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Document 62018CJ0034

Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 19 de setembro de 2019.
Ottília Lovasné Tóth contra ERSTE Bank Hungary Zrt.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Fővárosi Ítélőtábla.
Reenvio prejudicial — Proteção dos consumidores — Diretiva 93/13/CEE — Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores — Artigo 3.o, n.os 1 e 3 — Anexo da Diretiva 93/13/CEE — Ponto 1, alíneas m) e q) — Contrato de mútuo hipotecário — Ato notarial — Aposição da fórmula executória por um notário — Inversão do ónus da prova — Artigo 5.o, n.o 1.o — Redação clara e compreensível.
Processo C-34/18.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2019:764

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

19 de setembro de 2019 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Proteção dos consumidores — Diretiva 93/13/CEE — Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores — Artigo 3.o, n.os 1 e 3 — Anexo da Diretiva 93/13/CEE — Ponto 1, alíneas m) e q) — Contrato de mútuo hipotecário — Ato notarial — Aposição da fórmula executória por um notário — Inversão do ónus da prova — Artigo 5.o, n.o 1.o — Redação clara e compreensível»

No processo C‑34/18,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Fővárosi Ítélőtábla (Tribunal Superior de Budapeste‑Capital, Hungria), por Decisão de 9 de janeiro de 2018, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 18 de janeiro de 2018, no processo

Ottília Lovasné Tóth

contra

ERSTE Bank Hungary Zrt.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: A. Prechal (relatora), presidente de secção, F. Biltgen, J. Malenovský, C. G. Fernlund e L. S. Rossi, juízes,

advogado‑geral: G. Hogan,

secretário: R. Șereș, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 23 de janeiro de 2019,

vistas as observações apresentadas:

em representação de Lovasné Tóth, por G. Némethi, ügyvéd,

em representação do ERSTE Bank Hungary Zrt., por T. Kende e P. Sonnevend, ügyvédek,

em representação do Governo húngaro, por M.‑Z. Fehér, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por N. Ruiz García e A. Tokár, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral apresentadas na audiência de 21 de março de 2019,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 3.o e 5.o da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO 1993, L 95, p. 29), bem como do ponto 1, alíneas m) e q), do anexo desta diretiva.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe Ottília Lovasné Tóth (a seguir «mutuária») ao ERSTE Bank Hungary Zrt. (a seguir «banco») a respeito de um pedido de declaração do caráter alegadamente abusivo de uma cláusula contida num contrato de mútuo hipotecário expresso em divisas estrangeiras.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Nos termos do quinto considerando da Diretiva 93/13:

«Considerando que, regra geral, os consumidores de um Estado‑Membro desconhecem as regras por que se regem, nos outros Estados‑Membros, os contratos relativos à venda de bens ou à oferta de serviços; que esse desconhecimento pode dissuadi‑los de efetuarem transações diretas de compra de bens ou de fornecimento de serviços noutro Estado‑Membro».

4

O artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva prevê:

«Uma cláusula contratual que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa‑fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.»

5

O artigo 3.o, n.o 3, da diretiva faz referência ao anexo desta que contém uma «lista indicativa e não exaustiva de cláusulas que podem ser consideradas abusivas».

6

O artigo 5.o, primeira frase, da mesma diretiva prevê:

«No caso dos contratos em que as cláusulas propostas ao consumidor estejam, na totalidade ou em parte, consignadas por escrito, essas cláusulas deverão ser sempre redigidas de forma clara e compreensível.»

7

Nos termos do artigo 8.o da Diretiva 93/13:

«Os Estados‑Membros podem adotar ou manter, no domínio regido pela presente diretiva, disposições mais rigorosas, compatíveis com o Tratado, para garantir um nível de proteção mais elevado para o consumidor.»

8

O ponto n.o 1 do anexo desta diretiva tem a seguinte redação:

«Cláusulas que têm como objetivo ou como efeito:

[…]

m)

Facultar ao profissional o direito de decidir se a coisa entregue ou o serviço fornecido está em conformidade com as disposições do contrato ou conferir‑lhe o direito exclusivo de interpretar qualquer cláusula do contrato;

[…]

q)

Suprimir ou entravar a possibilidade de intentar ações judiciais ou seguir outras vias de recurso, por parte do consumidor, nomeadamente obrigando‑o a submeter‑se exclusivamente a uma jurisdição de arbitragem não abrangida por disposições legais, limitando indevidamente os meios de prova à sua disposição ou impondo‑lhe um ónus da prova que, nos termos do direito aplicável, caberia normalmente a outra parte contratante.»

Direito húngaro

Código Civil

9

A Polgári Törvénykönyvről szóló 1959. évi IV. törvény (Lei IV de 1959 que Aprova o Código Civil), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Código Civil»), enuncia, no seu artigo 205.o/A:

«1.   Qualificam‑se de cláusulas contratuais gerais as cláusulas contratuais definidas prévia e unilateralmente por uma das partes com o fim de celebrar uma pluralidade de contratos, sem participação da outra parte e sem que sejam objeto de negociação individual entre as partes.

[…]

3.   Para efeitos de qualificação como cláusulas contratuais gerais são irrelevantes o alcance, a forma, ou modo de formulação das cláusulas e como estão consignadas no contrato e o facto de serem incluídas no próprio contrato ou num documento separado.»

10

O artigo 209.o do Código Civil dispõe:

«1.   As cláusulas contratuais gerais e as cláusulas de um contrato celebrado com um consumidor que não tenham sido negociadas individualmente são abusivas se, em violação das exigências de boa‑fé e da equidade, estipularem de forma unilateral e sem justificação os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato, em prejuízo da parte contratante que não tiver estipulado essas cláusulas.

