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Document 62008CJ0014

Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 25 de Junho de 2009.
Roda Golf & Beach Resort SL.
Pedido de decisão prejudicial: Juzgado de Primera Instancia e Instrucción nº 5 de San Javier - Espanha.
Cooperação judiciária em matéria civil - Reenvio prejudicial - Competência do Tribunal de Justiça - Conceito de ‘litígio’ - Regulamento (CE) n.º 1348/2000 - Citação e notificação de actos extrajudiciais à margem de um processo judicial - Acto notarial.
Processo C-14/08.

European Court Reports 2009 I-05439

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2009:395

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

25 de Junho de 2009 ( *1 )

«Cooperação judiciária em matéria civil — Reenvio prejudicial — Competência do Tribunal de Justiça — Conceito de ‘litígio’ — Regulamento (CE) n.o 1348/2000 — Citação e notificação de actos extrajudiciais à margem de um processo judicial — Acto notarial»

No processo C-14/08,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 68.o CE, apresentado pelo Juzgado de Primera Instancia e Instrucción no 5 de San Javier (Espanha), por decisão de 3 de Janeiro de 2008, entrado no Tribunal de Justiça em 14 de Janeiro de 2008, no processo

Roda Golf & Beach Resort SL,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: A. Rosas, presidente de secção, J. Klučka, U. Lõhmus, P. Lindh e A. Arabadjiev (relator), juízes,

advogado-geral: D. Ruiz-Jarabo Colomer,

secretário: R. Grass,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Roda Golf & Beach Resort SL, por E. López Ayuso, abogada,

em representação do Governo espanhol, por J. López-Medel Bascones, na qualidade de agente,

em representação do Governo checo, por M. Smolek, na qualidade de agente,

em representação do Governo alemão, por M. Lumma e J. Kemper, na qualidade de agentes,

em representação do Governo helénico, por S. Chala, na qualidade de agente,

em representação do Governo italiano, por R. Adam, na qualidade de agente, assistido por W. Ferrante, avvocato dello Stato,

em representação do Governo letão, por E. Balode-Buraka e E. Eihmane, na qualidade de agentes,

em representação do Governo húngaro, por G. Iván, na qualidade de agente,

em representação do Governo polaco, por M. Dowgielewicz, na qualidade de agente,

em representação do Governo eslovaco, por J. Čorba, na qualidade de agente,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por V. Joris e F. Jimeno Fernández, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 5 de Março de 2009,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 16.o do Regulamento (CE) n.o 1348/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, relativo à citação e à notificação dos actos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial nos Estados-Membros (JO L 160, p. 37).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um recurso interposto no Juzgado de Primera Instancia e Instrucción no 5 de San Javier (Tribunal de Primeira Instância e de Instrução n.o 5 de San Javier), pela Roda Golf & Beach Resort SL (a seguir «Roda Golf»), da recusa do secretário desse órgão jurisdicional em notificar, à margem de um processo judicial, a destinatários estabelecidos no Reino Unido e na Irlanda, um acto notarial de notificação e interpelação a comunicar a resolução unilateral, pela Roda Golf, de dezasseis contratos de compra e venda de um imóvel que tinha celebrado com cada um dos referidos destinatários.

Quadro jurídico

Direito comunitário e direito internacional

3

Por acto de 26 de Maio de 1997, o Conselho da União Europeia elaborou, com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia (os artigos K a K.9 do Tratado da União Europeia foram substituídos pelos artigos 29.o UE a 42.o UE), a Convenção relativa à citação e à notificação nos Estados-Membros da União Europeia dos actos judiciais e extrajudiciais em matéria civil ou comercial (JO C 261, p. 1).

4

Essa Convenção não entrou em vigor. Na medida em que o seu texto inspirou o do Regulamento n.o 1348/2000, o relatório explicativo desta mesma Convenção (JO 1997, C 261, p. 26) foi invocado no preâmbulo do referido regulamento.

5

O Regulamento n.o 1348/2000 regula a citação e a notificação dos actos judiciais e extrajudiciais em matéria civil e comercial nos Estados-Membros.

