EUR-Lex Access to European Union law

Back to EUR-Lex homepage

This document is an excerpt from the EUR-Lex website

Document 62000CJ0137

Acórdão do Tribunal de 9 de Setembro de 2003.
The Queen contra The Competition Commission, Secretary of State for Trade and Industry e The Director General of Fair Trading, ex parte Milk Marque Ltd e National Farmers' Union.
Pedido de decisão prejudicial: High Court of Justice (England and Wales), Queen's Bench Division (Crown Office) - Reino Unido.
Política agrícola comum - Artigos 32.º CE a 38.º CE - Regulamento (CEE) n.º 804/68 - Organização comum de mercado no sector do leite e produtos lácteos - Preço indicativo do leite - Regulamento n.º 26 - Aplicação de certas regras da concorrência à produção e ao comércio de produtos agrícolas - Possibilidade de os Estados-Membros aplicarem as regras da concorrência nacionais aos produtores de leite que tenham optado por se organizar em cooperativas e que disponham de poder no mercado.
Processo C-137/00.

European Court Reports 2003 I-07975

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2003:429

62000J0137

Acórdão do Tribunal de 9 de Setembro de 2003. - The Queen contra The Competition Commission, Secretary of State for Trade and Industry e The Director General of Fair Trading, ex parte Milk Marque Ltd e National Farmers' Union. - Pedido de decisão prejudicial: High Court of Justice (England and Wales), Queen's Bench Division (Crown Office) - Reino Unido. - Política agrícola comum - Artigos 32.º CE a 38.º CE - Regulamento (CEE) n.º 804/68 - Organização comum de mercado no sector do leite e produtos lácteos - Preço indicativo do leite - Regulamento n.º 26 - Aplicação de certas regras da concorrência à produção e ao comércio de produtos agrícolas - Possibilidade de os Estados-Membros aplicarem as regras da concorrência nacionais aos produtores de leite que tenham optado por se organizar em cooperativas e que disponham de poder no mercado. - Processo C-137/00.

Colectânea da Jurisprudência 2003 página I-07975


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


1. Agricultura - Organização comum de mercado - Leite e produtos lácteos - Aplicação do direito nacional da concorrência a uma cooperativa de produtores de leite que ocupa uma posição de poder no mercado nacional - Competência das autoridades nacionais - Limites

(Artigos 32.° CE a 38.° CE; Regulamentos n.os 26 e 804/68 do Conselho, artigo 3.° , n.° 1, na redacção que lhe foi dada pelo Regulamento n.° 1587/96)

2. Agricultura - Organização comum de mercado - Leite e produtos lácteos - Preço indicativo do leite - Tomada em consideração deste preço pelas autoridades nacionais competentes em matéria de concorrência a fim de examinar o poder de uma empresa no mercado - Admissibilidade

(Artigo 33.° , n.° 1, CE; Regulamento n.° 804/68 do Conselho, artigo 3.° , n.os 1 e 2, na redacção que lhe foi dada pelo Regulamento n.° 1587/96)

3. Livre circulação de mercadorias - Restrições quantitativas - Medidas de efeito equivalente - Proibição de uma cooperativa leiteira, que ocupa uma posição de poder no mercado, celebrar contratos de transformação por sua conta - Aplicação do direito nacional da concorrência - Admissibilidade

(Artigos 28.° CE e 29.° CE)

4. Direito comunitário - Princípios - Igualdade de tratamento - Discriminação em razão da nacionalidade - Proibição de uma cooperativa leiteira, que ocupa uma posição de poder no mercado e a explora de forma contrária ao interesse público, celebrar contratos de transformação por sua conta - Admissibilidade

(Artigos 12.° CE e 34.° , n.° 2, segundo parágrafo, CE)

Sumário


1. Os artigos 32.° CE a 38.° CE, o Regulamento n.° 26, relativo à aplicação de determinadas regras de concorrência à produção e ao comércio de produtos agrícolas, e o Regulamento n.° 804/68, que estabelece a organização comum de mercado no sector do leite e dos produtos lácteos, na redacção que lhe foi dada pelo Regulamento n.° 1587/96, devem ser interpretados no sentido de que, no domínio regido pela organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos, as autoridades nacionais continuam, em princípio, competentes para aplicarem o seu direito nacional da concorrência a uma cooperativa de produtores de leite que ocupa uma posição de poder no mercado nacional.

Quando as autoridades nacionais competentes em matéria de concorrência actuam no domínio regido pela organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos, devem abster-se de qualquer medida que possa derrogar ou afectar essa organização comum.

As medidas adoptadas, no domínio regulado pela organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos, pelas autoridades nacionais competentes em matéria de concorrência, não podem, designadamente, produzir efeitos susceptíveis de entravar o funcionamento dos mecanismos previstos pela referida organização comum. Porém, o facto de os preços praticados por uma cooperativa leiteira serem já inferiores ao preço indicativo do leite antes da intervenção das referidas autoridades não basta, só por si, para tornar ilegais, à luz do direito comunitário, as medidas tomadas por essas autoridades em relação a essa cooperativa em aplicação do seu direito nacional da concorrência. Com efeito, por um lado, este tipo de preço de orientação constitui um objectivo político a nível comunitário e não garante a todos os produtores de todos os Estados-Membros a obtenção de um rendimento correspondente ao preço indicativo. Por outro lado, como a preservação de uma concorrência efectiva faz parte dos objectivos da organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos, o artigo 3.° , n.° 1, do Regulamento n.° 804/68, que prevê a fixação anual, para a Comunidade, do preço indicativo do leite, não pode ser interpretado no sentido de que os produtores de leite têm o direito de procurar obter, por qualquer meio, um rendimento correspondente ao preço indicativo, incluindo meios eventualmente abusivos e anticoncorrenciais.

Além disso, essas medidas não podem comprometer os objectivos da política agrícola comum, tal como estes são enunciados no artigo 33.° , n.° 1, CE. A este respeito, as autoridades nacionais competentes em matéria de concorrência devem, se necessário for, efectuar a conciliação que pode ser imposta por eventuais contradições entre os diferentes objectivos a que se refere o artigo 33.° CE, sem atribuir a um deles uma importância tal que torne impossível a realização dos outros.

( cf. n.os 63, 67, 80, 87-89, 91, 94, disp. 1 )

2. A função do preço indicativo do leite previsto no artigo 3.° , n.° 1, do Regulamento n.° 804/68, que estabelece a organização comum de mercado no sector do leite e dos produtos lácteos, na nova redacção do Regulamento n.° 1587/96, não impede as autoridades nacionais competentes em matéria de concorrência de utilizarem esse preço indicativo para apreciarem o poder de uma empresa agrícola no mercado, comparando as variações dos preços reais com o preço indicativo.

Com efeito, decorre do n.° 2 do referido artigo, lido à luz do artigo 33.° , n.° 1, CE, que a função essencial do preço indicativo é definir, no plano comunitário, o ponto de equilíbrio desejável entre, por um lado, o objectivo de assegurar um nível de vida equitativo à população agrícola e, por outro, o objectivo de assegurar preços razoáveis nos fornecimentos aos consumidores. Forçoso é constatar que a utilização do preço indicativo, pelas autoridades nacionais competentes em matéria de concorrência, como indicador no quadro da apreciação do poder que uma empresa agrícola detém no mercado nacional não interfere de modo nenhum com a sua função essencial. De resto, não existe nenhuma norma de direito comunitário primário ou derivado que proíba essa utilização do preço indicativo.

( cf. n.os 99-102, disp. 2 )

3. As regras do Tratado em matéria de livre circulação de mercadorias não impedem que, no quadro da aplicação do respectivo direito nacional da concorrência, as autoridades competentes de um Estado-Membro proíbam que uma cooperativa leiteira que ocupa uma posição de poder no mercado celebre contratos, inclusivamente com empresas sediadas noutros Estados-Membros, para a transformação, por sua conta, de leite produzido pelos seus membros.

Com efeito, por um lado, o artigo 28.° CE visa proibir qualquer regulamentação ou qualquer medida dos Estados-Membros susceptível de entravar directa ou indirectamente, actual ou potencialmente, o comércio intracomunitário. Porém, um Estado-Membro tem o direito de tomar medidas destinadas a impedir que, ao abrigo das facilidades criadas por força do Tratado, alguns dos seus nacionais procurem subtrair-se abusivamente à aplicação da sua legislação nacional. Considerando que medidas restritivas incidentes sobre mercadorias que tenham sido exportadas unicamente com o fim de serem reimportadas para contornar uma legislação nacional não constituem medidas de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à importação, na acepção do artigo 28.° CE, o mesmo deve acontecer quando se trata de uma exportação de mercadorias seguida de reimportação a fim de evitar a aplicação de medidas adoptadas em aplicação do direito nacional da concorrência, como a proibição, imposta a uma cooperativa leiteira que ocupa uma posição de poder no mercado, de celebrar contratos de transformação de leite por sua própria conta.

Por outro lado, o artigo 29.° CE visa as medidas nacionais que têm por objectivo ou por efeito restringir especificamente as correntes de exportação e estabelecer assim uma diferença de tratamento entre o comércio interno de um Estado-Membro e o seu comércio de exportação, de modo a assegurar vantagens especiais à produção nacional ou ao mercado interno do Estado interessado. Ora, não é esse o caso de medidas como a referida proibição, que se insere na política nacional da concorrência, que se destinam a limitar as práticas anticoncorrenciais de uma única cooperativa agrícola e que se aplicam indistintamente aos contratos de transformação celebrados com empresas estabelecidas num Estado-Membro e aos contratos celebrados com empresas estabelecidas noutros Estados-Membros.

( cf. n.os 113-116, 118-120, disp. 3 )

4. Os artigos 12.° CE e 34.° , n.° 2, segundo parágrafo, CE não obstam à tomada de medidas, como a proibição de celebrar contratos de transformação de leite por sua própria conta imposta a uma cooperativa leiteira que ocupa uma posição de poder no mercado e que explora essa posição contra o interesse público, apesar de importantes cooperativas leiteiras integradas verticalmente estarem autorizadas a operar noutros Estados-Membros.

Com efeito, por um lado, se é verdade que o artigo 12.° CE proíbe os Estados-Membros de aplicarem de forma diferente o seu direito nacional da concorrência em razão da nacionalidade dos interessados, não é menos verdade que não visa as eventuais disparidades de tratamento que podem resultar, para as pessoas e empresas sujeitas à jurisdição da Comunidade, das divergências existentes entre as legislações dos diferentes Estados-Membros, desde que estas afectem todas as pessoas a quem são aplicáveis, segundo critérios objectivos e sem ter em conta a sua nacionalidade. O mero facto de existirem cooperativas integradas verticalmente noutros Estados-Membros não demonstra que a adopção dessas medidas constitui uma discriminação em razão da nacionalidade.

Por outro lado, o artigo 34.° , n.° 2, segundo parágrafo, CE, que consagra a proibição de qualquer discriminação no âmbito da política agrícola comum, mais não é do que a expressão específica do princípio geral da igualdade, que exige que situações comparáveis não sejam tratadas de modo diferente e que situações diferentes não sejam tratadas de modo igual, excepto se esse tratamento diferente for objectivamente justificado.

