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Document 62016CJ0537

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 20 de março de 2018.
Garlsson Real Estate SA e o. contra Commissione Nazionale per le Società e la Borsa (Consob).
Reenvio prejudicial — Diretiva 2003/6/CE — Manipulação de mercado — Sanções — Legislação nacional que prevê uma sanção administrativa e uma sanção penal pelos mesmos factos — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 50.o — Princípio ne bis in idem — Natureza penal da sanção administrativa — Existência de uma mesma infração — Artigo 52.o, n.o 1 — Restrições ao princípio ne bis in idem — Requisitos.
Processo C-537/16.

Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

Processo C‑537/16

Garlsson Real Estate SA e o.

contra

Commissione Nazionale per le Società e la Borsa (Consob)

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Corte suprema di cassazione]

«Reenvio prejudicial — Diretiva 2003/6/CE — Manipulação de mercado — Sanções — Legislação nacional que prevê uma sanção administrativa e uma sanção penal pelos mesmos factos — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 50.o — Princípio ne bis in idem — Natureza penal da sanção administrativa — Existência de uma mesma infração — Artigo 52.o, n.o 1 — Restrições ao princípio ne bis in idem — Requisitos»

Sumário — Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 20 de março de 2018

  1. Direitos fundamentais—Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia—Âmbito de aplicação—Aplicação do direito da União—Regulamentação nacional que prevê sanções administrativas pecuniárias contra pessoas responsáveis por manipulações de mercado—Inclusão

    (Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 50.° e 51.°, n.o 1; Diretiva 2003/6 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 5.° e 14.°, n.o 1)

  2. Direitos fundamentais—Convenção Europeia dos Direitos do Homem—Instrumento não formalmente integrado na Ordem Jurídica da União

    (Artigo 6.o, n.o 3, TUE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 52.o, n.o 3)

  3. Direitos fundamentais—Princípio ne bis in idem—Requisitos de aplicação—Cúmulo de procedimentos e de sanções de natureza penal—Critérios de apreciação—Qualificação jurídica da infração no direito interno, natureza da infração e grau de severidade da sanção incorrida

    (Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 50.o)

  4. Direitos fundamentais—Princípio ne bis in idem—Requisitos de aplicação—Existência de uma mesma infração—Critério de apreciação—Identidade dos factos materiais

    (Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 50.o)

  5. Direitos fundamentais—Princípio ne bis in idem—Limitação—Regulamentação nacional que prevê o cúmulo de uma sanção administrativa de natureza penal e de uma sanção penal—Admissibilidade—Requisitos—Restrição que corresponde a um objetivo de interesse geral—Objetivo de proteção da integridade dos mercados financeiros da União e da confiança do público nos instrumentos financeiros—Inclusão

    (Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 50.° e 52.°, n.o 1)

  6. Direitos fundamentais—Princípio ne bis in idem—Limitação—Regulamentação nacional que prevê o cúmulo de uma sanção administrativa de natureza penal e de uma sanção penal—Admissibilidade—Requisitos—Respeito do princípio da proporcionalidade—Alcance

    (Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 49.°, n.o 3, 50.° e 52.°, n.o 1; Diretiva 2003/6 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 5.° e 14.°, n.o 1)

  7. Direitos fundamentais—Princípio ne bis in idem—Limitação—Regulamentação nacional que permite dar seguimento a um procedimento de sanção administrativa pecuniária de natureza penal contra uma pessoa por manipulações de mercado, tendo já sido objeto de uma condenação penal transitada em julgado, efetiva, proporcionada e dissuasiva pelos mesmos factos—Inadmissibilidade

    (Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 50.° e 52.°, n.o 1)

  8. Direitos fundamentais—Princípio ne bis in idem—Efeito direto

    (Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 50.o)

  1.  A título preliminar, há que recordar que, nos termos do artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2003/6, lido em conjugação com o artigo 5.o desta, os Estados‑Membros impõem, sem prejuízo do direito de aplicarem sanções penais, medidas ou sanções administrativas efetivas, proporcionadas e dissuasivas contra as pessoas responsáveis pela manipulação de mercado.

    Segundo as indicações que constam da decisão de reenvio, o artigo 187.o‑B do TUF foi adotado para transpor estas disposições da Diretiva 2003/6 para o direito italiano. Assim, o procedimento administrativo em causa no processo principal e a sanção administrativa pecuniária prevista neste artigo 187.o‑B aplicada a S. Ricucci constituem uma aplicação do direito da União na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta. Por conseguinte, devem nomeadamente respeitar o direito fundamental de não ser julgado ou punido penalmente mais do que uma vez pelo mesmo delito, garantido no artigo 50.o da Carta.