6

O segundo considerando desse regulamento enuncia:

«O bom funcionamento do mercado interno exige que se melhore e torne mais rápida a transmissão entre os Estados-Membros de actos judiciais e extrajudiciais em matéria civil ou comercial para efeitos de citação e notificação.»

7

Nos termos do seu sexto considerando:

«A eficácia e a celeridade dos processos judiciais no domínio civil implica que a transmissão dos actos judiciais e extrajudiciais seja efectuada directamente e através de meios rápidos entre as entidades locais designadas pelos Estados-Membros. […]»

8

O artigo 2.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1348/2000 dispõe que «[c]ada Estado-Membro designa os funcionários, as autoridades ou outras pessoas, adiante denominados ‘entidades de origem’, que terão competência para transmitir actos judiciais ou extrajudiciais para efeitos de citação ou notificação em um outro Estado-Membro». Nos termos do artigo 23.o, n.o 1, do referido regulamento, os Estados-Membros devem comunicar essa informação à Comissão das Comunidades Europeias, que a publica no Jornal Oficial.

9

Resulta das comunicações efectuadas pelo Reino de Espanha ao abrigo do referido artigo 23.o (JO 2001, C 151, p. 4, e C 202, p. 10) que, em Espanha, as entidades de origem são os Secretarios Judiciales (secretários) dos diferentes Juzgados (tribunais singulares) e Tribunales (tribunais colectivos).

10

O artigo 16.o do Regulamento n.o 1348/2000, incluído no seu capítulo III, sob o título «Actos extrajudiciais», dispõe:

«Os actos extrajudiciais podem ser transmitidos para citação ou para notificação num outro Estado-Membro segundo as formas previstas pelo presente regulamento.»

11

O artigo 17.o, alínea b), desse regulamento prevê o estabelecimento de um glossário de actos que podem ser objecto de citação ou de notificação ao abrigo do referido regulamento.

12

Este glossário constitui o anexo II da Decisão 2001/781/CE da Comissão, de 25 de Setembro de 2001, que estabelece um manual de entidades requeridas e um glossário de actos que podem ser objecto de citação ou de notificação ao abrigo do Regulamento (CE) n.o 1348/2000 (JO L 298, p. 1, e — rectificações — JO 2002, L 31, p. 88, e JO 2003, L 60, p. 3), conforme alterada pela Decisão 2007/500/CE da Comissão, de 16 de Julho de 2007 (JO L 185, p. 24). O referido glossário inclui as informações fornecidas pelos Estados-Membros em cumprimento do disposto no artigo 17.o, alínea b), do Regulamento n.o 1348/2000. Relativamente à Espanha, refere-se, nomeadamente, que, «[q]uanto aos actos extrajudiciais que podem ser notificados, são documentos não judiciais provenientes das autoridades públicas competentes, segundo a lei espanhola, para procederem a citações ou notificações».

13

O Regulamento n.o 1348/2000 foi substituído pelo Regulamento (CE) n.o 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Novembro de 2007, relativo à citação e à notificação dos actos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial nos Estados-Membros («citação e notificação de actos») e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1348/2000 do Conselho (JO L 324, p. 79), inteiramente aplicável a partir de 13 de Novembro de 2008.

14

A Convenção de Haia de 15 de Novembro de 1965, relativa à citação e à notificação no estrangeiro dos actos judiciais e extrajudiciais em matéria civil e comercial, estabelece um mecanismo de cooperação administrativa que permite a citação ou a notificação de um acto por intermédio de uma autoridade central. O artigo 17.o dessa Convenção rege a citação e a notificação dos actos extrajudiciais.

15

Segundo o artigo 20.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1348/2000, este regulamento prevalece sobre as disposições previstas na Convenção de Haia de 15 de Novembro de 1965.

