

62.

Qualquer que seja a avaliação do grau de interferência causado pelas medidas de caráter tecnológico em causa, será necessário decidir se outras medidas podiam ter causado menos interferência oferecendo ainda assim uma proteção comparável dos direitos dos respetivos titulares. A esse respeito, pode ser relevante ter em conta os custos relativos de diferentes tipos de medidas de caráter tecnológico, juntamente com quaisquer outros fatores que possam influenciar ou determinar a escolha entre elas.

63.

É na base de considerações como essas que sublinhei acima (sem qualquer pretensão de exaustividade) que o órgão jurisdicional nacional tem de decidir se as medidas de caráter tecnológico em causa no processo principal são proporcionadas para atingir o objetivo de proteção contra atos não autorizados, conforme contemplado no artigo 6.o da Diretiva 2001/29, e assim poderem ser objeto da proteção jurídica exigida por essa disposição, ou se vão para além do que é necessário para esse efeito e, por conseguinte, não poderem ser objeto dessa proteção.

64.

No entanto, a análise não pode ficar completa sem considerar a proteção também à luz dos dispositivos, produtos, componentes ou serviços contra os quais é solicitada, a que se refere a Questão 2.

Questão 2

65.

O órgão jurisdicional nacional procura obter orientação quanto à relevância da «finalidade específica atribuída pelo titular dos direitos ao produto no qual está inserido o conteúdo protegido» (consolas da Nintendo) e da medida, natureza e importância das utilizações dos dispositivos contra cuja utilização a proteção é solicitada (mod chips e game copiers da PC Box).

66.

No que respeita ao primeiro aspeto, o órgão jurisdicional nacional refere‑se à jurisprudência dos tribunais criminais italianos de acordo com a qual, aparentemente, a forma como as consolas são apresentadas ao público e o facto de que são concebidas para jogar videojogos pode levar à conclusão de que a utilização de mod chips tem o objetivo principal de neutralizar as medidas de caráter tecnológico estabelecidas. O órgão jurisdicional de reenvio, contudo, questiona se essa argumentação é adequada, em especial num processo como o que corre perante ele. Nas suas observações, tanto a Nintendo como a Comissão consideram que a intenção do fabricante no que se refere à utilização das consolas não é um critério relevante ao avaliar o objetivo dos mod chips ou dos game copiers. Nas suas observações muito breves sobre esta questão, a PC Box parece adotar o mesmo entendimento, enquanto o Governo polaco considera a utilização pretendida como um fator que pode ser tido em consideração, sem ser decisivo.

67.

Também considero que a utilização específica pretendida pela Nintendo para as suas consolas não tem relevância ao avaliar se deve ser conferida proteção contra o fornecimento de dispositivos da PC Box. O que importa é se estes dipositivos caem no âmbito do n.o 2 do artigo 6.o da Diretiva 2001/29, e portanto se deve ser examinado o segundo aspeto da questão — a medida, natureza e importância das utilizações dos dispositivos da PC Box.

68.

Como a Comissão assinalou, quando uma medida de caráter tecnológico pode obter proteção de acordo com o n.o 2 do artigo 6.o da Diretiva 2001/29, essa proteção deve ser fornecida contra a fabricação, a importação, a distribuição, a venda, o aluguer, a publicidade para efeitos de venda ou de aluguer, ou a posse para fins comerciais de dispositivos que a) sejam promovidos, publicitados ou comercializados com o objetivo de neutralizar a medida de caráter tecnológico em causa, ou b) só tenham finalidade comercial ou utilização limitada para além da sua neutralização, ou c) sejam essencialmente concebidos, produzidos, adaptados ou executados com o objetivo de permitir ou facilitar a sua neutralização. Quando nenhum destes critérios é preenchido, não há proteção de acordo com essas disposições; pelo contrário, é suficiente que seja preenchido um único critério para que seja exigida a proteção.

69.

A preocupação do órgão jurisdicional nacional na sua questão é aparentemente menor com as alíneas a) ou c), isto é, os objetivos para os quais os dispositivos são comercializados ou concebidos, do que com a alínea b), isto é, as utilizações comerciais dos dispositivos em questão. Deseja saber que tipos de critérios — quantitativos e/ou qualitativos — deve ter em conta por forma a avaliar se os mod chips ou os game copiers da PC Box «só têm finalidade comercial ou utilização limitada para além da neutralização» das medidas de caráter tecnológico postas em prática pela Nintendo.

70.

A referência a critérios quantitativos na questão parece indicar que o órgão jurisdicional nacional pretende examinar os elementos de prova quanto a saber, por exemplo, com que frequência são de facto utilizados os dispositivos da PC Box para permitir que cópias não autorizadas de jogos da Nintendo e licenciados pela Nintendo sejam jogadas em consolas da Nintendo e com que frequência são utilizadas para permitir que sejam jogados os jogos que não violam o direito de autor relativamente aos jogos da Nintendo e licenciados pela Nintendo.

