Choose the experimental features you want to try

This document is an excerpt from the EUR-Lex website

Document 52014IE0926

    Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre a Apropriação de terras agrícolas — Sinal de alarme para a Europa e ameaça para a agricultura familiar (parecer de iniciativa)

    JO C 242 de 23.7.2015, p. 15–23 (BG, ES, CS, DA, DE, ET, EL, EN, FR, HR, IT, LV, LT, HU, MT, NL, PL, PT, RO, SK, SL, FI, SV)

    23.7.2015   

    PT

    Jornal Oficial da União Europeia

    C 242/15


    Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre a Apropriação de terras agrícolas — Sinal de alarme para a Europa e ameaça para a agricultura familiar

    (parecer de iniciativa)

    (2015/C 242/03)

    Relator:

    Kaul NURM

    Na reunião plenária de 20 de janeiro de 2014, o Comité Económico e Social Europeu decidiu, nos termos do artigo 29.o, n.o 2, do Regimento, elaborar um parecer de iniciativa sobre o tema

    Apropriação de terras agrícolas — Sinal de alarme para a Europa e ameaça para a agricultura familiar (parecer de iniciativa).

    Foi incumbida da preparação dos correspondentes trabalhos a Secção Especializada de Agricultura, Desenvolvimento Rural e Ambiente, que emitiu parecer em 8 de janeiro de 2015.

    Na 504.a reunião plenária de 21 e 22 de janeiro de 2015 (sessão de 21 de janeiro), o Comité Económico e Social Europeu adotou, por 209 votos a favor, 5 votos contra e 9 abstenções, o seguinte parecer:

    1.   Conclusões e recomendações

    1.1.

    O presente parecer aborda o problema, a nível mundial e europeu, da apropriação de terras agrícolas (land grabbing), incluindo a concentração de propriedades fundiárias (land concentration), que constitui uma ameaça para a agricultura familiar.

    1.2.

    As terras agrícolas estão na base da produção alimentar e constituem, por isso, a condição essencial para garantir a segurança alimentar, em conformidade com o artigo 11.o do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, das Nações Unidas e o artigo 25.o da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

    1.3.

    Os seguintes fatores desencadeiam a apropriação de terras agrícolas: um mundo cada vez mais globalizado e os princípios da livre circulação de capitais que lhe são inerentes, o aumento da população e da urbanização, o aumento contínuo da procura de produtos alimentares, bioenergia e matérias-primas naturais, alguns aspetos negativos da política ambiental e agrícola e a possibilidade de especulação fundiária face à valorização dos terrenos agrícolas.

    1.4.

    O Comité Económico e Social Europeu (CESE) constata a ameaça grave que representa a elevada concentração de terras nas mãos de grandes investidores não agrícolas e das grandes explorações agrícolas, que também ocorre em algumas partes da União Europeia. Esta situação é contrária ao modelo europeu de uma agricultura sustentável, multifuncional e caracterizada por explorações agrícolas familiares e põe em risco a consecução dos objetivos formulados nos artigos 39.o e 191.o do TFUE. É igualmente contrária ao objetivo estrutural agrícola de dispersar amplamente a propriedade, causa danos irreversíveis nas estruturas económicas das zonas rurais e cria uma agricultura industrializada que não é desejada pela sociedade.

    1.5.

    Como consequência da agricultura industrial, agravam-se os riscos em matéria de segurança dos alimentos e degradação do solo e diminui a segurança alimentar.

    1.6.

    Para além da produção de bens alimentares, a exploração agrícola familiar desempenha ainda outras funções ecológicas importantes para a sociedade, algo que o modelo agrícola industrial dominado por grandes empresas não pode oferecer. Para que a agricultura familiar possa constituir uma alternativa viável à agricultura industrial e à apropriação de terras agrícolas — uma das suas manifestações —, é necessário aplicar medidas adequadas que a protejam.

    1.7.

    A terra não é uma mercadoria convencional que se possa simplesmente fabricar em maiores quantidades. A terra é um bem limitado, pelo que não se lhe devem aplicar as regras habituais do mercado. As relações de propriedade no que respeita à terra e o uso do solo devem ser alvo de regulamentação mais estrita. Dados os desenvolvimentos indesejados verificados, o CESE considera necessário formular um modelo unívoco para as estruturas agrícolas, tanto a nível dos Estados-Membros como da UE, o que terá consequências para a utilização das terras e o direito fundiário.

    1.8.

    A regulamentação do mercado das terras agrícolas varia muito entre os Estados-Membros. Se alguns países impõem restrições, outros há que não, gerando disparidades entre os Estados-Membros.

    1.9.