Direito nacional

16

A Lei 1/2000, de Processo Civil (Ley 1/2000, de Enjuiciamiento Civil), de 7 de Janeiro de 2000 (BOE n.o 7, de 8 de Janeiro de 2000, p. 575, a seguir «LEC»), estabelece, nos artigos 223.o e 224.o, o regime das decisões do secretário judicial dum tribunal competente em matéria civil, nos seguintes termos:

«Artigo 223.o Actos do secretário

1.   Incumbe aos secretários judiciais adoptar os actos através dos quais o processo prossegue nos termos da lei.

2.   Os actos do secretário devem limitar-se a exprimir o que tiver sido decidido, deles devendo constar o nome do secretário judicial que os profere, a data e a sua assinatura.

Artigo 224.o Revisão dos actos do secretário

1.   São nulos e de nenhum efeito os actos do secretário que decidam questões que, nos termos da lei, devam ser resolvidas por despacho de mero expediente, despacho, sentença ou acórdão.

2.   Fora dos casos previstos no número anterior, os actos do secretário também podem ser anulados, a pedido da parte prejudicada, quando violem alguma disposição legal ou decidam questões que, nos termos da presente lei, devam ser decididas por despacho de mero expediente.

3.   A impugnação a que se refere o número anterior é tramitada e decidida em conformidade com o previsto para a reclamação.»

17

Relativamente à reclamação a que se refere o artigo 224.o da LEC, o artigo 454.o da mesma lei dispõe:

«Irrecorribilidade do despacho que decide a reclamação

Salvo nos casos em que couber recurso de ‘queja’, não cabe recurso do despacho que decide a reclamação, sem prejuízo de o objecto da reclamação poder ser novamente discutido no recurso da decisão definitiva, se esta for recorrível.»

18

Segundo o artigo 455.o da LEC, dos despachos dos Juzgados de Primera Instancia cabe recurso de «apelación» (recurso para a segunda instância), sempre e quando sejam «definitivos» ou «quando a lei expressamente [o] preveja».

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

19

Em 2 de Novembro de 2007, a Roda Golf, sociedade de direito espanhol, solicitou ao secretário do órgão jurisdicional de reenvio que, nos termos do Regulamento n.o 1348/2000, notificasse às entidades requeridas competentes do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte e da Irlanda dezasseis cartas dirigidas aos destinatários estabelecidos nesses dois Estados-Membros. Essas cartas tinham por objecto a resolução de contratos de compra e venda de imóveis que tinham sido celebrados entre essa sociedade e os referidos destinatários. O seu conteúdo não deixa transparecer qualquer ligação com um processo judicial em curso.

20

Como resulta do processo submetido ao Tribunal de Justiça pelo órgão jurisdicional de reenvio e como alegou a reclamante no processo principal nas suas observações, esta outorgou, num notário de San Javier, um acto notarial de notificação e interpelação, inscrito sob o n.o 111 no livro dos registos, solicitando que o notário notificasse esse acto por intermédio do secretário, autoridade competente segundo a informação comunicada pelo Reino de Espanha nos termos do artigo 23.o do Regulamento n.o 1348/2000.

21

O secretário do órgão jurisdicional de reenvio recusou proceder à notificação do acto em causa no processo principal, pelo facto de essa mesma notificação não ocorrer no quadro de um processo judicial, não estando, consequentemente, abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1348/2000.

22

A Roda Golf apresentou uma reclamação dessa decisão perante o juiz de reenvio. Alegou, nomeadamente, que os actos extrajudiciais podem, ao abrigo do Regulamento n.o 1348/2000, ser notificados à margem de um processo judicial.

23

Foi nestas condições que o Juzgado de Primera Instancia e Instrucción no 5 de San Javier decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O Regulamento n.o 1348/2000 abrange a notificação de documentos exclusivamente extrajudiciais e entre privados, com utilização dos meios materiais e humanos dos tribunais da União Europeia e previstos na legislação europeia, sem se dar início a um processo judicial? Ou, pelo contrário,

2)

O Regulamento n.o 1348/2000 aplica-se exclusivamente à cooperação judicial entre Estados-Membros e no âmbito de um processo judicial em curso [artigos 61.o, alínea c), 67.o, n.o 1, e 65.o do Tratado CE e considerando 6 do Regulamento n.o 1348/2000]?»