( cf. n.os 124-126, 128, disp. 4 )

Partes


No processo C-137/00,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 234.° CE, pela High Court of Justice (England & Wales), Queen's Bench Division (Crown Office)(Reino Unido), destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

The Queen

e

The Competition Commission, anteriormente The Monopolies and Mergers Commission,

Secretary of State for Trade and Industry,

The Director General of Fair Trading,

ex parte:

Milk Marque Ltd,

National Farmers' Union,

sendo interveniente:

Dairy Industry Federation (DIF),

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação dos artigos 12.° CE, 28.° CE a 30.° CE, 32.° CE a 38.° CE, 49.° CE e 55.° CE, do Regulamento n.° 26 do Conselho, de 4 de Abril de 1962, relativo à aplicação de determinadas regras de concorrência à produção e ao comércio de produtos agrícolas (JO 1962, 30, p. 993; EE 08 F1 p. 29), e do Regulamento (CEE) n.° 804/68 do Conselho, de 27 de Junho de 1968, que estabelece a organização comum de mercado no sector do leite e dos produtos lácteos (JO L 148, p. 13; EE 03 F2 p. 146), na redacção que lhe foi dada pelo Regulamento (CE) n.° 1587/96 do Conselho, de 30 de Julho de 1996 (JO L 206, p. 21),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: M. Wathelet, presidente da Primeira e Quinta Secções, exercendo funções de presidente, R. Schintgen e C. W. A. Timmermans, presidentes de secção, C. Gulmann, D. A. O. Edward, A. La Pergola, P. Jann, V. Skouris (relator), F. Macken, N. Colneric e J. N. Cunha Rodrigues, juízes,

advogada-geral: C. Stix-Hackl,

secretário: L. Hewlett, administradora principal,

vistas as observações escritas apresentadas:

- em representação da Milk Marque Ltd, por K. P. E. Lasok, QC, e A. Griffiths, barrister, mandatados por Freshfields, solicitors,

- em representação da National Farmers' Union, por S. Isaacs, QC, e C. Lewis, barrister, mandatados por C. Holme, solicitor,

- em representação da Dairy Industry Federation (DIF), por N. Green, QC, mandatado por N. Parr, solicitor,

- em representação do Governo do Reino Unido, por J. E. Collins, na qualidade de agente, assistido por D. Anderson, QC, e K. Beal, barrister,

- em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por P. Oliver e K. Wiedner, na qualidade de agentes,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações da Milk Marque Ltd, representada por K. P. E. Lasok, da National Farmers' Union, representada por S. Isaacs e C. Lewis, da Dairy Industry Federation (DIF), representada por N. Green e M. Lester, barrister, do Governo do Reino Unido, representado por G. Amodeo, na qualidade de agente, assistida por D. Anderson e K. Beal, e da Comissão, representada por P. Oliver e K. Wiedner, na audiência de 5 de Fevereiro de 2002,

ouvidas as conclusões da advogada-geral apresentadas na audiência de 17 de Setembro de 2002,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por despacho de 31 de Março de 2000 que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 11 de Abril do mesmo ano, a High Court of Justice (England & Wales), Queen's Bench Division (Crown Office), submeteu ao Tribunal, ao abrigo do artigo 234.° CE, quatro questões prejudiciais a respeito da interpretação dos artigos 12.° CE, 28.° CE a 30.° CE, 32.° CE a 38.° CE, 49.° CE e 55.° CE, do Regulamento n.° 26 do Conselho, de 4 de Abril de 1962, relativo à aplicação de determinadas regras de concorrência à produção e ao comércio de produtos agrícolas (JO 1962, 30, p. 993; EE 08 F1 p. 29), e do Regulamento (CEE) n.° 804/68 do Conselho, de 27 de Junho de 1968, que estabelece a organização comum de mercado no sector do leite e dos produtos lácteos (JO L 148, p. 13; EE 03 F2 p. 146), na redacção que lhe foi dada pelo Regulamento (CE) n.° 1587/96 do Conselho, de 30 de Julho de 1996 (JO L 206, p. 21, a seguir «Regulamento n.° 804/68»).

2 Estas questões foram suscitadas no quadro de um litígio que opõe a Milk Mark Ltd (a seguir «Milk Marque») e a National Farmers' Union (a seguir «NFU») à Competition Commission, anteriormente The Monopolies and Mergers Commission (a seguir «Competition Commission»), ao Secretary of State for Trade and Industry (a seguir «Secretary of State») e ao Director General of Fair Trading (a seguir «DGFT»), a propósito de um relatório elaborado pela Competition Commission, que recomendava que fossem tomadas medidas contra a Milk Marque devido ao seu comportamento alegadamente anticoncorrencial, e das decisões posteriormente tomadas pelo Secretary of State com base neste relatório.

O enquadramento jurídico

3 Nos termos do artigo 33.° , n.° 1, CE:

«A política agrícola comum tem como objectivos:

a) Incrementar a produtividade da agricultura, fomentando o progresso técnico, assegurando o desenvolvimento racional da produção agrícola e a utilização óptima dos factores de produção, designadamente da mão-de-obra;

b) Assegurar, deste modo, um nível de vida equitativo à população agrícola, designadamente pelo aumento do rendimento individual dos que trabalham na agricultura;

c) Estabilizar os mercados;

d) Garantir a segurança dos abastecimentos;

e) Assegurar preços razoáveis nos fornecimentos aos consumidores.»

4 Segundo o artigo 34.° , n.° 2, segundo parágrafo, CE, a organização comum dos mercados agrícolas deve limitar-se a prosseguir os objectivos definidos no artigo 33.° CE e deve excluir toda e qualquer discriminação entre produtores ou consumidores da Comunidade.

5 O artigo 36.° CE dispõe:

«As disposições do capítulo relativo às regras de concorrência só são aplicáveis à produção e ao comércio dos produtos agrícolas, na medida em que tal seja determinado pelo Conselho [...], tendo em conta os objectivos definidos no artigo 33.° »

6 O Regulamento n.° 26 foi adoptado com base nos artigos 42.° do Tratado CEE (actual artigo 36.° CE) e 43.° do Tratado CEE (que passou, após alteração, a artigo 37.° CE).

7 Nos termos do primeiro considerando do Regulamento n.° 26, «resulta do artigo [36.° ] do Tratado que a aplicação das regras de concorrência previstas no Tratado à produção e ao comércio dos produtos agrícolas constitui um dos elementos da política agrícola comum».

8 O artigo 1.° do Regulamento n.° 26 prevê que «os artigos [81.° ] a [86.° ] inclusive do Tratado, bem como as disposições tomadas em sua execução, aplicam-se a todos os acordos, decisões e práticas referidos no n.° 1 do artigo [81.° ] e no artigo [82.° ] do Tratado relativos à produção ou ao comércio dos produtos enumerados no anexo [I] do Tratado, sem prejuízo do disposto no artigo 2.° ».

9 Entre os produtos a que se refere o anexo I do Tratado inclui-se designadamente o leite.

10 O artigo 2.° do Regulamento n.° 26 estabelece nos seus n.os 1 e 2:

«1. O disposto no n.° 1 do artigo [81.° ] do Tratado é inaplicável aos acordos, decisões e práticas referidos no artigo anterior que façam parte integrante de uma organização nacional de mercado ou que sejam necessários à realização dos objectivos enunciados no artigo [33.° ] do Tratado. Não se aplica em especial aos acordos, decisões e práticas dos agricultores, de associações de agricultores ou de associações destas associações pertencentes a um único Estado-Membro, na medida em que, sem incluir a obrigação de praticar um determinado preço, digam respeito à produção ou à venda de produtos agrícolas ou à utilização de instalações comuns de armazenagem, de tratamento ou de transformação de produtos agrícolas, a menos que a Comissão verifique que, deste modo, a concorrência é excluída ou que os objectivos do artigo [33.° ] do Tratado são postos em perigo.

2. Após ter consultado os Estados-Membros e ouvido as empresas ou associações de empresas interessadas, bem como qualquer outra pessoa singular ou colectiva cuja audição lhe pareça necessária, a Comissão, sem prejuízo do controlo pelo Tribunal de Justiça, tem competência exclusiva para verificar, por meio de decisão, que será publicada, quais os acordos, decisões e práticas em relação aos quais se encontram preenchidas as condições previstas no n.° 1.»

11 A organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos foi instituída pelo Regulamento n.° 804/68. Entre outras medidas concretas, este regulamento prevê que seja fixado, a nível comunitário, um preço indicativo para o leite. O artigo 3.° deste regulamento dispõe a este respeito:

«1. É fixado anualmente, para a Comunidade, um preço indicativo do leite.

[...]

2. O preço indicativo é o preço do leite que se pretende assegurar no que respeita à totalidade do leite vendido pelos produtores no decurso da campanha leiteira na medida das hipóteses de escoamento existentes no mercado da Comunidade e nos mercados exteriores.

3. O preço indicativo será fixado para o leite que contenha 3,7% de matérias gordas, entregue na fábrica de lacticínios e centro de tratamento de leite.

4. O preço indicativo é fixado segundo o procedimento previsto no n.° 2 do artigo [37.° ] do Tratado.»

12 Durante a campanha de 1997-1998 a que se refere o relatório da Competition Commission, estava em vigor o Regulamento (CE) n.° 1190/97 do Conselho, de 25 de Junho de 1997, que fixa o preço indicativo do leite e os preços de intervenção da manteiga e do leite em pó desnatado para a campanha de comercialização do leite de 1997-1998 (JO L 170, p. 6). Segundo o primeiro considerando deste regulamento, «na fixação anual dos preços agrícolas comuns, há que ter em conta os objectivos da política agrícola comum; [...] esta política tem designadamente por objectivos assegurar à população agrícola um nível de vida equitativo, garantir a segurança dos abastecimentos e assegurar preços razoáveis nos fornecimentos aos consumidores».

O litígio no processo principal e as questões prejudiciais

13 A Milk Marque é uma sociedade cooperativa de agricultores que recolhe, distribui e fornece leite. Logo a seguir à desregulamentação do mercado do leite no Reino Unido, em 1994, os membros da Milk Marque asseguravam cerca de 60% do abastecimento de leite na Grã-Bretanha. Durante a campanha de 1997-1998 a que se refere o relatório da Competition Commission, esta percentagem era de 49,6%. Entre Abril de 1999 e Setembro de 1999, esta percentagem continuou a baixar, tendo atingido 40,8%

14 Resulta dos autos, por um lado, que o preço obtido pelos produtores do Reino Unido para o leite foi sempre, antes e depois da desregulamentação, inferior ao preço indicativo fixado pela regulamentação comunitária e, por outro, que os preços praticados pelos membros da Milk Marque estiveram sempre entre os mais baixos propostos pelos produtores em Inglaterra e no País de Gales.

15 Inicialmente, a Milk Marque não dispunha de instalações próprias para a transformação do leite. Adquiriu uma primeira unidade de transformação de leite, em 1997, e uma segunda, em 1998. Planeou uma expansão significativa da sua capacidade de transformação de leite. As provas apresentadas na High Court demonstraram que, noutros Estados-Membros, existiam várias cooperativas leiteiras com importantes quotas de mercado verticalmente integradas.