2.   Para determinar o caráter abusivo de uma cláusula, devem ser tidas em conta todas as circunstâncias existentes na data de celebração do contrato e que determinaram a sua celebração, bem como a natureza do serviço acordado e relação da cláusula em questão com as demais cláusulas do contrato ou com outros contratos.

3.   As cláusulas de um contrato celebrado com o consumidor, consideradas abusivas ou que devam ser consideradas como tal, salvo prova em contrário, podem ser determinadas mediante disposições especiais.»

11

Nos termos do artigo 209.o/A do Código Civil:

«1.   As cláusulas abusivas integradas no contrato como condições gerais podem ser impugnadas pela parte lesada.

2.   Nos contratos com consumidores são nulas as cláusulas abusivas integradas nos contratos como condições contratuais gerais ou que o profissional tenha redigido unilateralmente, previamente e sem negociação individual. A nulidade só pode ser invocada no interesse do consumidor.»

12

O artigo 242.o do Código Civil dispõe:

«1.   O reconhecimento da dívida não altera o título jurídico da dívida, contudo, incumbe a quem faça esse reconhecimento provar que a sua dívida não existe, que a sua execução não pode ser requerida judicialmente ou que o contrato não é válido.

2.   O reconhecimento da dívida é efetuado mediante declaração escrita dirigida à outra parte.»

13

O artigo 523.o do Código Civil prevê:

«1.   Por força do contrato de mútuo, a instituição financeira ou qualquer outro mutuante obriga‑se a disponibilizar ao devedor o montante acordado; por seu turno, o devedor obriga‑se a reembolsar o referido montante em conformidade com o disposto no contrato.

2.   Salvo disposição legislativa ou regulamentar em contrário, quando o mutuante seja um estabelecimento financeiro, o devedor está obrigado a pagar juros (empréstimo bancário)».

14

Segundo o artigo 688.o do Código Civil, este tem por objeto, nomeadamente, transpor a Diretiva 93/13 para o direito húngaro.

Decreto do Governo

15

O Fogyasztóval kötött szerződésben tisztességtelennek minősülő feltételekről szóló 18/1999. (II. 5) Kormányrendelet [Decreto do Governo n.o 18/1999 (II. 5) Relativo às Cláusulas Abusivas nos Contratos Celebrados com os Consumidores], na versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Decreto do Governo»), prevê, no artigo 1.o, n.o 1, que são consideradas abusivas, particularmente, as cláusulas contratuais que:

«[…]

b)

habilitem exclusivamente a parte que contrata com o consumidor a determinar se o contrato foi cumprido em conformidade com as suas disposições;

[…]

i)

excluam ou limitem as vias ao dispor do consumidor para o exercício dos seus direitos, em virtude da lei ou do acordado entre as partes, salvo se as referidas vias forem substituídas por um procedimento de resolução de conflitos previsto na lei;

j)

invertam o ónus da prova em detrimento do consumidor.»

16

Nos termos do artigo 3.o, n.o 2, deste decreto:

«O presente decreto, juntamente com as disposições pertinentes do Código Civil, assegura a transposição da Diretiva [93/13] para o direito húngaro.»

Código de Processo Civil

17

A polgári perrendtartásról szóló 1952. évi III. törvény (Lei III de 1952 que Institui o Código de Processo Civil), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Código de Processo Civil»), dispõe, no seu artigo 164.o, n.o 1:

«A prova dos factos necessários para a resolução do litígio cabe, em princípio, à parte interessada em que o tribunal os dê como provados.»

Lei Húngara LIII de 1994

18

A bírósági végrehajtásról szóló 1994. évi LIII törvény (Lei Húngara LIII de 1994 Relativa ao Processo Judicial de Execução), na sua versão aplicável na data de assinatura do contrato em causa no processo principal, prevê, no seu artigo 10.o:

«A execução judicial é ordenada mediante a apresentação de um título executivo. São títulos executivos os seguintes:

[…]

b)

os documentos em que um tribunal apôs a fórmula executória.»

19

Desde 1 de junho de 2010, esta disposição tem a seguinte redação:

«A execução judicial é ordenada mediante a apresentação de um título executivo. São títulos executivos os seguintes:

[…]

b)

os documentos em que um tribunal ou um notário apuseram a fórmula executória.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

20

Em 27 de outubro de 2008, a mutuária e o banco celebraram um contrato de mútuo imobiliário (a seguir «contrato de mútuo») expresso em francos suíços (CHF). Com este contrato, o banco comprometeu‑se a colocar à disposição da mutuária o montante de 132848 CHF (cerca de 118140 euros) para refinanciamento de um crédito. No mesmo dia, a mutuária subscreveu perante um notário um documento autêntico, intitulado «Declaração unilateral de reconhecimento de dívida», no qual figuravam as disposições do contrato de mútuo.

21

O ponto I.4 do contrato de mútuo, cujo conteúdo consta igualmente do referido documento notarial, tem a seguinte redação:

«A fim de resolver eventuais litígios relativos à contabilização ou de satisfazer uma exigência do banco, com vista a determinar o montante do crédito ou de qualquer outra dívida pendente num determinado momento em conformidade com o presente documento, a data efetiva da disponibilização e a data de vencimento de uma obrigação de pagamento, bem como qualquer dado ou facto necessário para efeitos da execução judicial direta, as partes manifestam a sua vontade de se obrigar a aceitar como elemento de prova fidedigna e irrefutável um documento autêntico exarado pelo notário e elaborado em conformidade com as contas abertas pelo devedor no banco e os registos e livros contabilísticos do referido banco.