Quanto à competência do Tribunal de Justiça

24

A Comissão suscita duas excepções de incompetência do Tribunal de Justiça, relativamente às questões submetidas. Em primeiro lugar, alega que a decisão que o juiz de reenvio deve proferir no processo principal constituirá uma decisão definitiva, da qual caberá recurso nos termos do artigo 455.o da LEC. Deste modo, o reenvio não seria admissível porque, segundo o artigo 68.o CE, só os órgãos jurisdicionais cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso podem submeter ao Tribunal de Justiça questões a título prejudicial no âmbito do título IV da terceira parte do Tratado CE.

25

A este respeito, importa recordar que, segundo o artigo 68.o CE, sempre que uma questão sobre a interpretação dos actos adoptados pelas instituições da Comunidade Europeia com base no referido título IV seja suscitada perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão jurisdicional, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, deve pedir ao Tribunal de Justiça que sobre ela se pronuncie.

26

As questões submetidas no presente processo têm por objecto a interpretação do Regulamento n.o 1348/2000. Uma vez que esse regulamento foi adoptado pelo Conselho, com base nos artigos 61.o, alínea c), CE e 67.o, n.o 1, CE, incluídos na terceira parte, título IV, do Tratado CE, o artigo 68.o CE aplica-se no caso em apreço.

27

Nestas condições, só um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno pode pedir ao Tribunal de Justiça para se pronunciar sobre uma questão de interpretação do referido regulamento.

28

A este respeito, o advogado-geral deu conta, no n.o 41 das suas conclusões, de uma certa heterogeneidade na jurisprudência espanhola quanto à possibilidade de interpor recurso de uma decisão como a que o juiz de reenvio deverá proferir no processo principal. Embora a Comissão cite, a este respeito, determinados despachos judiciais nacionais que admitiram essa possibilidade, não é menos verdade que, quanto a esta matéria, existe não só jurisprudência contrária mas também uma controvérsia doutrinal, sendo certo que uma parte da doutrina nega qualquer possibilidade de recurso num processo deste tipo.

29

Ora, não compete ao Tribunal de Justiça resolver essa controvérsia. No caso em apreço, o juiz de reenvio indicou no seu pedido de decisão prejudicial que não caberá recurso da decisão que vier a proferir no processo principal.

30

Deve, portanto, julgar-se improcedente a primeira excepção de incompetência suscitada pela Comissão.

31

Em segundo lugar, a Comissão considera que ao órgão jurisdicional de reenvio não foi apresentado um litígio, mas um «processo não judicial». Consequentemente, entende que o Tribunal de Justiça não é competente para se pronunciar sobre as questões submetidas, uma vez que surgem num caso em que o juiz nacional age na qualidade de autoridade administrativa e não exerce funções jurisdicionais.

32

Resulta do processo submetido ao Tribunal de Justiça que as questões prejudiciais foram colocadas no âmbito de uma reclamação da recusa de um secretário em notificar o acto em causa no processo principal. No âmbito dessa reclamação, a única parte no processo é a reclamante no processo principal.

33

A este respeito, importa recordar que o artigo 234.o CE, que se aplica ao título IV da terceira parte do Tratado CE por força do artigo 68.o CE, não sujeita o recurso ao Tribunal de Justiça ao carácter contraditório do processo no decurso do qual o juiz nacional formula uma questão prejudicial (v. acórdão de 17 de Maio de 1994, Corsica Ferries, C-18/93, Colect., p. I-1783, n.o 12).

34

Contudo, resulta do referido artigo 234.o CE que os órgãos jurisdicionais nacionais só podem recorrer ao Tribunal de Justiça se perante eles se encontrar pendente um litígio e se forem chamados a pronunciar-se no âmbito de um processo que deva conduzir a uma decisão de carácter jurisdicional (v. despachos de 18 de Junho de 1980, Borker, 138/80, Recueil, p. 1975, n.o 4, e de 5 de Março de 1986, Greis Unterweger, 318/85, Colect., p. 955, n.o 4; acórdãos de 19 de Outubro de 1995, Job Centre, C-111/94, Colect., p. I-3361, n.o 9, e de 14 de Junho de 2001, Salzmann, C-178/99, Colect., p. I-4421, n.o 14).