16 A Competition Commission, que é a autoridade competente, designadamente, para realizar inquéritos e fazer relatórios sobre as situações de monopólio como as definidas no Fair Trading Act 1973 (a seguir «FTA») e no Competition Act 1998 (a seguir «CA»), à qual o DGFT submeteu o problema em 27 de Janeiro de 1998, procedeu a um inquérito sobre a eventual existência de uma situação de monopólio no fornecimento de leite de vaca cru na Grã-Bretanha. Terminou este inquérito em 26 de Fevereiro de 1999 e enviou o relatório ao Secretary of State.

17 Neste relatório, a Competition Commission concluía, em primeiro lugar, à luz da section 6(1)(a) do FTA, que havia uma situação de monopólio de escala, visto que a Milk Marque fornecia pelo menos uma quarta parte de todo o abastecimento de leite na Grã-Bretanha.

18 Em segundo lugar, a Competition Commission considerava, por um lado, que a Milk Marque detinha uma «poderosa posição» («powerful position») no mercado do leite na Grã-Bretanha e, por outro, que «isso tem contribuído para que o leite seja fornecido na Grã-Bretanha a um preço superior ao nível que atingiria em condições de maior concorrência».

19 Em terceiro lugar, a Competition Commission entendeu que a Milk Marque exercia o seu «poder de mercado» («market power») para explorar ou manter a situação de monopólio de escala a seu favor, porque:

- tinha aumentado o preço médio do leite para níveis superiores aos que seriam atingidos normalmente, através da prática de uma discriminação através dos preços sob várias formas;

- tinha proibido o comércio secundário de leite entre transformadores, cobrando-lhes preços excessivos de reencaminhamento e impondo restrições à venda de leite;

- tinha retirado leite do processo regular de venda, assim restringindo as quantidades de leite à disposição dos seus clientes, quando a procura continuava praticamente a mesma, aumentando deste modo o preço marginal do leite;

- tinha organizado o seu sistema de vendas de forma a criar uma assimetria de informação entre ela própria e os seus clientes, gerando desse modo incertezas desnecessárias para esses clientes e incitando-os a adquirir leite a preços médios superiores aos que se verificariam se assim não fosse;

- tinha reconhecido tardiamente a importância da traçabilidade proactiva do leite e tinha-se mostrado relutante em dar resposta aos pedidos dos clientes a esse respeito; e

- tinha feito pouco caso dos legítimos pedidos dos seus clientes, grandes ou pequenos, sobre os tipos de contratos que lhes propunha e sobre outros assuntos.

20 Em quarto lugar, a Competition Commission concluiu, por um lado, que estas práticas e o comportamento da Milk Marque (com excepção do seu comportamento em matéria de traçabilidade) constituíam factos provados que contrariavam ou podiam contrariar o interesse público. Segundo o relatório da Competition Commission, os efeitos negativos particulares eram:

«i) aumento do preço do leite cru, repercutido pelo menos parcialmente nos consumidores, pelo que estes pagam mais pelo leite do que pagariam se a Milk Marque não tivesse conseguido manter os preços do leite acima de preços concorrenciais, e

ii) aumento dos custos e da incerteza na indústria dos lacticínios da Grã-Bretanha, pelo que os transformadores deste país investiram menos e se tornaram menos competitivos em produtos comercializados internacionalmente e a produção se encontra num nível e tem um valor inferior ao que teria se assim não fosse».

21 Por outro lado, segundo a Competition Commission, o aumento da capacidade de transformação da Milk Marque, planeado pela sua filial MMD, seria um facto comprovado que poderia vir a revelar-se contra o interesse público, tendo como efeito negativo, designadamente, conferir à Milk Marque a possibilidade de explorar ainda mais a situação de monopólio de escala a seu favor e, finalmente, de intensificar os efeitos negativos já assinalados.

22 Com base nestas conclusões, a Competition Commission fez recomendações cujo objectivo era «eliminar o poder da Milk Marque no mercado, criar um mercado mais competitivo no abastecimento de leite e criar novas oportunidades de os produtores e transformadores desenvolverem relações comerciais que sirvam os seus interesses, bem como os interesses dos consumidores». A principal recomendação era a reestruturação da Milk Marque, cindindo-a em três a cinco organismos, independentes e concorrentes, aos quais seriam atribuídas quotas, e que fossem capazes de vender o leite numa base comercial normal e de actuar na transformação do leite, se assim o entendessem.

23 A Competition Commission também recomendou a adopção de uma série de «medidas provisórias», enquanto se aguardava que fosse seguida a sua recomendação de cindir a Milk Marque. Estas medidas destinavam-se a impedir a Milk Marque de:

«a) efectuar mais diligências no sentido de celebrar ou executar qualquer acordo de aquisição ou de construção de instalações de transformação;

b) celebrar outros acordos de transformação do leite, salvo em caso de urgência e apenas se for o único meio de evitar a destruição de leite;

c) celebrar contratos de fornecimento de leite negociados individualmente com transformadores, cujos termos não sejam divulgados e não estejam ao dispor de todos os compradores;

d) celebrar contratos de fornecimento de leite que incluam quaisquer restrições à utilização a que o leite se destina; e

e) colocar quaisquer restrições ao reencaminhamento de leite do local de entrega para outro ou de cobrar pelos reencaminhamentos, excepto para ressarcimento de despesas adicionais efectivamente realizadas».

24 Em 6 de Julho de 1999, o Secretary of State tornou públicas as suas decisões tomadas com base no relatório da Competition Commission. Aceitou todas as conclusões e recomendações deste relatório, com excepção da proposta de cisão da Milk Marque. Em vez disso, pediu ao DGFT para examinar as condições de venda praticadas pela Milk Marque e para lhe sugerir quaisquer modificações a efectuar, tendo em vista a reparação dos efeitos contrários ao interesse público enumerados no relatório. Em contrapartida, o Secretary of State aceitou as medidas provisórias propostas pela Competition Commission e decidiu exigir à Milk Marque o compromisso de que poria em prática essas medidas no prazo de três meses e que as manteria por um período indeterminado.

25 Na sequência das decisões do Secretary of State, a Milk Marque anunciou, num comunicado de imprensa de 17 de Setembro de 1999, que se propunha cindir-se em três pequenas cooperativas que se tornariam operantes a partir de 1 de Abril de 2000. Esta proposta tinha sido desenvolvida após consultas com o Department of Trade and Industry e com o Office of Fair Trading. Nessas discussões, o Secretary of State tinha indicado que não aplicaria as medidas provisórias propostas pela Competition Commission se recebesse da Milk Marque garantias de que:

- as novas cooperativas tomariam todas as suas decisões e venderiam o leite independentemente umas das outras;

- não realizariam acções comuns para a comercialização ou a transformação de leite;

- não existiriam directores comuns às novas cooperativas; e

- nenhuma delas teria participações nas outras.

26 Em 5 de Novembro de 1999, o Secretary of State retirou a sua exigência de compromisso da Milk Marque quanto à execução das medidas provisórias recomendadas no relatório da Competition Commission. Precisou, contudo, que só autorizaria as novas cooperativas a transformarem o leite, se estivesse convicto de que estas iriam operar de forma independente umas das outras.

27 Apesar destes acontecimentos, a Milk Marque interpôs recurso para a High Court contra o relatório da Competition Commission e as decisões subsequentes do Secretary of State. Na sequência do que, a NFU, uma associação que representa 80% dos agricultores na Grã-Bretanha, interpôs igualmente recurso para o mesmo órgão jurisdicional contra esse relatório e essas decisões. Os dois recursos foram apensos pela High Court.

28 A Milk Marque e a NFU sustentaram nomeadamente na High Court que, ao declararem-se competentes para inquirir sobre as actividades dos membros da Milk Marque e ao recomendarem ou tomarem medidas ao abrigo do FTA para as impedirem de pedir um preço superior pelo leite produzido pelos seus membros, a Competition Commission e o Secretary of State tinham infringido várias normas de direito comunitário. A Milk Marque e a NFU alegaram ainda que, ao adoptarem esse tipo de medidas no futuro, com base no FTA ou no CA, o Secretary of State e/ou a Competition Commission violariam o direito comunitário.

29 A High Court considera que, para poder decidir sobre a procedência dos recursos interpostos pela Milk Marque e pela NFU e para avaliar as indemnizações por danos que deverão, se for caso disso, ser-lhes concedidas, tem de solicitar uma decisão a título prejudicial para determinar, designadamente, se as autoridades nacionais têm competência para intervir na organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos e, se assim for, a que imperativos jurídicos está sujeito o exercício dessa competência.

30 Relativamente ao anúncio, feito pela Milk Marque, de que se iria cindir em várias pequenas cooperativas regionais a partir de 1 de Abril de 2000, cada uma delas com uma parte de mercado inferior ao limite de 25% a partir do qual há aplicação das disposições do FTA em matéria de monopólio de escala, a High Court sublinhou que esse anúncio tinha influenciado as decisões do Secretary of State objecto do recurso. Considerou, no entanto, que devia ter em conta a aplicação «em curso» do FTA e do CA, que entrava em vigor em 1 de Março de 2000.

31 Foi neste contexto factual e jurídico que a High Court of Justice (England & Wales), Queen's Bench Division, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1) Devem os artigos 32.° CE a 38.° CE [...], o Regulamento [n.° 26] do Conselho [, de 4 de Abril de 1962,] e o Regulamento (CEE) n.° 804/68 do Conselho, modificado, ser interpretados no sentido de que impedem um Estado-Membro de aplicar a sua legislação nacional, como o Fair Trading Act 1973 e o Competition Act 1998, às modalidades de organização dos produtores de leite em cooperativas e ao seu comportamento em matéria de venda e de transformação do leite:

a) em qualquer circunstância; ou

b) se o efeito pretendido ou real for privar os produtores da possibilidade de aumentar os preços obtidos pelo seu leite ou

c) se o efeito pretendido ou real for reduzir o preço que os produtores recebem pelo leite em circunstâncias em que o preço já é inferior ao preço indicativo fixado nos termos do artigo 3.° do Regulamento n.° 804/68 ou

d) de forma contrária a um ou mais dos pontos seguintes:

i) os objectivos descritos no artigo 33.° CE [...] e/ou

ii) a política, fins ou funcionamento da organização comum de mercado do leite e produtos lácteos e/ou

iii) a política do artigo 36.° CE [...] e do Regulamento n.° 26?

2) A função do preço indicativo para o leite fixado pelo Conselho nos termos do Regulamento (CEE) n.° 804/68 impede um Estado-Membro de:

a) utilizar o preço indicativo como indicador da evolução dos preços efectivos devidos à política agrícola comum e de

b) considerar o facto de uma cooperativa de produtores de leite desse Estado ter conseguido, para os seus membros, preços inferiores ao preço indicativo, mas mais próximos do preço indicativo em determinado período do que noutro, como conclusivo de que a cooperativa exerce poder no mercado que contribui para que os preços estejam a níveis mais elevados do que estariam em condições mais concorrenciais?