    Embora a política fundiária seja da competência dos Estados-Membros, está sujeita a determinadas restrições com base no princípio da livre circulação de capitais e mercadorias consagrado nos Tratados. O CESE exorta, por isso, o Parlamento Europeu e o Conselho a encetarem um debate conjunto sobre se também é de garantir o princípio da livre circulação de capitais no que se refere à venda e aquisição de superfícies e explorações agrícolas, em particular no que diz respeito a países terceiros mas também no território da UE.

    1.10.

    O CESE exorta os Estados-Membros a orientarem a utilização das terras de modo a explorar todas as possibilidades disponíveis — como impostos, ajudas e fundos da PAC —, a fim de preservar o modelo agrícola baseado nas explorações familiares em todo o território da UE.

    1.11.

    Há que dar aos Estados-Membros a possibilidade de imporem limites máximos para a aquisição de terrenos agrícolas e de criarem um sistema de direitos de preferência para quem está abaixo desse limite.

    1.12.

    O Comité exorta a Comissão Europeia e o Parlamento a, com base num procedimento uniforme, realizarem estudos exaustivos sobre o impacto das medidas políticas aplicadas nos diferentes países (apoios e restrições) relativas à concentração da superfície agrícola e da produção agrícola. Importa igualmente analisar os riscos dessa concentração para a segurança alimentar, o emprego, o ambiente, a qualidade do solo e o desenvolvimento rural.

    1.13.

    O CESE insta todos os Estados-Membros a implementarem orientações facultativas sobre governação responsável em matéria de propriedade das terras, pescas e florestas (VGGT) e a elaborarem um relatório para a Comissão Europeia e a FAO sobre o uso e aplicação das mesmas nas respetivas políticas de governação fundiária.

    1.14.

    Cabe adotar uma política que não leve à concentração da propriedade mas a uma transição das grandes explorações agrícolas que utilizam meios industriais para unidades de produção de menor dimensão, reforçando o modelo da exploração agrícola familiar, o que também garantiria a autossuficiência alimentar.

    1.15.

    No futuro, o CESE continuará a acompanhar atentamente a evolução do fenómeno da concentração da propriedade fundiária, analisando o seu impacto e participando na elaboração de propostas para o conter.

    2.   A apropriação de terras agrícolas a nível mundial — contexto geral

    2.1.

    O presente parecer aborda os problemas da apropriação de terras agrícolas (land grabbing) e da concentração de propriedades fundiárias (land concentration), cujas consequências constituem uma ameaça para a existência da agricultura familiar.

    2.2.

    Não há uma definição única e internacionalmente reconhecida do conceito de «apropriação de terras agrícolas». Em geral, é entendido como o processo de aquisição de superfícies agrícolas em grande escala sem a consulta prévia nem o consentimento da população local, limitando, em última análise, a sua capacidade para gerir autonomamente uma exploração agrícola, produzir bens alimentares e garantir a segurança alimentar. Ao proprietário assiste também o direito de utilizar os recursos (terra, água, floresta) e de obter lucros com a sua utilização. Um possível efeito colateral é a ocorrência de situações de abandono da utilização de terras até então para fins agrícolas a favor de outras atividades.

    2.3.

    Os terrenos agrícolas e o acesso à água são a base da produção alimentar. O grau de autossuficiência alimentar dos países depende de vários fatores, mas as condições essenciais são a existência de terras agrícolas suficientes e o direito dos Estados a regular a propriedade e a utilização das terras agrícolas.

    2.4.

    Em média, há 2  000 m2 de terras agrícolas por cada habitante do planeta. As terras adequadas para a agricultura estão repartidas pelos habitantes de forma muito diferente nos vários países do mundo, razão por que alguns destes procuram aumentar essa proporção através da aquisição de terrenos noutros países para a produção agrícola.

    2.5.

    Os seguintes fatores favorecem a apropriação de terras:

    2.5.1.

    globalização crescente e princípios da livre circulação de capitais que lhe são inerentes;

    2.5.2.

    aumento da população e da urbanização;

    2.5.3.

    aumento contínuo da procura de produtos alimentares;

    2.5.4.

    procura crescente de bioenergia;

    2.5.5.

    procura crescente de matérias-primas naturais (fibra e outros produtos de madeira);

    2.5.6.

    aspetos negativos da política agrícola e ambiental;

    2.5.7.

    possibilidade de especulação sobre os produtos alimentares no mercado internacional ou, pelo menos, europeu;

    2.5.8.

    possibilidade de especulação fundiária face à valorização dos terrenos agrícolas e a futuras ajudas;

    2.5.9.

    esforço dos grandes investidores para investir o capital libertado pela crise financeira de 2008 em terras agrícolas, como um investimento mais seguro.

    2.6.

