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Document 61995CC0300

    Conclusões do advogado-geral Tesauro apresentadas em 23 de Janeiro de 1997.
    Comissão das Comunidades Europeias contra Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte.
    Incumprimento - Artigo 7., alínea e), da Directiva 85/374/CEE - Transposição incorrecta - Isenção da responsabilidade pelos produtos defeituosos - Estado dos conhecimentos científicos e técnicos.
    Processo C-300/95.

    Colectânea de Jurisprudência 1997 I-02649

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:1997:35

    61995C0300

    Conclusões do advogado-geral Tesauro apresentadas em 23 de Janeiro de 1997. - Comissão das Comunidades Europeias contra Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte. - Incumprimento - Artigo 7., alínea e), da Directiva 85/374/CEE - Transposição incorrecta - Isenção da responsabilidade pelos produtos defeituosos - Estado dos conhecimentos científicos e técnicos. - Processo C-300/95.

    Colectânea da Jurisprudência 1997 página I-02649


    Conclusões do Advogado-Geral


    1 As presentes conclusões dizem respeito a um processo nos termos do artigo 169._ do Tratado, instaurado pela Comissão contra o Reino Unido, por este não ter transposto de modo correcto o artigo 7._, alínea e), da Directiva 85/374/CEE do Conselho, de 25 de Julho de 1985, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos (1) (a seguir «directiva»).

    O quadro normativo e o processo

    2 Como se especifica no seu primeiro considerando, a directiva pretende eliminar a disparidade existente entre as legislações nacionais em matéria de responsabilidade do produtor, disparidade «susceptível de falsear a concorrência, de prejudicar a livre circulação das mercadorias no mercado comum e de originar diferenças relativamente ao grau de protecção do consumidor contra os danos causados à sua saúde e aos seus bens por um produto defeituoso».

    Nos termos do artigo 1._ da directiva, «o produtor é responsável pelo dano causado por um defeito do seu produto». O artigo 4._ dispõe depois que «cabe ao lesado a prova do dano, do defeito e do nexo causal entre o defeito e o dano»; enquanto o artigo 6._, n._ 1, especifica que «um produto é defeituoso quando não oferece a segurança que se pode legitimamente esperar, tendo em conta todas as circunstâncias, tais como: a) a apresentação do produto; b) a utilização do produto que se pode razoavelmente esperar; c) o momento de entrada em circulação do produto». A mesma disposição acrescenta que «um produto não será considerado defeituoso pelo simples facto de ser posteriormente colocado em circulação um produto mais aperfeiçoado».

    As causas de exclusão da responsabilidade do produtor são definidas especificamente no artigo 7._, segundo o qual «o produtor não é responsável nos termos da presente directiva se provar: a) que não colocou o produto em circulação; b) que, tendo em conta as circunstâncias, se pode considerar que o defeito que causou o dano não existia no momento em que o produto foi por ele colocado em circulação ou que este defeito surgiu posteriormente; c) que o produto não foi fabricado para venda ou para qualquer outra forma de distribuição com um objectivo económico por parte do produtor, nem fabricado ou distribuído no âmbito da sua actividade profissional; d) que o defeito é devido à conformidade do produto com normas imperativas estabelecidas pelas autoridades públicas; e) que o estado dos conhecimentos científicos e técnicos no momento da colocação em circulação do produto não lhe permitiu detectar a existência do defeito; f) no caso do produtor de uma parte componente, que o defeito é imputável à concepção do produto no qual foi incorporada a parte componente ou às instruções dadas pelo fabricante do produto».

    3 Nos termos do artigo 19._, a directiva devia ser implementada até 30 de Julho de 1988. O Reino Unido fê-lo com a primeira parte do Consumer Protection Act (a seguir o «Act»), em vigor a partir de 1 de Março de 1988, cuja Section 1(1) dispõe textualmente que «esta parte tem por objecto e por efeito adoptar as disposições necessárias para dar cumprimento à directiva sobre a responsabilidade decorrente dos produtos e será interpretada nesse sentido». A Section 4(1)(e), norma de transposição do artigo 7._, alínea e), da directiva, exclui a responsabilidade do produtor na hipótese em que este demonstre que «o estado dos conhecimentos científicos e técnicos no momento pertinente não permitia esperar que um produtor de produtos análogos ao produto em questão pudesse detectar o defeito nos seus produtos no período em que estavam sob o seu controlo».

