Choose the experimental features you want to try

This document is an excerpt from the EUR-Lex website

Document 62014CC0160

    Conclusões do advogado-geral Bot apresentadas em 11 de Junho de 2015.
    João Filipe Ferreira da Silva e Brito e o. contra Estado português.
    Pedido de decisão prejudicial: Varas Cíveis de Lisboa - Portugal.
    Reenvio prejudicial - Aproximação das legislações - Manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas, de estabelecimentos ou de partes de empresas ou de estabelecimentos - Conceito de transferência de estabelecimento - Obrigação de apresentar um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.º, terceiro parágrafo, TFUE - Alegada violação do direito da União imputável a um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não são suscetíveis de recurso judicial de direito interno - Legislação nacional que subordina o direito à reparação do prejuízo sofrido em razão dessa violação à prévia revogação da decisão que originou esse prejuízo.
    Processo C-160/14.

    Court reports – general

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2015:390

    CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

    YVES BOT

    apresentadas em 11 de junho de 2015 ( 1 )

    Processo C‑160/14

    João Filipe Ferreira da Silva e Brito e o.

    contra

    Estado português

    [pedido de decisão prejudicial apresentado pelas Varas Cíveis de Lisboa (Portugal)]

    «Aproximação das legislações — Transferência de empresa — Manutenção dos direitos dos trabalhadores — Obrigação de reenvio prejudicial — Violação do direito da União imputável a um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não são suscetíveis de recurso judicial de direito interno — Legislação nacional que subordina o direito à indemnização do prejuízo sofrido em razão de tal violação ao requisito da prévia revogação da decisão que originou esse prejuízo»

    1. 

    O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23/CE do Conselho, de 12 de março de 2001, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas ou de estabelecimentos, ou de partes de empresas ou de estabelecimentos ( 2 ), bem como o artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE e a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à responsabilidade dos Estados em razão da violação do direito da União.

    2. 

    As questões submetidas pelas Varas Cíveis de Lisboa (Portugal) foram suscitadas no âmbito de uma ação de indemnização intentada por J. F. Ferreira da Silva e Brito e outros demandantes contra o Estado português, com base numa alegada violação do direito da União imputável ao Supremo Tribunal de Justiça.

    3. 

    A apreciação da primeira questão levar‑nos‑á a interpretar, atendendo às circunstâncias do litígio no processo principal, o conceito de «transferência de estabelecimento» na aceção do artigo 1.o, n.o 1, da diretiva. Concluiremos, contrariamente à solução adotada pelo Supremo Tribunal de Justiça, que esta disposição deve ser interpretada no sentido de que o conceito de transferência de estabelecimento abrange uma situação em que uma empresa ativa no mercado dos voos de fretamento (charter) é dissolvida por decisão da sua acionista maioritária, que é, ela própria, uma empresa ativa no setor da aviação e que, no âmbito da liquidação da primeira empresa:

    assume a posição da sociedade dissolvida em contratos de locação de aviões e nos contratos de voos charter em curso com os operadores turísticos;

    desenvolve atividade antes prosseguida pela sociedade dissolvida;

    readmite alguns trabalhadores até então destacados na sociedade dissolvida e coloca‑os a exercer funções idênticas; e

    recebe pequenos equipamentos da sociedade dissolvida.

    4. 

    Exporemos, a seguir, no âmbito da apreciação da segunda questão, os motivos pelos quais o artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE deve ser interpretado no sentido de que um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não são suscetíveis de recurso judicial de direito interno, como o Supremo Tribunal de Justiça, era obrigado, em circunstâncias como as do processo principal, a proceder ao reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça.

    5. 

    Por último, no âmbito do exame da terceira questão, explicaremos por que motivo, em circunstâncias como as do processo principal, o direito da União, e em especial a jurisprudência decorrente do acórdão Köbler ( 3 ), deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um regime nacional de responsabilidade do Estado que condiciona o direito a indemnização à prévia revogação da decisão danosa.

    I – Quadro jurídico

    A – Direito da União

    6.

    A diretiva procedeu à codificação da Diretiva 77/187/CEE do Conselho, de 14 de fevereiro de 1977, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas, estabelecimentos ou partes de estabelecimentos ( 4 ), conforme alterada pela Diretiva 98/50/CE do Conselho, de 29 de junho de 1998 ( 5 ).

    7.

    Nos termos do considerando 8 da diretiva:

    «Por motivos de segurança e de transparência jurídicas, foi conveniente esclarecer o conceito jurídic[o] de transferência à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça […]. Esse esclarecimento não alterou o âmbito da Diretiva 77/187[…], tal como é interpretado pelo Tribunal de Justiça.»

    8.

    O artigo 1.o, n.o 1, alíneas a) e b), da diretiva dispõe:

    «a)

    A presente diretiva é aplicável à transferência para outra entidade patronal de uma empresa, estabelecimento ou parte de empresa ou estabelecimento, quer essa transferência resulte de uma cessão convencional quer de uma fusão.

    b)

    Sob reserva do disposto na alínea a) e das disposições seguintes do presente artigo, é considerada transferência, na aceção da presente diretiva, a transferência de uma entidade económica que mantém a sua identidade, entendida como um conjunto de meios organizados, com o objetivo de prosseguir uma atividade económica, seja ela essencial ou acessória.»

    9.

    O artigo 3.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da diretiva prevê:

    «Os direitos e obrigações do cedente emergentes de um contrato de trabalho ou de uma relação de trabalho existentes à data da transferência são, por esse facto, transferidos para o cessionário.»

    B – Direito português

    10.

    O artigo 13.o do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas ( 6 ), adotado pela Lei n.o 67/2007 (Lei que aprova o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas), de 31 de dezembro de 2007 ( 7 ), conforme alterada pela Lei n.o 31/2008, de 17 de julho de 2008 ( 8 ), prevê o seguinte:

    «1.   Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos de facto.

    2.   O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.»

    II – Factos do litígio no processo principal e questões prejudiciais

    11.

    Em 19 de fevereiro de 1993, a Air Atlantis, SA (a seguir «AIA»), fundada em 1985, que exercia atividades no setor do transporte aéreo não regular (voos de fretamento [charter]), foi dissolvida. No âmbito dessa dissolução, os demandantes no processo principal foram alvo de despedimento coletivo.

    12.

    A partir de 1 de maio de 1993, a companhia de Transportes Aéreos Portugueses (a seguir «TAP»), que era a acionista principal da AIA, passou a realizar parte dos voos já contratados pela AIA para o período de 1 de maio a 31 de outubro de 1993. A TAP efetuou também alguns voos charter, mercado em que, até então, não exercia atividade, na medida em que as rotas em causa eram anteriormente exploradas pela AIA. Para tal, a TAP utilizou parte do equipamento que a AIA utilizava nas suas atividades, designadamente quatro aviões. A TAP assumiu ainda o pagamento das rendas nos leasing contratados relativos a esses aviões e passou a utilizar o equipamento de escritório que a AIA possuía e que utilizava nas suas instalações em Lisboa (Portugal) e em Faro (Portugal), bem como outros bens materiais. Além disso, a TAP contratou alguns dos trabalhadores da extinta AIA.

    13.

    Em seguida, os demandantes no processo principal intentaram no Tribunal de Trabalho de Lisboa uma ação contra esse despedimento coletivo, pedindo a sua reintegração na TAP e o pagamento de remunerações.

    14.

    Por sentença do Tribunal de Trabalho de Lisboa proferida em 6 de fevereiro de 2007, a ação de impugnação do despedimento coletivo foi julgada parcialmente procedente, tendo o referido tribunal ordenado a reintegração dos demandantes no processo principal nas categorias correspondentes, bem como o pagamento de indemnizações. Como fundamento da sua decisão, o Tribunal de Trabalho de Lisboa considerou que, no caso vertente, ocorreu transmissão de estabelecimento, pelo menos em parte, porque se manteve a sua identidade e prossecução da mesma atividade, passando a TAP a ocupar a posição jurídica de empregador nos contratos de trabalho.

    15.

    Desta sentença foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, no seu acórdão de 16 de janeiro de 2008, alterou a sentença proferida em primeira instância, na parte em que havia condenado a TAP na reintegração dos demandantes no processo principal e no pagamento de indemnizações, tendo declarado que o direito de recurso contra o despedimento coletivo em causa tinha caducado e que não se tinha verificado transmissão de qualquer estabelecimento ou parte dele da AIA para a TAP.