Consequentemente, as partes comprometem‑se a reconhecer, através da assinatura do presente documento, que, em caso de não pagamento do montante principal do mútuo ou dos seus juros e despesas, ou no caso de o reembolso não respeitar o acordado no contrato, o documento autêntico exarado pelo notário e elaborado em conformidade com as contas abertas pelo devedor no banco e os registos e os livros contabilísticos do banco servirá, juntamente com o presente documento e para efeitos de uma execução coerciva, de prova do crédito e dos juros e despesas pendentes num determinado momento, bem como dos factos acima referidos.

No caso de o banco intentar um processo de execução coerciva, as partes ou o devedor pedem ao notário que autenticou o presente documento ou ao notário competente que faça constar, em ato notarial elaborado em conformidade com as contas abertas pelos devedores no banco e os registos e os livros contabilísticos do banco e após análise dos registos, o montante do crédito e dos seus juros e despesas ou de qualquer outra dívida decorrente do mútuo acima referido, bem como os factos e dados referidos, supra, que sejam necessários e autorizam o levantamento do segredo bancário relativamente à referida informação.»

22

Resulta da decisão de reenvio que o contrato de mútuo autoriza o banco a rescindi‑lo com efeitos imediatos em caso de incumprimento grave das obrigações contratuais por parte da mutuária, tal como o incumprimento de uma obrigação de pagamento. Uma vez que todos os créditos baseados nesse contrato se tornam exigíveis na sequência de rescisão, o banco tem direito ao reembolso imediato do montante remanescente da dívida.

23

Em 5 de janeiro de 2016, a mutuária intentou uma ação no órgão jurisdicional húngaro de primeira instância competente. Alegou que a cláusula contida no ponto I.4 do contrato de mútuo e a disposição correspondente do documento autêntico exarado por ocasião da celebração do contrato de mútuo eram abusivas, uma vez que, mediante esta cláusula, se comprometeu a aceitar que o banco possa declarar unilateralmente um incumprimento da sua parte, determinar o montante da dívida e proceder diretamente à execução com base nesse documento autêntico, dotado de força probatória, dado que contém a fórmula executória. Segundo a mutuária, a referida cláusula inverte o ónus da prova em detrimento do consumidor, tendo em conta que, em caso de desacordo, cabe a este último recorrer a um órgão jurisdicional para se opor à execução coerciva

24

O banco pediu que a ação fosse julgada improcedente. Segundo ele, a cláusula em causa no processo principal não permite declarar unilateralmente se a mutuária cumpriu as suas obrigações. Na sua opinião, essa cláusula não inverte o ónus da prova e não priva a mutuária da possibilidade de fazer valer as suas pretensões. Mesmo na presença de um documento notarial que ateste o montante da dívida, o direito húngaro permite sempre produzir prova em contrário. Além disso, mesmo no âmbito de um processo simplificado de execução coerciva, incumbe sempre ao banco provar o montante do crédito. A referida cláusula não permite ao banco determinar unilateralmente o montante da dívida nem impor a sua própria interpretação das disposições do contrato de mútuo.

25

O órgão jurisdicional húngaro de primeira instância competente julgou improcedente a ação da mutuária com o fundamento de que a cláusula em causa no processo principal não era abusiva, uma vez que se limitava a precisar as modalidades a respeitar para atestar a existência da dívida. No que se refere à execução, o referido órgão jurisdicional considerou que, quando é ordenada, não há forma de verificar se a mutuária está em incumprimento. Todavia, esta poderia declarar ao agente judiciário que cumpriu as suas obrigações e, se necessário, iniciar um processo de extinção da execução coerciva. Nesse processo, a mutuária poderia contestar o crédito.

26

A mutuária interpôs recurso dessa decisão para o órgão jurisdicional de reenvio. Salientou o facto de a cláusula em causa no processo principal ser suscetível de gerar um desequilíbrio em detrimento do consumidor, na aceção da Diretiva 93/13, ao simplificar as possibilidades que o banco tem de fazer valer as suas pretensões e ao tornar mais difícil a defesa do consumidor.

27

O órgão jurisdicional de reenvio, que recorda que, segundo o artigo 242.o do Código Civil, incumbe ao autor de um reconhecimento de dívida provar que a sua dívida não existe, que a sua execução não pode ser requerida judicialmente ou que o contrato não é válido, considera que este artigo não é aplicável à cláusula contida no ponto I.4 do contrato de mútuo. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o referido artigo, que inverte o ónus da prova relativamente às dívidas reconhecidas, só se aplica se o montante da dívida for claro e definido. Ora, não é o que sucede no caso em apreço.

28

O órgão jurisdicional de reenvio considera, além disso, que o ponto I.4. do contrato de mútuo tem o mesmo efeito que o artigo 242.o do Código Civil quanto à inversão do ónus da prova, na medida em que, em caso de desacordo, incumbe à mutuária provar que o banco não pode recorrer a um órgão jurisdicional para contestar o caráter legítimo da execução coerciva ou a validade do contrato de mútuo. Num processo destinado à limitação ou à exclusão da execução coerciva, as exigências em matéria de prazos e de prova são mais estritas do que nos processos cíveis comuns. Por conseguinte, ao exigir que a dívida, mesmo sem estar necessariamente reconhecida pelo devedor, seja comprovada mediante um documento autêntico dotado de força probatória, com base nos livros do banco, essa cláusula provocaria um desequilíbrio em detrimento do consumidor.