    4 Entendendo que o Act não tinha transposto correctamente a directiva sob diversos aspectos, a Comissão, por notificação de 26 de Abril de 1989, iniciou, nos termos do artigo 169._ do Tratado, um processo por incumprimento contra o Reino Unido. Este último, por carta de 19 de Julho de 1989, rejeitou as acusações da Comissão, sustentando que, embora com uma formulação linguística diferente, a norma nacional em questão constituía uma correcta transposição da directiva.

    Em 2 de Julho de 1990 a Comissão formulou um parecer fundamentado no qual confirmou as acusações inicialmente apresentadas. O Reino Unido, por sua vez, reiterou as suas objecções, na carta de resposta ao parecer fundamentado, de 4 de Outubro de 1990.

    5 Tendo em conta a argumentação do Reino Unido, e à luz da Section 1(1) do Act, que impõe a interpretação das suas disposições num sentido conforme à directiva, a Comissão chegou à conclusão que devia abandonar cinco das suas seis acusações contestadas na fase pré-contenciosa.

    Considerando, pelo contrário, fundada a acusação relativa à Section 4(1)(e) do Act, norma de transposição do artigo 7._, alínea e), da directiva, a Comissão propôs a acção com vista a ser declarada a transposição incorrecta.

    O mérito

    6 Segundo a Comissão, a própria formulação da Section 4(1)(e) do Act demonstraria a sua incompatibilidade com o artigo 7._, alínea e), da directiva. Com efeito, enquanto o critério estabelecido por este último é objectivo, na medida em que se baseia no «estado dos conhecimentos científicos e técnicos», sem fazer qualquer referência à capacidade do produtor ou de outro produtor de produtos análogos de detectar a existência do defeito, a disposição nacional, ao pôr a tónica no comportamento de um produtor razoável, exigiria uma apreciação subjectiva.

    Desse modo, tal disposição acabaria por transformar a responsabilidade objectiva ou sem culpa, introduzida pelo artigo 1._ da directiva, numa responsabilidade fundada na negligência do produtor.

    7 A principal consequência da modificação do regime de responsabilidade acolhido pela directiva produzir-se-ia, segundo a Comissão, no plano processual: para provar que no momento em questão não era possível, nem para aquele nem para outro produtor de produtos semelhantes, descobrir o defeito, bastaria de facto ao produtor do produto defeituoso demonstrar não ter cometido qualquer negligência e ter tomado todas as precauções usadas nesse determinado sector produtivo.

    Tratar-se-ia, por conseguinte, de um ónus de prova mais leve do que o imposto pela directiva, com base na qual seria, pelo contrário, irrelevante o comportamento do produtor, cuja responsabilidade seria excluída apenas na hipótese em que (se provasse que) o estado dos conhecimentos técnicos e científicos nesse momento não permitia a descoberta do defeito.

    8 Para a Comissão, a manifesta e insanável contradição entre a formulação do Act e o texto da directiva também não poderia ser superada pela disposição da Section 1(1) do Act, que no entanto impõe a sua interpretação em sentido conforme à directiva; e ainda menos pelas regras hermenêuticas mais gerais estabelecidas pela Section 2(4) do European Communities Act 1972 e pela jurisprudência da House of Lords, regras essas utilizáveis apenas quanto a disposições de formulação literal ambígua e susceptível de diversas interpretações e, portanto, inaplicáveis no caso em apreço.

    Para fundamentar a procedência da acção, a Comissão alegou ainda que, durante o debate na House of Lords, a maior parte dos pares teria levantado dúvidas quanto à compatibilidade da Section 4(2)(e) do Act com a directiva, e iguais dúvidas teriam sido expressas pela mais autorizada doutrina britânica.

    9 Ao contrário da Comissão, o Governo do Reino Unido entende que o critério estabelecido pelo Act não é, em substância, diferente do fixado na directiva e nega que com o Act se tenha pretendido adoptar um regime de responsabilidade baseado na culpa do produtor.

    A tese da Comissão, segundo o Governo do Reino Unido, assentaria numa interpretação errada das disposições pertinentes da directiva e do Act.

    10 No que respeita à primeira, o governo demandado sustenta que o próprio facto de destacar que a directiva não faz qualquer referência à capacidade do produtor de descobrir o defeito parece implicar que a excepção em questão só poderá proceder quando o produtor demonstre que não existe no mundo ninguém que tenha os conhecimentos necessários para identificar o defeito. Assim interpretada, a previsão do artigo 7._, alínea e), da directiva acabaria no entanto por se revelar, de facto, inaplicável.