    16.

    Os demandantes no processo principal interpuseram então recurso de revista no Supremo Tribunal de Justiça, que, no seu acórdão de 25 de fevereiro de 2009, declarou que o despedimento coletivo não enfermava de qualquer ilicitude. O referido tribunal observou, retomando a argumentação desenvolvida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que, para que haja transmissão de estabelecimento, não basta a «simples prossecução» da atividade, sendo ainda necessário que se verifique a conservação da identidade do estabelecimento. Ora, no caso vertente, a TAP, na realização dos voos relativos ao verão de 1993, não fez uso de uma «entidade» com a mesma identidade da «entidade» que antes pertencera à AIA, tendo antes utilizado o seu próprio instrumento de intervenção no mercado em causa, que era a sua própria empresa. Não havendo identidade entre as duas «entidades», não se concebe, segundo o Supremo Tribunal de Justiça, a possibilidade de ocorrer uma transmissão de estabelecimento.

    17.

    No que concerne ao direito da União, o Supremo Tribunal de Justiça referiu que o Tribunal de Justiça, confrontado com situações em que uma empresa prosseguia a atividade até então levada a cabo por outra, considerou que essa «mera circunstância» não permitia concluir pela transferência de uma entidade económica, uma vez que «uma entidade não pode ser reduzida à atividade de que está encarregada» ( 9 ).

    18.

    Tendo alguns dos demandantes no processo principal requerido ao Supremo Tribunal de Justiça que submetesse um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça, aquele observou que «[a] obrigação de reenvio prejudicial, que impende sobre os órgãos jurisdicionais nacionais cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, só se afirma quando esses mesmos órgãos jurisdicionais considerem que o recurso ao direito [da União] é necessário para a solução do litígio que perante eles corre e, além disso, que se tenha suscitado uma questão de interpretação desse direito».

    19.

    O Supremo Tribunal de Justiça considerou ainda que «[o] próprio Tribunal de Justiça, expressamente reconheceu que ‘a correta aplicação do direito [da União] pode impor‑se com tal evidência que não dê lugar a qualquer dúvida razoável quanto à solução a dar à questão suscitada’, afastando, por conseguinte, também nesta hipótese, a obrigação de reenvio prejudicial. Ora, face ao conteúdo das normas das [disposições do direito da União] referenciadas pelos [demandantes no processo principal], face à interpretação que das mesmas vem sendo feita pelo [Tribunal de Justiça] e face aos contornos do caso […] que foram ponderados […], inexiste dúvida relevante na operação interpretativa que implique a necessidade do reenvio prejudicial».

    20.

    O Supremo Tribunal de Justiça sublinhou, além disso, que «o [Tribunal de Justiça] tem uma vasta e já sedimentada jurisprudência sobre a problemática da interpretação das normas [do direito da União] que se reportam à ‘transmissão de estabelecimento’, sendo que a […] Diretiva [...] traduz já a consolidação dos conceitos nela enunciados por força daquela jurisprudência e estes apresentam‑se agora com uma clareza em termos de interpretação jurisprudencial (comunitária e, mesmo, nacional) que dispensa, no caso vertente, a consulta prévia ao Tribunal de Justiça».

    21.

    Os demandantes no processo principal intentaram então uma ação de responsabilidade civil extracontratual contra o Estado português, pedindo que este fosse condenado a indemnizar determinados danos patrimoniais sofridos. Invocaram como fundamento de recurso o facto de o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça ser manifestamente ilegal, por fazer uma interpretação errada do conceito de transferência de estabelecimento na aceção da diretiva e porque aquele tribunal violou o seu dever de submeter ao Tribunal de Justiça as questões de interpretação do direito da União pertinentes.

    22.

    O Estado português alega que, em conformidade com o artigo 13.o, n.o 2, do RRCEE, o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, recordando que, não tendo sido revogado o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, não há lugar ao pagamento da indemnização pedida.

    23.

    O órgão jurisdicional de reenvio explica que importa saber se o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça é manifestamente ilegal, na medida em que fez uma interpretação incorreta do conceito de «transferência de estabelecimento», à luz da diretiva e face aos elementos de facto de que dispunha. Além disso, importa saber se o Supremo Tribunal de Justiça estava obrigado a proceder ao reenvio prejudicial que lhe havia sido pedido.

    24.

    Nestas circunstâncias, as Varas Cíveis de Lisboa decidiram suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1a —

    A Diretiva […], em especial o seu art° 1° n.o 1, deve ser interpretad[a] no sentido de que o conceito de ‘transferência de estabelecimento’ abrange uma situação em que uma empresa ativa no mercado de voos charter é dissolvida por decisão da sua acionista maioritária, ela própria uma empresa ativa no setor da aviação e, no contexto da liquidação, a empresa mãe:

    i) —

    assume a posição da sociedade dissolvida em contratos de locação de aviões e nos contratos de voos charter em curso com os operadores turísticos;

    ii) —

    desenvolve atividade antes prosseguida pela sociedade dissolvida;

    iii) —

    readmite alguns trabalhadores até então destacados na sociedade dissolvida e os coloca a exercer funções idênticas;

    iv) —

    recebe pequenos equipamentos da sociedade dissolvida?

    2a —

    O artigo 267° […] TFUE deve ser interpretado no sentido de que o Supremo Tribunal de Justiça, perante a factualidade descrita na [primeira] questão […] e o facto de os tribunais nacionais inferiores que apreciaram o caso terem adotado decisões contraditórias, estava obrigado a proceder ao reenvio, para o Tribunal de Justiça […], de questão prejudicial sobre a correta interpretação do conceito de ‘transferência de estabelecimento’ na aceção do artigo 1° n.o 1 da Diretiva [...]?

    3a —

    O Direito [da União] e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça […] no acórdão Köbler [C‑224/01, EU:C:2003:513] sobre a responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação de Direito [da União] cometida por um órgão jurisdicional nacional que decide em última instância, obsta à aplicação de uma norma nacional que exige como fundamento do pedido de indemnização contra o Estado a prévia revogação da decisão danosa?»

    III – Apreciação

    A – Quanto à primeira questão

    25.

    Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se pode constituir uma «transferência de estabelecimento», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, da diretiva, uma situação em que uma empresa ativa no mercado de voos charter é dissolvida por decisão da sua acionista maioritária, que é, ela própria, uma empresa ativa no setor da aviação e que, no contexto da liquidação da primeira empresa:

    assume a posição da sociedade dissolvida em contratos de locação de aviões e nos contratos de voos charter em curso com os operadores turísticos;

    desenvolve atividade antes prosseguida pela sociedade dissolvida;

    readmite alguns trabalhadores até então destacados na sociedade dissolvida e coloca‑os a exercer funções idênticas; e

    recebe pequenos equipamentos da sociedade dissolvida.

    26.

    Conforme decorre do seu considerando 3 e do seu artigo 3.o, a diretiva tem por objetivo proteger os trabalhadores, assegurando a manutenção dos seus direitos em caso de transferência de empresa ( 10 ). Para tal, o artigo 3.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da diretiva prevê que os direitos e obrigações do cedente emergentes de um contrato de trabalho ou de uma relação de trabalho existentes à data da transferência são, por esse facto, transferidos para o cessionário. Por seu lado, o artigo 4.o, n.o 1, da diretiva protege os trabalhadores dos despedimentos decididos pelo cedente ou pelo cessionário tendo unicamente por fundamento a transferência.

    27.

    Por força do seu artigo 1.o, n.o 1, alínea a), a diretiva é aplicável à transferência para outra entidade patronal de uma empresa, estabelecimento ou parte de empresa ou estabelecimento, quer essa transferência resulte de uma cessão convencional quer de uma fusão. O Tribunal de Justiça interpretou o conceito de cessão convencional, de modo flexível, para satisfazer o objetivo da diretiva, que é proteger os trabalhadores em caso de transferência da sua empresa ( 11 ). Assim, o Tribunal de Justiça declarou que a diretiva é aplicável em todas as hipóteses de alteração, no âmbito das relações contratuais, da pessoa singular ou coletiva responsável pela exploração da empresa, que assume obrigações de empregador perante os empregados da empresa ( 12 ).