3) Devem os artigos 28.° CE a 30.° CE [...] e os artigos 49.° CE e 55.° CE [...] ser interpretados no sentido de que impedem um Estado-Membro de aplicar legislação nacional, como o Fair Trading Act 1973 e o Competition Act 1998, de forma a proibir uma cooperativa de produtores de leite, que se verifique ter poder no mercado, de enviar leite produzido pelos seus membros para ser transformado por sua conta por terceiros contratados, incluindo noutros Estados-Membros, como medida tomada pela cooperativa a fim de explorar a seu favor a sua posição no mercado?

4) Quando existem noutros Estados-Membros grandes cooperativas de lacticínios verticalmente integradas autorizadas a operar, deve o princípio geral da não discriminação, só por si ou com o objectivo específico dos artigos 12.° CE e/ou 34.° CE [...], ser interpretado no sentido de que impede um Estado-Membro de aplicar legislação nacional, como o Fair Trading Act 1973 e o Competition Act 1998, para proibir uma cooperativa de produtores de leite, que se verifique beneficiar de poder no mercado, de:

a) adquirir ou construir mais instalações para transformação do leite produzido pelos seus membros, o que daria a essa cooperativa a possibilidade de explorar ainda mais, a seu favor, a sua posição no mercado ou

b) enviar o leite produzido pelos seus membros para transformação por sua conta por terceiros contratados, nesse Estado-Membro ou noutro, como uma medida tomada pela cooperativa a fim de explorar a seu favor a sua posição no mercado?»

Quanto à admissibilidade

Alegações no Tribunal de Justiça

32 O Governo do Reino Unido contesta a admissibilidade das questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio. A cisão voluntária da Milk Marque em três cooperativas teria eliminado a sua posição de poder no mercado do leite, revelada pelo inquérito da Competition Commission, e no qual se tinha fundado o relatório desta comissão e todas as decisões e recomendações posteriores.

33 É verdade que o órgão jurisdicional de reenvio não considerou que o recurso da Milk Marque pendente neste tribunal tinha ficado sem objecto, designadamente com base nas provas apresentadas pela Milk Marque a respeito da possível futura aplicação do direito da concorrência do Reino Unido às sociedades que lhe sucederam. A Milk Marque teria defendido designadamente que seria «comercial e economicamente razoável», para as cooperativas que lhe sucederam, preverem acções comuns, incluindo o tecer de laços estruturais, o desenvolvimento de vendas e de compras em comum, de capacidades de transformação e de fusão.

34 Atendendo a estes elementos, o Governo do Reino Unido alega que, apesar do seu carácter eminentemente geral, a resposta à primeira questão poderia ser interessante para as autoridades nacionais competentes em matéria de concorrência, incluindo a do Reino Unido, para a definição do âmbito da respectiva acção futura em matéria agrícola. Tem, porém, sérias dúvidas quanto à utilidade da segunda, terceira e quarta questões.

35 Em relação, mais precisamente, à segunda questão, o Governo do Reino Unido considera que esta é perfeitamente teórica. Não suscitaria, de modo nenhum, problemas de direito comunitário sobre os quais o Tribunal de Justiça deva decidir no quadro de um processo prejudicial.

36 A terceira e a quarta questões, por um lado, ao remeterem para o relatório da Competition Commission, estariam aquém dos acontecimentos. Por outro, como dizem respeito a uma situação futura eventual, em que uma cooperativa poderia deter um poder no mercado susceptível de implicar restrições do tipo das referidas nessas questões, seriam puramente hipotéticas.

Apreciação do Tribunal de Justiça

37 Recorde-se que, segundo jurisprudência constante, compete apenas ao juiz nacional, ao qual foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades de cada caso, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, como as questões colocadas pelo juiz nacional são relativas à interpretação do direito comunitário, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a decidir. A recusa de se pronunciar sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional só é possível quando é manifesto que a interpretação do direito comunitário solicitada pela jurisdição nacional não tem qualquer relação com a realidade ou com o objecto do litígio no processo principal, quando o problema é hipotético ou quando o Tribunal não dispõe dos elementos de facto ou de direito necessários para responder utilmente às questões que lhe são colocadas (v., entre outros, acórdãos de 15 de Dezembro de 1995, Bosman, C-415/93, Colect., p. I-4921, n.os 59 a 61, de 13 de Julho de 2000, Idéal tourisme, C-36/99, Colect., p. I-6049, n.° 20, e de 13 de Março de 2001, PreussenElektra, C-379/98, Colect., p. I-2099, n.os 38 e 39).

38 No presente caso, é forçoso constatar que, como se pode ver pelo despacho de reenvio, o órgão jurisdicional de reenvio expôs pormenorizadamente ao Tribunal o quadro factual e regulamentar do litígio no processo principal e as razões por que considerava que uma resposta às questões colocadas era necessária para proferir a sua decisão.

39 O órgão jurisdicional de reenvio precisou, além disso, que não partilhava da opinião do Governo do Reino Unido, de que o relatório da Competition Commission e as decisões do Secretary of State estavam ultrapassadas devido aos acontecimentos desde então ocorridos, designadamente, a cisão voluntária da Milk Marque em três cooperativas distintas. Com efeito, o órgão jurisdicional nacional sublinhou a este propósito que, para se pronunciar sobre a procedência dos pedidos da Milk Marque e da NFU, devia ter em conta a aplicação «em curso» tanto do FTA como do CA e que o reenvio prejudicial era, portanto, necessário para lhe permitir decidir correctamente sobre os direitos e obrigações das partes, sobre a existência de uma competência das autoridades nacionais e sobre os limites ao exercício dessa competência, bem como sobre as indemnizações que, eventualmente, terão de ser concedidas à Milk Marque e à NFU.

40 Por conseguinte, as primeira, terceira e quarta questões são admissíveis.

41 Por último, a respeito da alegação do Governo do Reino Unido, de que a segunda questão não levanta problemas jurídicos de direito comunitário, basta ter presente que, com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende no fundo saber se o Regulamento n.° 804/68 obsta à utilização, pelas autoridades nacionais competentes em matéria de concorrência, do preço indicativo fixado para a Comunidade para apreciarem o poder de uma empresa no mercado no quadro de um processo nacional. De onde se conclui que esta questão diz efectivamente respeito à interpretação do direito comunitário e que é, portanto, igualmente admissível.

42 Nestas condições, há que responder às questões formuladas.

Quanto à primeira questão

43 Na primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no fundo, por um lado, se os artigos 32.° CE a 38.° CE e os Regulamentos n.os 26 e 804/68 devem ser interpretados no sentido de que, no domínio regido pela organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos, as autoridades nacionais são competentes para aplicar o respectivo direito nacional da concorrência a uma cooperativa de produtores de leite que ocupa uma posição de poder no mercado nacional.

44 Em caso afirmativo, pergunta, por outro lado, quais os limites desta eventual competência e, designadamente, se as autoridades nacionais competentes em matéria de concorrência ultrapassam esses limites quando adoptam medidas como as que estão em causa no processo principal em relação a uma cooperativa agrícola que ocupa uma posição de poder no mercado e cujos preços durante o período em causa foram sempre inferiores ao preço indicativo fixado em cumprimento do artigo 3.° , n.° 1, do Regulamento n.° 804/68.

45 Há, assim, que apreciar, em primeiro lugar, se os Estados-Membros são, em princípio, competentes para agir, ao abrigo dos seus direitos nacionais da concorrência, no domínio regido pela organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos.

Quanto à existência de uma competência dos Estados-Membros para agir, ao abrigo dos seus direitos nacionais da concorrência, no domínio regido pela organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos

Alegações no Tribunal de Justiça

46 A Milk Marque e a NFU alegam que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça (acórdãos de 23 de Janeiro de 1975, Galli, 31/74, Colect., p. 11, n.os 26 a 30 e 32; de 22 de Janeiro de 1976, Russo, 60/75, Recueil, p. 45, n.° 5, Colect., p. 9; de 6 de Novembro de 1979, Toffoli e o., 10/79, Recueil, p. 3301, n.° 12; de 7 de Fevereiro de 1984, Comissão/Itália, 166/82, Recueil, p. 459, n.os 5 e 23; de 6 de Dezembro de 1984, Biovilac/CEE, 59/83, Recueil, p. 4057, n.° 16; e de 11 de Março de 1987, Vandemoortele/Comissão, 27/85, Colect., p. 1129, n.os 20 e 21) que as autoridades nacionais não são competentes para aplicar os seus direitos nacionais da concorrência, como o FTA ou o CA, em domínios sujeitos a uma organização comum de mercado. Consideram que a legislação comunitária que estabelece a organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos é exaustiva e que confere à Comunidade uma competência exclusiva.

47 Esta competência exclusiva da Comunidade opor-se-ia a que os Estados-Membros ou as entidades deles dependentes adoptem medidas que procurem fixar, directa ou indirectamente, um preço à produção uniforme para o leite. Além disso, não seria necessário que as medidas nacionais incidissem directamente sobre os preços para haver violação da competência exclusiva da Comunidade (acórdão Toffoli e o., já referido, n.os 11 e 12). Com efeito, segundo as recorrentes no processo principal, o Tribunal de Justiça já reconheceu que mesmo medidas adoptadas fora do sector agrícola são susceptíveis de infringir a competência exclusiva conferida à Comunidade (acórdãos Galli, já referido; de 23 de Janeiro de 1975, Van der Hulst, 51/74, Colect., p. 33; de 26 de Fevereiro de 1976, Tasca, 65/75, Recueil, p. 291, Colect., p. 135; de 26 de Fevereiro de 1976, SADAM e o., 88/75 a 90/75, Colect., p. 139; e de 29 de Junho de 1978, Dechmann, 154/77, Recueil, p. 1573, Colect., p. 571).

48 Relativamente ao litígio no processo principal, a Milk Marque e a NFU sustentam que as medidas adoptadas pelo Secretary of State constituem uma acção unilateral do Estado destinada a atingir a formação dos preços e a comercialização do leite num mercado abrangido por uma organização comum. O objectivo destas medidas seria o de levar a uma quebra dos preços médios do leite. Segundo a Milk Marque e a NFU, este objectivo foi prosseguido apesar do preço à produção da Milk Marque ser sempre francamente inferior ao preço indicativo fixado para a Comunidade. Por outras palavras, as medidas nacionais procurariam fixar um preço para os produtores a um nível ainda mais baixo que o preço indicativo.

49 Além disso, a aplicação dessas medidas teria como objectivo e como efeito reduzir os preços à produção e os preços ao consumo, a um nível que as autoridades nacionais consideraram unilateralmente ser de interesse público nacional, sem ter em conta o que é de interesse público a nível comunitário.

50 Por último, a Milk Marque e a NFU acrescentam que as actividades que se situam no quadro de uma organização comum de mercado só estão sujeitas à aplicação do direito da concorrência por força do artigo 36.° , primeiro parágrafo, CE, que reconhece o primado da política agrícola comum sobre os objectivos do Tratado no domínio da concorrência (acórdãos de 5 de Outubro de 1994, Alemanha/Conselho, C-280/93, Colect., p. I-4973, n.° 61, e de 15 de Outubro de 1996, Ijssel-Vliet, C-311/94, Colect., p. I-5023, n.° 31), e do Regulamento n.° 26. A aplicação paralela do direito nacional da concorrência e do direito comunitário da concorrência originaria conflitos, dado que a aplicação do direito comunitário da concorrência deve fazer-se tendo em conta os objectivos da política agrícola comum e, por conseguinte, sujeita as cooperativas agrícolas ao regime previsto no Regulamento n.° 26. Em contrapartida, a aplicação do direito nacional da concorrência não seria tão limitada e permitiria a adopção de medidas que, no quadro do Regulamento n.° 26, não poderiam ser legalmente tomadas.