71.

A Nintendo considera que tal revela uma ideia errada: o que importa não é se existem finalidades ou utilizações comerciais além de se facilitar a violação dos direitos exclusivos protegidos pelas medidas de caráter tecnológico, mas simplesmente se existem finalidades ou utilizações comerciais além da neutralização dessas medidas, independentemente do tipo de ato ou atividade que é dessa forma facilitado.

72.

A Comissão, contudo, salientou na audiência que a Diretiva 2001/29 não procura criar quaisquer direitos além dos especificados nos artigos 2.°, 3.° e 4.° (no essencial, conceder ou recusar autorização para a reprodução, comunicação ou distribuição de uma obra protegida). A proteção jurídica de acordo com o artigo 6.o é exigida apenas contra a neutralização que viole esses direitos específicos ( 20 ). Em consequência, é relevante considerar as finalidades ou utilizações últimas dos dispositivos da PC Box e não apenas a questão de saber se existem finalidades ou utilizações comerciais além da neutralização das medidas de caráter tecnológico da Nintendo.

73.

Estou aqui de acordo com a Comissão e acrescentaria que os mesmos critérios são relevantes para a avaliação das próprias medidas de caráter tecnológico da Nintendo.

74.

Não é contestado que as medidas de caráter tecnológico da Nintendo bloqueiam tanto atos não autorizados (a utilização de cópias não autorizadas de jogos da Nintendo e licenciados pela Nintendo) como atos que não exigem autorização (a utilização de outros jogos), e que os dispositivos da PC Box neutralizam esse bloqueio em ambos os casos. O bloqueio e a neutralização são assim coextensivos; são as duas faces da mesma moeda.

75.

A medida em que os dispositivos da PC Box podem de facto ser utilizados para outras finalidades que não sejam as que permitem a violação de direitos exclusivos será por isso um fator a ter em conta ao decidir não apenas se esses dispositivos caem no âmbito do n.o 2 do artigo 6.o da Diretiva 2001/29, mas também se as medidas de caráter tecnológico da Nintendo respeitam o critério de proporcionalidade. Se se puder determinar que são utilizados principalmente para essas outras finalidades (e saber se essa proposição pode ser determinada é matéria que cabe ao órgão jurisdicional nacional), não só são utilizados de forma que não violam qualquer dos direitos exclusivos garantidos pela Diretiva 2001/29, mas haverá um forte indício de que as medidas de caráter tecnológico não são proporcionadas. Pelo contrário, se se puder determinar que os dispositivos são utilizados principalmente de uma forma que viole direitos exclusivos, esse será um forte indício de que as medidas são proporcionadas. Consequentemente, se for possível, uma avaliação quantitativa das finalidades últimas da neutralização das medidas de caráter tecnológico por meio dos dispositivos será relevante para determinar se as medidas de caráter tecnológico da Nintendo podem ser objeto em geral de proteção jurídica bem como se a proteção deve ser dada contra a comercialização dos dispositivos da PC Box.

76.

A questão dos critérios qualitativos, levantada pelo órgão jurisdicional nacional, foi abordada nas observações apresentadas ao Tribunal de Justiça. Parece decorrer da decisão de reenvio prejudicial que o órgão jurisdicional nacional considerava que a importância de permitir que as consolas da Nintendo fossem utilizadas para finalidades que não violassem quaisquer direitos exclusivos poderia prevalecer sobre a importância de impedir ou restringir atos não autorizados.

77.

Indiquei acima ( 21 ) que essas considerações podem ser relevantes quando da apreciação do critério de proporcionalidade às medidas de caráter tecnológico da Nintendo. Na minha opinião, também podem ser relevantes para a questão de saber se deve ser concedida proteção contra a comercialização dos dispositivos da PC Box.

78.

Concordaria que pode ser importante nalguns casos (embora menos importante noutros) que a implementação de medidas de caráter tecnológico que protegem direitos exclusivos não devia interferir com os direitos dos utilizadores de realizar atos que não exigem autorização. No entanto, na medida em que os últimos não são direitos fundamentais, também importa reconhecer devidamente a importância de proteger os direitos de autor e os direitos conexos. Não obstante, esses critérios qualitativos deviam ser vistos à luz dos critérios quantitativos já discutidos, nomeadamente a dimensão e a frequência relativas das utilizações que violam e das que não violam direitos exclusivos.

Conclusão

79.

À luz de todas as considerações anteriores, sou da opinião que o Tribunal de Justiça deve responder às questões submetidas pelo Tribunale di Milano nos seguintes termos:

«1)

Numa interpretação correta da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação, a expressão ‘medidas de caráter tecnológico’ na aceção do artigo 6.o dessa diretiva pode incluir medidas incorporadas não apenas nas próprias obras protegidas mas também em dispositivos concebidos para permitir o acesso a essas obras.

