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Document 61976CC0013

    Conclusões do advogado-geral Trabucchi apresentadas em 6 de Julho de 1976.
    Gaetano Donà contra Mario Mantero.
    Pedido de decisão prejudicial: Giudice conciliatore di Rovigo - Itália.
    Processo 13-76.

    Edição especial inglesa 1976 00545

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:1976:104

    CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

    ALBERTO TRABUCCHI

    apresentadas em 6 de Julho de 1976 ( *1 )

    Senhor Presidente,

    Senhores Juízes,

    As questões colocadas pelo giudice conciliatore de Rovigo destinam-se, essencialmente, a determinar se a ordem jurídica comunitária permite que um organismo desportivo de natureza privada faça depender a participação de jogadores profissionais de futebol nos desafios da posse da nacionalidade do Estado.

    O juiz italiano interrogou-se sobre esta questão devido ao facto de a Federação Italiana de Futebol, constituída pelas associações nacionais que praticam este desporto e único organismo qualificado para regulamentar esta actividade no território nacional, subordinar a participação nas provas à posse do cartão federal, que, em conformidade com o disposto no parágrafo g) do artigo 28.o do Regulamento Orgânico da Federação, só é concedido, em princípio, aos jogadores de nacionalidade italiana que residam em Itália. Quanto aos estrangeiros, está prevista uma derrogação em relação àqueles que nunca foram membros de uma federação estrangeira e que, residindo em Itália, requeiram a sua inscrição como «juniores», como «amadores» ou com o intuito de exercerem actividades recreativas. Quanto à inscrição dos restantes jogadores, italianos ou estrangeiros, vindos de federações estrangeiras, a citada norma do Regulamento Orgânico da Federação Italiana de Futebol prevê que «o Conselho Federal decida antes do dia 30 de Abril de cada ano». Assim, não está excluída a possibilidade de derrogação em relação aos jogadores profissionais, mas trata-se sempre de uma decisão inteiramente discricionária do órgão directivo da federação. Mantém-se a regra da exclusão dos jogadores estrangeiros do exercício da actividade profissional no âmbito das sociedades italianas. Naturalmente, nada impede um clube de futebol que não seja membro da referida federação de recorrer, sem qualquer limite, a jogadores de futebol estrangeiros, mas deve sublinhar-se que unicamente a participação na Federação Italiana de Futebol permite que as associações entrem nos desafios para os campeonatos. Quando esta possibilidade não existe, o exercício de uma actividade desportiva do tipo profissional está praticamente excluído.

    No acórdão proferido no processo 36/74, Walrave, o Tribunal afirmou que, quando a actividade desportiva constitui uma actividade económica na acepção do artigo 2.o do Tratado, especialmente quando tem a natureza de uma prestação de trabalho assalariada ou de uma prestação remunerada de serviços, encontra-se, segundo os casos, abrangida pelo âmbito de aplicação dos artigos 48.o a 51.o ou 59.o a 66.o do Tratado. Estes preceitos, que põem em prática a regra geral do artigo 7.o do Tratado, proíbem toda e qualquer discriminação, em razão da nacionalidade, no exercício das actividades que eles abrangem (Colect. 1974, p. 595). No referido processo, a natureza de trabalho profissional que prevalece sobre o aspecto desportivo da relação entre o atleta e a sociedade era bem evidente, pois tratava-se de um tipo de prova de ciclismo na qual um dos participantes — os interessados no processo — detinha uma posição secundária e subordinada. No caso da equipa de futebol, não encontramos este aspecto de subordinação, diremos mesmo competitiva: todavia, mantém-se o aspecto de os jogadores terem uma qualificação profissional ou semiprofissional correspondente a uma relação de trabalho face à associação que dirige a equipa.

    Isto basta para responder à segunda questão colocada pelo juiz nacional e, por isso mesmo, igualmente à primeira questão, na medida em que tem interesse para a solução do processo submetido ao órgão jurisdicional requerente.