    Na opinião do Reino Unido, pelo contrário, a única interpretação lógica da disposição comunitária é a consagrada na Section 4(1)(e) do Act: a capacidade do produtor em causa de descobrir o defeito (ou dos produtores de produtos análogos) representa de facto uma noção objectiva e abstracta, sendo relevante para este efeito não aquilo que, em concreto, o produtor soubesse ou não, mas aquilo que tivesse podido e/ou devido saber, à luz do património de conhecimentos técnico-científicos disponíveis no momento em questão. Esta perspectiva seria, por outro lado, confirmada, segundo o Governo do Reino Unido, pelo sétimo considerando da directiva, que, ao afirmar «que uma justa repartição dos riscos entre o lesado e o produtor implica que este último se possa eximir da responsabilidade se provar a existência de determinados factos que o isentem», demonstraria a vontade do legislador comunitário de oferecer ao produtor meios de defesa real e efectiva, cuja eficácia seria anulada no caso de se aceitar a interpretação proposta pela Comissão.

    11 No que respeita à Section 4(1)(e) do Act, o Governo do Reino Unido sustenta, antes de mais, que a Comissão não conseguiu demonstrar, como era aliás seu dever, que a disposição controvertida só pode ter um sentido, absolutamente incompatível com a directiva.

    Na realidade, segundo o mesmo governo, a disposição em questão, ao estabelecer um critério objectivo - ou seja, objectivamente verificável - de exclusão da responsabilidade do produtor, é formulada de modo a resultar plenamente conforme à directiva, não sendo relevante, sob esta perspectiva, a diversidade linguística do texto relativamente ao da norma comunitária. Nem se poderá afirmar que a lei comporta, ao contrário da directiva, um regime de responsabilidade baseada na culpa: se assim fosse, o ónus da prova da negligência do produtor recairia sobre a parte lesada, enquanto nos termos da Section 4(1)(e) do Act cabe ao produtor, que pretenda eximir-se da responsabilidade, demonstrar não ter estado em condições, à luz dos conhecimento disponíveis, de descobrir o defeito.

    Por fim, o Reino Unido nega que se possam retirar do debate na House of Lords elementos úteis para a interpretação do Act; e formula reservas semelhantes quanto ao valor da doutrina citada pela Comissão, que aliás teria, na realidade, um alcance parcialmente diferente do que lhe é atribuído na acção.

    12 Na audiência, o Governo do Reino Unido insistiu depois na necessidade de o Tribunal ser chamado a interpretar o direito comunitário no quadro de circunstâncias precisas e com referência a um contexto factual bem definido; tal não se verificaria no caso em apreço. Com efeito, na falta de decisões dos órgãos jurisdicionais nacionais sobre a interpretação do Act, o Tribunal de Justiça seria chamado a pronunciar-se em abstracto e de modo substancialmente hipotético sobre a conformidade do Act com a directiva, com a consequência de não poder fornecer uma interpretação útil da norma comunitária em análise.

    Tais considerações parecem realmente sugerir, devido à ausência de uma prática nacional quanto ao ponto em discussão, a inadmissibilidade da acção da Comissão.

    13 Quanto a este aspecto, entendo dever, antes de mais, eliminar qualquer equívoco quanto à possibilidade de atribuir à ausência de jurisprudência nacional sobre a questão uma qualquer eficácia preclusiva ou, de algum modo, impeditiva quanto à propositura duma acção nos termos do artigo 169._

    A Comissão pode, com efeito, agir nos termos do artigo 169._ contra um Estado-Membro com base apenas na disparidade literal entre a disposição nacional de transposição e a formulação da disposição comunitária a transpor (2). É evidente, naturalmente, que não basta a simples dedução da diferença literal entre as duas disposições para determinar o incumprimento de Estado, sendo pacífico que a transposição de uma directiva não implica necessariamente uma reprodução textual das suas disposições (3).

    14 Em qualquer caso, tendo em conta que na fase pré-contenciosa a Comissão imputou ao Reino Unido a absoluta e insanável incompatibilidade da disposição nacional controvertida com a correspondente disposição da directiva, a ponto de afirmar que os tribunais britânicos não poderiam em caso algum interpretá-la de modo conforme à directiva, não me parece que tenha qualquer relevância a jurisprudência constante, evocada no entanto pela Comissão durante o processo perante o Tribunal, segundo a qual uma norma nacional ambígua não constitui cumprimento pontual da obrigação de transposição de uma directiva. Pelo contrário, é preciso no caso em apreço que a Comissão prove o alegado incumprimento, tal como foi imputado na fase pré-contenciosa, isto é, demonstre que a formulação literal da disposição nacional é susceptível de uma única interpretação, manifestamente e, diria mesmo, irredutivelmente diferente da norma comunitária e, portanto, com esta incompatível.