    A apropriação de superfícies agrícolas ocorre em grande escala em África, na América do Sul e noutras regiões, incluindo nas regiões da Europa em que, comparando com os países desenvolvidos e a média mundial, a terra é relativamente barata.

    2.7.

    É difícil fornecer dados fiáveis sobre a dimensão da apropriação de terras agrícolas, pois nem todas as transações fundiárias são registadas, além de nem sempre primarem pela transparência quando se realizam entre pessoas coletivas, como é o caso, por exemplo, das aquisições de terras por filiais e empresas parceiras. No entanto, algumas ONG e institutos de investigação realizaram estudos sobre o assunto. Constatou-se então que, segundo estimativas do Banco Mundial, 45 milhões de hectares foram objeto de apropriação de terras agrícolas em todo o mundo entre 2008 e 2009. Um relatório da iniciativa Land Matrix (1) mostra que nos países em desenvolvimento foi transacionada uma superfície total de 83,2 milhões de hectares de terras agrícolas no âmbito de 1  217 operações em grande escala, correspondendo a 1,7 % da totalidade de terras aráveis no mundo.

    2.8.

    A apropriação de terras agrícolas mais acentuada ocorreu em África (56,2 milhões de hectares, ou seja, 4,8 % dos terrenos agrícolas do continente), seguida da Ásia (17,7 milhões de hectares) e da América Latina (7 milhões de hectares). As terras mais cobiçadas distinguem-se invariavelmente pelo seu bom acesso e localização, por disporem de abastecimento de água e serem adequadas ao cultivo de cereais e produtos hortícolas, para além de prometerem rendimentos elevados. Os investidores interessam-se igualmente por zonas florestais. A maioria deles provém da China, da Índia, da Coreia, do Egito, dos Estados do Golfo, do Brasil e da África do Sul, embora também dos EUA e dos Estados-Membros da UE. Os países onde o preço da terra é elevado não atraem os compradores, verificando-se antes a concentração da propriedade fundiária em virtude do açambarcamento das pequenas explorações pelos grandes latifundiários.

    2.9.

    Segundo o relatório da Fundação Madariaga (2), de 10 de julho de 2013, determinadas políticas da UE têm impacto direto ou indireto na apropriação de terras agrícolas na UE e a nível mundial, nomeadamente em domínios como a bioeconomia, o comércio e a agricultura. A política fundiária de liberalização e o princípio geralmente reconhecido da livre circulação de capitais e mercadorias também contribuem para este fenómeno.

    2.10.

    São de destacar, em particular, o apelo da UE ao aumento da quota de biocombustíveis e a possibilidade de participar no comércio de açúcar com isenção de direitos aduaneiros e de quotas enquanto fatores que motivam alguns projetos relacionados com a apropriação de terras na Ásia e em África.

    3.   Apropriação de terras agrícolas e concentração de propriedades fundiárias na Europa

    3.1.

    A Europa é parte integrante dos processos mundiais, pelo que também está a assistir a estes fenómenos, em algumas regiões de modo evidente enquanto noutras de forma mais inconspícua. A apropriação de terras agrícolas verifica-se sobretudo nos países da Europa Central e Oriental.

    3.2.

    Para além do recurso ao método convencional de aquisição de terras, também é possível assumir o controlo de superfícies agrícolas através da aquisição de empresas que possuem ou arrendam terras ou da tentativa de adquirir participações nessas empresas. Isto tem por consequência que a propriedade fundiária esteja cada vez mais concentrada num pequeno número de grandes explorações, assistindo-se à emergência de uma agricultura industrializada em alguns países da Europa Central e Oriental.

    3.3.

    Enquanto a superfície agrícola total diminui na Europa, também há uma concentração crescente da propriedade da terra em algumas grandes empresas. Um por cento das explorações controla 20 % das terras agrícolas e três por cento controlam 50 % das mesmas na União Europeia. Em contrapartida, 80 % das explorações controlam apenas 14,5 % das terras agrícolas.

    3.4.

    Na Europa há uma correlação entre o número decrescente de unidades de produção agrícola e a redução do número de pessoas empregadas na agricultura. Assim, por exemplo, entre 2005 e 2010 a diminuição no número de unidades de produção obteve a sua máxima expressão nos países da Europa Oriental, com destaque para os países bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia) e, em paralelo, a procura de mão de obra também decaiu mais fortemente na região (8,9 % por ano na Bulgária e na Roménia e 8,3 % por ano nos países bálticos). Na Irlanda e em Malta, por outro lado, o número de explorações agrícolas aumentou e com ele a procura de mão de obra na agricultura.

    3.5.

    Há essencialmente três categorias de investidores responsáveis pela aquisição de terras e a concentração da propriedade fundiária: investidores de países terceiros, da UE e do próprio país.

    3.6.