    28.

    O Tribunal de Justiça já considerou que a Diretiva 77/187 era aplicável a transferências entre sociedades de um mesmo grupo ( 13 ).

    29.

    Além disso, precisou as condições em que a Diretiva 77/187 é aplicável em caso de transferência de uma empresa em liquidação judicial ou em liquidação voluntária. Assim, embora o Tribunal de Justiça tenha declarado, no seu acórdão Abels ( 14 ), que esta diretiva não se aplica à transferência de uma empresa, de um estabelecimento ou de parte de estabelecimento no quadro de um processo de falência ( 15 ), declarou, em contrapartida, no seu acórdão Dethier Équipement ( 16 ), que a referida diretiva é aplicável em caso de transferência de uma empresa em liquidação judicial, quando a atividade da empresa prossegue ( 17 ). No seu acórdão Europièces ( 18 ), chegou à mesma conclusão relativamente a uma empresa transferida que foi objeto de liquidação voluntária ( 19 ).

    30.

    Resulta simultaneamente da interpretação flexível que deve ser dado ao conceito de cessão convencional e da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa, especificamente, à hipótese de liquidação da entidade cedida que a dissolução e a liquidação da AIA são suscetíveis de constituir uma «transferência de estabelecimento», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, alínea a), da diretiva.

    31.

    Contudo, a transferência deve ainda satisfazer os requisitos fixados no artigo 1.o, n.o 1, alínea b), da diretiva, a saber, deve dizer respeito a uma entidade económica, entendida como «um conjunto de meios organizados, com o objetivo de prosseguir uma atividade económica, seja ela essencial ou acessória», que mantém, posteriormente à transferência, a sua «identidade».

    32.

    Para constatar a existência de uma transferência de empresa, é portanto necessário que o critério decisivo da existência dessa transferência esteja preenchido, isto é, que a entidade em questão preserve a sua identidade depois de ter sido retomada pela nova entidade patronal ( 20 ).

    33.

    Para determinar se este requisito está preenchido, importa tomar em consideração o conjunto de circunstâncias de facto que caracterizam a operação em causa, entre as quais figuram, designadamente, o tipo de empresa ou de estabelecimento de que se trata, a transferência ou não dos elementos corpóreos, tais como os edifícios e os bens móveis, o valor dos elementos incorpóreos no momento da transferência, a reintegração ou não, pelo novo empresário, do essencial dos efetivos, a transferência ou não da clientela, bem como o grau de similitude das atividades exercidas antes e depois da transferência e a duração de uma eventual suspensão destas atividades. Estes elementos constituem, contudo, apenas aspetos parciais da avaliação de conjunto que se impõe e não podem, por isso, ser apreciados isoladamente ( 21 ).

    34.

    O Tribunal de Justiça sublinhou que o órgão jurisdicional nacional, na sua apreciação das circunstâncias de facto que caracterizam a operação em questão, deve nomeadamente ter em conta o tipo de empresa ou de estabelecimento de que se trata. Daqui resulta, em seu entender, que a importância respetiva a atribuir aos diferentes critérios da existência de uma transferência na aceção da diretiva varia necessariamente em função da atividade exercida, ou mesmo dos métodos de produção ou de exploração utilizados na empresa, no estabelecimento ou na parte de estabelecimento em causa ( 22 ).

    35.

    Os diferentes fatores que permitem verificar se a entidade em causa mantém a sua identidade depois de ter sido retomada pelo novo empregador e, assim, qualificar uma operação de «transferência», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, da diretiva, têm, portanto, um peso que varia consoante o tipo de atividade exercida pela empresa em causa.

    36.

    O que é determinante é saber se a entidade em causa mantém a sua identidade, o que decorre designadamente da existência de uma transferência de elementos de ativos, corpóreos ou incorpóreos, significativos e do facto de a exploração desta entidade ser efetivamente prosseguida ou retomada pelo novo empregador para as mesmas atividades ou para atividades análogas. Ora, estes dois elementos encontram‑se reunidos no caso vertente.

    37.

    Estando em causa a transferência de elementos ativos, corpóreos ou incorpóreos, significativos, o Tribunal de Justiça salientou, é certo, que uma entidade económica pode, em determinados setores, funcionar sem esses elementos, pelo que a manutenção da sua identidade para além da operação de que é objeto não pode, por hipótese, depender da cessão de tais elementos ( 23 ).

    38.

    Conforme decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça, a solução é todavia diferente para as empresas que operam em setores que necessitam da utilização de elementos ativos importantes. É, por exemplo, o caso do setor do transporte em autocarro, que exige material e instalações importantes. Nesse caso, o Tribunal de Justiça considerou que a inexistência de transferência, do antigo para o novo titular do contrato, dos ativos corpóreos utilizados na exploração das carreiras de autocarro em causa constitui uma circunstância a ter em consideração ( 24 ). O Tribunal de Justiça deduziu daí que, num setor como o do transporte público regular em autocarro, em que os elementos corpóreos contribuem de maneira importante para o exercício da atividade, a inexistência de transferência a um nível significativo, do antigo para o novo titular do contrato, de tais elementos, indispensáveis ao bom funcionamento da entidade, deve levar a considerar que esta última não conserva a sua entidade ( 25 ).

    39.

    Resulta desta jurisprudência que, num processo como o que está em causa no processo principal, que diz igualmente respeito ao setor dos transportes, a transferência de ativos corpóreos significativos deve ser considerada um elemento essencial para determinar se nos encontramos perante uma «transferência de estabelecimento», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, da diretiva.

    40.

    Na sua apreciação das circunstâncias de facto que enquadram a operação em causa, o órgão jurisdicional de reenvio deverá, portanto, atribuir um peso especial ao fator relativo à cessão de elementos de ativos corpóreos significativos à TAP.

    41.

    A este respeito, está assente que a TAP retomou os contratos de leasing relativos a quatro aviões que eram anteriormente utilizados pela AIA no âmbito da sua atividade. Decorre dos autos que esta retoma foi motivada, designadamente, pela vontade da TAP de neutralizar as consequências financeiras negativas que poderiam resultar da denúncia antecipada desses contratos. Os motivos que originaram a decisão da TAP de retomar os contratos de leasing relativos a quatro aviões até então explorados pela AIA são, todavia, indiferentes para efeitos da qualificação de uma operação de «transferência», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, da diretiva. Importa somente a constatação objetiva de que esses contratos foram efetivamente transferidos para a TAP, quando da dissolução da AIA, tendo a TAP continuado a utilizar os aviões em causa.

    42.

    Como corretamente referem os demandantes no processo principal, não se pode considerar que a TAP, pelo facto de ser acionista maioritária e principal credora da AIA, tinha o direito de dispor de uma empresa do seu grupo e de retomar os ativos, sem se submeter às obrigações que decorrem da diretiva.

    43.

    Pouco importa igualmente que os aviões retomados pela TAP tivessem sido indiferentemente utilizados para o transporte regular e para o transporte não regular. O que importa é que esses aviões foram utilizados, ainda que parcialmente, no âmbito da atividade de transporte não regular da TAP, a qual constitui a prossecução de uma atividade que era anteriormente assegurada pela AIA.

    44.

    Além disso, o facto de os aviões retomados estarem sob um regime de leasing não obsta à existência de uma transferência de estabelecimento, na medida em que é a continuação da utilização desses elementos de ativos pelo cessionário que é determinante.

    45.

    Por último, o facto de os aviões terem sido restituídos no termo do contrato de locação financeira, entre o ano de 1998 e o ano de 2000, também não é pertinente. O que conta é que os contratos foram efetivamente transferidos e que os aviões foram efetivamente utilizados pela TAP durante um período significativo.

    46.

    Decorre destes elementos que a constatação, efetuada pelo órgão jurisdicional de reenvio, de que a TAP assumiu a posição da sociedade dissolvida em contratos de locação dos aviões constitui um indício importante da existência de uma transferência de estabelecimento, na medida em que demonstra a retoma pela TAP de elementos de ativos indispensáveis à prossecução da atividade anteriormente exercida pela AIA.

    47.

    A esta conclusão acresce a de que a TAP também recebeu pequenos equipamentos da sociedade dissolvida, como material de bordo e material de escritório. Trata‑se de um indício suplementar da existência de uma transferência de estabelecimento.