51 O Governo do Reino Unido alega que, se a Comunidade tivesse pretendido excluir a aplicação do direito nacional da concorrência ao sector agrícola, teria podido accionar um mecanismo de que sempre dispôs. Com efeito, os regulamentos ou as directivas comunitárias podiam ter sido adoptadas ao abrigo do artigo 83.° , n.° 2, alínea e), CE. No entanto, apesar da existência deste mecanismo, nenhum regulamento nem nenhuma directiva pertinentes foram adoptadas. Por conseguinte, o direito nacional da concorrência poderia, em princípio, ser aplicado, na íntegra, ao sector agrícola.

52 Quanto à tese de que o Tratado CE efectuou uma transferência completa de competências das autoridades nacionais para a Comunidade em matéria de política agrícola comum no seu conjunto e, mais precisamente, dos objectivos constantes do artigo 33.° CE, o Governo do Reino Unido faz notar que uma organização comum de mercado não pode existir no vazio, independentemente das regras e medidas nacionais necessárias para a tornar efectiva. Este governo sublinha, a título de exemplo, que a aplicação do direito penal nacional no domínio coberto por uma organização comum de mercado pode ser não só autorizada mas igualmente imposta pelo direito comunitário (acórdão de 21 de Setembro de 1989, Comissão/Grécia, 68/88, Colect., p. 2965, n.os 23 a 25).

53 O direito comunitário da concorrência também não constituiria um código completo, porque só se aplica se o comércio entre Estados-Membros for afectado. O facto de se excluir a aplicação do direito nacional da concorrência e, ao assim proceder, de se autorizar a inexistência de fiscalização em circunstâncias em que o comércio entre Estados-Membros não é afectado equivaleria a autorizar acordos gravemente anticoncorrenciais e abusos de posições de poder, como os descritos no relatório da Competition Commission.

54 A Dairy Industry Federation (a seguir «DIF») considera que a legislação comunitária em causa não obsta, «em todas as circunstâncias», à aplicação do direito nacional da concorrência às formas de organização em cooperativas de produtores de leite e ao comportamento destes em matéria de venda e de transformação do seu leite. Referindo-se à jurisprudência do Tribunal de Justiça (acórdão de 13 de Fevereiro de 1969, Wilhelm e o., 14/68, Colect. 1969-1970, p. 1), a DIF sustenta que a adopção de medidas com fundamento no direito nacional da concorrência só é proibida devido à existência de legislação comunitária quando essa adopção prejudicar a aplicação plena e uniforme do direito comunitário e o efeito dos actos de execução deste.

55 A Comissão deduz, designadamente, do acórdão Wilhelm e o., já referido, e do acórdão de 16 de Dezembro de 1975, Suiker Unie e o./Comissão (40/73 a 48/73, 50/73, 54/73 a 56/73, 111/73, 113/73 e 114/73, Colect., p. 563), que nenhuma disposição de direito comunitário exclui a aplicação normal do artigo 82.° CE ao sector agrícola. Também nada impediria os Estados-Membros de aplicarem as disposições de direito interno análogas neste mesmo sector.

56 Segundo a Comissão, no caso do processo principal, a aplicação do FTA à Milk Marque não interfere, de modo nenhum, com a aplicação das regras da concorrência comunitárias, uma vez que a Comissão não tomou qualquer medida contra a Milk Marque com base nestas regras.

Apreciação do Tribunal de Justiça

57 Registe-se liminarmente que a preservação de uma concorrência efectiva nos mercados de produtos agrícolas faz parte dos objectivos da política agrícola comum e da organização comum dos respectivos mercados.

58 Com efeito, se é certo que o artigo 36.° CE confiou ao Conselho a tarefa de determinar em que medida as regras da concorrência comunitárias são aplicáveis à produção e ao comércio de produtos agrícolas, a fim de ter em conta a situação particular dos mercados destes produtos, não é menos certo que esta disposição estabelece o princípio da aplicabilidade das regras comunitárias da concorrência no sector agrícola.

59 Esta constatação é, aliás, confirmada tanto pelo primeiro considerando do Regulamento n.° 26 como pela jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual as organizações comuns de mercado se fundam no princípio de um mercado aberto, ao qual qualquer produtor tem livremente acesso em condições de concorrência efectivas (v., designadamente, acórdãos de 29 de Novembro de 1978, Pigs Marketing Board, 83/78, Colect., p. 821, n.° 57, e de 29 de Novembro de 1989, Comissão/Grécia, 281/87, Colect., p. 4015, n.° 16).

60 Acresce que a importância da concorrência no quadro de uma organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos resulta claramente do artigo 25.° , n.° 3, alínea a), do Regulamento n.° 804/68, que estabelece que quando um Estado-Membro é autorizado a conceder a um organismo nacional os direitos especiais a que se refere o n.° 1 do mesmo artigo, deve garantir que o exercício desses direitos «não afecta a concorrência no sector agrícola mais do que o estritamente necessário».

61 Não constituindo, portanto, as organizações comuns de mercado de produtos agrícolas um espaço sem concorrência, importa ter presente que, segundo jurisprudência constante, o direito comunitário e o direito nacional em matéria de concorrência se aplicam paralelamente, dado que consideram as práticas restritivas sob ângulos diferentes. Enquanto os artigos 81.° CE e 82.° CE as encaram do ponto de vista dos entraves que daí podem resultar para o comércio entre Estados-Membros, as legislações internas, inspiradas por considerações próprias a cada uma delas, consideram as práticas restritivas unicamente neste quadro (v., entre outros, os acórdãos Wilhelm e o., já referido, n.° 3, e de 10 de Julho de 1980, Giry e Guerlain e o., 253/78 e 1/79 a 3/79, Recueil, p. 2327, n.° 15).

62 A argumentação desenvolvida pela Milk Marque e a NFU para sustentar que esta jurisprudência não pode ser transposta para o domínio da organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos não merece acolhimento.

63 Em primeiro lugar, é certo que, num sector coberto por uma organização comum de mercado, e, por maioria de razão, quando esta organização se baseia num regime comum de preços, os Estados-Membros devem abster-se de qualquer medida que a possa derrogar ou violar (v., designadamente, acórdãos de 18 de Maio de 1977, Van den Hazel, 111/76, Recueil, p. 901, n.° 13, Colect., p. 329; Pigs Marketing Board, já referido, n.° 56; e de 16 de Janeiro de 2003, Hammarsten, C-462/01, Colect., p. I-781, n.° 30). Mais precisamente, os Estados-Membros já não podem intervir, através de medidas nacionais tomadas unilateralmente, no mecanismo da formação dos preços regulados, na mesma fase de produção ou de comercialização, pela organização comum (v., designadamente, acórdão Toffoli e o., já referido, n.° 12).

64 Porém, tendo em conta que, como decorre dos n.os 57 a 60 do presente acórdão, a preservação de uma concorrência efectiva faz parte dos objectivos da organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos, forçoso é constatar, por um lado, que qualquer medida tomada pelas autoridades de um Estado-Membro em aplicação do direito nacional da concorrência não pode ser considerada como derrogando ou violando, por natureza, o funcionamento desta organização comum. Por outro lado, medidas nacionais destinadas a eliminar uma distorção da concorrência resultante de um abuso de uma posição de poder ocupada por uma cooperativa agrícola no mercado nacional não podem, a priori, ser havidas como medidas que interferem com o mecanismo da formação dos preços regulados pela referida organização comum a nível comunitário, na acepção da jurisprudência referida no n.° 63 do presente acórdão.

65 Acresce que se os artigos 32.° CE a 38.° CE e os Regulamentos n.os 26 e 804/68 fossem interpretados no sentido de que, no domínio regido pela organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos, a competência das autoridades dos Estados-Membros para agirem em aplicação dos respectivos direitos nacionais da concorrência estivesse totalmente excluída, qualquer distorção da concorrência desprovida de dimensão comunitária registada nesse domínio não poderia ser eliminada por nenhum meio.

66 Por último, como o âmbito de aplicação das regras da concorrência comunitárias não é idêntico ao das regras da concorrência nacionais, o simples facto de, através do artigo 36.° CE e do Regulamento n.° 26, o legislador comunitário ter procedido a uma conciliação entre os objectivos da política agrícola comum e a política comunitária da concorrência não tem necessariamente por consequência que qualquer aplicação do direito nacional da concorrência entra em conflito com o artigo 36.° CE e o Regulamento n.° 26.

67 À luz destas considerações, há que concluir que os artigos 32.° CE a 38.° CE e os Regulamentos n.os 26 e 804/68 devem ser interpretados no sentido de que, no domínio regido pela organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos, as autoridades nacionais continuam, em princípio, competentes para aplicarem os seus direitos nacionais da concorrência a uma cooperativa de produtores de leite que ocupa uma posição de poder no mercado nacional.

68 Por conseguinte, há que examinar, em segundo lugar, quais os limites desta competência e se esses limites foram ultrapassados pela adopção de medidas como as que estão em causa no processo principal.

Quanto aos limites da competência dos Estados-Membros para actuarem ao abrigo dos seus direitos nacionais da concorrência no domínio regido pela organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos

Alegações no Tribunal de Justiça

69 A Milk Marque e a NFU alegam, a título subsidiário, que as autoridades competentes dos Estados-Membros só estão autorizadas a aplicar o respectivo direito nacional da concorrência no domínio regido pela organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos se a sua acção for compatível com os artigos 32.° CE a 38.° CE e os Regulamentos n.os 26 e 804/68.

70 A respeito das medidas em causa no processo principal, afirmam, em primeiro lugar, que, ao adoptarem essas medidas contra a Milk Marque, as autoridades nacionais não tomaram em consideração as obrigações que sobre eles recaem, decorrentes da política agrícola comum e dos objectivos desta em matéria de preço indicativo. Com efeito, a Competition Commission e o Secretary of State teriam limitado a sua análise aos critérios de interesse público enumerados no artigo 83.° do FTA. Ora, a definição de «interesse público», para efeitos desta lei, não corresponderia aos objectivos da política agrícola comum, na acepção do artigo 33.° , n.° 1, CE.

71 A seguir, segundo a Milk Marque e a NFU, as medidas em causa no processo principal teriam frustrado, afectado, posto em perigo, perturbado e modificado a organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos e o preço indicativo do leite.

72 Essas medidas nacionais destinar-se-iam, em particular, a privar os membros da Milk Marque do seu direito de tentarem obter o preço indicativo que materializa o equilíbrio comunitário entre os diferentes objectivos referidos no artigo 33.° CE.

73 Por último, as autoridades nacionais não teriam ponderado correctamente os interesses concorrentes dos produtores, dos transformadores e dos consumidores em consonância com a política, os objectivos e os critérios estabelecidos pela organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos e com o equilíbrio a atingir a nível comunitário através do Regulamento n.° 804/68.

