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Document 61962CJ0002

Acórdão do Tribunal de 14 de Dezembro de 1962.
Comissão da Comunidade Económica Europeia contra Grão-Ducado do Luxemburgo e Reino da Bélgica.
Processos apensos 2/62 e 3/62.

English special edition 1962-1964 00147

ECLI identifier: ECLI:EU:C:1962:45

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

14 de Dezembro de 1962 ( *1 )

Nos processos apensos 2/62 e 3/62,

Comissão da Comunidade Económica Europeia, representada por Hubert Ehring, consultor jurídico dos Executivos Europeus, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo no gabinete de Henri Manzanares, secretário do Serviço Jurídico dos Executivos Europeus, 2, place de Metz,

demandante,

contra

1)

Grão-Ducado do Luxemburgo (processo 2/62), representado por Jean Rettel, consultor jurídico adjunto do Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo no Ministério dos Negócios Estrangeiros, 5, rue Notre-Dame,

2)

Reino da Bélgica (processo 3/62), representado pelo vice-primeiro ministro, ministro dos Negócios Estrangeiros, tendo designado como agente Jacques Karelle, director no Ministério dos Negócios Estrangeiros e do Comércio Externo, assistido por Marcel Verschelden, advogado na cour d'appel de Bruxelas, com domicílio escolhido no Luxemburgo na embaixada da Bélgica, 9, boulevard du Prince-Henri,

demandados,

que têm por objecto um pedido de declaração de ilegalidade, por terem ocorrido após 1 de Janeiro de 1958:

1)

dos aumentos do direito especial cobrado pela Bélgica e pelo Luxemburgo aquando da emissão de licenças de importação de pão de especiarias;

2)

do alargamento desse direito aos produtos similares ao pão de especiarias classificados na posição 19.08 da pauta aduaneira comum.

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: A. M. Donner, presidente, L. Delvaux e R. Rossi, presidentes de secção, O. Riese, Ch. L. Hammes, A. Trabucchi e R. Lecourt, juízes,

advogado-geral: K. Roemer

secretário: A. Van Houtte

profere o presente

Acórdão

(A parte relativa à matéria de facto não é reproduzida)

Fundamentos da decisão

Quanto à admissibilidade

Os demandados, suscitando a inadmissibilidade das acções, acusam a Comissão de ter impedido a regularização da situação litigiosa ao exigir abusivamente a suspensão das medidas criticadas antes de decidir sobre os pedidos de derrogação apresentados pelos demandados com base no artigo 226.o do Tratado e de um regulamento adoptado pelo Conselho de Ministros, em 4 de Abril de 1962, ao abrigo do artigo 235.o

Afirmam que, por «abuso de poder e excesso de legalismo» e por não ter decidido de forma urgente sobre esses pedidos, como deveria ter feito, a Comissão perdeu legitimidade para acusar os demandados de violação do Tratado.

A Comissão, obrigada, por força do artigo 155.o, a velar pela aplicação das disposições do Tratado, não pode ser privada do exercício do poder essencial de fazer assegurar esse respeito, que lhe é conferido pelo artigo 169o

Se fosse possível evitar a aplicação do artigo 169o através de um pedido de regularização, esse artigo perderia toda a eficácia.

Um pedido de derrogação às regras gerais do Tratado, ainda mais apresentado muito tardiamente, como é o caso no presente processo, não pode ter como efeito tornar lícitas medidas unilaterais adoptadas em contradição com as referidas regras e, por conseguinte, não pode legitimar rectroactivamente a infracção inicial.

Os processos de derrogação utilizados no presente processo, cuja solução dependia da apreciação da Comissão, são, pela sua natureza e efeitos, diferentes do processo cominatório de que a Comissão dispõe nos termos do artigo 169o, e em nada podem paralisar este último.

Sem que seja necessário examinar se um eventual abuso de direito por parte da Comissão a pode privar dos meios de que dispõe ao abrigo do artigo 169o, basta declarar que, no caso em apreço, a demonstração desse abuso não foi feita nem a sua prova oferecida.

Aliás, resultou da audiência que os demandados não forneceram à Comissão os elementos necessários para que esta decidisse sobre os seus pedidos.