    48.

    Por outro lado, decorre dos autos que a TAP assumiu a posição da sociedade dissolvida nos contratos de voos charter em curso com os operadores turísticos e no desenvolvimento das atividades anteriormente exercidas por essa sociedade. Ora, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a transferência de clientela constitui um indício pertinente da existência de uma transferência de empresa ( 26 ).

    49.

    O Supremo Tribunal de Justiça parece considerar que o facto de a TAP estar habilitada a operar no mercado dos voos charter e de já o ter feito «pontualmente» se opunha à existência de uma «transferência de estabelecimento» na aceção da diretiva. Ora, partilhamos do entendimento dos demandantes no processo principal, segundo o qual o facto de uma empresa já exercer atividade ou poder fazê‑lo num determinado mercado não obsta a que garanta a continuidade de atividades semelhantes exercidas por outra empresa que, entretanto, foi dissolvida, ampliando assim as suas próprias atividades.

    50.

    No que diz respeito, em particular, aos voos realizados em 1994, trata‑se, como o Supremo Tribunal de Justiça declarou no seu acórdão, de contratos celebrados pela TAP diretamente com os operadores turísticos para rotas que até então não assegurava por constituírem rotas tradicionais da AIA. Segundo o Supremo Tribunal de Justiça, «a TAP exerceu, como qualquer Companhia Aérea podia ter exercido, uma atividade que não representa mais do que a ocupação de um espaço de mercado deixado livre pelo encerramento da AIA».

    51.

    Ora, como referem corretamente os demandantes no processo principal, o próprio facto de a TAP ter começado a exercer uma atividade anteriormente desenvolvida por outra empresa do seu grupo que, entretanto, dissolvera constitui um indício importante da existência de uma transferência de estabelecimento, na medida em que demonstra a prossecução pela TAP da atividade anteriormente exercida pela AIA.

    52.

    No seu acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça baseia‑se no acórdão Süzen ( 27 ) para considerar que, só por si, a prossecução de uma atividade exercida por outra empresa não permite concluir pela existência de uma transferência de estabelecimento ( 28 ). Contudo, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, caso essa prossecução da atividade seja acompanhada da transferência de importantes elementos do ativo, não há dúvidas quanto à existência de uma transferência de estabelecimento.

    53.

    A prossecução pela TAP da atividade anteriormente exercida pela AIA também é ilustrada por outro indício referido pelo órgão jurisdicional de reenvio, ou seja, a reintegração na TAP de trabalhadores que se encontravam até então destacados na sociedade dissolvida, com vista ao exercício de funções idênticas às que exerciam naquela sociedade.

    54.

    Como o Supremo Tribunal de Justiça referiu no seu acórdão, deu‑se como provado que duas funcionárias, até então destacadas pela TAP junto da Direção Comercial da AIA, foram, após a dissolução desta última, colocadas pela TAP na sua própria Direção Comercial, com funções na área dos voos não regulares ad hoc e dos contratos de voos charter da época aeronáutica do verão de 1993.

    55.

    Segundo o Supremo Tribunal de Justiça, não se trata de uma manutenção, pela TAP, de trabalhadores anteriormente empregados pela AIA. Esses trabalhadores estavam vinculados à TAP por um contrato de trabalho. Tratava‑se, por isso, de trabalhadores da TAP, e não da AIA. As trabalhadoras em causa tinham sido destacadas pela TAP para exercerem funções na AIA e regressaram à empresa da sua empregadora, após a dissolução da AIA. No seu acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça entende, assim, que o regresso de trabalhadoras da TAP à própria empresa, após a dissolução da AIA em que estavam destacadas, decorre do cumprimento dos respetivos contratos de trabalho com a sua empregadora (a TAP). Embora essas trabalhadoras tenham sido integradas em funções correspondentes à sua categoria e tenham desenvolvido, no verão de 1993, funções na área dos voos não regulares que a TAP desenvolveu nesse ano, a atividade dessas trabalhadoras na TAP não permite, segundo o Supremo Tribunal de Justiça, identificar a organização de uma entidade económica autónoma dedicada aos voos não regulares.

    56.

    Contudo, como salientam corretamente os demandantes no processo principal, a reintegração das duas empregadas na TAP em funções diretamente ligadas ao setor dos voos não regulares revela a prossecução da atividade da AIA pela TAP, atividade que era anteriormente exercida apenas pontualmente, pelo que ainda vem reforçar um pouco mais a existência de uma transferência de estabelecimento. Além disso, essas empregadas parecem constituir um «conjunto organizado» ( 29 ), uma vez que, na TAP, foram afetadas a funções semelhantes às que exerciam na AIA.

    57.

    Como indícios suplementares da existência de uma transferência de estabelecimento, importa salientar o grau de similitude das atividades exercidas antes e depois da transferência. Como refere a Comissão, a AIA era uma empresa de transportes aéreos especializada nos voos não regulares. A TAP, cujo cerne da atividade é o transporte aéreo, estava habilitada a operar quer na área dos voos regulares quer na dos voos não regulares e, portanto, estava habilitada a operar no mercado dos voos charter, o que já fazia, embora pontualmente ( 30 ). Há, pois, uma grande similitude entre as atividades exercidas por ambas as empresas.

    58.

    Por último, quanto ao critério relativo a uma eventual suspensão das atividades, é facto assente que, a partir de 1 de maio de 1993, ou seja, imediatamente após a dissolução da AIA, a TAP começou a explorar pelo menos uma parte dos voos charter que a AIA se tinha comprometido a efetuar durante a época de verão de 1993. Não houve, portanto, qualquer suspensão da atividade de duração significativa. Pelo contrário, houve continuidade da atividade, uma vez que, quinze dias após a dissolução da AIA, a TAP assumiu a posição daquela para efeitos da execução dos contratos relativos aos voos em causa.

    59.

    Considerados no seu todo, estes indícios demonstram, na nossa opinião, a existência de uma «transferência de estabelecimento», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, da diretiva.

    60.

    O Supremo Tribunal de Justiça chegou, contudo, a uma conclusão diferente, dado que adotou uma interpretação demasiado restritiva do requisito relativo à manutenção da identidade da entidade transferida. Mais precisamente, o seu raciocínio não menciona em momento algum um acórdão do Tribunal de Justiça que, contudo, o deveria ter conduzido a outra solução, a saber, o acórdão Klarenberg ( 31 ), proferido vários dias antes do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e cujas conclusões do advogado‑geral P. Mengozzi, que foram seguidas pelo Tribunal de Justiça, haviam sido apresentadas em 6 de novembro de 2008 ( 32 ).

    61.

    No seu acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça deu especial importância ao critério segundo o qual, para constatar a existência de uma «transferência», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, alínea b), da diretiva, deve ser possível identificar a unidade económica cedida na esfera do transmissário ( 33 ).

    62.

    A este respeito, o Supremo Tribunal de Justiça referiu que não foi dado como provado que a TAP tinha criado um departamento de voos não regulares que constituía, precisamente, a reposição da estrutura que antes correspondia à AIA. Atendendo à globalidade da matéria de facto apurada, a TAP não retomou uma entidade económica direta e autonomamente vocacionada para dar continuidade à atividade de voos charter que era anteriormente desenvolvida pela AIA. Em particular, não houve uma transmissão de vários elementos desconexos que depois se reorganizaram no seio da TAP fazendo ressurgir uma empresa ou um estabelecimento autónomo. Além disso, não há indícios que permitam reconhecer na TAP a existência de uma unidade dedicada à atividade de voos charter autonomamente organizada para esse efeito.

    63.

    Daqui decorre que, segundo o Supremo Tribunal de Justiça, a análise global dos indícios não permite reconhecer no âmbito da TAP um conjunto de meios materiais e humanos que constitua o suporte da atividade de voos charter, organizado autonomamente para esse efeito, ou seja, uma entidade económica que mantém a sua identidade e prossegue com autonomia uma atividade de aviação comercial irregular no seio da TAP. Pelo contrário, o Supremo Tribunal de Justiça refere que o equipamento da AIA que a TAP passou a utilizar se diluiu no conjunto do equipamento da TAP e que esta efetuou voos regulares e não regulares, nos quais utilizou indiferenciadamente o seu pessoal e o equipamento da sua companhia aérea.