    No acórdão acima citado, o Tribunal reconheceu, no entanto, a existência de limites ao princípio geral aqui recordado. Com efeito, afirmou que a proibição geral do artigo 7.o, na medida em que é retomada, pelas normas relativas à livre circulação dos trabalhadores e dos serviços, não diz respeito à composição de equipas desportivas, «em especial» sob a forma de equipas nacionais, uma vez que (separamo-nos aqui da tradução italiana pouco fiel à parte dispositiva do acórdão) «a formação destas equipas é uma questão que interessa unicamente ao desporto e, como tal, estranha à actividade económica».

    Ainda que esta restrição ao princípio geral seja de interpretação restrita, no entanto, é preciso observar que o Tribunal mostrou claramente que ela pretendia atribuir uma natureza meramente exemplificativa ao caso concreto que citou das equipas que representam um país nas competições internacionais. Poderíamos pensar igualmente, a título de exemplo, na própria composição das equipas desportivas em competição para o campeonato nacional. Nesta hipótese, não pensamos que seja de excluir que razões de ordem exclusivamente desportiva possam justificar a imposição de quaisquer limites ao recrutamento de jogadores estrangeiros, ou pelo menos à sua participação nas competições que contam para o campeonato, a fim de garantir que a equipa vencedora tenha um carácter representativo do Estado do qual será a equipa campeã. Uma exigência neste sentido resulta ainda mais evidente se se considerar que a equipa vencedora do campeonato nacional está, habitualmente, destinada a representar o seu país nas competições internacionais.

    Naturalmente, o mesmo se verifica de igual modo a nível regional de resto, como o próprio agente da Comissão reconheceu na audiência, quando se quer atribuir às equipas desportivas locais um carácter efectivamente representativo da zona ou da região. Nesta segunda hipótese, os limites deverão dizer naturalmente respeito não só aos estrangeiros, mas também aos próprios nacionais que pertencem a regiões diferentes daquela que é representada pela equipa local. Ainda que, em geral, dentro destes limites, o critério de recrutamento regional exclusivo seja deixado à discrição das associações desportivas, como um dos critérios da livre escolha da organização, se o limite corresponde unicamente à exclusão dos cidadãos estrangeiros, será necessária uma justificação baseada em determinadas exigências de carácter desportivo ou competitivo para fazer uma excepção à aplicação plena das normas relativas à livre circulação dos trabalhadores e à livre prestação de serviços.

    Por todas estas razões, consideramos que mesmo as actividades desportivas de natureza económica podem, todavia, escapar à aplicação das normas fundamentais antidiscriminàtórias do Tratado, sempre que as restrições baseadas na nacionalidade do jogador tenham fins puramente desportivos e sejam adequadas e proporcionais ao objectivo prosseguido.

    Com efeito, o acórdão Walrave tem um duplo significado. O Tribunal recordou, judiciosamente, o valor da actividade desportiva enquanto tal e a necessidade do seu respeito: ao mesmo tempo, reafirmou o princípio geral da livre circulação daqueles que, no domínio desportivo, pretendem exercer uma actividade primordialmente económica com carácter profissional.

    O agente da Comissão chamou a atenção do Tribunal para a necessidade da proibição de discriminações nacionais operar não só na altura da contratação, mas também no momento posterior da participação nas competições. Observamos, no entanto, que não seria certamente possível conceber, por força do Tratado e independentemente de acordos contratuais, um direito dos jogadores profissionais estrangeiros contratados por uma empresa de futebol de outro Estado-membro a participarem activamente nas competições do campeonato. Tal como não existe um direito à celebração do contrato, mas apenas um direito a que não sejam levantados impedimentos jurídicos, mesmo por particulares, à contratação de jogadores estrangeiros de futebol, se uma ou outra associação o pretende fazer, também não se pode conceber, no âmbito do sistema comunitário, um direito do jogador (ainda que estrangeiro) a participar nas competições, contrariando a vontade daqueles que dirigem a actividade da associação da qual depende. O jogador terá apenas direito a que, em razão da sua nacionalidade, não existam impedimentos jurídicos à sua participação nas competições: a não ser que tais impedimentos se justifiquem pelas exigências de natureza puramente desportiva que, como tínhamos observado, poderiam mesmo tornar possíveis restrições à sua própria contratação.