    Em suma, o caso em apreço, tal como foi circunscrito na fase pré-contenciosa, não diz respeito à eventual ambiguidade da disposição nacional de transposição, mas sim à sua insanável contradição com a disposição comunitária de que constitui a implementação. É portanto entre estes limites que a acção da Comissão deve ser examinada.

    15 Posto isto, e tendo em conta que a directiva é pela primeira vez sujeita à apreciação do Tribunal, parece-me oportuno destacar sinteticamente os seus traços essenciais, de modo a determinar qual seja a exacta interpretação da disposição ora em discussão. À luz de tal interpretação será então possível verificar se a norma nacional controvertida não se afasta, em substância, da previsão comunitária; ou se, da sua formulação literal, se deve deduzir uma contradição insanável com a directiva.

    16 A responsabilidade do produtor pela comercialização de produtos defeituosos tem constituído, sobretudo nas últimas décadas, um dos temas mais estudados pela doutrina que se ocupa da responsabilidade civil. E sobretudo porque esta tem sido, no plano sistemático, o banco de ensaios da passagem de um sistema de imputação do facto ilícito baseado exclusivamente na culpa para um regime de responsabilidade objectiva, mais conforme às exigências de tutela da parte lesada, no quadro de uma releitura das regras de responsabilidade civil numa perspectiva já não só de sanção mas também, senão predominantemente, de indemnização (4).

    A evolução ora descrita foi aliás estimulada pelo crescimento das actividades industriais (5). À medida que a crescente complexidade dos processos produtivos multiplicava e tornava dificilmente evitáveis os riscos ligados aos defeitos dos produtos, emergia com clareza a inaptidão do sistema de responsabilidade ancorado na culpa do produtor para assegurar uma adequada protecção do consumidor. Este último, embora lesado pelo produto defeituoso, era de facto - e frequentemente - privado de uma tutela efectiva, revelando-se bastante difícil, no plano processual, provar a negligência do produtor, isto é, o desrespeito, por parte deste, de todas as prescrições apropriadas para impedir a ocorrência do defeito.

    Nessa perspectiva, bem se compreende que tenha sido precisamente nos Estados Unidos, pela dimensão do crescimento industrial nesse país, que foram pela primeira vez elaboradas, a partir dos anos 60, as premissas teóricas de um sistema de responsabilidade do produtor desligada do requisito da culpa (6). Tais premissas podem sintetizar-se do seguinte modo (7): a) o maior poder contratual e económico do produtor relativamente ao consumidor e a mais eficaz função dissuasiva decorrente do regime de responsabilidade objectiva relativamente à responsabilidade por culpa; b) o princípio da repartição dos riscos no seio de uma determinada organização social, a implementar através do recurso ao mecanismo dos seguros: por outras palavras, a tomada em conta, por parte do produtor, dos custos resultantes dos factos danosos; c) a redução dos chamados custos administrativos secundários e terciários e a obtenção de benefícios sociais importantes por efeito da introdução de um regime de responsabilidade objectiva do produtor.

    17 Na vertente comunitária, depois de alguns projectos apresentados no fim dos anos 70, chegou-se, em 1985, à adopção da directiva, cuja formulação definitiva diverge consideravelmente do texto da proposta inicial da Comissão (8).

    Esta última, com efeito, inspirando-se no modelo norte-americano, previa um sistema de responsabilidade objectiva do produtor que era, por um lado, considerada o instrumento mais apto para assegurar uma protecção adequada do consumidor (quarto considerando) e, por outro, justificada pelo facto de o produtor ser o centro de imputação ideal dos prejuízos, uma vez que pode «integrar os custos decorrentes desta responsabilidade, a título de custos de produção, no cálculo dos seus preços e reparti-los assim entre todos os consumidores de produtos idênticos mas isentos de defeitos» (quinto considerando).

    18 A responsabilidade traçada na proposta da Comissão ia aliás além do regime da strict liability tal como foi atrás descrito, assumindo um carácter absoluto, ou seja, não admitindo a prova liberatória por parte do produtor. Com efeito, nos termos do artigo 1._ da proposta, o produtor «é responsável pelo dano causado pelo defeito da coisa, independentemente do facto de dele ter tido ou podido ter conhecimento. O produtor é também responsável mesmo que a coisa, em função do estado de desenvolvimento científico e tecnológico no momento em que a pôs em circulação, não pudesse ser considerada defeituosa».