35

Assim, quando desempenha funções de autoridade administrativa, sem, ao mesmo tempo, ser chamado a decidir um litígio, não se pode considerar que o organismo de reenvio exerce uma função de natureza jurisdicional. É o que acontece quando, por exemplo, decide de um pedido de inscrição de uma sociedade num registo segundo um processo que não tenha por objecto a anulação de um acto lesivo de um direito do demandante (v. acórdãos, já referidos, Job Centre, n.o 11, e Salzmann, n.o 15, bem como acórdão de 15 de Janeiro de 2002, Lutz e o., C-182/00, Colect., p. I-547, n.o 14; v., também, neste sentido, acórdão de 16 de Dezembro de 2008, Cartesio, C-210/06, Colect., p. I-9641, n.o 57).

36

Em contrapartida, é chamado a conhecer de um litígio e exerce uma função de natureza jurisdicional o tribunal que decide de um recurso de uma decisão de uma instância inferior, responsável pela manutenção de um registo, que indefere um pedido daquela natureza, na medida em que o referido recurso tem por objecto a anulação de uma decisão alegadamente lesiva de um direito do requerente (v. acórdão Cartesio, já referido, n.o 58). Consequentemente, nesse caso, a entidade que decide em sede de recurso deve, em princípio, ser considerada um órgão jurisdicional, na acepção do artigo 234.o CE, habilitado a submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça (v., relativamente a este tipo de situações, nomeadamente, acórdãos de 15 de Maio de 2003, Salzmann, C-300/01, Colect., p. I-4899, de 13 de Dezembro de 2005, SEVIC Systems, C-411/03, Colect., p. I-10805, de 11 de Outubro de 2007, Möllendorf e Möllendorf-Niehuus, C-117/06, Colect., p. I-8361, e Cartesio, já referido).

37

Esta jurisprudência é transponível para o caso em apreço. Embora o secretário chamado a conhecer de um pedido de citação ou de notificação de actos judiciais ou extrajudiciais, nos termos do Regulamento n.o 1348/2000, possa ser considerado uma autoridade administrativa, sem que, simultaneamente, seja chamado a resolver um litígio, o mesmo não se pode dizer do juiz que tem de se pronunciar sobre uma reclamação de uma recusa desse secretário em proceder à citação ou à notificação solicitadas.

38

Com efeito, o objecto dessa reclamação é a anulação da referida recusa, que alegadamente lesa um direito do requerente, a saber, o seu direito de citar ou de notificar determinados actos pelas vias previstas no Regulamento n.o 1348/2000.

39

Consequentemente, o juiz de reenvio é chamado a pronunciar-se sobre um litígio e, portanto, exerce uma função jurisdicional.

40

O facto de o secretário fazer parte da estrutura organizacional do órgão jurisdicional de reenvio não pode pôr em causa esta conclusão. Com efeito, este facto não tem influência na natureza jurisdicional da função que o juiz de reenvio exerce no âmbito do processo principal, dado que esse processo tem por objecto a anulação de um acto que alegadamente lesa um direito do requerente.

41

Daqui decorre que a segunda excepção de incompetência suscitada pela Comissão deve também ser julgada improcedente.

42

O Tribunal de Justiça é, pois, competente para responder às questões submetidas.

Quanto às questões prejudiciais

43

Com as duas questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se a citação e a notificação de actos extrajudiciais à margem de um processo judicial, quando efectuada entre privados, está abrangida pelo âmbito de aplicação do referido regulamento.

Observação preliminar

44

A título preliminar, importa determinar se o conceito de «acto extrajudicial», na acepção do artigo 16.o do Regulamento n.o 1348/2000, é um conceito de direito comunitário ou, pelo contrário, um conceito de direito nacional.