    64.

    Face a esta argumentação, importa precisar que, na aceção da diretiva, pode haver transferência com manutenção da identidade da entidade transferida, mesmo quando esta não conserva a sua estrutura organizativa autónoma. Por outras palavras, contrariamente ao que decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, o requisito relativo à manutenção da identidade não significa que a entidade económica transferida deve conservar a sua autonomia na estrutura do cessionário.

    65.

    No processo que deu origem ao acórdão Klarenberg ( 34 ), o argumento da recorrida no processo principal era idêntico ao utilizado pelo Supremo Tribunal de Justiça para afastar a existência de uma transferência de estabelecimento. Esta parte invocou, com efeito, que a «entidade económica», definida no artigo 1.o, n.o 1, alínea b), da diretiva, só mantém a sua identidade se for conservada a estrutura organizativa que une o conjunto das pessoas e/ou dos elementos. Em contrapartida, a entidade económica cedida não mantém a sua identidade no caso de, na sequência da cessão, perder a sua autonomia organizativa pelo facto de os recursos adquiridos serem integrados pelo cessionário numa estrutura completamente nova ( 35 ).

    66.

    O Tribunal de Justiça considerou que essa conceção da identidade da entidade económica, assente unicamente no fator relativo à autonomia organizativa, não pode ser adotada, e isto, designadamente, atendendo ao objetivo prosseguido pela diretiva, que consiste em assegurar uma proteção efetiva dos direitos dos trabalhadores numa situação de transferência. Com efeito, segundo o Tribunal de Justiça, essa conceção implicaria, pelo simples facto de o cessionário decidir dissolver a parte de empresa ou de estabelecimento adquirida e integrá‑la na sua própria estrutura, que a referida diretiva não seria aplicável a essa parte de empresa ou de estabelecimento, privando assim os trabalhadores em causa da proteção conferida pela mesma ( 36 ).

    67.

    Quanto ao fator relativo ao aspeto organizativo, o Tribunal de Justiça já decidiu anteriormente que este contribui para definir a identidade de uma entidade económica ( 37 ). Todavia, considerou também que uma alteração da estrutura organizativa da entidade cedida não é suscetível de impedir a aplicação da diretiva ( 38 ).

    68.

    O Tribunal de Justiça salientou também que o «artigo 1.o, n.o 1, alínea b), da [diretiva] define a identidade de uma entidade económica referindo‑se a um ‘conjunto de meios organizados, com o objetivo de prosseguir uma atividade económica, seja ela essencial ou acessória’ realçando, assim, não só o elemento organizativo da entidade transferida mas também o da prossecução da sua atividade económica» ( 39 ). Daqui deduziu que se deve interpretar a condição relativa à conservação da identidade de uma entidade económica, na aceção da diretiva, tendo em conta os dois elementos previstos no artigo 1.o, n.o 1, alínea b), da mesma que, no seu conjunto, constituem essa identidade, bem como o objetivo de proteção dos trabalhadores visado por esta diretiva ( 40 ).

    69.

    Em conformidade com estas considerações e a fim de não privar a diretiva de uma parte do seu efeito útil, o Tribunal de Justiça declarou que não se deve interpretar o requisito relativo à preservação da identidade de uma entidade económica no sentido de que exige a manutenção da organização específica que o empresário impõe aos diversos fatores de produção transferidos, mas no sentido de que pressupõe a manutenção de um nexo funcional de interdependência e complementaridade entre esses fatores ( 41 ).

    70.

    Com efeito, segundo o Tribunal de Justiça, a manutenção desse nexo funcional entre os diversos fatores transferidos permite que o cessionário os utilize mesmo que sejam integrados, depois da transferência, numa nova e diferente estrutura organizativa, a fim de prosseguir uma atividade económica idêntica ou análoga ( 42 ).

    71.

    À luz do acórdão Klarenberg ( 43 ), pouco importa que a entidade transferida tenha sido dissolvida na organização da TAP, na medida em que se conservou um nexo funcional entre, por um lado, os elementos do ativo e o pessoal transferido e, por outro, a prossecução da atividade anteriormente exercida pela AIA.

    72.

    No seu acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça atribuiu especial importância ao facto de os aviões e o pessoal transferido terem sido utilizados em voos regulares e em voos não regulares. Esta circunstância é, segundo aquele órgão jurisdicional, suscetível de provar que não há manutenção de uma entidade económica autónoma dedicada à atividade de voos não regulares na TAP.

    73.

    A este respeito, consideramos que pouco importa que os elementos transferidos tenham sido utilizados não só em voos não regulares mas também em voos regulares. O requisito relativo à manutenção da identidade da entidade transferida não exige uma utilização exclusiva de elementos do ativo transferidos em benefício da atividade prosseguida. O nexo funcional entre estes elementos do ativo e a atividade prosseguida permanece mesmo que os referidos elementos sejam também utilizados no exercício de outra atividade, a fortiori, quando se trata de uma atividade análoga no setor do transporte aéreo.

    74.

    Como alegou a Comissão, decorre do acórdão Klarenberg ( 44 ) que a dissolução da AIA e a integração de uma parte significativa dos seus ativos na estrutura organizativa da TAP, mesmo que não tenham mantido uma identidade «autónoma», não são suscetíveis de impedir a aplicação da diretiva. O que importa é que os meios transferidos mantenham a sua identidade e sejam utilizados, depois da transferência, para prosseguir uma atividade económica idêntica ou análoga.

    75.

    Ora, no caso vertente, os ativos da AIA foram utilizados, numa primeira fase (época aeronáutica do verão de 1993), na prossecução de uma atividade idêntica à da AIA, a saber, os voos charter que a AIA se comprometeu a realizar, e, posteriormente, na prossecução de uma atividade idêntica (voos charter organizados pela TAP) ou similar (voos regulares da TAP).

    76.

    Como foi precisado pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão Klarenberg ( 45 ), os termos do artigo 6.o, n.o 1, primeiro e quarto parágrafos, da diretiva confirmam que, no espírito do legislador da União, esta é aplicável a qualquer transferência que preencha as condições previstas no seu artigo 1.o, n.o 1, independentemente de a entidade económica transferida conservar ou não a sua autonomia na estrutura do cessionário ( 46 ).

    77.

    É certo que é ao órgão jurisdicional de reenvio que cabe, em último lugar, verificar se os critérios da existência de uma transferência de estabelecimento estão preenchidos no caso vertente. Segundo jurisprudência constante, incumbe ao órgão jurisdicional nacional competente determinar, no âmbito de uma apreciação global do conjunto de circunstâncias de facto que caracterizam a operação em causa, se a identidade da unidade económica transferida foi preservada ( 47 ).

    78.

    Todavia, o contexto específico do processo principal, que é consequência da adoção de posições divergentes por órgãos jurisdicionais nacionais, deve, na nossa opinião, levar o Tribunal de Justiça a responder de uma maneira mais precisa e direta ao órgão jurisdicional de reenvio.

    79.

    Propomos, pois, que se responda à primeira questão que o artigo 1.o, n.o 1, da diretiva deve ser interpretado no sentido de que o conceito de transferência de estabelecimento abrange uma situação em que uma empresa ativa no mercado dos voos charter é dissolvida por decisão da sua acionista maioritária, que é, ela própria, uma empresa ativa no setor da aviação e que, no âmbito da liquidação da primeira empresa:

    assume a posição da sociedade dissolvida em contratos de locação de aviões e nos contratos de voos charter em curso com os operadores turísticos;

    desenvolve atividade antes prosseguida pela sociedade dissolvida;

    readmite alguns trabalhadores até então destacados na sociedade dissolvida e coloca‑os a exercer funções idênticas; e

    recebe pequenos equipamentos da sociedade dissolvida.

    B – Quanto à segunda questão

    80.

    Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, ao Tribunal de Justiça se o artigo 267.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não são suscetíveis de recurso judicial de direito interno, como o Supremo Tribunal de Justiça, era obrigado, atendendo às circunstâncias factuais apresentadas na primeira questão e dado que os tribunais nacionais de nível inferior que apreciaram o processo tinham adotado decisões contraditórias, a proceder ao reenvio para o Tribunal de Justiça da questão prejudicial relativa à correta interpretação do conceito de «transferência de estabelecimento» na aceção do artigo 1.o, n.o 1, da diretiva.