    O relatório Concentration, land grabbing and people’s struggles in Europe [Concentração de propriedades, apropriação de terras agrícolas e lutas populares na Europa] (3), publicado em abril de 2013 pelo movimento Via Campesina e a rede Hands off the Land, apresenta a panorâmica mais aprofundada sobre a concentração da propriedade fundiária na Europa e na União Europeia. De acordo com ele, está atualmente em curso na União Europeia um processo insidioso de apropriação de terras agrícolas e concentração da propriedade fundiária, o que tem um impacto nos direitos humanos, em particular no direito a uma alimentação suficiente. A apropriação de terras agrícolas teve a sua maior extensão na Hungria e na Roménia, embora também seja observável noutros países da Europa Central e Oriental.

    3.6.1.

    Segundo dados provenientes de várias fontes, neste momento até 10 % das terras agrícolas da Roménia estão nas mãos de investidores de países terceiros, enquanto 20 a 30 % são controladas por investidores da União Europeia. Através de contratos secretos, um milhão de hectares de terreno na Hungria foi adquirido com capitais provenientes em larga medida dos Estados-Membros da UE. Embora até maio de 2016 a aquisição de terra na Polónia esteja vedada a não nacionais desse país, sabe-se que há empresas estrangeiras, sobretudo dos Estados-Membros, que já adquiriram duzentos mil hectares de terra. Na região francesa de Bordéus, cerca de cem explorações vitícolas foram compradas por investidores chineses. Após a reunificação da Alemanha, as cooperativas agrícolas no território da antiga RDA dissolveram-se e foram criadas tanto explorações familiares como pessoas coletivas. Desde então, há cada vez mais indícios de que as pessoas coletivas são particularmente vulneráveis a investidores e financiadores não agrícolas.

    3.7.

    Os exemplos seguintes permitem dar uma ideia da magnitude desta concentração por parte das empresas: na Roménia, a maior empresa agrícola explora cerca de 65 mil hectares de terra, na Alemanha, a maior exploração tem 38 mil hectares. A maior exploração leiteira na Estónia tem 2  200 vacas, prevendo-se que o número de cabeças de gado venha a aumentar para 3  300.

    3.8.

    Uma razão para a concentração fundiária na Europa são os pagamentos únicos por superfície, no âmbito do primeiro pilar da PAC, pois geram um maior efeito de alavanca para os grandes produtores, colocando-os em vantagem e permitindo libertar mais capital para a aquisição de terras. Nos países da UE-15 utiliza-se principalmente o pagamento único por exploração e nos da UE-12 o pagamento único por superfície. Ao mesmo tempo, a concentração fundiária progride consideravelmente mais devagar na UE-15 do que na UE-12.

    3.9.

    A concentração dos terrenos agrícolas leva por seu turno a uma concentração dos subsídios da PAC. Em 2009, 2 % das explorações agrícolas familiares obtiveram 32 % dos fundos da PAC. Há diferenças entre os países da Europa Ocidental e os da Europa Oriental. Por exemplo, em 2009, 66,6 % das ajudas contemplaram grandes explorações agrícolas, que na Bulgária representam um total de 2,8 % de todas as unidades. Para a Estónia, os dados correspondentes são 3 % e 53 %, na Dinamarca 3 % e 25 % e na Áustria 5,5 % e 25 %.

    4.   Consequências da apropriação das superfícies agrícolas

    4.1.

    Nos países onde ocorre a concentração da propriedade fundiária e o açambarcamento das terras, resulta o declínio do modelo agrícola europeu caracterizado pelas explorações familiares a favor da produção agrícola industrial em larga escala.

    4.2.

    Os dados disponíveis permitem concluir que as matérias-primas vegetais e os produtos alimentares cultivados nas terras adquiridas são exportados principalmente para os países de origem dos investimentos. Apenas uma pequena fração desses produtos se destina ao mercado nacional. Quanto mais elevado o grau de apropriação de terras agrícolas, mais baixo o nível de segurança alimentar do país em causa.

    4.3.

    A apropriação de terras agrícolas e a concentração da propriedade fundiária conduzem à expulsão das empresas agrícolas que até então exploravam os terrenos, o que por sua vez se reflete na perda de oportunidades de trabalho e de vida nas zonas rurais. Este processo tende a ser irreversível, pois é muito difícil para os pequenos produtores e as novas explorações (incluindo os jovens agricultores) adquirir terras e consolidar uma posição neste setor económico na ausência de capital suficiente.

    4.4.

    Não obstante os esforços do Banco Mundial para destacar a dimensão positiva da apropriação de terras agrícolas — incluindo maior eficiência, inovação e desenvolvimento —, são numerosas as organizações e os movimentos da sociedade civil que criticam este fenómeno. No seu entender, origina danos ambientais, degradação dos solos e perda de oportunidades de vida nas zonas rurais e, em detrimento de uma agricultura sustentável, promove o desenvolvimento de uma indústria agrícola de larga escala assente na monocultura.