Além disso, uma eventual falta da Comissão, a ser julgada num contencioso próprio, em nada afectaria a acção por violação do Tratado, dirigida contra decisões que actualmente ainda subsistem e cuja legalidade o Tribunal deve examinar.

Por consequência, as acções devem ser declaradas admissíveis.

Quanto ao mérito

As acções pretendem obter a declaração de ilegalidade do aumento do direito especial sobre a importação do pão de especiarias ocorrido após a entrada em vigor do Tratado e do alargamento a determinados produtos similares desse mesmo direito, considerado como um encargo de efeito equivalente a um direito aduaneiro proibido pelos artigos 9.o e 12.o

1. Quanto ao encargo de efeito equivalente a um direito aduaneiro

Nos termos do artigo 9.o, a Comunidade assenta numa união aduaneira que se baseia na proibição de direitos aduaneiros e de «quaisquer encargos de efeito equivalente».

Nos termos do artigo 12.o, é proibida a introdução de «novos direitos aduaneiros de importação (…) ou encargos de efeito equivalente» e o aumento dos que estão já em vigor.

A colocação destes artigos no início da parte reservada aos «fundamentos da Comunidade», o artigo 9.o no próprio começo do título sobre «a livre circulação de mercadorias» e o artigo 12.o a abrir a secção consagrada à «eliminação dos direitos aduaneiros» basta para marcar o papel essencial das proibições previstas nesses artigos.

A força dessas proibições é tal que, para evitar vê-las torneadas pela variedade das práticas aduaneiras e fiscais, o Tratado quis prevenir qualquer eventual falha na sua execução.

Assim, é precisado (artigo 17.o) que as proibições previstas no artigo 9.o são aplicáveis mesmo quando os direitos aduaneiros têm natureza fiscal.

O artigo 95.o, colocado simultaneamente na parte do Tratado consagrada à «política da Comunidade» e no capítulo reservado às «disposições fiscais», pretende colmatar as brechas que um procedimento fiscal poderia abrir nas proibições previstas. Este cuidado foi levado tão longe que é proibido a um Estado quer tributar de qualquer forma mais gravosa os produtos de outros Estados-membros que os seus próprios quer fazer incidir sobre os produtos desses Estados imposições internas de modo a «proteger» indirectamente a produção nacional.

A clareza, a precisão e o alcance sem reservas dos artigos 9.o e 12.o, a lógica das suas disposições e o conjunto do Tratado mostram, pois, que a proibição de introduzir novos direitos aduaneiros, conjugada com os princípios da livre circulação dos produtos, constitui uma regra essencial e que, portanto, qualquer eventual excepção, aliás de interpretação estrita, deve estar claramente prevista.

A noção de «encargo de efeito equivalente» a um direito aduaneiro, longe de surgir como uma excepção à norma geral de proibição dos direitos aduaneiros, apresenta-se, pelo contrário, como o seu complemento necessário que permite tornar eficaz essa proibição.

Esta expressão, permanentemente ligada à de «direitos aduaneiros», marca o desejo de proibir, não apenas as medidas que ostensivamente revestem a forma aduaneira clássica mas ainda todas as outras que, apresentadas sob denominações diferentes, ou introduzidas através de outros processos, conduziriam aos mesmos resultados discriminatórios ou protectores que os direitos aduaneiros.

Para reconhecer um encargo de efeito equivalente a um direito aduaneiro importa considerar esse efeito em relação aos objectivos que o Tratado se propõe, nomeadamente na parte, no título e no capítulo em que estão inseridos os artigos 9.o e 12.o, isto é, em relação à livre circulação de mercadorias e, ainda mais geralmente, aos objectivos do artigo 3.o, que pretende evitar que a concorrência seja falseada.

Assim, pouco importa saber se estão reunidos todos os efeitos dos direitos aduaneiros, ou se existe apenas um deles, ou ainda se, paralelamente a esses efeitos, foram prosseguidos outros objectivos principais ou acessórios, desde que o encargo prejudique os objectivos do Tratado acima referidos e resulte não de um processo comunitário mas de uma decisão unilateral.