    81.

    Importa recordar, a título preliminar, que o processo instituído pelo artigo 267.o TFUE é um instrumento de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, graças ao qual o primeiro fornece aos segundos os elementos de interpretação do direito da União que lhes são necessários para a resolução do litígio que lhes foi submetido ( 48 ).

    82.

    No quadro desta cooperação, compete exclusivamente ao juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial, para poder proferir a sua decisão, como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça ( 49 ).

    83.

    A obrigação de reenvio instituída pelo artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE insere‑se, assim, no âmbito da colaboração entre os órgãos jurisdicionais nacionais, na sua qualidade de juízes incumbidos da aplicação do direito da União, e o Tribunal de Justiça, colaboração essa instituída com o objetivo de garantir a correta aplicação e a interpretação uniforme do direito da União no conjunto dos Estados‑Membros ( 50 ).

    84.

    Há que recordar que a obrigação de submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça, prevista no artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE, que incumbe aos órgãos jurisdicionais nacionais cujas decisões não são suscetíveis de recurso, tem como objetivo, nomeadamente, evitar que se estabeleça num Estado‑Membro uma jurisprudência nacional em desacordo com as regras do direito da União ( 51 ).

    85.

    Segundo o Tribunal de Justiça, este objetivo é atingido quando ficam sujeitos a esta obrigação de reenvio, sob reserva dos limites admitidos pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão Cilfit e o. ( 52 ), os tribunais supremos e todos os órgãos jurisdicionais cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial ( 53 ).

    86.

    Na medida em que não exista recurso judicial da decisão de um órgão jurisdicional nacional, este está, em princípio, obrigado a submeter uma questão ao Tribunal de Justiça, na aceção do artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE, sempre que uma questão relativa à interpretação do Tratado FUE seja perante ele suscitada ( 54 ).

    87.

    Resulta da conjugação do segundo e do terceiro parágrafo do artigo 267.o TFUE que os órgãos jurisdicionais referidos no terceiro parágrafo gozam do mesmo poder de apreciação que quaisquer outros órgãos jurisdicionais nacionais, no que se refere à questão de saber se uma decisão sobre uma questão de direito da União é necessária para lhes permitir proferir a sua decisão. Por conseguinte, esses órgãos jurisdicionais não são obrigados a submeter uma questão de interpretação do direito da União suscitada perante eles, se a questão não for pertinente, isto é, quando a resposta a essa questão, seja ela qual for, não possa ter influência na solução do litígio ( 55 ).

    88.

    Em contrapartida, se constatarem que o recurso ao direito da União é necessário para a resolução de um litígio de que conhecem, o artigo 267.o TFUE impõe‑lhes, em princípio, que submetam ao Tribunal de Justiça qualquer questão de interpretação que seja suscitada ( 56 ).

    89.

    Face a um litígio que suscita uma questão de interpretação do direito da União, a execução, por parte de um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não são suscetíveis de recurso judicial de direito interno, da sua obrigação de submeter a questão ao Tribunal de Justiça constitui, portanto, o princípio, sendo a renúncia a submeter a questão ao Tribunal de Justiça a exceção a esse princípio.

    90.

    O acórdão Cilfit e o. ( 57 ) faz impender sobre os órgãos jurisdicionais nacionais que decidem em última instância um dever acrescido de fundamentação, quando se abstêm de submeter a questão ao Tribunal de Justiça.

    91.

    Assim, quanto ao alcance do dever enunciado no artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE, conforme circunscrito pelo Tribunal de Justiça, resulta de jurisprudência assente a partir desse acórdão que um órgão jurisdicional cujas decisões não são suscetíveis de recurso judicial de direito interno é obrigado a cumprir o seu dever de reenvio, quando lhe seja submetida uma questão de direito da União, a menos que conclua que a questão suscitada não é pertinente ou que a disposição de direito da União em causa foi já objeto de uma interpretação pelo Tribunal de Justiça, ou que a correta aplicação do direito da União se impõe com tal evidência que não dê lugar a qualquer dúvida razoável. A existência dessa eventualidade deve ser avaliada em função das características próprias do direito da União, das dificuldades particulares de que a sua interpretação se reveste e do risco de surgirem divergências jurisprudenciais no interior da União Europeia ( 58 ).

    92.

    O Tribunal de Justiça precisou que, sem prejuízo dos ensinamentos decorrentes do acórdão Köbler ( 59 ), a jurisprudência decorrente do acórdão Cilfit e o. ( 60 ) deixa exclusivamente ao órgão jurisdicional nacional o cuidado de apreciar se a correta aplicação do direito da União se impõe com tal evidência que não dê lugar a qualquer dúvida razoável e, em consequência, de decidir não submeter ao Tribunal de Justiça uma questão de interpretação do direito da União perante ele suscitada ( 61 ).

    93.

    No âmbito do presente reenvio prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se, à luz da sua jurisprudência relativa ao conceito de transferência de estabelecimento e dada a existência de posições divergentes dos órgãos jurisdicionais nacionais quanto à interpretação a adotar atendendo aos factos em causa, o Supremo Tribunal de Justiça tinha ou não fundamento para considerar que não havia «qualquer dúvida razoável» acerca da questão de interpretação suscitada e podia, portanto, abster‑se de proceder ao reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça.

    94.

    A este respeito, há que sublinhar que os órgãos jurisdicionais nacionais cujas decisões não são suscetíveis de recurso judicial de direito interno devem ser especialmente prudentes antes de excluir a existência de qualquer dúvida razoável. Devem expor as razões por que têm a certeza de estar a aplicar corretamente o direito da União.

    95.

    Esta prudência deve levá‑los, em especial, a verificar com precisão se a aplicação do direito da União que adotam tem devidamente em conta as características próprias do direito da União, as dificuldades particulares de que a sua interpretação se reveste e o risco de surgirem divergências jurisprudenciais no interior da União.

    96.

    O Supremo Tribunal de Justiça considerou que os conceitos que figuram na diretiva, e em especial o de transferência de estabelecimento, eram suficientemente claros em termos de interpretação jurisprudencial. Segundo o mesmo, tal significava que, no caso vertente, não era necessário proceder ao reenvio prejudicial.

    97.

    Esta abordagem parece‑nos errada, uma vez que sabemos que a interpretação do conceito de transferência de estabelecimento se caracteriza por uma abordagem casuística. Os processos sucessivamente submetidos ao Tribunal de Justiça permitem‑lhe aperfeiçoar o alcance desse conceito. Trata‑se, portanto, de uma jurisprudência em constante evolução. Esta particularidade deveria ter levado o Supremo Tribunal de Justiça a ser prudente antes de decidir não proceder ao reenvio para o Tribunal de Justiça.

    98.

    A este excesso de confiança na consolidação da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao conceito de transferência de estabelecimento acresce o facto de que essa jurisprudência foi tida em consideração de forma incompleta, o que levou o Supremo Tribunal de Justiça a adotar uma interpretação errada desse conceito.

    99.

    Numa situação como a que está em causa no processo principal, em que existe jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre o conceito a interpretar, um órgão jurisdicional nacional que está, em princípio, sujeito a uma obrigação de reenvio e que considera que o litígio de que conhece suscita uma questão de interpretação do direito da União pode escolher entre duas atitudes. Ou submete a questão ao Tribunal de Justiça, a fim de obter esclarecimentos suplementares face ao litígio sobre o qual se deve pronunciar ou decide não executar a sua obrigação de reenvio, mas então deverá aceitar e aplicar a solução já dada pelo Tribunal de Justiça. Caso não adote nenhuma destas duas atitudes e opte por outra interpretação do conceito do direito da União em causa, esse órgão jurisdicional comete uma violação desse direito, que deve ser considerada suficientemente caracterizada ( 62 ). Tal decorre de jurisprudência constante, por força da qual uma violação do direito da União é suficientemente caracterizada quando ocorreu com desrespeito manifesto pela jurisprudência do Tribunal de Justiça na matéria ( 63 ).

    100.

    Em suma, se tivesse tido em conta, de forma rigorosa e completa, a jurisprudência do Tribunal de Justiça, incluindo a mais recente, o Supremo Tribunal de Justiça não poderia ter tido a certeza quanto à aplicação do direito da União que efetuou.