    Era assim excluída a possibilidade de o produtor se fazer valer da excepção baseada no state of art, segundo a qual pode eximir-se da responsabilidade se demonstrar que o estado dos conhecimentos científicos e técnicos existentes no momento em que o produto foi posto em circulação não permitia ainda considerar o mesmo produto defeituoso. Por outras palavras, acabava por se imputar também aos produtores a área dos chamados «riscos de desenvolvimento», isto é, dos riscos presentes nos sectores produtivos em que o avanço dos conhecimentos técnico-científicos pode, ex post, fazer surgir como defeituoso um produto que, ao tempo do seu fabrico, não era considerado como tal (9).

    19 A directiva, tal como foi adoptada pelo Conselho, optou pelo contrário por um regime de responsabilidade objectiva já não absoluta mas limitada, em observância de um princípio de justa repartição dos riscos entre o lesado e o produtor, sobre o qual devem recair apenas os riscos calculáveis e não os riscos de desenvolvimento, que são, em si, incalculáveis (10). Assim, nos termos da directiva, para que o produtor seja considerado responsável pelos defeitos do produto, o lesado deve provar o dano, a existência do defeito do produto e o nexo de causalidade entre um e outro, mas não a culpa do produtor.

    Este último pode, porém, eximir-se da responsabilidade caso demonstre que o state of art não permitia considerar o produto defeituoso no momento da sua colocação no mercado. É isto que é estabelecido pelo artigo 7._, alínea e), da directiva (11).

    20 Observe-se em primeiro lugar que tal disposição, referindo-se exclusivamente aos «conhecimentos científicos e técnicos» disponíveis no momento da comercialização do produto, não tem em conta as práticas e os padrões de segurança usados no sector industrial em que opera o produtor. Por outras palavras, não é relevante, no quadro da exclusão da responsabilidade do fabricante, a circunstância de naquele determinado sector produtivo ninguém tomar as precauções necessárias para eliminar o defeito ou para evitar a sua ocorrência, se tais precauções puderem, com base nos conhecimentos disponíveis, ser tomadas.

    Devem considerar-se igualmente estranhos ao âmbito de aplicação do artigo 7._, alínea e), os aspectos respeitantes à praticabilidade e à conveniência económica das precauções adequadas para eliminar o defeito do produto. Nem pode, deste mesmo ponto de vista, colocar-se a hipótese de ter qualquer relevância, para o efeito de excluir a responsabilidade do produtor, a circunstância de ele não estar informado sobre o estado dos conhecimentos técnico-científicos e não acompanhar os seus desenvolvimentos, tais como comunicados pela literatura especializada. Considero, com efeito, que a conduta do produtor deve avaliar-se utilizando o parâmetro dos conhecimentos de um perito do sector (12).

    21 No que respeita, porém, à definição do conceito de «estado dos conhecimentos» é necessário desenvolver algumas considerações suplementares.

    O progresso da cultura científica não avança de modo linear, na medida em que novos estudos e novas descobertas podem num primeiro momento ser alvo de críticas e ser considerados inaceitáveis pela generalidade da comunidade científica; mas depois, com o passar do tempo, podem sofrer um processo inverso, de «beatificação», que os torna objecto de um consenso quase unânime. É bem possível, portanto, que no momento da comercialização de um determinado produto existam opiniões isoladas que o consideram defeituoso, enquanto a generalidade dos estudiosos não o considera como tal. O problema, quanto a este ponto, é determinar se numa tal situação, ou seja, em presença de um risco que não é certo e que só ex post é por todos partilhado, o produtor pode, de qualquer modo, invocar a excepção prevista pelo artigo 7._, alínea e), da directiva.

    Na minha opinião, a resposta deve ser negativa. Por outras palavras, o estado dos conhecimentos científicos não pode ser identificado com a opinião expressa pela maioria dos estudiosos, mas com o nível mais avançado das investigações feitas num determinado momento.

    22 Tal interpretação, que coincide com a sugerida pela Comissão na audiência, através de alguns exemplos bastante pertinentes, é a mais coerente com a ratio da regulamentação comunitária: ao produtor devem ser imputados os riscos previsíveis, contra os quais ele está em posição de se precaver, tanto por via preventiva, aumentando a experimentação e os investimentos na investigação, como posteriormente, fazendo um seguro de responsabilidade civil de modo a cobrir os eventuais danos causados pelo defeito do produto.