29

O órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à questão de saber se a referida cláusula está compreendida no âmbito de aplicação do ponto 1, alíneas m) e q), do anexo da Diretiva 93/13, bem como sobre o modo como deve apreciar se uma cláusula desse tipo tem caráter abusivo. Observa, a este respeito, que o referido anexo foi transposto para o direito húngaro e que as cláusulas previstas no artigo 1.o, n.o 1, do Decreto do Governo são consideradas abusivas, sem que seja necessário realizar nenhuma análise complementar.

30

O referido órgão jurisdicional salienta que, nos termos do artigo 8.o da Diretiva 93/13, os Estados‑Membros podem adotar, no domínio regido por essa diretiva, disposições mais rigorosas, compatíveis com o Tratado, para garantir um nível de proteção mais elevado para o consumidor. Por conseguinte, o legislador nacional pode declarar abusivas, sem análise complementar, as cláusulas visadas no artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 93/13, lido em conjugação com o ponto 1 do anexo desta diretiva.

31

Quanto à questão de saber se uma cláusula como a que está em causa no processo principal se encontra abrangida pelo âmbito de aplicação do ponto 1, alínea q), do anexo da Diretiva 93/13, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que — embora a versão em língua húngara dessa disposição se refira às cláusulas «que têm como objeto ou como efeito […]» — outras versões linguísticas da referida disposição, nomeadamente as versões em língua alemã, polaca, checa e eslovena, fazem referência a cláusulas «que têm como objetivo ou como efeito […]». Com base nestas últimas versões linguísticas, há que considerar que a instituição financeira em causa, ao inserir essa cláusula no contrato em causa, teve como objetivo inverter o ónus da prova.

32

A este respeito, o referido órgão coloca a questão de saber se o artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 93/13, lido em conjugação com o ponto 1, alínea q), do anexo desta diretiva, deve ser interpretado no sentido de que visa uma cláusula que tem como objetivo inverter o ónus da prova, a fim de poder proceder a uma execução coerciva simplificada em caso de incumprimento grave do consumidor, ainda que esse processo simplificado de execução coerciva se possa basear igualmente no direito nacional, independentemente da referida cláusula.

33

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, embora a cláusula em causa no processo principal constitua a tradução de um processo de execução notarial já previsto pela lei húngara, essa cláusula pode ser abusiva na medida em que, ao conceder ao banco a possibilidade de determinar o montante remanescente da dívida, tem por consequência excluir qualquer negociação equitativa e leal com a mutuária e obrigá‑la a instaurar um processo judicial oneroso. Por último, as consequências potenciais da referida cláusula em caso de litígio não são inteiramente compreensíveis para o consumidor médio no momento da celebração do contrato.

34

O órgão jurisdicional de reenvio salienta que uma situação análoga à que está em causa no processo principal deu origem ao Acórdão de 1 de outubro de 2015, ERSTE Bank Hungary (C‑32/14, EU:C:2015:637). Todavia, esse acórdão foi objeto de aplicações divergentes pelos órgãos jurisdicionais húngaros no que se refere a cláusulas como as que estão em causa no processo principal.

35

O órgão jurisdicional de reenvio salienta que, segundo a Kúria (Supremo Tribunal, Hungria), em caso de aposição da fórmula executória num documento autêntico, o devedor só pode contestar a dívida, em aplicação do artigo 369.o do Código Civil, no âmbito de um processo de extinção ou de limitação da execução. Trata‑se, contudo, de uma consequência que decorre das regras processuais aplicáveis aos atos autênticos notariais e à fórmula executória. Por conseguinte, as cláusulas análogas à que está em causa no processo principal não afetam a posição jurídica do consumidor e não jogam de modo nenhum em seu prejuízo a este respeito. Com efeito, o facto de o ónus da prova recair sobre o consumidor, por força do artigo 164.o, n.o 1, do Código de Processo Civil, é inerente aos processos destinados à exclusão ou à limitação da execução coerciva, pelo que o documento autêntico notarial não torna mais pesado o ónus da prova para o consumidor.

36

No entanto, outros órgãos jurisdicionais diferentes da Kúria (Supremo Tribunal) declararam que uma cláusula dessa índole é suscetível de inverter o ónus da prova em detrimento do consumidor.

37

Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que a cláusula em causa no processo principal pode ser considerada uma cláusula na aceção do ponto 1, alínea m), do anexo da Diretiva 93/13, uma vez que tem como objetivo ou como efeito facultar ao profissional o direito de decidir se a coisa entregue ou o serviço fornecido está em conformidade com as disposições do contrato ou conferir‑lhe o direito exclusivo de interpretar qualquer cláusula do contrato.

38

Nestas circunstâncias, o Fővárosi Ítélőtábla (Tribunal Superior de Budapeste‑Capital, Hungria) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve a alínea q) do [ponto 1] do anexo da Diretiva [93/13/CEE] ser interpretada no sentido de que, enquanto norma da União com natureza de norma de ordem pública, proíbe de modo geral e dispensando análises posteriores que um mutuante imponha a um devedor que tenha a qualidade de consumidor uma disposição contratual, sob a forma de uma cláusula geral ou não negociada individualmente, cuja finalidade ou cujo efeito seja o de inverter o ónus da prova?

2)

No caso de ser necessário apreciar, com fundamento na alínea q) do [ponto 1] do anexo da Diretiva [93/13/CEE], a finalidade ou o efeito da cláusula contratual, deve‑se determinar que impede o exercício dos direitos dos consumidores uma cláusula contratual?

nos termos da qual o devedor que tenha a qualidade de consumidor tem razões fundamentadas para considerar que tem de cumprir o contrato na íntegra, incluindo todas as suas cláusulas, na forma e na medida impostas pelo mutuante, mesmo que o devedor tenha a convicção de que a prestação exigida pelo mutuante não é exigível total ou parcialmente, ou

cujo efeito consiste em [excluir] ou limitar o acesso do consumidor a um meio de resolução de conflitos baseado numa negociação equitativa, pelo facto de, para considerar o litígio decidido, bastar ao mutuante invocar essa cláusula contratual?