74 O Governo do Reino Unido sustenta que o artigo 33.° CE não pode ser interpretado no sentido de que se deve excluir a aplicação do direito nacional da concorrência quando o objecto ou o efeito dessa aplicação é privar os produtores da possibilidade de aumentarem os seus preços. Segundo este governo, uma medida nacional não pode ser considerada inválida unicamente porque não visa um dos objectivos enumerados no artigo 33.° CE. Pelo contrário, estes objectivos deveriam ser tidos em consideração de modo equilibrado, não se prosseguindo um com exclusão dos restantes (acórdão Biovilac/CEE, já referido, n.° 16).

75 O Governo do Reino Unido realça ainda que, num caso como o do processo principal, caracterizado por graves abusos da posição de poder ocupada no mercado, seria a não aplicação do direito nacional da concorrência que violaria o direito comunitário, posto que o facto de um Estado-Membro não utilizar os meios ao seu dispor ao abrigo deste direito iria contra os objectivos de garantir a segurança dos abastecimentos [artigo 33.° , n.° 1, alínea d), CE] e de assegurar preços razoáveis nos fornecimentos aos consumidores [artigo 33.° , n.° 1, alínea e), CE].

76 Por outro lado, o uso da expressão «deste modo» na letra do artigo 33.° , n.° 1, alínea b), CE indicaria claramente que um nível de vida equitativo para a população agrícola é um objectivo a atingir através de um aumento da produtividade agrícola, que constitui, por sua vez, o objectivo referido na alínea a) da mesma disposição.

77 Finalmente, o Governo do Reino Unido admite que os produtores têm o direito de procurar obter o preço indicativo. Porém, o preço do leite seria fixado por mecanismos de mercado, no quadro dos instrumentos previstos pela organização comum dos mercados agrícolas. Segundo este governo, se os Estados-Membros devem autorizar os seus produtores a procurar obter o preço indicativo, não são obrigados a autorizá-los a fazê-lo por meios ilegais ou anticoncorrenciais. A aplicação do direito nacional da concorrência aos métodos de venda de uma cooperativa muito grande não interferiria de modo nenhum com o bom funcionamento do mercado comum. Com efeito, ao eliminar as distorções de concorrência, essa aplicação contribuiria para o funcionamento do sistema estabelecido pelo Tratado e pelo Regulamento n.° 804/68.

78 A DIF sugere que se responda a esta parte da primeira questão que os artigos 32.° CE a 38.° CE, o Regulamento n.° 26 e o Regulamento n.° 804/68 não se opõem à aplicação do direito da concorrência do Reino Unido, salvo se a aplicação deste direito acarretar efeitos manifestamente contrários às normas de direito comunitário. Mais precisamente, não seria incompatível com o direito comunitário que o direito nacional da concorrência adoptasse medidas que impedem os produtores de leite de obter preços próximos do preço indicativo em circunstâncias do tipo das descritas no relatório da Competition Commission, ou mesmo em quaisquer circunstâncias.

79 A Comissão recorda a jurisprudência constante segundo a qual, a partir do momento em que a Comunidade institui uma organização comum de mercado para um determinado produto agrícola, os Estados-Membros ficam impedidos de tomar qualquer medida susceptível de prejudicar o funcionamento dessa organização. Ora, no caso do processo principal, não estaria em causa qualquer medida deste tipo. Segundo a Comissão, as medidas tomadas pelas autoridades de um Estado-Membro para restringir uma posição dominante no mercado do leite e dos produtos lácteos de uma empresa relativamente à qual se verificou que explorava essa posição de modo contrário ao interesse público não podem, em princípio, ser consideradas entraves à aplicação da regulamentação sobre a organização comum desse mercado. O Regulamento n.° 804/68, em particular, não impede as autoridades nacionais competentes em matéria de concorrência de tomarem, nessas circunstâncias, medidas como as que estão em causa no processo principal.

Apreciação do Tribunal de Justiça

80 Recorde-se, por um lado, que, como resulta da jurisprudência referida no n.° 63 do presente acórdão, os Estados-Membros devem, face a um regulamento que estabelece uma organização comum de mercado num determinado sector, abster-se de qualquer medida que a possa derrogar ou violar.

81 Por outro lado, é igualmente de jurisprudência constante que, mesmo no que toca às regras do Tratado em matéria de concorrência, o artigo 36.° CE dá primazia aos objectivos da política agrícola comum sobre os da política em matéria de concorrência (v., neste sentido, acórdãos de 29 de Outubro de 1980, Maizena/Conselho, 139/79, Recueil, p. 3393, n.° 23, e Alemanha/Conselho, já referido, n.° 61).

82 É um facto que medidas como as que estão em causa no processo principal não derrogam uma disposição expressa da regulamentação que estabelece a organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos.

83 Põe-se assim a questão de saber se essas medidas, tendo em conta os meios utilizados para a sua realização, têm efeitos susceptíveis de entravar o funcionamento dos mecanismos previstos pela referida organização comum (v., neste sentido, acórdão de 10 de Março de 1981, Irish Creamery Milk Suppliers Association e o., 36/80 e 71/80, Colect., p. 735, n.° 19).

84 Recorde-se a este propósito que, como resulta dos autos, as medidas nacionais em causa no processo principal destinam-se a reduzir o poder da Milk Marque no mercado e a sua capacidade para aumentar o preço do leite dos produtores membros para além dos níveis julgados concorrenciais, a fim de garantir tanto os interesses dos produtores como os dos consumidores.

85 Ora, como o Tribunal de Justiça já declarou, os mecanismos da organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos têm essencialmente por finalidade atingir um nível de preços nas fases da produção e do comércio por grosso, que tenha em conta tanto os interesses do conjunto da produção comunitária no sector considerado como os dos consumidores e que garanta o abastecimento sem incitar a uma produção excedentária (v. acórdão Irish Creamery Milk Suppliers Association e o., já referido, n.° 20).

86 De onde se conclui que os objectivos desta organização comum não podem ser comprometidos por medidas nacionais como as que estão em causa no processo principal, visto que estas não agem como tal na formação dos preços, antes visando salvaguardar o bom funcionamento dos mecanismos de preços a fim de atingir níveis de preços que sirvam tanto os interesses dos produtores como os dos consumidores.

87 No que toca, em especial, à questão de saber se medidas nacionais como as que estão em causa no processo principal constituem uma violação da regulamentação comunitária pertinente devido ao facto de o preço do leite praticado pelos produtores membros da Milk Marque ser inferior ao preço indicativo fixado pelo Regulamento n.° 1190/97 antes da intervenção das autoridades nacionais, importa afirmar que esse facto, só por si, não basta para tornar essas medidas ilegais à luz do direito comunitário.

88 Por um lado, este tipo de preço de orientação constitui um objectivo político a nível comunitário e não garante a todos os produtores de todos os Estados-Membros a obtenção de um rendimento correspondente ao preço indicativo.

89 Por outro lado, como a preservação de uma concorrência efectiva faz parte dos objectivos da organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos - como decorre dos n.os 57 a 60 do presente acórdão - o artigo 3.° , n.° 1, do Regulamento n.° 804/68 não pode ser interpretado no sentido de que os produtores de leite têm o direito de procurar obter, por qualquer meio, um rendimento correspondente ao preço indicativo, incluindo meios eventualmente abusivos e anticoncorrenciais.

90 No entanto, a argumentação desenvolvida pela Milk Marque e pela NFU parece subentender que o relatório da Competition Commission e as decisões subsequentes do Secretary of State ignoraram o facto de que um dos objectivos da política agrícola comum é garantir um nível de vida equitativo à população agrícola, designadamente através do aumento do rendimento individual dos que trabalham na agricultura, e atribuíram uma importância excessiva ao objectivo de garantir preços razoáveis aos consumidores.

91 Recorde-se a este respeito que, ao prosseguirem os diferentes objectivos enumerados no artigo 33.° CE, as instituições comunitárias devem garantir a conciliação permanente que eventuais contradições entre esses objectivos, separadamente considerados, pode exigir. Se, no âmbito dessa conciliação, as instituições comunitárias não podem isolar um desses objectivos a ponto de tornar impossível a realização dos outros, podem, contudo, reconhecer a um ou outro de entre eles a preeminência temporária imposta pelos factos ou pelas circunstâncias económicas face às quais tomam as suas decisões (v., neste sentido, designadamente, acórdão Vandemoortele/Comissão, já referido, n.° 20).

92 Se é certo que esta jurisprudência foi desenvolvida a propósito da acção das instituições comunitárias no domínio da organização comum dos mercados agrícolas, não é menos certo que pode ser aplicada por analogia à acção das autoridades nacionais no âmbito do exercício das suas competências reservadas em matéria de política nacional da concorrência. Com efeito, como foi explicado nos n.os 80 e 81 do presente acórdão, visto que, no quadro da sua acção, essas autoridades são obrigadas a respeitar os objectivos da política agrícola comum tal como estes são enunciados no artigo 33.° CE, também têm de conciliar as eventuais contradições entre esses objectivos.

93 No presente caso, a resposta à questão de saber se o relatório da Competition Commission e as decisões do Secretary of State conciliaram de forma aceitável os diferentes objectivos a que se refere o artigo 33.° CE ou se, pelo contrário, tiveram como efeito isolar o objectivo de assegurar preços razoáveis nos fornecimentos aos consumidores, a ponto de tornar impossível a realização dos outros objectivos, pressupõe uma análise aprofundada, designadamente da situação do mercado do leite no Reino Unido durante o período em causa e dos efeitos resultantes da aplicação das medidas controvertidas nesse mercado. Como esta análise implica necessariamente uma apreciação dos factos do litígio no processo principal, é ao órgão jurisdicional de reenvio que cabe a competência para a ela proceder.

94 Tendo em conta quanto precede, há que responder à primeira questão que os artigos 32.° CE a 38.° CE e os Regulamentos n.os 26 e 804/68 devem ser interpretados no sentido de que, no domínio regido pela organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos, as autoridades nacionais continuam, em princípio, competentes para aplicarem o seu direito nacional da concorrência a uma cooperativa de produtores de leite que ocupa uma posição de poder no mercado nacional.

Quando as autoridades nacionais competentes em matéria de concorrência actuam no domínio regido pela organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos, devem abster-se de qualquer medida que possa derrogar ou afectar essa organização comum.

As medidas adoptadas, no domínio regulado pela organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos, pelas autoridades competentes em matéria de concorrência não podem, designadamente, produzir efeitos susceptíveis de entravar o funcionamento dos mecanismos previstos pela referida organização comum. Porém, o facto de os preços praticados por uma cooperativa leiteira serem já inferiores ao preço indicativo do leite antes da intervenção das referidas autoridades não basta, só por si, para tornar ilegais, à luz do direito comunitário, as medidas tomadas por essas autoridades em relação a essa cooperativa em aplicação do seu direito nacional da concorrência.