    Desde o momento em que exista também no panorama científico da época uma voz isolada (que, como a história da ciência ensina, pode tornar-se, com o correr do tempo, opinio communis) que tenha realçado o potencial carácter defeituoso e/ou perigoso do produto, o seu fabricante já não se encontra perante um risco imprevisível e, como tal, estranho ao âmbito de aplicação do regime imposto pela directiva.

    23 Estreitamente ligado ao aspecto ora ilustrado encontra-se o problema da disponibilidade dos conhecimentos científicos e técnicos, entendida como a possibilidade de os sujeitos interessados atingirem o património informativo contemporâneo. É inegável que a circulação da informação é condicionada por factores objectivos, tais como, por exemplo, o local de proveniência, a língua em que tal informação é veiculada, e o grau de difusão das revistas em que é publicada.

    Para sermos claros, existem diferenças não despiciendas no plano da rapidez da colocação em circulação e da amplitude da difusão entre um estudo de um investigador de uma universidade dos Estados Unidos, publicado numa revista internacional de língua inglesa e, retomando o exemplo dado pela Comissão, uma investigação análoga de um estudioso da Manchúria, publicada em língua chinesa na revista científica local, que não ultrapassa as fronteiras da região.

    24 Na situação ora descrita seria irrealista e, diria mesmo, inaceitável, entender que o estudo em língua chinesa teria as mesmas possibilidades que o outro de ser conhecido por um fabricante europeu de produtos. Ou seja, não creio que num caso deste tipo o produtor possa ser considerado responsável porque, no momento em que colocou o produto em circulação, o brilhante investigar asiático lhe tinha descoberto o defeito (13).

    De modo mais geral, o «estado dos conhecimentos disponíveis» deve ser entendido de modo a compreender todos os dados inseridos no circuito informativo da comunidade científica no seu conjunto, tendo em conta, todavia, segundo um critério de razoabilidade, as possibilidades concretas de circulação da informação.

    25 Assim definido o âmbito da disposição comunitária, não entendo poder partilhar da tese da Comissão segundo a qual existiria uma contradição irredutível entre aquela e a norma nacional controvertida. Com efeito, não pode negar-se que a formulação da Section 4(1)(e) do Act contém um elemento de potencial ambiguidade: referindo-se ao que se pode esperar do produtor, tal pode de facto ser interpretado de modo mais amplo que o devido.

    No entanto, não considero que a referência à «capacidade do produtor» de descobrir o defeito, apesar da sua generalidade, possa ou até deva (e necessariamente) autorizar interpretações contrárias à ratio e à finalidade da directiva.

    26 Em primeiro lugar, a consideração da figura do produtor é central, não só na disciplina da directiva globalmente considerada, mas também na previsão do artigo 7._, alínea e), que, embora sem o referir, tem como destinatário o próprio produtor como sujeito obrigado a suportar o respectivo ónus da prova para poder excluir a sua própria responsabilidade. A disposição do Act, deste ponto de vista, não faz senão exprimir de modo evidente um conceito implícito na norma comunitária.

    Em segundo lugar, a referência contida no Act à capacidade do produtor para descobrir o defeito não é suficiente para tornar subjectivo o critério aí previsto. Tal referência, com efeito, pode bem ser vista, conforme foi sustentado pelo Reino Unido, como um parâmetro objectivamente verificável e avaliável e de modo algum condicionado pela tomada em consideração dos conhecimentos subjectivamente detidos, em concreto, pelo produtor, ou das suas exigências organizativas e económicas. Naquele parâmetro, para o efeito da exclusão da responsabilidade do fabricante, impõe-se portanto a prova da impossibilidade de, à luz do nível mais avançado dos conhecimentos científicos e técnicos objectivamente e razoavelmente adquiríveis e disponíveis, considerar o produto defeituoso.

    27 Na medida em que a disposição controvertida do Act seja assim interpretada e aplicada pelo órgão jurisdicional nacional, revelam-se portanto infundadas as preocupações da Comissão quanto a uma indevida «subjectivação» da excepção em questão, isto é, de modo a levar a uma transformação substancial do regime de responsabilidade acolhido pela directiva numa responsabilidade por culpa.