    4.5.

    A apropriação de terras agrícolas tem um impacto negativo no desenvolvimento das comunidades rurais. O aspeto negativo da agricultura em grandes superfícies é o aumento do desemprego nas zonas rurais, o que acarreta custos sociais.

    4.6.

    Willis Peterson, investigador na Universidade de Minnesota, assevera inclusive que as pequenas explorações familiares são pelo menos tão eficazes quanto as grandes empresas agrícolas. A noção de que a concentração da propriedade fundiária se traduz em maiores rendimentos também não é sustentada pelos factos (4). Os dados da FAO mostram o contrário, uma vez que mais de 90 % das explorações agrícolas são unidades familiares que exploram 75 % das superfícies agrícolas e produzem 80 % dos produtos alimentares a nível mundial.

    4.7.

    Temos um exemplo que alerta para as consequências do açambarcamento das terras na Escócia, onde há duzentos anos se dividiu uma zona equivalente à área dos Países Baixos em unidades de oito mil a vinte mil hectares, que foram vendidas a investidores. Nessa região viviam entre um milhão e meio e dois milhões de pessoas. Até agora, essa região encontra-se despovoada devido à agricultura industrial. O Parlamento escocês está atualmente a trabalhar no sentido de a repovoar, o que é consideravelmente mais dispendioso do que se tivessem mantido o modelo agrícola baseado em pequenas explorações.

    5.   Importância da agricultura familiar para a sociedade e a segurança alimentar

    5.1.

    O CESE regozijou-se com o facto de as Nações Unidas terem designado 2014 Ano Internacional da Agricultura Familiar. Em diversas ocasiões, o Comité contribuiu para salientar a importância estratégica da agricultura familiar para a segurança alimentar e o desenvolvimento do setor rural, bem como para encorajar o debate social sobre a matéria.

    5.2.

    Uma vez que não há ainda a nível internacional ou da União Europeia uma definição geralmente reconhecida de exploração familiar, o CESE exorta a Comissão Europeia, o Parlamento e o Conselho a definirem este conceito. O Comité propõe que, para poder ser considerada exploração familiar, uma exploração agrícola deva satisfazer os seguintes critérios:

    5.2.1.

    As decisões operacionais são tomadas pelos membros da família.

    5.2.2.

    A parte substancial dos trabalhos na quinta é realizada por membros da família.

    5.2.3.

    Tanto a propriedade como a parcela maior do capital pertencem à família ou o terreno está nas mãos de uma comunidade local.

    5.2.4.

    A família também detém o controlo da gestão da exploração.

    5.2.5.

    A exploração é transmitida de geração em geração no seio da família.

    5.2.6.

    A família vive num terreno pertencente à exploração ou situado na sua proximidade.

    5.3.

    O modo de vida rural e o cultivo da terra de base familiar é social e ecologicamente apropriado, para além de, na maioria das regiões do mundo, constituir uma tradição milenar. Desde que exista segurança jurídica e fiabilidade política, em todo o mundo a agricultura familiar se tem mostrado tão estável quanto outros sistemas agrícolas, se não mais.

    5.4.

    Para além da produção de bens alimentares, a exploração agrícola familiar desempenha ainda outras funções úteis para a sociedade, algo que o modelo agrícola industrial dominado por grandes empresas não pode oferecer.

    5.4.1.

    A agricultura familiar, tal como as cooperativas agrícolas, desempenha um papel ativo no tecido económico das zonas rurais, e a sua estabilidade e flexibilidade dependem em grande medida da participação em organizações cooperativas e profissionais. As explorações agrícolas preservam o património cultural e o modo de vida rural, densificando a vida social do espaço rural, gerando produtos de alto valor, utilizando os recursos naturais de modo sustentável e velando por uma ampla repartição da propriedade nas zonas rurais.

    5.4.2.

    As explorações familiares não se queixam de falta de emprego, criam-no elas próprias e estão abertas à inovação.

    5.4.3.

    A quinta familiar oferece às crianças um ambiente ideal que permite a transmissão de conhecimentos necessários e de competências de geração para geração, assegurando assim a continuidade destas explorações.

    5.4.4.

    A produção agrícola no âmbito das explorações familiares distingue-se pela sua diversidade e descentralização, o que assegura a concorrência no mercado e atenua os riscos decorrentes da concentração das propriedades fundiárias.

    5.4.5.