Além disso, essas medidas não podem comprometer os objectivos da política agrícola comum, tal como estes são enunciados no artigo 33.° , n.° 1, CE. A este respeito, as autoridades nacionais competentes em matéria de concorrência devem, se necessário for, efectuar a conciliação que pode ser imposta por eventuais contradições entre os diferentes objectivos a que se refere o artigo 33.° CE, sem atribuírem a um deles uma importância tal que torne impossível a realização dos outros.

Quanto à segunda questão

95 Na segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se a função do preço indicativo do leite, a que se refere o artigo 3.° , n.° 1, do Regulamento n.° 804/68, impede as autoridades nacionais competentes em matéria de concorrência de utilizarem esse preço indicativo para apreciarem o poder de uma empresa agrícola no mercado, comparando as variações dos preços reais com o preço indicativo.

Alegações no Tribunal de Justiça

96 A Milk Marque alega que a função do preço indicativo impede as autoridades nacionais de o utilizarem como um indicador das variações de preços reais devidas à política agrícola comum. Além disso, como os preços realizados pelas cooperativas leiteiras foram sempre inferiores ao preço indicativo, estas autoridades não poderiam inferir do facto de estes preços estarem mais próximos do preço indicativo num dado momento e menos noutro que existe uma posição de poder no mercado.

97 A DIF, a Comissão e o Governo do Reino Unido, este a título subsidiário, afirmam que nenhuma disposição de direito comunitário impede as autoridades de um Estado-Membro de utilizarem, seja de que forma for, o preço indicativo, a que se refere o Regulamento n.° 804/68, como ponto de comparação histórica das variações de preços efectivos ou para efeitos estatísticos, comparativos ou econométricos.

Apreciação do Tribunal de Justiça

98 Recorde-se que, nos termos do disposto no artigo 3.° , n.° 2, do Regulamento n.° 804/68, o preço indicativo é o preço do leite que se pretende assegurar em relação à totalidade do leite vendido pelos produtores no decurso de uma campanha leiteira, na medida das hipóteses de escoamento existentes no mercado da Comunidade e nos mercados externos.

99 Decorre deste artigo, lido à luz do artigo 33.° , n.° 1, CE, que a função essencial do preço indicativo é definir, no plano comunitário, o ponto de equilíbrio desejável entre, por um lado, o objectivo de assegurar um nível de vida equitativo à população agrícola e, por outro, o objectivo de assegurar preços razoáveis nos fornecimentos aos consumidores.

100 Forçoso é constatar que a utilização do preço indicativo, pelas autoridades nacionais competentes em matéria de concorrência, como indicador no quadro da apreciação do poder que uma empresa agrícola detém no mercado nacional não interfere de modo nenhum com a sua função essencial.

101 De resto, não existe nenhuma norma de direito comunitário primário ou derivado que proíba essa utilização do preço indicativo.

102 Há, assim, que responder à segunda questão que a função do preço indicativo do leite previsto no artigo 3.° , n.° 1, do Regulamento n.° 804/68 não impede as autoridades nacionais competentes em matéria de concorrência de utilizarem esse preço indicativo para apreciarem o poder de uma empresa agrícola no mercado, comparando as variações dos preços reais com o preço indicativo.

Quanto à terceira questão

103 Na terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no fundo, se os artigos 28.° CE a 30.° CE e/ou o artigo 49.° CE impedem que, no quadro da aplicação do respectivo direito nacional da concorrência, as autoridades competentes de um Estado-Membro proíbam que uma cooperativa leiteira que ocupa uma posição de poder no mercado celebre contratos, inclusivamente com empresas sediadas noutros Estados-Membros, para a transformação, por sua conta, de leite produzido pelos seus membros.

Alegações no Tribunal de Justiça

104 A Milk Marque e a NFU afirmam que as medidas propostas pela Competition Commission e aceites pelo Secretary of State comportam a exigência de que a Milk Marque deixe de celebrar acordos de transformação, salvo em caso de urgência e quando a única alternativa seja a destruição do leite. Esta exigência constituiria uma restrição, por um lado, à exportação de leite cru a partir do Reino Unido e, por outro, à importação ou à exportação de produtos lácteos de um Estado-Membro para outros Estados-Membros. Seria, portanto, contrária aos artigos 28.° CE e 29.° CE. Como esta medida obrigaria, assim, a Milk Marque a recorrer unicamente aos serviços de transformadores estabelecidos no Reino Unido, constituiria igualmente uma restrição contrária ao artigo 49.° CE.

105 Segundo a Milk Marque e a NFU, estas medidas não poderiam ser justificadas ao abrigo dos artigos 30.° CE e 46.° CE, devido ao facto de, por um lado, os objectivos de natureza puramente económica como os visados pelo Secretary of State não poderem nunca justificar a existência de um obstáculo aos princípios fundamentais da livre circulação (acórdãos de 11 de Junho de 1985, Comissão/Irlanda, 288/83, Recueil, p. 1761, n.° 28; de 25 de Julho de 1991, Stichting Collectieve Antennevoorziening Gouda, C-288/89, Colect., p. I-4007, n.° 11; e de 28 de Abril de 1998, Decker, C-120/95, Colect., p. I-1831, n.° 39), e de, por outro, não ser possível invocar derrogações ao Tratado quando a Comunidade prevê a harmonização das medidas necessárias para atingir o objectivo específico prosseguido com essas derrogações (acórdão de 23 de Maio de 1996, Hedley Lomas, C-5/94, Colect., p. I-2553, n.° 18), no presente caso, a fixação do preço indicativo e a organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos.

106 O Governo do Reino Unido alega, pelo contrário, que, ainda que as medidas a que se refere a terceira questão prejudicial constituíssem um entrave à livre circulação de mercadorias ou à livre prestação de serviços, este funcionaria indistintamente. Por conseguinte, poderia ser justificado por vários motivos comprovados, como a proibição de concorrência desleal, a lealdade nas transacções comerciais e a protecção dos consumidores. Além disso, à luz da análise minuciosa da Competition Commission, o Governo do Reino Unido não vê qualquer razão para sugerir que estes objectivos reais e legítimos foram prosseguidos de maneira não proporcionada.

107 Referindo-se, designadamente, aos acórdãos de 7 de Fevereiro de 1984, Jongeneel Kaas e o. (237/82, Recueil, p. 483), e de 10 de Janeiro de 1985, Leclerc e Thouars Distribution (229/83, Recueil, p. 1), a DIF sustenta que as medidas nacionais que impedem a Milk Marque de fornecer leite para transformação por sua conta, tanto no Reino Unido como nos outros Estados-Membros, não são proibidas pelos artigos 28.° CE e 30.° CE, visto que são indistintamente aplicáveis. Com efeito, não constituem uma diferença de tratamento entre o comércio interno do Reino Unido e o seu comércio de exportação consistente em conceder uma vantagem especial à produção britânica ou ao mercado do leite britânico. As regras relativas à livre circulação das mercadorias na Comunidade não obstam à aplicação do direito nacional da concorrência nestas circunstâncias e com este fim.

108 Quanto à compatibilidade das medidas em causa com as disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços, a DIF refere-se aos acórdãos de 3 de Dezembro de 1974, Van Binsbergen (33/74, Colect., p. 543, n.° 12), de 30 de Abril de 1986, Comissão/França (96/85, Colect., p. 1475, n.os 10 e 11), e de 25 de Julho de 1991, Säger (C-76/90, Colect., p. I-4221, n.° 12), para concluir que critérios objectivos como, no presente caso, o direito nacional da concorrência, aplicados de modo não discriminatório e que têm por finalidade aperfeiçoar o mercado e proteger os consumidores, não podem ser considerados contrários aos artigos 49.° CE e 55.° CE.

109 Referindo-se ao acórdão Leclerc e Thouars Distribution, já referido, a Comissão alega que medidas como as que estão em causa no processo principal não cabem na previsão do artigo 28.° CE, porque as mercadorias em causa são exportadas unicamente com o fim de serem reimportadas para contornar uma legislação nacional. Além disso, essas medidas não seriam contrárias ao artigo 29.° CE, porque não teriam por efeito restringir especificamente as correntes de exportação e estabelecer assim uma diferença de tratamento entre o comércio interno de um Estado-Membro e o seu comércio de exportação.

Apreciação do Tribunal de Justiça

110 Registe-se liminarmente, por um lado, que a transformação do leite não pode ser havida como uma prestação de serviços na acepção do artigo 50.° CE, porque leva directamente à produção de um objecto material que se destina ele próprio a ser comercializado enquanto mercadoria. Em qualquer dos casos, segundo o artigo 50.° CE, consideram-se serviços as prestações realizadas mediante remuneração, na medida em que não sejam reguladas pelas disposições relativas à livre circulação de mercadorias, de capitais e de pessoas (v., neste sentido, acórdão de 7 de Maio de 1985, Comissão/França, 18/84, Recueil, p. 1339, n.° 12).

111 Por outro lado, resulta dos autos que as medidas em causa no processo principal, a que se refere a terceira questão, só dizem respeito à transformação do leite em produtos de que a Milk Marque mantinha a propriedade e cuja comercialização foi, a seguir, efectuada pela MMD, a filial da Milk Marque. De onde se deduz que, relativamente aos contratos para transformação celebrados com empresas sediadas noutros Estados-Membros, as medidas em causa visavam, é certo, produtos exportados, mas a exportação desses produtos era efectuada tendo em vista a sua transformação e a sua subsequente reimportação para o Reino Unido.

112 A apreciação da terceira questão deverá, por conseguinte, ser feita unicamente sob o ângulo dos artigos 28.° CE a 30.° CE.

113 Em primeiro lugar, no que toca à questão de saber se medidas como as referidas na terceira questão constituem medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas à importação na acepção do artigo 28.° CE, recorde-se que, segundo jurisprudência constante, esta disposição visa proibir qualquer regulamentação ou qualquer medida dos Estados-Membros susceptível de entravar directa ou indirectamente, actual ou potencialmente, o comércio intracomunitário (v., designadamente, acórdão de 11 de Julho de 1974, Dassonville, 8/74, Recueil, p. 887, n.° 5, Colect., p. 423).

114 Porém, é igualmente de jurisprudência constante que um Estado-Membro tem o direito de tomar medidas destinadas a impedir que, ao abrigo das facilidades criadas por força do Tratado, alguns dos seus nacionais procurem subtrair-se abusivamente à aplicação da sua legislação nacional (v., designadamente em matéria de livre prestação de serviços, acórdãos Van Binsbergen, já referido, n.° 13, de 3 de Fevereiro de 1993, Veronica Omroep Organisatie, C-148/91, Colect., p. I-487, n.° 12, e de 5 de Outubro de 1994, TV10, C-23/93, Colect., p. I-4795, n.° 21; em matéria de liberdade de estabelecimento, acórdãos de 7 de Fevereiro de 1979, Knoors, 115/78, Colect., p. 173, n.° 25, de 3 de Outubro de 1990, Bouchoucha, C-61/89, Colect., p. I-3551, n.° 14, e de 9 de Março de 1999, Centros, C-212/97, Colect., p. I-1459, n.° 24; em matéria de segurança social, acórdão de 2 de Maio de 1996, Paletta, C-206/94, Colect., p. I-2357, n.° 24; em matéria de livre circulação dos trabalhadores, acórdão de 21 de Junho de 1988, Lair, 39/86, Colect., p. 3161, n.° 43; em matéria de política agrícola comum, acórdão de 3 de Março de 1993, General Milk Products, C-8/92, Colect., p. I-779, n.° 21; em matéria de direito das sociedades, acórdão de 12 de Maio de 1998, Kefalas e o., C-367/96, Colect., p. I-2843, n.° 20).