3)

No caso de ter de se apreciar o caráter abusivo das cláusulas contratuais enumeradas no anexo da Diretiva [93/13] à luz dos critérios estabelecidos no artigo 3.o, n.o 1, dessa diretiva, o requisito de redação clara e compreensível previsto no artigo 5.o da mesma é cumprido por uma cláusula contratual que tem incidência nas decisões do consumidor no que diz respeito ao cumprimento do contrato, à resolução de diferendos com o mutuante por meios judiciais ou extrajudiciais ou ao exercício de direitos e que, embora redigida gramaticalmente de modo claro, produz efeitos jurídicos que só podem ser determinados pela interpretação de normas nacionais, relativamente às quais não existia uma prática jurisdicional uniforme no momento da celebração do contrato, sem que essa prática se tenha verificado nos anos subsequentes?

4)

Deve a alínea m) do [ponto 1] do anexo da Diretiva [93/13/CEE] ser interpretada no sentido de que uma cláusula contratual não negociada individualmente pode ser abusiva também no caso de se habilitar a parte que contrata com o consumidor a determinar unilateralmente se a prestação do consumidor respeita o disposto no contrato e de o consumidor reconhecer estar obrigado pela mesma ainda antes do cumprimento de qualquer prestação pelas partes contratantes?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à admissibilidade das questões

39

O banco invoca a inadmissibilidade das questões submetidas, com o fundamento, em substância, de que são hipotéticas. Relativamente às duas primeiras questões, o banco sustenta que o órgão jurisdicional de reenvio parte do postulado errado de que a cláusula em causa no processo principal inverte o ónus da prova em detrimento do consumidor. Além disso, a referida cláusula não é suscetível de suprimir ou de entravar a possibilidade de intentar ações judiciais ou seguir outras vias de recurso por parte do consumidor. Por conseguinte, o ponto 1, alínea q), do anexo da Diretiva 93/13 não é aplicável ao caso em apreço. No que diz respeito à terceira questão, o banco sustenta que a jurisprudência relativa a cláusulas como a que está em causa no processo principal era uniforme no momento da celebração do contrato de mútuo, uma vez que a Kúria (Supremo Tribunal) declarou em várias ocasiões que tais cláusulas não alteravam os direitos nem as obrigações do consumidor relativamente às regras de direito nacional aplicáveis. Por último, no que respeita à quarta questão, o banco alega que o ponto 1, alínea m), do anexo da Diretiva 93/13 não é aplicável à cláusula em causa no processo principal, dado que esta não concede ao profissional o direito de determinar se as prestações do consumidor estão em conformidade com as disposições do contrato de mútuo.

40

Há que recordar, desde logo, que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que define sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não cabe ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só se pode recusar pronunciar sobre um pedido de decisão prejudicial apresentado por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 20 de setembro de 2018, OTP Bank e OTP Faktoring, C‑51/17, EU:C:2018:750, n.o 37 e jurisprudência referida).

41

A este respeito, como salientou igualmente o advogado‑geral no n.o 37 das suas conclusões, não resulta de forma manifesta do pedido de decisão prejudicial no presente processo que as hipóteses consideradas pelo órgão jurisdicional de reenvio não correspondem à situação em causa no processo principal.

42

Além disso, há que salientar que, no âmbito do processo previsto no artigo 267.o TFUE, baseado numa clara separação das funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, qualquer apreciação dos factos ou do direito nacional é da competência do juiz nacional (v., neste sentido, Acórdão de 27 de fevereiro de 2019, Associação Peço a Palavra e o., C‑563/17, EU:C:2019:144, n.o 36 e jurisprudência referida). Por conseguinte, no caso em apreço, incumbe unicamente ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar o significado e o alcance da cláusula em causa no processo principal.

43

Por conseguinte, as questões prejudiciais são admissíveis.

Quanto à primeira questão

44

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 93/13, lido em conjugação com o ponto 1, alínea q), do anexo desta diretiva, deve ser interpretado no sentido de que qualifica de abusiva, de forma geral e sem análise complementar, uma cláusula contratual que não foi objeto de negociação individual e que tem como objetivo ou como efeito inverter o ónus da prova em detrimento do consumidor.

45

Resulta do texto do artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 93/13 que o anexo da referida diretiva contém uma lista indicativa e não exaustiva de cláusulas que podem ser consideradas abusivas. É certo que o anexo da Diretiva 93/13 constitui, como o Tribunal de Justiça já declarou, um elemento essencial com base no qual o juiz competente pode basear a sua apreciação do caráter abusivo de uma cláusula (v., neste sentido, Despacho de 3 de abril de 2014, Sebestyén, C‑342/13, EU:C:2014:1857, n.o 32 e jurisprudência referida). Todavia, é dado assente que uma cláusula que figure na lista do referido anexo não deve necessariamente ser considerada abusiva e que, inversamente, uma cláusula que aí não figure pode, não obstante, ser declarada abusiva (v., neste sentido, Acórdão de 7 de maio de 2002, Comissão/Suécia, C‑478/99, EU:C:2002:281, n.o 20).

46

Daqui decorre que incumbe ao juiz nacional, na presença de uma cláusula de um contrato, verificar, nos termos do artigo 3.o, n.os 1 e 3, da Diretiva 93/13, lido em conjugação com o ponto 1, alínea q), do anexo desta diretiva, se essa cláusula cria, a despeito da exigência de boa‑fé, em detrimento do consumidor, um desequilíbrio significativo entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.