    Do ponto de vista da sobrevivência da humanidade, o grande número de explorações constitui um valor por si só, pois garante competências e conhecimentos no domínio da produção alimentar a um maior número de pessoas e, por conseguinte, cria as condições básicas para que os conhecimentos e competências necessários à sobrevivência estejam disponíveis, mesmo em tempos de crise. Para que a agricultura familiar possa constituir uma alternativa viável à agricultura industrial e à apropriação de terras agrícolas, como uma das suas manifestações, é necessário aplicar medidas adequadas que a protejam, designadamente medidas de apoio às organizações de produtores e medidas de combate às práticas comerciais desleais. As ações políticas a nível nacional e da UE podem contribuir para tornar a agricultura familiar mais sustentável e resistente (5).

    6.   Possibilidades de regulamentação do mercado das propriedades agrícolas para a prevenção da apropriação e concentração de terras agrícolas

    6.1.

    A terra é a base da produção alimentar. O artigo 11.o do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (6) das Nações Unidas, bem como o artigo 25.o da Declaração Universal dos Direitos Humanos (7), obrigam os Estados a reconhecerem o direito de todas as pessoas que residam no seu território a uma alimentação suficiente e segura e estão diretamente ligados ao acesso aos solos.

    6.2.

    A escassez de petróleo e gás na UE acarreta riscos para a segurança alimentar, cabendo, por isso, manter a agricultura sustentável e a agricultura familiar.

    6.3.

    A terra não é uma mercadoria convencional que se possa simplesmente fabricar em maiores quantidades. A terra é um bem limitado, pelo que não se lhe devem aplicar as regras habituais do mercado. O CESE está convicto da necessidade de conduzir, nos Estados-Membros e na UE, um debate aprofundado sobre um modelo unívoco para as estruturas agrícolas. Só assim se podem e devem tirar as devidas consequências políticas e tomar medidas. Um exemplo é a avaliação jurídica da aquisição de ações de empresas agrícolas (os chamados «share deals»). As relações de propriedade no que respeita à terra e o uso do solo devem ser alvo de regulamentação mais estrita.

    6.4.

    Organizações de diferentes quadrantes políticos debruçaram-se sobre a regulamentação da propriedade fundiária e a elaboração de medidas políticas adequadas e destacaram a necessidade absoluta de uma boa governação neste domínio. A FAO elaborou orientações voluntárias sobre o tema — The Voluntary Guidelines of the Responsible Governance of Tenure of Land, Fisheries and Forestry [Orientações voluntárias para uma governação responsável da propriedade da terra, pescas e florestas] (8) — visando a aplicação de direitos de utilização regulamentados e seguros que assegurem a igualdade de acesso aos recursos (terra, bancos de pesca, florestas) para reduzir a pobreza e a fome, promover o desenvolvimento sustentável e enriquecer o meio ambiente. A CNUCED, a FAO, o FIDA e o Banco Mundial elaboraram em conjunto princípios para um investimento agrícola responsável (9), que reconheça os direitos, os meios de subsistência e os recursos. A OCDE elaborou um quadro político para o investimento na agricultura (Policy Framework for Investment in Agriculture — PFIA) (10), que visa ajudar os Estados na definição de medidas políticas para atrair investimentos privados na agricultura.

    6.5.

    O CESE considera que as orientações da FAO/ONU relativas aos direitos de utilização da terra para os agricultores constituem um marco e apela à sua aplicação firme e rigorosa em todos os Estados. A opacidade dos direitos de propriedade é um indício de «má governação» e constitui um incentivo à apropriação de terras agrícolas.

    6.6.

    O documento (11) publicado em 2012 pelo consórcio Factor Markets examina as disposições jurídicas em matéria de compra e venda de terras nos Estados-Membros da UE e nos países candidatos. Depreende-se do estudo que há uma série de Estados-Membros que dispõem de regras próprias para impedir uma concentração fundiária forçada e a aquisição de terras por estrangeiros, mediante, por exemplo, a concessão de direitos de preferência. Em alguns países, todas as transações fundiárias envolvendo superfícies agrícolas requerem uma autorização oficial, independentemente do país de origem do comprador. Trata-se de uma prática corrente em países como a França, a Alemanha e a Suécia. Há ainda países (como a Hungria e a Lituânia) que fixaram um limite máximo para a área total de terrenos agrícolas detidos por um único proprietário.

    6.6.1.

    Em França, as transações fundiárias estão sob o controlo de autoridades regionais de ordenamento fundiário e territorial rural (Sociétés d’Aménagement Foncier et d’Etablissement Rural, SAFER), incumbidas de acompanhar os produtores agrícolas, com destaque para os jovens agricultores, na reestruturação das relações de propriedade e velar pela transparência do mercado de terrenos agrícolas.

    6.6.2.