Resulta do conjunto destes elementos que, na acepção dos artigos 9o e 12.o, o encargo de efeito equivalente pode ser considerado, quaisquer que sejam a sua denominação e a sua técnica, como um direito imposto unilateralmente, quer no momento da importação quer posteriormente, e que, incidindo especificamente sobre o produto importado de um país membro e não sobre o produto nacional similar, tem como resultado, ao alterar o seu preço, ter sobre a livre circulação de produtos a mesma incidência que um direito aduaneiro.

2. Aplicação ao caso em apreço

O direito sobre o pão de especiarias, introduzido na Bélgica por arrêté royal de 16 de Agosto de 1957 e no Luxemburgo por arrêté grand-ducal de 20 de Agosto de 1957, apresenta-se como um «direito especial de importação», «cobrado aquando da emissão das licenças de importação».

A legalidade desse direito, instituído após a assinatura do Tratado mas antes da sua entrada em vigor, não pode ser posta em causa.

Pelo contrário, podem sê-lo os aumentos desse direito posteriores a 1 de Janeiro de 1958, assim como o alargamento do mesmo direito aos produtos similares ao pão de especiarias classificados na posição 19.08 da pauta aduaneira comum, efectuados por arrêtés respectivamente de 24 e 27 de Fevereiro de 1960, em ambos os países.

Decididos unilateralmente após a entrada em vigor do Tratado, esses aumentos de um «direito especial» cobrado aquando da importação dos produtos em causa e que incidem sobre esses produtos unicamente devido à sua importação, fazem presumir a existência de uma discriminação e de uma protecção, contrárias ao princípio fundamental da livre circulação dos produtos, que a generalização dessas práticas reduziria a nada.

Os demandados combatem esses indícios, com fundamento em que o artigo 95o, n.o 1, do Tratado, permite a instituição desse direito se constituir a contrapartida de encargos internos que incidem sobre a produção nacional para satisfazer as necessidades de uma política soberana de mercado.

Consideram o direito em questão como o corolário do preço sustentado instituído em benefício dos produtores nacionais de centeio, ao abrigo das derrogações previstas pelas disposições do Tratado em matéria agrícola.

No entanto, a aplicação do artigo 95o, que inicia o capítulo segundo da terceira parte do Tratado, consagrado às «disposições fiscais», não pode ser alargada a todas as espécies de encargos.

No caso em apreço, o direito em causa não surge, nem pela sua forma nem pelo seu objectivo económico claramente proclamado, como uma disposição fiscal susceptível de se incluir no âmbito de aplicação do artigo 95.o

Além disso, o âmbito de aplicação deste artigo não pode ser alargado ao ponto de permitir qualquer compensação entre o encargo fiscal criado para incidir sobre um produto importado e o encargo de natureza diferente, por exemplo económica, que incide sobre um produto interno similar.

Se essa compensação fosse permitida, qualquer Estado poderia, ao abrigo da sua soberania interna, compensar dessa forma os encargos mais diversos incidentes sobre qualquer produto, e essa prática abriria uma brecha irremediável nos princípios do Tratado.

Embora o artigo 95.o, n.o 1, tolere implicitamente «imposições» sobre um produto importado, fá-lo apenas na mesma e restritiva medida em que essas imposições incidam também sobre os produtos nacionais similares.

Além disso, deve referir-se que, no caso em apreço, o direito em questão tem como objectivo não igualar entre si encargos que incidam de forma desigual entre produtos internos e produtos importados mas sim os próprios preços desses produtos.

Com efeito, os demandados afirmaram que o encargo em questão se destinava a «tornar equivalente o preço do produto estrangeiro e o preço do produto belga» (memorando de defesa, p. 19).

Puseram mesmo em dúvida que seja «compatível com a lógica do Tratado que, no interior do mercado comum, os produtores de um país (possam) adquirir a matéria-prima mais barata que os produtores de um outro Estado-membro» (tréplica, p. 29).

Esta argumentação desconhece o princípio segundo o qual a acção da Comunidade inclui o estabelecimento de um regime que garanta que a concorrência não seja falseada no mercado comum [artigo 3.o, , alínea f)].