47

Contudo, em conformidade com o artigo 8.o da Diretiva 93/13, os Estados‑Membros podem adotar ou manter, no domínio regido por essa diretiva, disposições mais rigorosas, compatíveis com o Tratado, para garantir um nível de proteção mais elevado para o consumidor. Assim, os Estados‑Membros são livres, em princípio, de alargar a proteção prevista no artigo 3.o, n.os 1 e 3, desta diretiva, lido em conjugação com o ponto 1 do anexo da referida diretiva, declarando abusivas de forma geral as cláusulas‑tipo enumeradas nesse ponto, sem que seja exigida uma análise complementar segundo os critérios que figuram no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13.

48

Resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça, o que, no entanto, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, que, segundo o direito húngaro, as cláusulas previstas no ponto 1, alínea q), do anexo da Diretiva 93/13 são efetivamente consideradas abusivas, e isto sem que seja necessária uma análise complementar. Se assim for, compete ainda ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se a cláusula em causa no processo principal está compreendida no âmbito de aplicação do artigo 1.o, n.o 1, alínea j), do Decreto do Governo.

49

Perante o exposto, há que responder à primeira questão que o artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 93/13, lido em conjugação com o ponto 1, alínea q), do anexo desta diretiva, deve ser interpretado no sentido de que não qualifica de abusiva, de forma geral e sem análise complementar, uma cláusula contratual que não foi objeto de negociação individual e que tem como objetivo ou como efeito inverter o ónus da prova em detrimento do consumidor.

Quanto à segunda questão

50

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 93/13, lido em conjugação com o ponto 1, alínea q), do anexo desta diretiva, deve ser interpretado no sentido de que visa uma cláusula que tem como objetivo ou como efeito, por um lado, permitir legitimamente que o consumidor pressuponha que está obrigado a cumprir todas as suas obrigações contratuais, mesmo que considere que determinadas prestações não são exigíveis, e, por outro, entravar a possibilidade de o consumidor intentar ações judiciais ou seguir outras vias de recurso, quando o montante remanescente da dívida a título do contrato seja estabelecido por documento notarial dotado de força probatória, que permita ao credor pôr termo ao litígio.

51

Resulta da redação do ponto 1, alínea q), do anexo da Diretiva 93/13 que este ponto visa cláusulas que têm como objetivo ou como efeito suprimir ou entravar a possibilidade de o consumidor intentar ações judiciais ou seguir outras vias de recurso.

52

O Tribunal de Justiça já declarou, no que se refere a cláusulas suscetíveis de estar abrangidas pelo ponto 1, alínea q), do anexo da Diretiva 93/13, lido em conjugação com o artigo 3.o, n.o 1, da referida diretiva, que órgão jurisdicional de reenvio deve, designadamente, apreciar se e em que medida a cláusula em causa derroga as normas aplicáveis na falta de acordo entre as partes, de modo que dificulte o acesso do consumidor à justiça e ao exercício dos direitos de defesa, atendendo aos meios processuais de que dispõe (v., neste sentido, Acórdão de 14 de março de 2013, Aziz, C‑415/11, EU:C:2013:164, n.o 75).

53

Conclui‑se que uma cláusula que não seja suscetível de colocar o consumidor numa situação jurídica menos favorável do que a prevista no direito nacional em vigor não é abrangida pelo ponto 1, alínea q), do anexo da Diretiva 93/13, lido em conjugação com o artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva. Por conseguinte, o ponto 1, alínea q), deste anexo visa cláusulas que têm consequências jurídicas suscetíveis de ser estabelecidas de forma objetiva. Esta consideração não é alterada pelo facto de a inserção de uma cláusula desse tipo num contrato poder dar a impressão ao consumidor de que as vias de recurso foram restringidas e que, por esse facto, está obrigado a cumprir todas as obrigações contidas no contrato, desde que a cláusula em causa não prejudique a sua posição jurídica, tendo em conta a legislação nacional aplicável.

54

No caso em apreço, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a cláusula em causa no processo principal traduz, nomeadamente, a possibilidade, tal como prevista pelo direito húngaro, em caso de incumprimento grave das obrigações contratuais por parte do consumidor, de o credor desencadear a execução coerciva do pagamento do montante remanescente da dívida, com base num documento notarial revestido da fórmula executória. O referido órgão jurisdicional indica igualmente que o devedor pode instaurar um processo de exclusão ou de limitação da execução coerciva.

55

No que respeita a esse mesmo processo simplificado de execução coerciva, foi salientado no n.o 60 do Acórdão de 1 de outubro de 2015, ERSTE Bank Hungary (C‑32/14, EU:C:2015:637), que o consumidor pode, por um lado, nos termos do artigo 209.o/A, n.o 1, do Código Civil, intentar uma ação de impugnação da validade do contrato e, por outro, nos termos do artigo 369.o do Código de Processo Civil, instaurar um processo de exclusão ou de limitação da execução coerciva. No âmbito deste último processo, o consumidor pode, nos termos do artigo 370.o do Código de Processo Civil, pedir a suspensão da execução coerciva do contrato.

56

Nestas condições, parece — o que cabe, todavia, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar — que a cláusula em causa no processo principal não altera a posição jurídica do consumidor, na medida em que não suprime nem entrava a possibilidade de este intentar ações judiciais ou seguir outras vias de recurso, na aceção do ponto 1, alínea q), do anexo da Diretiva 93/13.