    (cf. n.os 22, 23)

  2.  V. texto da decisão.

    (cf. n.o 24)

  3.  No que diz respeito à apreciação da natureza penal dos procedimentos e das sanções como os que estão em causa no processo principal, há que recordar que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, são relevantes três critérios. O primeiro é a qualificação jurídica da infração no direito interno, o segundo, a própria natureza da infração, e o terceiro, o nível de severidade da sanção suscetível de ser aplicada ao interessado (v., neste sentido, Acórdãos de 5 de junho de 2012, Bonda, C‑489/10, EU:C:2012:319, n.o 37, e de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson, C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 35).

    Não obstante, a aplicação do artigo 50.o da Carta não se limita apenas aos procedimentos e sanções qualificados de «penais» pelo direito nacional, mas estende‑se — independentemente dessa qualificação — aos procedimentos e às sanções que devem ser considerados de natureza penal com base nos outros dois critérios indicados no referido n.o 28.

    No que se refere ao segundo critério, relativo à própria natureza da infração, este implica verificar se a sanção em causa prossegue, nomeadamente, uma finalidade repressiva (v. Acórdão de 5 de junho de 2012, Bonda, C‑489/10, EU:C:2012:319, n.o 39). Daqui decorre que uma sanção com finalidade repressiva tem natureza penal na aceção do artigo 50.o da Carta e que a simples circunstância de prosseguir também uma finalidade preventiva não é suscetível de lhe retirar a sua qualificação de sanção penal. Em contrapartida, uma medida que se limita a reparar o prejuízo causado pela infração em causa não tem natureza penal.

    (cf. n.os 28, 32, 33)

  4.  Segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, o critério relevante para apreciar a existência de uma mesma infração é o da identidade dos factos materiais, entendidos no sentido da existência de um conjunto de circunstâncias concretas indissociavelmente ligadas entre si que levaram à absolvição ou à condenação definitiva da pessoa em causa (v., por analogia, Acórdãos de 18 de julho de 2007, Kraaijenbrink, C‑367/05, EU:C:2007:444, n.o 26 e jurisprudência referida, e de 16 de novembro de 2010, Mantello, C‑261/09, EU:C:2010:683, n.os 39 e 40). Assim, o artigo 50.o da Carta proíbe a aplicação, por factos idênticos, de várias sanções de natureza penal no termo de diferentes procedimentos instaurados para estes fins.

    Além disso, a qualificação jurídica, no direito nacional, dos factos e o interesse jurídico protegido não são relevantes para efeitos da verificação da existência de uma mesma infração, na medida em que o alcance da proteção conferida pelo artigo 50.o da Carta não pode variar de um Estado‑Membro para outro.

    (cf. n.os 37, 38)

  5.  Quanto à questão de saber se a restrição ao princípio ne bis in idem resultante de uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal corresponde a um objetivo de interesse geral, decorre dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que esta regulamentação pretende proteger a integridade dos mercados financeiros da União e a confiança do público nos instrumentos financeiros. Atendendo à importância conferida pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, para cumprir este objetivo, à luta contra as infrações à proibição de manipulação de mercado (v., neste sentido, Acórdão de 23 de dezembro de 2009, Spector Photo Group e Van Raemdonck, C‑45/08, EU:C:2009:806, n.os 37 e 42), pode justificar‑se um cúmulo de procedimentos e de sanções de natureza penal quando estes visem, para a realização desse objetivo, finalidades complementares que tenham por objeto, se for caso disso, aspetos diferentes da mesma conduta ilícita em causa, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

    A este respeito, em matéria de infrações relacionadas com a manipulação de mercado, parece legítimo que um Estado‑Membro pretenda, por um lado, dissuadir e punir qualquer incumprimento, seja intencional ou não, da proibição de manipulação de mercado aplicando sanções administrativas, eventualmente, de quantia fixa e, por outro, dissuadir e punir incumprimentos graves dessa proibição, que são particularmente nefastos para a sociedade e que justificam a adoção de sanções penais mais graves.

    (cf. n.os 46, 47)

  6.  O respeito do princípio da proporcionalidade, por seu turno, exige que o cúmulo de procedimentos e de sanções previsto por uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal não exceda os limites do que é adequado e necessário para a realização dos objetivos legítimos prosseguidos por essa regulamentação, entendendo‑se que, quando haja uma escolha entre várias medidas adequadas, se deve recorrer à menos restritiva e que os inconvenientes causados por esta não devem ser desproporcionados relativamente aos objetivos prosseguidos (v., neste sentido, Acórdãos de 25 de fevereiro de 2010, Müller Fleisch, C‑562/08, EU:C:2010:93, n.o 43; de 9 de março de 2010, ERG e o., C‑379/08 e C‑380/08, EU:C:2010:127, n.o 86; e de 19 de outubro de 2016, EL‑EM‑2001, C‑501/14, EU:C:2016:777, n.os 37, 39 e jurisprudência referida).