    Atentas estas precisões e reservas, consideramos poder responder à terceira questão colocada pelo giudice conciliatore de Rovigo referindo-nos à afirmação proferida pelo Tri bunal no acórdão Walrave, já mencionado acima, relativa à esfera de aplicação subjectiva dos artigos 7.o, 48.o e 59. o do Tratado. As proibições aí determinadas dizem respeito não só à acção das autoridades públicas, mas também às normas de outra natureza que se destinem a regular, de forma colectiva, o trabalho e as prestações de serviços; se assim não fosse, tal como o Tribunal o afirmou, a supressão entre os Estados-membros dos obstáculos à livre circulação das pessoas e dos serviços estaria comprometida se, além das restrições de origem estadual, não se eliminassem igualmente as resultantes do exercício da sua autonomia jurídica pelas associações ou organismos não dependentes do direito público.

    Também a quarta questão encontra uma resposta clara na vossa anterior jurisprudência que determinou que a proibição de toda e qualquer discriminação baseada na nacionalidade constitui uma regra directamente aplicável, depois de expirado o período transitório, quer em matéria de livre circulação dos trabalhadores quer em matéria de livre circulação dos serviços.

    Em contrapartida, não se nos afigura possível seguir o advogado do recorrente no processo principal, quando convida o Tribunal a afirmar que, numa situação do tipo daquela a que o giudice conciliatore de Rovigo se refere, as autoridades nacionais seriam co-responsáveis pela existência de uma regulamentação privada do tipo da fixada no Regulamento Orgânico da Federação Italiana de Futebol, que, indevidamente, limita os direitos que os jogadores estrangeiros podem retirar das normas do Tratado CEE directamente aplicáveis. Nós excluímos, em princípio, que o Estado possa ser responsabilizado pelas actividades praticadas no seu território pelos particulares no âmbito da autonomia contratual, apenas pelo facto de estes terem adoptado disposições contrárias às normas comunitárias directamente aplicáveis.

    Se se tratasse de um organismo que, exercendo a sua actividade no sector privado, estivesse sujeito na sua acção a um controlo de fundo da parte das autoridades administrativas (como pode acontecer, por exemplo, em matéria de actividades bancárias e seguros), poder-se-ia, eventualmente, conceber uma responsabilidade do Estado com base numa abstenção negligente dos seus órgãos. Porém, na óptica que aqui nos interessa, o encargo do Estado consistia e consiste, unicamente, em afirmar a possibilidade de os particulares — as associações desportivas — contratarem trabalhadores estrangeiros, recusando-se a reconhecerem juridicamente uma cláusula de conteúdo contrário inserida na regulamentação colectiva da matéria.

    Isto é suficiente para salvaguardar o direito que o Tratado atribui aos jogadores estrangeiros e que consiste, como afirmámos, não no direito de ser contratado, pois não lhe corresponderia qualquer obrigação da associação, mas simplesmente na possibilidade de o contrato ser preservado. Assim, voltando ao caso concreto, a Associação de Futebol de Rovigo não poderia ter-se subtraído à sua obrigação para com o Sr. Donà invocando uma impossibilidade jurídica, no caso em que, com base nos critérios atrás referidos, a cláusula invocada do regulamento seria ilegal e, portanto, inválida.