45

Os Governos espanhol, checo, alemão, helénico, letão, húngaro e polaco consideram que o conteúdo do conceito de acto extrajudicial deve ser determinado em função do direito de cada Estado-Membro. Alegam que o Regulamento n.o 1348/2000 deixa aos Estados-Membros o encargo de decidir se os actos extrajudiciais podem ser citados ou notificados e, em caso afirmativo, que actos. A este respeito, invocam o artigo 17.o, alínea b), do referido regulamento, que prevê, enquanto modalidade de execução desse mesmo regulamento, o estabelecimento de um glossário de actos que podem ser objecto de citação ou de notificação, salientando que esse glossário inclui as listas desses actos, cujo conteúdo varia segundo os Estados-Membros.

46

Importa recordar que o Regulamento n.o 1348/2000 tem por objectivo melhorar e tornar mais rápida a transmissão, entre os Estados-Membros, dos actos judiciais e extrajudiciais em matéria civil ou comercial, para efeitos de citação e notificação. Contudo, este regulamento não vai ao ponto de definir de forma precisa e uniforme o conceito de acto extrajudicial.

47

Segundo o seu artigo 17.o, alínea b), esse regulamento incumbe a Comissão de estabelecer, em concertação com os Estados-Membros, um glossário indicando os actos que podem ser objecto de citação ou de notificação. Esse glossário refere, no seu preâmbulo, que as informações que são assim comunicadas pelos Estados-Membros são meramente indicativas. No entanto, o seu conteúdo demonstra que os Estados-Membros, sob o controlo da Comissão, definiram de maneira diferente os actos que consideram susceptíveis de ser notificados ou citados em execução do referido regulamento. Todavia, apesar da existência do referido glossário, o conceito de «acto extrajudicial», na acepção do artigo 16.o do Regulamento n.o 1348/2000, deve ser considerado um conceito de direito comunitário.

48

Com efeito, o objectivo do Tratado de Amesterdão, de criar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, dando com isso uma dimensão nova à Comunidade, e a transferência, do Tratado UE para o Tratado CE, do regime que permite a adopção de medidas que se incluem no domínio da cooperação judiciária em matéria civil com efeitos transfronteiriços atestam a vontade dos Estados-Membros de ancorar essas medidas na ordem jurídica comunitária e de consagrar o princípio da sua interpretação autónoma (acórdão de 8 de Novembro de 2005, Leffler, C-443/03, Colect., p. I-9611, n.o 45).

49

Além disso, a escolha da forma de regulamento, em vez da forma de directiva inicialmente proposta pela Comissão (v. JO 1999, C 247 E, p. 11), mostra a importância que o legislador comunitário atribuiu à aplicabilidade directa das disposições do Regulamento n.o 1348/2000 e à sua aplicação uniforme (acórdão Leffler, já referido, n.o 46).

50

Consequentemente, o conceito de «acto extrajudicial», na acepção do artigo 16.o do Regulamento n.o 1348/2000, é um conceito de direito comunitário.

Quanto ao âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1348/2000

51

Relativamente à questão de saber se a citação e a notificação de actos extrajudiciais à margem de um processo judicial estão abrangidas pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1348/2000, os Governos espanhol e eslovaco alegam que, para que um documento possa ser considerado um acto extrajudicial, deve ter uma ligação concreta com um processo judicial em curso ou com o início desse processo.

52

A Roda Golf, os Governos alemão, helénico, italiano, letão, húngaro e polaco, bem como a Comissão, têm uma opinião diferente.

53

A este respeito, importa recordar que o artigo 61.o, alínea c), CE é a base jurídica do Regulamento n.o 1348/2000. Esta disposição, a fim de criar progressivamente um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, permite que se adoptem as medidas previstas no artigo 65.o CE. Essas medidas, que se incluem no domínio da cooperação judiciária em matéria civil com efeitos transfronteiriços, visam nomeadamente, de acordo com o referido artigo 65.o CE, melhorar e simplificar o sistema de citação e de notificação transfronteiriça dos actos judiciais e extrajudiciais na medida do necessário ao bom funcionamento do mercado interno.