    De resto, sob esta perspectiva, é aceitável a observação do Governo do Reino Unido segundo a qual faltaria no Act um requisito essencial de tal regime de responsabilidade que, como se sabe, exige a demonstração, por parte do consumidor, da «culpa» do produtor. Com efeito, a Section 4(1)(e) do Act faz recair sobre o fabricante que invoca a excepção do state of art o respectivo ónus da prova.

    28 Acrescento ainda que não me parece que se possam considerar irrelevantes, como pretenderia a Comissão, nem a regra hermenêutica estabelecida pela Section 1 do Act, que impõe ao órgão jurisdicional nacional que interprete as suas disposições em sentido conforme à directiva, nem as obrigações interpretativas de análogo teor e de âmbito geral impostas aos juízes britânicos pelo European Communities Act 1972 e constantemente confirmadas pela jurisprudência da House of Lords (14).

    Pelo contrário, para refutar a conclusão aqui acolhida, não parece que se possam extrair elementos suficientes dos debates parlamentares evocados pela Comissão, debates que, quando muito, evidenciam a preocupação de um alargamento excessivo do âmbito da excepção do state of art por efeito da citada referência à capacidade do produtor de descobrir o defeito. A subsistência de um tal risco não pode, no entanto, ser considerada uma prova suficiente para efeitos da constatação do incumprimento alegado pela Comissão.

    29 Tal conclusão é aliás confirmada pela jurisprudência constante do Tribunal de Justiça segundo a qual o âmbito das disposições legislativas, regulamentares ou administrativas nacionais deve ser avaliado à luz da interpretação que lhes é dada pelos órgãos jurisdicionais nacionais (15). Daqui resulta, manifestamente, que teria sido muito mais acertado e oportuno que a Comissão, antes de agir contra o Reino Unido com base na incorrecta transposição da directiva, tivesse atendido à aplicação do Act por parte dos órgãos jurisdicionais nacionais. Ao invés, tal como foi instaurado, o processo por incumprimento acaba por parecer, pelo menos, precipitado.

    Em suma, entendo dever concordar com a posição do Reino Unido e concluir assim no sentido de que a Comissão não demonstrou de modo algum que a Section 4(1)(e) do Act não constitui uma correcta transposição do artigo 7._, alínea e), da directiva.

    30 A solução aqui acolhida, implicando que a Comissão seja vencida, impõe-lhe a condenação nas despesas.

    31 À luz das considerações atrás desenvolvidas, concluo, portanto, sugerindo ao Tribunal que:

    «1) julgue a acção improcedente;

    2) condene a Comissão nas despesas.»

    (1) - JO L 210, p. 29; EE 13 F19 p. 8.

    (2) - O próprio Governo do Reino Unido, respondendo a uma minha pergunta específica sobre este ponto, reconheceu expressamente, com efeito, que a falta de jurisprudência nacional num sentido incompatível com a directiva não era relevante para efeitos de admissibilidade do recurso da Comissão.

    (3) - V., por exemplo, o acórdão de 17 de Novembro de 1993, Comissão/Espanha (C-71/92, Colect., p. I-5923, n._ 23).

    (4) - V., nesse sentido, as observações pertinentes de Ponzanelli - La responsabilità civile. Profili di diritto comparato, Bologna, 1992, p. 107.

    (5) - V. Priest - «La scoperta della responsabilità d'impresa: una storia critica delle origini intellettuali del moderno sistema di responsabilità civile», em Responsabilità civile, 1985, p. 275 e segs.

    (6) - A doutrina da responsabilidade objectiva, ou, para usar a expressão de língua inglesa, strict liability, tem a sua origem nos Estados Unidos numa concurring opinion do juiz Roger Traynor no processo Escola/Coca Cola bottling Co., 24 Cal. 2 d 453, 461 P 2 d 436 (1944), segundo a qual um produtor devia ser considerado responsável se, ao lançar um produto no mercado, sabia que o mesmo iria ser usado sem controlo, e se resultava que o produto tinha causado um dano. Isto porque o produtor, ao contrário do público, pode proteger-se da ocorrência de riscos e está em posição de fazer um seguro, repartindo o seu custo entre os consumidores. O Supremo Tribunal da Califórnia, ao definir as regras de responsabilidade civil, acolheu a posição do juiz Traynor no processo Greenman/Yuba Power Products Inc. 59 Cal. 2 d 57, 377 P 2 d 897 (1963), considerando o produtor demandado objectivamente responsável pelos danos causados pelo defeito do produto. Tal princípio é depois acolhido pelo Restatement Second of Torts, na Section 402 A, em que foi consagrada a responsabilidade do vendedor, perante o consumidor, pela comercialização de produtos defeituosos «desrazoavelmente perigosos». A condição do carácter desrazoável foi, aliás, rejeitada pelo mesmo Supremo Tribunal da Califórnia no processo Cronin/J. B. E. Olson Corp., 8 Cal. 3 d 121, 501, P 2 d 1153 (1972), por se considerar como «qualquer coisa muito semelhante» à negligência, sendo, pelo contrário, suficiente, para justificar a aplicação da responsabilidade do fabricante, a prova do defeito causa do dano. Note-se que, a partir da publicação da Section 402 A, foram adoptados regimes de responsabilidade objectiva na maior parte dos Estados Unidos. Recapitulando o tema, na interminável doutrina norte-americana, Shapo - The law of products liability, Boston - New York 1987.