2)

Ao determinar se medidas desse tipo podem ser objeto de proteção nos termos do artigo 6.o da Diretiva 2001/29, no caso de terem por efeito impedir ou restringir não apenas atos que exigem a autorização do titular do direito em conformidade com essa diretiva, mas também atos que não exigem essa autorização, o órgão jurisdicional nacional deve verificar se a aplicação das medidas respeita o princípio da proporcionalidade e, em especial, deve considerar se, no estado atual da tecnologia, o primeiro efeito podia ser alcançado sem produzir o segundo ou produzindo‑o em menor medida.

3)

Ao determinar se a proteção deve ser conferida contra qualquer fornecimento de dispositivos, produtos, componentes ou serviços de acordo com o artigo 6.o, n.o 2, da Diretiva 2001/29, não é necessário considerar a finalidade específica atribuída pelo titular do direito a um aparelho concebido para permitir o acesso a obras protegidas. Ao invés, importa tomar em consideração em que medida os dispositivos, produtos, componentes ou serviços contra os quais a proteção é solicitada são ou podem ser utilizados para finalidades legítimas além das que permitem atos que requerem a autorização do titular dos direitos.»


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação (JO 2001, L 167, p. 10).

( 3 ) Diretiva 2009/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, relativa à proteção jurídica dos programas de computador (versão codificada) (JO 2009, L 111, p. 16). A Diretiva 2009/24 revogou e substituiu a Diretiva 91/250/CEE do Conselho, de 14 de maio de 1991, relativa à proteção jurídica dos programas de computador (JO 1991, L 122, p. 42).

( 4 ) V. quadragésimo sétimo considerando.

( 5 ) V. quadragésimo oitavo considerando.

( 6 ) V. quinquagésimo considerando. A referência era originariamente à Diretiva 91/250/CEE do Conselho, de 14 de maio de 1991, relativa à proteção jurídica dos programas de computador (JO 1991, L 122, p. 42), a qual foi revogada e substituída pela Diretiva 2009/24 (v. artigo 10.o desta).

( 7 ) V. sétimo considerando. Procurar definir uma expressão no preâmbulo é uma técnica legislativa pouco habitual. A diretriz 14 do Guia Prático Comum do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão para as pessoas que contribuem para a redação de textos legislativos nas instituições comunitárias estipula que sempre que os termos utilizados no ato não tenham um sentido unívoco, «convém agrupar uma definição desses termos num artigo único, no início do ato». V. também acórdão de 24 de novembro de 2005, Deutsches Milch‑Kontor (C-136/04, Colet., p. I-10095, n.o 32), e, mais recentemente, as conclusões do advogado‑geral Jarabo‑Colomer no processo TeliaSonera Finland (C-192/08, Colet., p. I-10717, em especial n.o 89).

( 8 ) V. décimo primeiro considerando.

( 9 ) V. décimo quinto considerando.

( 10 ) V. décimo sexto considerando.

( 11 ) Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas (1886), conforme alteração mais recente de 1979. Todos os Estados‑Membros são partes na Convenção de Berna.

( 12 ) Este reenvio prejudicial não se refere ao envolvimento do fornecedor de serviços de internet (9Net Srl).

( 13 ) Os videojogos produzidos de forma independente, concebidos para utilização em hardware patenteado, como é o caso das consolas da Nintendo, são frequentemente denominados «homebrew».

( 14 ) Embora a formulação atual da segunda questão possa dar lugar a dúvidas, resulta de forma clara da argumentação apresentada na decisão prejudicial que os «usos» referidos em relação aos critérios quantitativos ou qualitativos são os do «produto ou componente» a avaliar (concretamente, o mod chip ou o game copier), e não os do «produto onde está inserido o conteúdo protegido» (a consola).

( 15 ) V. n.o 21 e a nota de pé de página 13, supra.

( 16 ) Acórdão de 3 de julho de 2012, UsedSoft (C‑128/11, n.o 51).

( 17 ) V. n.os 16 e 17, supra.

( 18 ) C‑458/13, Grund and Nintendo.

( 19 ) A Nintendo citou um ilustre comentador como tendo dito: «É difícil decifrar o sentido destas complicadas questões. (O TJUE poderá ter que devolver estas questões para uma aclaração pelo tribunal de Milão ou por um comité de linguistas.)» Este comentário parece um tanto exagerado, mas de facto a formulação das questões não é simples.

( 20 ) A Comissão assinalou que, tanto na sua proposta inicial como na proposta alterada da Diretiva 2001/29, os n.os 1 e 2 do artigo 6.o especificavam que diziam respeito à «neutralização não autorizada de qualquer medida eficaz de caráter tecnológico destinada a proteger o direito de autor, qualquer direito conexo ao direito de autor […]» e que foi apenas tendo em vista «simplificar a redação» que o Conselho eliminou essa especificação [v. Posição Comum (CE) n.o 48/2000, JO 2000, C 344, p. 1].

( 21 ) No n.o 61.

Top