54

Do mesmo modo, o segundo considerando do Regulamento n.o 1348/2000 enuncia que o bom funcionamento do mercado interno exige que se melhore e torne mais rápida a transmissão, entre os Estados-Membros, dos actos judiciais e extrajudiciais em matéria civil ou comercial, para efeitos de citação e notificação.

55

O artigo 65.o CE e o Regulamento n.o 1348/2000 têm, assim, por objectivo criar um sistema de citação e de notificação intracomunitário, com vista ao bom funcionamento do mercado interno.

56

Tendo em conta este objectivo, a cooperação judiciária visada por esse artigo e por este regulamento não se pode limitar apenas aos processos judiciais. Com efeito, esta cooperação é susceptível de se manifestar quer no quadro de um processo judicial quer à margem desse processo, na medida em que a referida cooperação tem efeitos transfronteiriços e é necessária ao bom funcionamento do mercado interno.

57

Contrariamente ao que os Governos espanhol, polaco e eslovaco sustentam, o facto de o sexto considerando do Regulamento n.o 1348/2000 só fazer referência à eficácia e à celeridade dos processos judiciais não basta para excluir do âmbito de aplicação desse regulamento qualquer acto que não ocorra no quadro de um processo judicial. Com efeito, esse considerando refere-se apenas a um dos corolários do objectivo principal do referido regulamento. Consequentemente, a referência, no referido considerando, aos actos extrajudiciais no contexto dos processos judiciais deve ser entendida no sentido de que a citação ou a notificação de um acto desse tipo pode ser requerida no quadro de um processo judicial.

58

Além disso, o acto em causa no processo principal, que foi transmitido ao secretário do órgão jurisdicional de reenvio com vista à sua notificação, foi lavrado por um notário, como decorre do n.o 20 do presente acórdão, e, como tal, constitui um acto extrajudicial na acepção do artigo 16.o do Regulamento n.o 1348/2000.

59

Relativamente às preocupações expressas pelos Governos espanhol e polaco, de que uma concepção ampla do conceito de acto extrajudicial imporia uma carga excessiva para os meios dos órgãos jurisdicionais nacionais, deve-se salientar que as obrigações em matéria de citação e de notificação que decorrem do Regulamento n.o 1348/2000 não incumbem forçosamente aos órgãos jurisdicionais nacionais. Com efeito, a designação das entidades de origem e das entidades requeridas, que, nos termos do artigo 2.o, n.os 1 e 2, do referido regulamento, podem ser «os funcionários, as autoridades ou outras pessoas», é da competência dos Estados-Membros. Consequentemente, os Estados-Membros podem designar como entidades de origem ou entidades requeridas, para efeitos da citação e da notificação dos actos judiciais ou extrajudiciais, outras entidades que não sejam órgãos jurisdicionais nacionais.

60

Por outro lado, a citação ou a notificação por intermédio das entidades de origem e das entidades requeridas não é a única forma de citação ou de notificação prevista no Regulamento n.o 1348/2000. Assim, o artigo 14.o deste regulamento autoriza os Estados-Membros a procederem directamente, por via postal, às citações e às notificações de actos judiciais destinadas a pessoas que residam noutro Estado-Membro. Com efeito, a maior parte dos Estados-Membros aceitam esse modo de citação ou de notificação. Além disso, segundo o seu artigo 15.o, esse regulamento não impede a citação ou a notificação directa por diligência de oficiais de justiça, funcionários ou outras pessoas competentes do Estado-Membro requerido. De acordo com o artigo 16.o do referido regulamento, estas duas disposições são aplicáveis à citação ou à notificação de actos extrajudiciais.

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Consequentemente, há que responder às questões submetidas que a citação e a notificação, à margem de um processo judicial, de um acto notarial como o que está em causa no processo principal estão abrangidas pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1348/2000.

Quanto às despesas

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Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

 

A citação e a notificação, à margem de um processo judicial, de um acto notarial como o que está em causa no processo principal estão abrangidas pelo âmbito de aplicação do Regulamento (CE) n.o 1348/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, relativo à citação e à notificação dos actos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial nos Estados-Membros.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: espanhol.

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