57

Em contrapartida, uma cláusula que permita ao credor pôr termo a qualquer litígio unilateralmente, uma vez que o montante remanescente da dívida é então estabelecido com base nos livros do banco, por documento notarial em que o notário pode apor a fórmula executória, é suscetível de estar abrangida pelo âmbito de aplicação do ponto 1, alínea q), do anexo da Diretiva 93/13. Com efeito, na medida em que confere ao profissional o direito de resolver de forma definitiva eventuais litígios relativos às obrigações contratuais, essa cláusula suprime ou entrava a possibilidade de o consumidor intentar ações judiciais ou seguir outras vias de recurso na aceção da referida disposição.

58

Todavia, como foi salientado no n.o 54 do presente acórdão, afigura‑se que a cláusula em causa no processo principal não é suscetível de suprimir ou entravar a possibilidade de intentar ações judiciais ou seguir outras vias de recurso, tendo em conta as modalidades processuais previstas pelo direito húngaro aplicável, o que incumbe, contudo, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

59

A este respeito, há que recordar que o Tribunal de Justiça já declarou que o artigo 6.o, n.o 1, e o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma legislação nacional que permite a um notário que tenha lavrado, com respeito das exigências formais, um documento autêntico que consubstancia um contrato entre um profissional e um consumidor proceder à aposição da fórmula executória no referido documento ou recusar o respetivo cancelamento, quando, em nenhum momento, não tenha havido uma fiscalização do caráter abusivo das cláusulas do referido contrato, na condição, todavia, de que as modalidades processuais de recurso previstas no direito nacional garantam, nas circunstâncias do caso concreto, uma tutela jurisdicional efetiva ao consumidor, o que incumbe ao órgão jurisdicional nacional verificar (v., neste sentido, Acórdão de 1 de outubro de 2015, ERSTE Bank Hungary, C‑32/14, EU:C:2015:637, n.os 64 e 65).

60

Perante o exposto, há que responder à segunda questão que o artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 93/13, lido em conjugação com o ponto 1, alínea q), do anexo desta diretiva, deve ser interpretado no sentido de que, por um lado, não visa uma cláusula que tem como objetivo ou como efeito permitir legitimamente que o consumidor pressuponha que está obrigado a cumprir todas as suas obrigações contratuais, mesmo que considere que determinadas prestações não são exigíveis, desde que a referida cláusula não altere a posição jurídica do consumidor, tendo em conta a regulamentação nacional aplicável, e, por outro, que visa uma cláusula que tem como objetivo ou como efeito entravar a possibilidade de o consumidor intentar ações judiciais ou seguir outras vias de recurso, quando o montante remanescente da dívida seja estabelecido por documento notarial dotado de força probatória, que permita ao credor pôr termo ao litígio de forma unilateral e definitiva.

Quanto à terceira questão

61

Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 5.o da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que exige que o profissional forneça informações complementares relativas a uma cláusula que está redigida de forma clara, mas cujos efeitos jurídicos só podem ser determinados através de uma interpretação de disposições do direito nacional relativamente às quais não existe uma jurisprudência uniforme.

62

Recorde‑se, em primeiro lugar, que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a exigência de transparência das cláusulas contratuais, recordada, nomeadamente, no artigo 5.o da Diretiva 93/13, impõe não apenas que a cláusula em causa seja inteligível para o consumidor num plano gramatical mas também que permita ao consumidor avaliar, com base em critérios precisos e inteligíveis, as consequências económicas dela decorrentes no que lhes diz respeito (v., neste sentido, Acórdãos de 30 de abril de 2014, Kásler e Káslerné Rábai, C‑26/13, EU:C:2014:282, n.o 75, e de 9 de julho de 2015, Bucura, C‑348/14, não publicado, EU:C:2015:447, n.o 55).

63

Essa jurisprudência exige, em substância, que os mecanismos para o cálculo da dívida e do montante a reembolsar pelo consumidor sejam transparentes e compreensíveis e que, se for o caso, o profissional forneça as informações adicionais necessárias para o efeito (v., neste sentido, Acórdão de 20 de setembro de 2017, Andriciuc e o., C‑186/16, EU:C:2017:703, n.o 51).

64

Ainda a propósito da exigência de transparência quanto às consequências económicas para o consumidor que decorrem de um contrato, o Tribunal de Justiça declarou que, numa situação em que certos aspetos do modo de variação dos encargos associados ao serviço a prestar eram especificados por disposições legislativas ou regulamentares imperativas, na aceção do artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 93/13, ou em que as referidas disposições previam que o consumidor tinha o direito de resolver o contrato, era essencial que o profissional informasse o referido consumidor das referidas disposições (v., neste sentido, Acórdão de 26 de abril de 2012, Invitel, C‑472/10, EU:C:2012:242, n.o 29).

65

Além disso, o Tribunal de Justiça declarou, noutro contexto, relativamente a uma cláusula que estipulava a aplicação do direito do Estado de estabelecimento do vendedor, que este está, em princípio, obrigado a informar o consumidor da existência de disposições imperativas como as do artigo 6.o, n.o 2, do Regulamento (CE) n.o 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) (JO 2008, L 177, p. 6), que dispõe que a escolha da lei aplicável não pode ter como consequência privar o consumidor da proteção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo nos termos da lei que na falta de escolha seria aplicável (v., neste sentido, Acórdão de 28 de julho de 2016, Verein für Konsumenteninformation, C‑191/15, EU:C:2016:612, n.o 69).

66

No entanto, não decorre da jurisprudência citada nos n.os 64 e 65 do presente acórdão que o profissional esteja igualmente obrigado a informar o consumidor, antes da celebração de um contrato, das disposições processuais gerais do direito interno do seu próprio Estado de residência, como as relativas à repartição do ónus da prova, e da jurisprudência relativa a essas disposições.