    101.

    Importa que o Tribunal de Justiça adote uma posição estrita quando insiste na obrigação de reenvio que impende sobre os órgãos jurisdicionais nacionais cujas decisões não são suscetíveis de recurso judicial de direito interno. Com efeito, conforme precisou o advogado‑geral P. Léger nas suas conclusões no processo Traghetti del Mediterraneo ( 64 ) e como é ilustrado pelo processo vertente, «o incumprimento desta obrigação pode levar o tribunal em causa a cometer um erro [...], seja um erro de interpretação do direito [da União] aplicável ou quanto às consequências que dele devem retirar‑se para a interpretação conforme do direito interno ou para a apreciação da sua compatibilidade com o direito [da União]» ( 65 ).

    102.

    Por outro lado, sublinhe‑se que a violação, por parte dos órgãos jurisdicionais nacionais cujas decisões não são suscetíveis de recurso judicial de direito interno, da sua obrigação de reenvio leva a privar o Tribunal de Justiça da missão fundamental que lhe é atribuída pelo artigo 19.o, n.o 1, primeiro parágrafo, TUE, que é garantir «o respeito do direito na interpretação e aplicação dos Tratados».

    103.

    Por último, decorre dos autos que, no âmbito do processo vertente, os órgãos jurisdicionais portugueses adotaram posições divergentes quanto à interpretação do conceito de transferência de estabelecimento. Na nossa opinião, embora a existência de decisões contraditórias proferidas por órgãos jurisdicionais nacionais não baste, por si só, para desencadear a obrigação de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE, trata‑se de um elemento de contexto que vem reforçar a conclusão de que o Supremo Tribunal de Justiça devia ter adotado uma posição mais prudente e proceder ao reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça.

    104.

    Decorre destes elementos que, na nossa opinião, o artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE deve ser interpretado no sentido de que um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não são suscetíveis de recurso judicial de direito interno, como o Supremo Tribunal de Justiça, era obrigado, em circunstâncias como as do processo principal, a proceder ao reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça.

    C – Quanto à terceira questão

    105.

    Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, ao Tribunal de Justiça se o direito da União, e em especial a jurisprudência decorrente do acórdão Köbler ( 66 ), deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um regime nacional de responsabilidade do Estado que condiciona o direito a indemnização à prévia revogação da decisão danosa.

    106.

    Recordamos que, por força do artigo 13.o, n.o 2, do RRCEE, «[o] pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente».

    107.

    A fim de decidir se este requisito é ou não conforme com o direito da União, há que recordar, a título preliminar, que o princípio da responsabilidade do Estado pelos prejuízos causados aos particulares por violações do direito da União que lhe sejam imputáveis é inerente ao sistema do Tratado ( 67 ).

    108.

    Quanto à responsabilidade do Estado em razão de uma violação do direito da União imputável a uma decisão de um órgão jurisdicional nacional que decide em última instância, o Tribunal de Justiça precisou que, atendendo à especificidade da função jurisdicional e às legítimas exigências da segurança jurídica, a responsabilidade do Estado, em tal hipótese, não é ilimitada. Como declarou o Tribunal de Justiça, essa responsabilidade só pode existir no caso excecional de o tribunal nacional que decide em última instância ter ignorado de forma manifesta o direito aplicável. Para determinar se esta condição se encontra preenchida, o juiz nacional a quem cabe conhecer de um pedido de indemnização deve, a este respeito, ter em consideração todos os elementos que caracterizam a situação que lhe é submetida, designadamente o grau de clareza e de precisão da regra violada, o caráter intencional da violação, o caráter desculpável ou não do erro de direito, a posição adotada, sendo caso disso, por uma instituição da União, bem como o incumprimento, pelo órgão jurisdicional em causa, da sua obrigação de reenvio prejudicial por força do artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE ( 68 ).

    109.

    Como indicámos anteriormente, essa violação manifesta do direito da União aplicável presume‑se, em qualquer caso, quando a decisão em causa for tomada em violação manifesta da jurisprudência do Tribunal de Justiça na matéria ( 69 ).

    110.

    Constituir‑se‑á, portanto, um direito a indemnização se esse requisito relativo à violação manifesta do direito da União aplicável estiver preenchido, se se provar que a norma jurídica violada tem por objeto conferir direitos aos particulares e que existe um nexo de causalidade direto entre a violação manifesta invocada e o dano sofrido pelo interessado. Com efeito, estas três condições são necessárias e suficientes para criar, a favor dos particulares, um direito a obter reparação, sem, no entanto, excluir que o Estado possa ser responsabilizado em condições menos restritivas com base no direito nacional ( 70 ).

    111.

    O Tribunal de Justiça também já teve a oportunidade de precisar que, sem prejuízo do direito a indemnização baseado diretamente no direito da União, desde que estejam preenchidos os referidos requisitos, é no âmbito do direito nacional da responsabilidade que incumbe ao Estado reparar as consequências do prejuízo causado, entendendo‑se que os requisitos estabelecidos pelas legislações nacionais em matéria de reparação dos prejuízos não podem ser menos favoráveis do que os aplicáveis a reclamações semelhantes de natureza interna (princípio da equivalência) nem ser organizados de maneira a, na prática, tornarem impossível ou excessivamente difícil a obtenção da reparação (princípio da efetividade) ( 71 ).

    112.

    É à luz do princípio da efetividade que, na nossa opinião, deve ser apreciada o meio processual previsto no artigo 13.o, n.o 2, do RRCEE. Importa, como tal, determinar se esse meio processual é suscetível de tornar, na prática, e em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, impossível ou excessivamente difícil a obtenção de uma indemnização pelo particular lesado.

    113.

    A questão crucial aqui é determinar se esse particular beneficia ou não de uma via de recurso de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que lhe causa prejuízo. Interrogado a este propósito na audiência, o Governo português começou por responder negativamente a esta questão, antes de mitigar a sua resposta de forma pouco convincente. Competirá ao órgão jurisdicional de reenvio verificar o estado do seu direito quanto a esta questão. Caso esse órgão jurisdicional chegue à conclusão de que o particular lesado não dispõe de vias de recurso de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que lhe causa prejuízo, deverá considerar que o meio processual previsto no artigo 13.o, n.o 2, do RRCEE é contrário ao princípio da efetividade na medida em que torna impossível a obtenção de uma indemnização por esse particular.

    114.

    De qualquer modo, parece‑nos decorrer dos debates no Tribunal de Justiça que se essa via de recurso de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça fosse identificada, afigurar‑se‑ia em larga medida teórica e difícil de pôr em prática ( 72 ). Consequentemente, na medida em que o meio processual previsto no artigo 13.o, n.o 2, do RRCEE colocaria, nessa hipótese, um grave obstáculo à obtenção de uma indemnização pelo particular lesado, seria, em nosso entender, contrário ao princípio da efetividade. Com efeito, esse meio processual tornaria excessivamente difícil a obtenção de uma indemnização por esse particular.

    115.

    Concluímos, portanto, que, em circunstâncias como as do processo principal, o direito da União, e em especial a jurisprudência decorrente do acórdão Köbler ( 73 ), deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um regime nacional de responsabilidade do Estado que condiciona o direito a indemnização à prévia revogação da decisão danosa.

    IV – Conclusão

    116.

    Atentas as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas pelas Varas Cíveis de Lisboa, da seguinte forma:

    1)

    O artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23/CE do Conselho, de 12 de março de 2001, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas ou de estabelecimentos, ou de partes de empresas ou de estabelecimentos, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de transferência de estabelecimento abrange uma situação em que uma empresa ativa no mercado dos voos charter é dissolvida por decisão da sua acionista maioritária, que é, ela própria, uma empresa ativa no setor da aviação e que, no âmbito da liquidação da primeira empresa:

    assume a posição da sociedade dissolvida em contratos de locação de aviões e nos contratos de voos charter em curso com os operadores turísticos;

    desenvolve atividade antes prosseguida pela sociedade dissolvida;

    readmite alguns trabalhadores até então destacados na sociedade dissolvida e coloca‑os a exercer funções idênticas; e

    recebe pequenos equipamentos da sociedade dissolvida.

    2)

    O artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE deve ser interpretado no sentido de que um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não são suscetíveis de recurso judicial de direito interno, como o Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), era obrigado, em circunstâncias como as do processo principal, a proceder ao reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça.