    Na Suécia, a aquisição de terrenos em zonas escassamente povoadas está sujeita a uma autorização, cuja concessão leva em conta critérios relacionados com a formação e a experiência anterior do comprador, também lhe sendo por vezes exigido que resida no terreno adquirido. Neste país, as terras agrícolas só podem ser adquiridas por pessoas singulares.

    6.6.3.

    Na Lituânia, uma pessoa coletiva pode adquirir terra desde que pelo menos 50 % do seu rendimento global provenha da atividade agrícola. As pessoas singulares e coletivas de nacionalidade lituana podem possuir até quinhentos hectares de terra.

    6.6.4.

    Na Bélgica, em Itália e em França, os arrendatários de terrenos agrícolas têm direito de preferência em caso de venda.

    6.7.

    Como mostra este resumo, a regulamentação do mercado de terrenos agrícolas varia consideravelmente de um Estado-Membro para outro. Se alguns países impõem restrições, outros há que não, gerando disparidades entre os Estados-Membros. É, pois, nesse sentido que cabe entender a decisão do Parlamento búlgaro que, apesar das advertências da UE, prorrogou até 2020 uma moratória cessante em 22 de outubro de 2013 relativa à aquisição de terras agrícolas devido à ameaça direta que pesava sobre as superfícies agrícolas nacionais, tendo em conta que na Bulgária tanto os preços do terreno como o poder de compra dos agricultores são significativamente mais baixos do que nos países mais prósperos.

    6.8.

    Na análise do consórcio Factor Markets de 2012 (12), constata-se que a supremacia das grandes empresas agrícolas no mercado fundiário agrícola também afeta o funcionamento normal deste mercado. As grandes empresas que praticam a apropriação de terras tiram partido do seu poderio nos mercados fundiários agrícolas tanto a nível local como regional para influenciarem os preços dos terrenos e as condições aplicáveis no âmbito dos contratos de arrendamento.

    6.9.

    A política fundiária é da competência dos Estados-Membros, que podem impor restrições às transações quando está em jogo a segurança alimentar ou energética nacional ou quando houver um interesse público superior que as justifique. As restrições são autorizadas para evitar a especulação, preservar as tradições locais e velar por uma utilização apropriada das terras. Ao mesmo tempo, limitam o princípio estabelecido nos Tratados da livre circulação de mercadorias e de capitais. O CESE exorta, por isso, o Parlamento Europeu e o Conselho a debaterem a pertinência de garantir sempre o princípio da livre circulação de capitais no que se refere à venda e aquisição de superfícies e explorações agrícolas, sobretudo em relação aos países terceiros, mas também no território da UE. A este respeito, importa ter em conta que os preços das terras agrícolas e os rendimentos individuais divergem fortemente de um Estado-Membro para outro. Há que conseguir encontrar uma resposta para a questão de saber se a livre circulação de capitais e o mercado livre proporcionam a todos os cidadãos e pessoas coletivas igualdade de oportunidades em matéria de aquisição de terrenos.

    6.10.

    Para o CESE, na ótica da segurança alimentar e de outros objetivos legítimos com base num modelo agrícola sustentável, cabe dar aos Estados-Membros mais espaço de manobra para regulamentarem o mercado fundiário agrícola e imporem restrições nesse domínio. Ao mesmo tempo, o CESE insta todos os Estados-Membros a utilizarem todas as possibilidades de que dispõem para a elaboração de legislação. Em certos Estados-Membros há uma manifesta falta de objetivos políticos claros, ou há objetivos que tendem a ser discriminatórios.

    6.11.

    Se o Parlamento Europeu e o Conselho chegarem à conclusão de que se justificam restrições à circulação de capitais no interesse da segurança alimentar, haverá que deliberar sobre a questão também a nível internacional, visto que a livre circulação de capitais é assegurada por várias convenções internacionais.

    6.12.

    As opções jurídicas e políticas atualmente ao dispor da UE e dos Estados-Membros permitem influenciar a utilização dos solos através de subvenções ou taxas. Uma utilização expedita dos instrumentos da PAC e da política fundiária pode garantir que a produção agrícola também continua a ser viável e rentável para as pequenas explorações, o que, por sua vez, permitiria evitar a concentração fundiária.

    6.13.

    No âmbito da reforma da PAC, seria com certeza possível introduzir limites máximos e ajustar os pagamentos diretos por forma a os primeiros hectares serem alvo de uma ponderação mais elevada, bem como simplificar o pagamento dos subsídios ao investimento e das ajudas diretas para as pequenas empresas agrícolas. O CESE duvida, porém, que as restrições vigentes tenham um grande impacto em termos de evitar a concentração fundiária e que nos Estados-Membros com as maiores disparidades estruturais entre as explorações agrícolas e a intensidade da concentração fundiária se aproveitem suficientemente destas possibilidades. O CESE recomenda aos Estados-Membros que delas tirem máximo partido e exorta as instituições da União Europeia a introduzirem um mecanismo reforçado para a reafetação da ajuda.