67

No processo principal, não está em causa, nomeadamente, uma cláusula de designação do direito aplicável a favor do direito do Estado‑Membro onde o profissional tem a sua sede, ao passo que o consumidor reside noutro Estado‑Membro. Relativamente a essa situação, resulta da Diretiva 93/13, como confirma, nomeadamente, o seu quinto considerando, que o legislador da União presume que o consumidor desconhece as regras jurídicas que regulam os contratos relativos à venda de bens ou à oferta de serviços nos Estados‑Membros diferentes do seu.

68

Contrariamente aos processos que deram origem aos acórdãos referidos nos n.os 64 e 65 do presente acórdão, o processo principal não tem por objeto a obrigação, a cargo do profissional, de informar o consumidor da existência de disposições imperativas do direito internacional privado. Também não diz respeito à obrigação que incumbe ao profissional de informar o consumidor das disposições imperativas por força das quais o montante a pagar por este último pode variar e que têm, por esse motivo, efeito direto sobre as consequências económicas que para ele decorrem do contrato. Em contrapartida, no processo principal, está em causa a informação do consumidor sobre a existência de disposições processuais gerais relativas à repartição do ónus da prova, bem como à sua interpretação jurisprudencial na data da celebração do contrato.

69

Nestas circunstâncias, impor ao profissional a obrigação de informar o consumidor da existência de disposições processuais gerais e de uma jurisprudência relativa a essas disposições, iria além do que se pode razoavelmente esperar dele no âmbito da exigência de transparência.

70

Perante o exposto, há que responder à terceira questão que o artigo 5.o da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que não exige que o profissional forneça informações adicionais relativas a uma cláusula que está redigida de forma clara, mas cujos efeitos jurídicos só podem ser determinados através de uma interpretação de disposições do direito nacional relativamente às quais não existe uma jurisprudência uniforme.

Quanto à quarta questão

71

Com a sua quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 93/13, lido em conjugação com o ponto 1, alínea m), do anexo desta diretiva, deve ser interpretado no sentido de que visa uma cláusula contratual que autoriza o profissional a determinar unilateralmente se a prestação que incumbe ao consumidor foi executada em conformidade com o contrato.

72

O ponto 1, alínea m), do anexo da Diretiva 93/13 visa as cláusulas que têm como objetivo ou como efeito facultar ao profissional o direito de decidir se a coisa entregue ou o serviço fornecido está em conformidade com as disposições do contrato ou conferir‑lhe o direito exclusivo de interpretar qualquer cláusula do contrato.

73

Dado que é, em princípio, o profissional que atua na qualidade de vendedor ou prestador de serviços, deve considerar‑se que esta disposição visa as cláusulas que permitem ao profissional, em caso de queixa ou de impugnação pelo consumidor relativas ao serviço prestado ou à coisa entregue, determinar unilateralmente se a sua própria prestação está em conformidade com o contrato.

74

Com efeito, é pacífico que o ponto 1, alínea m), do anexo da Diretiva 93/13 não faz referência às obrigações do consumidor que decorrem do contrato, mas apenas às obrigações do profissional. Assim, esta disposição não visa as cláusulas que autorizam o profissional a determinar unilateralmente se a contraprestação do consumidor, que consiste em amortizar uma dívida e pagar as respetivas despesas, foi executada em conformidade com o contrato.

75

Perante o exposto, há que responder à quarta questão que o artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 93/13, lido em conjugação com o ponto 1, alínea m), do anexo desta diretiva, deve ser interpretado no sentido de que não visa uma cláusula contratual que autoriza o profissional a determinar unilateralmente se a prestação que incumbe ao consumidor foi executada em conformidade com o contrato.

Quanto às despesas

76

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

 

1)

O artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, lido em conjugação com o ponto 1, alínea q), do anexo desta diretiva, deve ser interpretado no sentido de que não qualifica de abusiva, de forma geral e sem análise complementar, uma cláusula contratual que não foi objeto de negociação individual e que tem como objetivo ou como efeito inverter o ónus da prova em detrimento do consumidor.

 

2)

O artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 93/13, lido em conjugação com o ponto 1, alínea q), do anexo desta diretiva, deve ser interpretado no sentido de que, por um lado, não visa uma cláusula que tem como objetivo ou como efeito permitir legitimamente que o consumidor pressuponha que está obrigado a cumprir todas as suas obrigações contratuais, mesmo que considere que determinadas prestações não são exigíveis, desde que a referida cláusula não altere a posição jurídica do consumidor, tendo em conta a regulamentação nacional aplicável, e, por outro, que visa uma cláusula que tem como objetivo ou como efeito entravar a possibilidade de o consumidor intentar ações judiciais ou seguir outras vias de recurso, quando o montante remanescente da dívida seja estabelecido por documento notarial dotado de força probatória, que permita ao credor pôr termo ao litígio de forma unilateral e definitiva.

 

3)

O artigo 5.o da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que não exige que o profissional forneça informações adicionais relativas a uma cláusula que está redigida de forma clara, mas cujos efeitos jurídicos só podem ser determinados através de uma interpretação de disposições do direito nacional relativamente às quais não existe uma jurisprudência uniforme.

 

4)

O artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 93/13, lido em conjugação com o ponto 1, alínea m), do anexo desta diretiva, deve ser interpretado no sentido de que não visa uma cláusula contratual que autoriza o profissional a determinar unilateralmente se a prestação que incumbe ao consumidor foi executada em conformidade com o contrato.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: húngaro.

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