    (7) - V. Ponzanelli (já referido na nota 4), pp. 115 e 116.

    (8) - JO 1976, C 241, p. 9.

    (9) - A este propósito, não é inoportuno recordar que nos Estados Unidos a jurisprudência tinha demonstrado uma propensão para a afirmação de uma responsabilidade absoluta do produtor, sobretudo no sector dos produtos farmacêuticos. No entanto, a «indiscriminate expansion of substantive tort liability» decorrente de tal jurisprudência, pela qual se afirmava a responsabilidade em todos os casos e a qualquer preço, rejeitando a excepção baseada no state of art, provocou uma crise no mercado dos seguros tão profunda que algumas actividades económicas foram retiradas do âmbito de cobertura dos seguros. Em resultado disso, manifestaram-se recentemente sinais, quer jurisprudenciais, quer normativos, de uma inversão do rumo e de um retorno às regras de responsabilidade objectiva, já não absoluta: v., sobre o tema, as observações de Priest - «The current insurance crisis and modern tort law», em 96 Yale Law Journal 1589 (1987); idem, «La controrivoluzione nel diritto della responsabilità da prodotti negli Stati Uniti d'America», em Foro italiano, 1989, IV, pp. 119 e segs. Neste último trabalho, o autor faz um aviso ao mundo jurídico europeu que convém ter presente: «O Supremo Tribunal da Califórnia no processo Brown e a nova regulamentação de New Jersey começaram a reanalisar as premissas da regra da strict liability existente no sector da responsabilidade por produtos. Será importante verificar se os Estados europeus, ao darem execução concreta à directiva comunitária de 25 de Julho de 1985, que adoptou o modelo da strict liabilty 25 anos depois da sua introdução nos Estados Unidos, aceitarão as premissas teóricas iniciais desse regime, que levaram depois os Estados Unidos a uma situação de crise, ou se, pelo contrário, aceitarão a contra-revolução ora iniciada».

    (10) - Neste sentido se manifesta o artigo 15._, n._ 1, alínea b), da directiva, que deixa com efeito aos Estados-Membros a possibilidade de derrogar as disposições relativas aos riscos de desenvolvimento, introduzindo disposições legislativas mais severas.

    (11) - Sobre a difícil elaboração desta norma, v. Ghestin - «La directive communautaire du 25 juillet 1985 sur la responsabilité du fait des produits défectueux», em Dalloz, 1986, Chron., pp. 135 e segs.

    (12) - Se, por exemplo, um químico ou um farmacêutico devem estar actualizados sobre as características de uma certa substância, iguais conhecimentos serão exigidos, para os fins ora relevantes, ao industrial que produza medicamentos contendo a mesma substância.

    (13) - Ao contrário do que a Comissão defendeu na audiência, contradizendo aliás o que tinha inicialmente declarado quanto a esse aspecto, não entendo pois que seja suficiente, para impediu a aplicação da excepção prevista no artigo 7._, alínea e), da directiva, demonstrar a existência de uma pessoa, independentemente do seu país ou da sua língua, em posição de descobrir o defeito do produto.

    (14) - Quanto a este ponto, portanto, convém apenas recordar que os órgãos jurisdicionais nacionais são de qualquer modo obrigados, segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a interpretar a legislação comunitária de modo conforme à directiva: v. o acórdão de 13 de Novembro de 1990, Marleasing (C-106/89, Colect., p. I-4135, n._ 8).

    (15) - V., em especial, os acórdãos de 8 de Junho de 1994, Comissão/Reino Unido (C-382/92, Colect., p. I-2435, n._ 36), e de 16 de Dezembro de 1992, Katsikas e o. (C-132/91, C-138/91 e C-139/91, Colect., p. I-6577, n._ 39).

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