    6.14.

    Dado que as terras agrícolas são um recurso natural limitado, a apropriação de terras agrícolas põe em risco a consecução dos objetivos formulados nos artigos 39.o e 191.o do TFUE. O CESE solicita, por conseguinte, à Comissão Europeia e ao Parlamento Europeu que se ocupem ativamente da governação do uso do solo.

    6.15.

    O CESE recomenda a imposição em todos os Estados-Membros da UE de um limite máximo para a aquisição de terras agrícolas, tanto para as pessoas singulares como para as pessoas coletivas — quem estivesse abaixo desse limite, deveria dispor do direito de preferência. As autoridades competentes só podem exercer o direito de preferência para agricultores que estejam abaixo desse limite.

    6.16.

    As comunidades locais deveriam estar envolvidas no processo de decisão relativo à utilização das terras, o que remete igualmente para a necessidade de lhes conceder mais direitos e oportunidades.

    6.17.

    No âmbito da utilização das terras agrícolas, a produção de bens alimentares deve ter primazia sobre a produção de biocombustíveis.

    6.18.

    Cabe adotar uma política que não leve a uma concentração da propriedade mas a uma transição da produção à escala industrial para unidades de produção de menor dimensão, o que também reforçaria a autossuficiência alimentar. Os Estados-Membros da UE deveriam dispor de organismos públicos que tivessem uma visão de conjunto da situação em matéria de propriedade e utilização de terras agrícolas. Para o efeito, as bases de dados públicas a nível nacional deveriam incluir informações não só sobre os proprietários dos terrenos mas também sobre os seus utilizadores. Tais dados poderiam permitir realizar as investigações necessárias e reagir às mudanças.

    6.19.

    O CESE incita a Comissão e o Parlamento Europeu a, com base num procedimento uniforme, realizarem estudos exaustivos sobre o impacto das medidas políticas e das restrições aplicadas nos diferentes Estados-Membros na concentração da propriedade fundiária. Importaria igualmente analisar os perigos dessa concentração para a segurança alimentar, o emprego, o ambiente e o desenvolvimento rural.

    6.20.

    O CESE insta todos os Estados-Membros a elaborarem um relatório para a Comissão Europeia e a FAO sobre o uso e aplicação das orientações facultativas sobre governação responsável em matéria de propriedade das terras, pescas e florestas (VGGT), adotadas pela FAO em 2012, nas respetivas políticas de governação fundiária. As VGGT têm alcance mundial (ponto 2.4) e, portanto, abarcam também a Europa. As VGGT instam os Estados a criarem plataformas multilaterais, com o envolvimento e a participação dos mais afetados, a fim de monitorizar a execução das orientações em linha com as suas políticas (13).

    6.21.

    No futuro, o CESE continuará a acompanhar atentamente a evolução do fenómeno da concentração da propriedade fundiária, analisando o seu impacto e participando na elaboração de propostas para o conter. De referir ainda que o FMAT (Fórum Mundial sobre o Acesso à Terra e Recursos Naturais) também é favorável à iniciativa e insta a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu a apoiarem esta atividade.

    Bruxelas, 21 de janeiro de 2015.

    O Presidente do Comité Económico e Social Europeu

    Henri MALOSSE


    (1)  http://www.landmatrix.org/en

    (2)  www.madariaga.org

    (3)  http://www.eurovia.org/IMG/pdf/Land_in_Europe.pdf

    (4)  http://familyfarmingahap.weebly.com/family-vs-corporate-farming.html

    (5)  http://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/note/join/2014/529047/IPOL-AGRI_NT(2014)529047_EN.pdf

    (6)  http://www.ohchr.org/en/professionalinterest/pages/cescr.aspx

    (7)  http://www.un.org/en/documents/udhr/index.shtml#a25

    (8)  http://www.fao.org/docrep/016/i2801e/i2801e.pdf

    (9)  http://unctad.org/en/Pages/DIAE/G-20/PRAI.aspx

    (10)  http://www.oecd.org/daf/inv/investment-policy/PFIA_April2013.pdf

    (11)  http://ageconsearch.umn.edu/bitstream/120249/2/FM_WP14CEPSonSalesMarketRegulations_D15.1_Final.pdf

    (12)  http://ageconsearch.umn.edu/bitstream/120249/2/FM_WP14CEPSonSalesMarketRegulations_D15.1_Final.pdf

    (13)  Ver ponto 26.2 das VGGT: http://www.fao.org/docrep/016/i2801e/i2801e.pdf


    Top