    A este respeito, há que recordar que, nos termos do artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2003/6, lido em conjugação com o seu artigo 5.o, os Estados‑Membros dispõem de liberdade de escolha das sanções aplicáveis às pessoas responsáveis pela manipulação de mercado (v., neste sentido, Acórdão de 23 de dezembro de 2009, Spector Photo Group e Van Raemdonck, C‑45/08, EU:C:2009:806, n.os 71 e 72). Na falta de harmonização do direito da União na matéria, os Estados‑Membros têm, assim, o direito de prever tanto um regime em que as violações da proibição de manipulação de mercado só podem ser objeto de procedimentos e sanções uma única vez como um regime que autoriza o cúmulo de procedimentos e de sanções. Nestas circunstâncias, a proporcionalidade de uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal não pode ser posta em causa pelo simples facto de o Estado‑Membro em questão ter optado por prever a possibilidade do referido cúmulo, sob pena de privar esse Estado‑Membro desta liberdade de escolha.

    Quanto ao seu caráter estritamente necessário, uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal deve, antes de mais, prever regras claras e precisas que permitam ao particular prever quais os atos e omissões que podem ser objeto desse cúmulo de procedimentos e de sanções.

    Em seguida, uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal deve assegurar que os encargos que para as pessoas em questão resultam deste cúmulo sejam limitados ao estritamente necessário para cumprir o objetivo referido no n.o 46 do presente acórdão.

    No que se refere, por um lado, ao cúmulo de procedimentos de natureza penal que, como resulta dos elementos que constam dos autos, são conduzidos de forma independente, a exigência recordada no número anterior implica a existência de regras que assegurem uma coordenação destinada a reduzir ao estritamente necessário o encargo complementar que este cúmulo representa para as pessoas em causa.

    Por outro lado, o cúmulo de sanções de natureza penal deve ser sujeito a regras que permitam garantir que a severidade do conjunto de sanções aplicadas corresponde à gravidade da infração em causa, decorrendo esta exigência não só do artigo 52.o, n.o 1, da Carta mas também do princípio da proporcionalidade das penas consagrado no seu artigo 49.o, n.o 3. Estas regras devem prever a obrigação de as autoridades competentes, em caso de aplicação de uma segunda sanção, assegurarem que a severidade do conjunto de sanções aplicadas não exceda a gravidade da infração constatada.

    (cf. n.os 48, 49, 51, 54‑56)

  7.  O artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que permite dar seguimento a um procedimento de sanção administrativa pecuniária de natureza penal contra uma pessoa em razão de comportamentos ilícitos que constituem manipulação de mercado pelos quais já foi proferida uma condenação penal transitada em julgado contra a mesma, na medida em que esta condenação, tendo em conta o prejuízo causado à sociedade pela infração cometida, seja suscetível de punir esta infração de forma efetiva, proporcionada e dissuasiva.

    Esta conclusão não é posta em causa pela circunstância de a pena definitiva proferida em aplicação do artigo 185.o do TUF poder, se for caso disso, ser posteriormente extinta por indulto, como parece ter sido o caso no processo principal. Com efeito, decorre do artigo 50.o da Carta que a proteção conferida pelo princípio ne bis in idem deve beneficiar as pessoas que já foram absolvidas ou condenadas por sentença penal transitada em julgado, incluindo, por conseguinte, aquelas a quem foi, através dessa sentença, aplicada uma sanção penal que foi posteriormente extinta por indulto. Desta forma, tal circunstância é desprovida de pertinência para apreciar o caráter estritamente necessário de uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal.

    (cf. n.os 62, 63, disp. 1)

  8.  O princípio ne bis in idem consagrado no artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia confere aos particulares um direito diretamente aplicável no âmbito de um litígio como o do processo principal.

    Em conformidade com jurisprudência constante, uma vez que as disposições do direito primário que impõem obrigações precisas e incondicionais não necessitam, para a sua aplicação, de nenhuma intervenção posterior das autoridades da União ou nacionais, criam diretamente direitos a favor dos particulares (v., neste sentido, Acórdãos de 1 de julho de 1969, Brachfeld e Chougol Diamond, 2/69 e 3/69, EU:C:1969:30, n.os 22 e 23, e de 20 de setembro de 2001, Banks, C‑390/98, EU:C:2001:456, n.o 91). Ora, o direito que o referido artigo 50.o confere aos particulares não é sujeito, segundo a sua própria redação, a nenhuma condição e é, por conseguinte, diretamente aplicável no âmbito de um litígio como o do processo principal.

    (cf. n.os 65, 66, 68, disp. 2)

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