    Portanto, acrescentemos que, num sector privado no qual o direito comunitário opera directamente, não vislumbramos que lugar haveria para uma intervenção das autoridades nacionais, senão através dos órgãos jurisdicionais. Tratando-se de uma actividade dos particulares, inteiramente situada no domínio do direito privado, dificilmente se poderia conceber uma intervenção das autoridades administrativas. Por outro lado, uma acção normativa interna mais não faria do que repetir os imperativos comunitários que, em si, são já directamente aplicáveis. O pedido do advogado do autor, segundo o qual os governos nacionais deveriam agir de forma a impor aos seus nacionais o respeito das normas comunitárias em causa no caso sub judice, poderia, pois, ser contrário ao princípio, afirmado pelo Tribunal e, de resto, expressamente, retomado pelo Tribunal Constitucional italiano no acórdão n.o 232 de 1975, nos termos do qual a adopção de normas internas que retomassem, sob a forma de acto normativo nacional, o conteúdo de normas comunitárias directamente aplicáveis seriam incompatíveis com o direito comunitário, uma vez que poderiam criar equívocos perigosos quanto à natureza do direito em vigor e provocar distorções no funcionamento dos mecanismos de controlo jurisdicional previstos no Tratado.

    Caso os limites impostos pelo Tratado à autonomia contratual dos particulares fossem insuficientes para permitir o normal funcionamento do sistema comunitário e caso existisse um interesse público da Comunidade numa regulamentação positivamente uniforme de uma matéria que se situa fora da esfera sujeita ao poder normativo comunitário e os Estados-membros, ou alguns dos Estados-membros, deixam à autonomia privada, a Comissão poderia, dentro dos limites e nas condições previstas nos artigos 100.o e seguintes do Tratado, promover a harmonização e a aproximação das legislações nacionais, mesmo no sentido, se necessário fosse, de sujeitar essa matéria e o comportamento dos particulares neste domínio ao controlo das autoridades administrativas. Esta apreciação cabe, obviamente, à Comissão e ao Conselho, mas não caberá, certamente, ao Tribunal no quadro do presente processo.

    Finalmente, não pensamos que o presente litígio constitua uma ocasião adequada para considerar a questão, evocada pelo agente da Comissão, relativa ao direito, que assiste aos trabalhadores migrantes e aos membros da sua família de não lhes serem opostos, em razão da sua nacionalidade, obstáculos à sua participação em associações desportivas do país de acolhimento, tendo em vista o exercício de actividades de natureza recreativa. A solução deste problema não é minimamente prejudicada, se limitarmos à actividade desportiva profissional de natureza económica o princípio afirmado pelo Tribunal no considerando n.o 1 da parte dispositiva do acórdão Walrave. Com efeito, esta questão diz respeito não à livre circulação do desportista profissional, que só é garantida pelo direito comunitário na medida em que se trate de uma actividade económica, mas às condições de vida do emigrante e dos membros da sua família no país de acolhimento. Sob este aspecto, que o Tribunal não teve ocasião de ponderar no processo Walrave, é concebível que actividades desprovidas de carácter económico possam também ser tomadas em consideração no âmbito de aplicação da proibição das discriminações em razão da nacionalidade.

    Todavia, esta questão diz respeito à interpretação de textos normativos, em especial o Regulamento n.o 1612/68, que são totalmente estranhos às questões colocadas no caso sub judice pelo juiz nacional.

    Por estas razões, propomos que p Tribunal responda às questões colocadas pelo giudice conciliatore de Rovigo confirmando substancialmente os princípios já afirmados, no acórdão proferido no processo 36/74 (Walrave), esclarecendo, além disso, que as actividades desportivas que apresentam uma natureza económica podem escapar à aplicação da proibição de discriminações, desde que as restrições baseadas na nacionalidade do jogador obedeçam a exigências e prossigam finalidades puramente desportivas, na condição de estas restrições serem objectivamente adequadas e proporcionais ao objectivo prosseguido.


    ( *1 ) Língua original: italiano.

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