Assim, admitir a tese dos demandados conduziria a uma situação absurda por ser exactamente oposta à pretendida pelo Tratado.

Resulta do n.o 2 do artigo 38.o que as derrogações admitidas em matéria agrícola às normas previstas para o estabelecimento do mercado comum constituem medidas excepcionais que devem ser interpretadas de forma estrita.

Portanto, não podem ser alargadas sob pena de a excepção se tornar a regra e de uma grande parte dos produtos transformados se subtraírem à aplicação do Tratado.

Por conseguinte, a lista constante do anexo II deve ser considerada taxativa, como confirma a segunda frase do n.o 3 do artigo 38.o

O pão de especiarias não figura entre os produtos enumerados no anexo II e não foi acrescentado a essa lista segundo o procedimento comunitário previsto no artigo 38.o, n.o 3.

Para resolver as dificuldades que podem surgir num sector económico determinado, os Estados-membros pretenderam instituir procedimentos comunitários para evitar a actuação unilateral das administrações nacionais.

No entanto, no caso em apreço, os aumentos e o alargamento do direito em questão foram decididos unilateralmente.

Resulta de todos estes elementos que a presunção de discriminação e de protecção apresentada contra os demandantes não foi elidida.

Aliás, estes não contestaram, até ao seu pedido de reabertura da audiência de 8 de Novembro de 1962, que da sua política de mercado «resulta indirectamente uma protecção» (alegações belgas; p. 21), sendo esta apenas, segundo afirmam, um efeito acessório e não o efeito característico do direito em questão.

O referido requerimento de 8 de Novembro de 1962, contradizendo essas afirmações, reconhece que os direitos especiais em questão «constituem seguramente entraves à livre circulação de mercadorias».

Finalmente, na sua carta de 27 de Novembro de 1961, o Governo belga, que, na tréplica (p. 13), acusa a Comissão de ser «a causa da manutenção do estado de infracção ao qual o demandado tinha demonstrado querer pôr fim», não negou «o carácter criticável de uma medida unilateral».

De todas estas considerações resulta a reunião, no «direito especial de importação» do pão de especiarias aumentado e alargado na Bélgica e no Luxemburgo após a entrada em vigor do Tratado, de todos os elementos constitutivos de um encargo de efeito equivalente a um direito aduaneiro previsto nos artigos 9.o e 12.o

Deve assim declarar-se que as decisões de aumento ou de alargamento desse direito adoptadas após 1 de Janeiro de 1958 foram adoptadas em infracção do Tratado.

Quanto às despesas

Nos termos do artigo 69.o, n.o 2, do Regulamento Processual, os demandados, tendo sido vencidos, devem ser condenados nas despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

vistos os autos,

ouvido o relatório do juiz-relator,

ouvidas as alegações das partes,

ouvidas as conclusões do advogado-geral,

vistos os artigos 3.o, 9o, 12.o, 17.o, 38.o, 95.o, 155.o, 169.o, 226.o e 235.o do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia,

visto o Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça da Comunidade Económica Europeia,

visto o Regulamento do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, nomeadamente o artigo 69o, n.o 2,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA

decide:

 

1)

As acções nos processos 2/62 e 3/62, intentadas pela Comissão da Comunidade Económica Europeia contra o Grão-Ducado do Luxemburgo e o Reino da Bélgica são admissíveis e procedentes.

 

2)

Os aumentos, decididos pelo Luxemburgo e pela Bélgica, do direito especial cobrado aquando da emissão de licenças de importação do pão de especiarias, e o alargamento desse direito aos produtos similares ao pão de especiarias classificados na posição 19.08 da pauta aduaneira comum, ocorridos após 1 de Janeiro de 1958, são contrários ao Tratado.

 

3)

Os demandados são condenados nas despesas.

 

Donner

Delvaux

Rossi

Riese

Hammes

Trabucchi

Lecourt

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 14 de Dezembro de 1962.

O secretário

A. Van Houtte

O presidente em exercício

L. Delvaux,

presidente de secção


( *1 ) Língua do processo: francês.

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