    3)

    Em circunstâncias como as do processo principal, o direito da União, e em especial a jurisprudência decorrente do acórdão Köbler (C‑224/01, EU:C:2003:513), deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um regime nacional de responsabilidade do Estado que condiciona o direito a indemnização à prévia revogação da decisão danosa.


    ( 1 ) Língua original: francês.

    ( 2 ) JO L 82, p. 16, a seguir «diretiva».

    ( 3 ) C‑224/01, EU:C:2003:513.

    ( 4 ) JO L 61, p. 26; EE 05 F2 p. 122.

    ( 5 ) JO L 201, p. 88.

    ( 6 ) A seguir «RRCEE».

    ( 7 ) Diário da República, 1.a série, n.o 251, de 31 de dezembro de 2007.

    ( 8 ) Diário da República, 1.a série, n.o 137, de 17 de julho de 2008.

    ( 9 ) O Supremo Tribunal de Justiça refere‑se, a este respeito, ao n.o 15 do acórdão Süzen (C‑13/95, EU:C:1997:141).

    ( 10 ) V., designadamente, despacho Gimnasio Deportivo San Andrés (C‑688/13, EU:C:2015:46, n.o 34 e jurisprudência referida).

    ( 11 ) V., designadamente, acórdão Jouini e o. (C‑458/05, EU:C:2007:512, n.o 24 e jurisprudência referida).

    ( 12 ) V., designadamente, acórdão Amatori e o. (C‑458/12, EU:C:2014:124, n.o 29 e jurisprudência referida).

    ( 13 ) V., designadamente, acórdão Allen e o. (C‑234/98, EU:C:1999:594, n.os 17, 20 e 21).

    ( 14 ) 135/83, EU:C:1985:55.

    ( 15 ) N.o 30.

    ( 16 ) C‑319/94, EU:C:1998:99.

    ( 17 ) N.o 32.

    ( 18 ) C‑399/96, EU:C:1998:532.

    ( 19 ) N.o 35.

    ( 20 ) V., designadamente, acórdão Amatori e o. (C‑458/12, EU:C:2014:124, n.o 30 e jurisprudência referida).

    ( 21 ) V., designadamente, acórdãos Spijkers (24/85, EU:C:1986:127, n.o 13); Redmond Stichting (C‑29/91, EU:C:1992:220, n.o 24); Süzen (C‑13/95, EU:C:1997:141, n.o 14); e Abler e o. (C‑340/01, EU:C:2003:629, n.o 33).

    ( 22 ) V., designadamente, acórdão Liikenne (C‑172/99, EU:C:2001:59, n.o 35 e jurisprudência referida).

    ( 23 ) Ibidem (n.o 37 e jurisprudência referida).

    ( 24 ) Ibidem (n.o 39 e jurisprudência referida).

    ( 25 ) Ibidem (n.o 42 e jurisprudência referida).

    ( 26 ) V. n.o 33 das presentes conclusões.

    ( 27 ) C‑13/95, EU:C:1997:141.

    ( 28 ) N.o 15.

    ( 29 ) Acórdão Jouini e o. (C‑458/05, EU:C:2007:512, n.o 32).

    ( 30 ) A Comissão refere‑se ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.

    ( 31 ) C‑466/07, EU:C:2009:85.

    ( 32 ) Conclusões do advogado‑geral P. Mengozzi no processo Klarenberg (C‑466/07, EU:C:2008:614).

    ( 33 ) N.o 3.6.1, último parágrafo.

    ( 34 ) C‑466/07, EU:C:2009:85.

    ( 35 ) N.o 42.

    ( 36 ) N.o 43.

    ( 37 ) V., designadamente, acórdãos Allen e o. (C‑234/98, EU:C:1999:594, n.o 27); Mayeur (C‑175/99, EU:C:2000:505, n.o 53); Liikenne (C‑172/99, EU:C:2001:59, n.o 34); e Klarenberg (C‑466/07, EU:C:2009:85, n.o 44).

    ( 38 ) V., designadamente, acórdãos Mayeur (C‑175/99, EU:C:2000:505, n.o 54); Jouini e o. (C‑458/05, EU:C:2007:512, n.o 36); e Klarenberg (C‑466/07, EU:C:2009:85, n.o 44).

    ( 39 ) Acórdão Klarenberg (C‑466/07, EU:C:2009:85, n.o 45).

    ( 40 ) Ibidem (n.o 46).

    ( 41 ) Ibidem (n.o 47).

    ( 42 ) Ibidem (n.o 48).

    ( 43 ) C‑466/07, EU:C:2009:85.

    ( 44 ) Idem.

    ( 45 ) Idem.

    ( 46 ) N.o 50.

    ( 47 ) N.o 49.

    ( 48 ) V., designadamente, acórdãos Schneider (C‑380/01, EU:C:2004:73, n.o 20); Stradasfalti (C‑228/05, EU:C:2006:578, n.o 44); e Kirtruna e Vigano (C‑313/07, EU:C:2008:574, n.o 25).

    ( 49 ) Acórdãos Schneider (C‑380/01, EU:C:2004:73, n.o 21); Längst (C‑165/03, EU:C:2005:412, n.o 31); e Kirtruna e Vigano (C‑313/07, EU:C:2008:574, n.o 26).

    ( 50 ) V., designadamente, acórdão Intermodal Transports (C‑495/03, EU:C:2005:552, n.o 38 e jurisprudência referida).

    ( 51 ) Ibidem (n.o 29 e jurisprudência referida).

    ( 52 ) 283/81, EU:C:1982:335.

    ( 53 ) V., designadamente, acórdão Intermodal Transports (C‑495/03, EU:C:2005:552, n.o 30 e jurisprudência referida).

    ( 54 ) Acórdão Consiglio nazionale dei geologi e Autorità garante della concorrenza e del mercato (C‑136/12, EU:C:2013:489, n.o 25 e jurisprudência referida).

    ( 55 ) Ibidem (n.o 26 e jurisprudência referida).

    ( 56 ) Ibidem (n.o 27 e jurisprudência referida).

    ( 57 ) 283/81, EU:C:1982:335.

    ( 58 ) Acórdão Intermodal Transports (C‑495/03, EU:C:2005:552, n.o 33).

    ( 59 ) C‑224/01, EU:C:2003:513.

    ( 60 ) 283/81, EU:C:1982:335.

    ( 61 ) Acórdão Intermodal Transports (C‑495/03, EU:C:2005:552, n.o 37 e jurisprudência referida).

    ( 62 ) V. Pertek, J., «Renvoi préjudiciel en interprétation», JurisClasseur Europe Traité, fascículo 361, 2010, § 97.

    ( 63 ) V., designadamente, acórdãos Traghetti del Mediterraneo (C‑173/03, EU:C:2006:391, n.o 43 e jurisprudência referida) e Fuß (C‑429/09, EU:C:2010:717, n.o 52 e jurisprudência referida).

    ( 64 ) C‑173/03, EU:C:2005:602.

    ( 65 ) N.o 66.

    ( 66 ) C‑224/01, EU:C:2003:513.

    ( 67 ) V., designadamente, acórdão Ogieriakhi (C‑244/13, EU:C:2014:2068, n.o 49 e jurisprudência referida).

    ( 68 ) V., designadamente, acórdão Traghetti del Mediterraneo (C‑173/03, EU:C:2006:391, n.o 32 e jurisprudência referida).

    ( 69 ) Ibidem (n.o 43 e jurisprudência referida). V., também, acórdão Fuß (C‑429/09, EU:C:2010:717, n.o 52 e jurisprudência referida).

    ( 70 ) V., designadamente, acórdão Traghetti del Mediterraneo (C‑173/03, EU:C:2006:391, n.o 45 e jurisprudência referida).

    ( 71 ) V., designadamente, acórdão Fuß (C‑429/09, EU:C:2010:717, n.o 62 e jurisprudência referida).

    ( 72 ) Na audiência, o Governo português indicou, por outro lado, que não tinha conhecimento de casos em que o artigo 696.o, alínea f), do novo Código de Processo Civil tivesse sido aplicado a uma situação de incompatibilidade de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça com o direito da União.

    ( 73 ) C‑224/01, EU:C:2003:513.

    Top