115 No que toca mais especificamente à matéria da livre circulação de mercadorias, o Tribunal de Justiça já declarou que medidas restritivas incidentes sobre mercadorias que tenham sido exportadas unicamente com o fim de serem reimportadas para contornar uma legislação nacional não constituem medidas de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à importação, na acepção do artigo 28.° CE (v., neste sentido, acórdão Leclerc e Thouars Distribution, já referido, n.° 27). O mesmo deve acontecer quando se trata de uma exportação de mercadorias seguida de reimportação a fim de evitar a aplicação de medidas adoptadas em aplicação do direito nacional da concorrência.

116 Ora, é precisamente esse o caso das medidas como as referidas na terceira questão.

117 Com efeito, se a proibição imposta à Milk Marque, de celebrar contratos de transformação por sua própria conta, só se aplicasse aos contratos negociados com empresas estabelecidas no Reino Unido, a Milk Marque teria podido, através de contratos com empresas sediadas noutros Estados-Membros, contornar essa legislação, privando-a, assim, de efeito.

118 Em segundo lugar, a respeito da questão de saber se medidas como as referidas na terceira questão constituem medidas de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à exportação na acepção do artigo 29.° CE, recorde-se que, segundo jurisprudência constante, este artigo visa as medidas nacionais que têm por objectivo ou por efeito restringir especificamente as correntes de exportação e estabelecer assim uma diferença de tratamento entre o comércio interno de um Estado-Membro e o seu comércio de exportação, de modo a assegurar vantagens especiais à produção nacional ou ao mercado interno do Estado interessado (v., designadamente, acórdãos de 14 de Julho de 1981, Oebel, 155/80, Recueil, p. 1993, n.° 15; Jongeneel Kaas e o., já referido, n.° 22; e de 16 de Maio de 2000, Bélgica/Espanha, C-388/95, Colect., p. I-3123, n.° 41).

119 Ora, forçoso é constatar que não é esse o caso de medidas como as referidas na terceira questão, que se inserem na política nacional da concorrência, se destinam a limitar as práticas anticoncorrenciais de uma única cooperativa agrícola e que se aplicam indistintamente aos contratos de transformação celebrados com empresas estabelecidas no Reino Unido e aos contratos celebrados com empresas estabelecidas noutros Estados-Membros.

120 Deve, pois, responder-se à terceira questão que as regras do Tratado em matéria de livre circulação de mercadorias não impedem que, no quadro da aplicação do respectivo direito nacional da concorrência, as autoridades competentes de um Estado-Membro proíbam que uma cooperativa leiteira que ocupa uma posição de poder no mercado celebre contratos, inclusivamente com empresas sediadas noutros Estados-Membros, para a transformação, por sua conta, de leite produzido pelos seus membros.

Quanto à quarta questão

121 Na quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no fundo, se os artigos 12.° CE e 34.° , n.° 2, segundo parágrafo, CE obstam à tomada de medidas, como as que estão em causa no processo principal, em relação a uma cooperativa leiteira que ocupa uma posição de poder no mercado, quando importantes cooperativas leiteiras integradas verticalmente estão autorizadas a operar noutros Estados-Membros.

Alegações no Tribunal de Justiça

122 A Milk Marque e a NFU alegam que é incompatível com o princípio da não discriminação e a organização comum dos mercados agrícolas, a que se referem os artigos 12.° CE e 34.° , n.° 2, segundo parágrafo, CE, que as autoridades nacionais utilizem o seu direito nacional para restringir a possibilidade de uma categoria de produtores, como os membros da Milk Marque, de procederem à transformação de leite, quando essa restrição não é aplicável aos outros produtores do Reino Unido ou noutros países da União Europeia. Chamam a atenção para o facto de as medidas nacionais em causa no processo principal não se aplicarem ao conjunto dos produtores estabelecidos no Reino Unido e de não terem sido adoptadas com base em critérios objectivos. Com efeito, estas medidas foram tomadas no quadro de uma política que foi deliberadamente adoptada para favorecer os transformadores de leite em detrimento dos membros da Milk Marque.

123 O Governo do Reino Unido sustenta que o princípio da não discriminação não se aplica nem ao tratamento diferente reservado pelas autoridades nacionais dos Estados-Membros às cooperativas agrícolas nem aos casos em que a alegada discriminação não emana da mesma autoridade. O Governo do Reino Unido, a DIF e a Comissão sublinham, além disso, designadamente, que o facto de se conceder um tratamento diferente a uma empresa por esta explorar a sua posição dominante contra o interesse público não constitui um acto discriminatório relativamente a essa empresa, mas antes uma medida objectivamente justificada.

Apreciação do Tribunal de Justiça

124 Se é verdade que o artigo 12.° CE proíbe os Estados-Membros de aplicarem de forma diferente o seu direito nacional da concorrência em razão da nacionalidade dos interessados, não é menos verdade que não visa as eventuais disparidades de tratamento que podem resultar, para as pessoas e empresas sujeitas à jurisdição da Comunidade, das divergências existentes entre as legislações dos diferentes Estados-Membros, desde que estas afectem todas as pessoas a quem são aplicáveis, segundo critérios objectivos e sem ter em conta a sua nacionalidade (v., neste sentido, acórdão Wilhelm e o., já referido, n.° 13).

125 À luz desta jurisprudência, forçoso é concluir que, no caso de medidas como as do processo principal, que visam proibir a extensão das actividades de uma cooperativa leiteira à transformação do leite, devido à posição de poder que esta detém no mercado e à utilização do poder que daí lhe advém contra o interesse público, o mero facto de existirem cooperativas integradas verticalmente noutros Estados-Membros não demonstra que a adopção dessas medidas constitui uma discriminação em razão da nacionalidade.

126 No que diz respeito ao artigo 34.° , n.° 2, segundo parágrafo, CE, assinale-se que esta disposição, que consagra a proibição de qualquer discriminação no âmbito da política agrícola comum, mais não é do que a expressão específica do princípio geral da igualdade, que exige que situações comparáveis não sejam tratadas de modo diferente e que situações diferentes não sejam tratadas de modo igual, excepto se esse tratamento diferente for objectivamente justificado (v., designadamente, acórdãos de 20 de Setembro de 1988, Espanha/Conselho, 203/86, Colect., p. 4563, n.° 25; de 17 de Abril de 1997, EARL de Kerlast, C-15/95, Colect., p. I-1961, n.° 35; de 13 de Abril de 2000, Karlsson e o., C-292/97, Colect., p. I-2737, n.° 39; e de 6 de Março de 2003, Niemann, C-14/01, ainda não publicado na Colectânea, n.° 49).

127 No caso ora em apreço, basta ter presente que, como decorre do despacho de reenvio, a adopção das medidas em causa no processo principal foi efectuada com base em legislação de alcance geral e foi motivada pela posição de poder da Milk Marque no mercado e pela utilização desta posição contra o interesse público. De onde se conclui que uma cooperativa como a Milk Marque não está numa situação comparável à dos outros produtores de leite estabelecidos no Reino Unido ou noutros Estados-Membros.

128 Nestas circunstâncias, há que responder à quarta questão que os artigos 12.° CE e 34.° , n.° 2, segundo parágrafo, CE não obstam à tomada de medidas, como as que estão em causa no processo principal, em relação a uma cooperativa leiteira que ocupa uma posição de poder no mercado e que explora essa posição contra o interesse público, apesar de importantes cooperativas leiteiras integradas verticalmente estarem autorizadas a operar noutros Estados-Membros.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

129 As despesas efectuadas pelo Governo do Reino Unido e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões submetidas pela High Court (England & Wales), Queen's Bench Division (Crown Office), por despacho de 31 de Março de 2000, declara:

1) Os artigos 32.° CE a 38.° CE, o Regulamento n.° 26 do Conselho, de 4 de Abril de 1962, relativo à aplicação de determinadas regras de concorrência à produção e ao comércio de produtos agrícolas, e o Regulamento (CEE) n.° 804/68 do Conselho, de 27 de Junho de 1968, que estabelece a organização comum de mercado no sector do leite e dos produtos lácteos, na redacção que lhe foi dada pelo Regulamento (CE) n.° 1587/96 do Conselho, de 30 de Julho de 1996, devem ser interpretados no sentido de que, no domínio regido pela organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos, as autoridades nacionais continuam, em princípio, competentes para aplicarem o seu direito nacional da concorrência a uma cooperativa de produtores de leite que ocupa uma posição de poder no mercado nacional.

Quando as autoridades nacionais competentes em matéria de concorrência actuam no domínio regido pela organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos, devem abster-se de qualquer medida que possa derrogar ou afectar essa organização comum.

As medidas adoptadas, no domínio regulado pela organização comum de mercado do leite e dos produtos lácteos, pelas autoridades nacionais competentes em matéria de concorrência não podem, designadamente, produzir efeitos susceptíveis de entravar o funcionamento dos mecanismos previstos pela referida organização comum. Porém, o facto de os preços praticados por uma cooperativa leiteira serem já inferiores ao preço indicativo do leite antes da intervenção das referidas autoridades não basta, só por si, para tornar ilegais, à luz do direito comunitário, as medidas tomadas por essas autoridades em relação a essa cooperativa em aplicação do seu direito nacional da concorrência .

Além disso, essas medidas não podem comprometer os objectivos da política agrícola comum, tal como estes são enunciados no artigo 33.° , n.° 1, CE. A este respeito, as autoridades nacionais competentes em matéria de concorrência devem, se necessário for, efectuar a conciliação que pode ser imposta por eventuais contradições entre os diferentes objectivos a que se refere o artigo 33.° CE, sem atribuir a um deles uma importância tal que torne impossível a realização dos outros.

2) A função do preço indicativo do leite previsto no artigo 3.° , n.° 1, do Regulamento n.° 804/68, na nova redacção do Regulamento n.° 1587/96, não impede as autoridades nacionais competentes em matéria de concorrência de utilizarem esse preço indicativo para apreciarem o poder de uma empresa agrícola no mercado, comparando as variações dos preços reais com o preço indicativo.

3) As regras do Tratado em matéria de livre circulação de mercadorias não impedem que, no quadro da aplicação do respectivo direito nacional da concorrência, as autoridades competentes de um Estado-Membro proíbam que uma cooperativa leiteira que ocupa uma posição de poder no mercado celebre contratos, inclusivamente com empresas sediadas noutros Estados-Membros, para a transformação, por sua conta, de leite produzido pelos seus membros.

4) Os artigos 12.° CE e 34.° , n.° 2, segundo parágrafo, CE não obstam à tomada de medidas, como as que estão em causa no processo principal, em relação a uma cooperativa leiteira que ocupa uma posição de poder no mercado e que explora essa posição contra o interesse público, apesar de importantes cooperativas leiteiras integradas verticalmente estarem autorizadas a operar noutros Estados-Membros.

Top