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Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 62018CJ0650

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 3 de junho de 2021.
    Hungria contra Parlamento Europeu.
    Recurso de anulação — Artigo 7.o, n.o 1, TUE — Resolução do Parlamento Europeu sobre uma proposta solicitando ao Conselho da União Europeia que verifique a existência de um risco manifesto de violação grave dos valores em que a União se funda — Artigos 263.o e 269.o TFUE — Competência do Tribunal de Justiça — Admissibilidade do recurso — Ato impugnável — Artigo 354.o TFUE — Regras de cálculo dos votos no Parlamento — Regimento do Parlamento — Artigo 178.o, n.o 3 — Conceito de “votos expressos” — Abstenções — Princípios da segurança jurídica, da igualdade de tratamento, da democracia e da cooperação leal.
    Processo C-650/18.

    Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral

    Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2021:426

     ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

    3 de junho de 2021 ( *1 )

    «Recurso de anulação — Artigo 7.o, n.o 1, TUE — Resolução do Parlamento Europeu sobre uma proposta solicitando ao Conselho da União Europeia que verifique a existência de um risco manifesto de violação grave dos valores em que a União se funda — Artigos 263.o e 269.o TFUE — Competência do Tribunal de Justiça — Admissibilidade do recurso — Ato impugnável — Artigo 354.o TFUE — Regras de cálculo dos votos no Parlamento — Regimento do Parlamento — Artigo 178.o, n.o 3 — Conceito de “votos expressos” — Abstenções — Princípios da segurança jurídica, da igualdade de tratamento, da democracia e da cooperação leal»

    No processo C‑650/18,

    que tem por objeto um recurso de anulação ao abrigo do artigo 263.o TFUE, interposto em 17 de outubro de 2018,

    Hungria, representada, inicialmente, por M. Z. Fehér, G. Tornyai e Zs. Wagner, em seguida, por M. Z. Fehér, na qualidade de agentes,

    recorrente,

    apoiada por:

    República da Polónia, representada por B. Majczyna, na qualidade de agente,

    interveniente,

    contra

    Parlamento Europeu, representado por F. Drexler, N. Görlitz e T. Lukácsi, na qualidade de agentes,

    recorrido,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

    composto por: K. Lenaerts, presidente, R. Silva de Lapuerta, vice‑presidente, J.‑C. Bonichot, M. Vilaras, E. Regan, L. Bay Larsen e A. Kumin, presidentes de secção, T. von Danwitz, C. Toader, M. Safjan, D. Šváby, S. Rodin, K. Jürimäe, C. Lycourgos (relator) e I. Jarukaitis, juízes,

    advogado‑geral: M. Bobek,

    secretário: R. Şereş, administradora,

    vistos os autos e após a audiência de 29 de junho de 2020,

    ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 3 de dezembro de 2020,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    Com a sua petição, a Hungria pede a anulação da Resolução do Parlamento Europeu, de 12 de setembro de 2018, sobre uma proposta solicitando ao Conselho que, em conformidade com o artigo 7.o, n.o 1, [TUE], declare a existência de um risco manifesto de violação grave pela Hungria dos valores em que a União se funda [2017/2131(INL)] (JO 2019, C 433, p. 66; a seguir «resolução impugnada»).

    Quadro jurídico

    Processo do artigo 7.o TUE

    2

    O artigo 7.o TUE prevê:

    «1.   Sob proposta fundamentada de um terço dos Estados‑Membros, do Parlamento Europeu ou da Comissão Europeia, o Conselho, deliberando por maioria qualificada de quatro quintos dos seus membros, e após aprovação do Parlamento Europeu, pode verificar a existência de um risco manifesto de violação grave dos valores referidos no artigo 2.o por parte de um Estado‑Membro. Antes de proceder a essa constatação, o Conselho deve ouvir o Estado‑Membro em questão e pode dirigir‑lhe recomendações, deliberando segundo o mesmo processo.

    O Conselho verificará regularmente se continuam válidos os motivos que conduziram a essa constatação.

    2.   O Conselho Europeu, deliberando por unanimidade, sob proposta de um terço dos Estados‑Membros ou da Comissão Europeia, e após aprovação do Parlamento Europeu, pode verificar a existência de uma violação grave e persistente, por parte de um Estado‑Membro, dos valores referidos no artigo 2.o, após ter convidado esse Estado‑Membro a apresentar as suas observações sobre a questão.

    3.   Se tiver sido verificada a existência da violação a que se refere o n.o 2, o Conselho, deliberando por maioria qualificada, pode decidir suspender alguns dos direitos decorrentes da aplicação dos Tratados ao Estado‑Membro em causa, incluindo o direito de voto do representante do Governo desse Estado‑Membro no Conselho. Ao fazê‑lo, o Conselho terá em conta as eventuais consequências dessa suspensão nos direitos e obrigações das pessoas singulares e coletivas.

    O Estado‑Membro em questão continuará, de qualquer modo, vinculado às obrigações que lhe incumbem por força dos Tratados.

    4.   O Conselho, deliberando por maioria qualificada, pode posteriormente decidir alterar ou revogar as medidas tomadas ao abrigo do n.o 3, se se alterar a situação que motivou a imposição dessas medidas.

    5.   As regras de votação aplicáveis, para efeitos do presente artigo, ao Parlamento Europeu, ao Conselho Europeu e ao Conselho são estabelecidas no artigo 354.o [TFUE].»

    3

    O artigo 354.o TFUE dispõe:

    «Para efeitos do artigo 7.o [TUE], relativo à suspensão de certos direitos resultantes da qualidade de membro da União, o membro do Conselho Europeu ou do Conselho que represente o Estado‑Membro em causa não participa na votação, e o Estado‑Membro em causa não é tido em conta no cálculo do terço ou dos quatro quintos dos Estados‑Membros previsto nos n.os 1 e 2 daquele artigo. A abstenção dos membros presentes ou representados não impede a adoção das decisões a que se refere o n.o 2 daquele artigo.

    Para a adoção das decisões a que se referem os n.os 3 e 4 do artigo 7.o [TUE], a maioria qualificada é definida nos termos da alínea b) do n.o 3 do artigo 238.o do presente Tratado.

    Quando, na sequência de uma decisão de suspensão do direito de voto adotada nos termos do n.o 3 do artigo 7.o [TUE], o Conselho delibere, por maioria qualificada, com base numa disposição do Tratado, essa maioria qualificada é a definida em conformidade com a alínea b) do n.o 3 do artigo 238.o do presente Tratado ou, caso o Conselho delibere sob proposta da Comissão ou do Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, é definida em conformidade com a alínea a) do n.o 3 do artigo 238.o

    Para efeitos do artigo 7.o [TUE], o Parlamento Europeu delibera por maioria de dois terços dos votos expressos que representem a maioria dos membros que o compõem.»

    Fiscalização jurisdicional

    4

    Nos termos do artigo 263.o, primeiro e sexto parágrafos, TFUE:

    «O Tribunal de Justiça da União Europeia fiscaliza a legalidade dos atos legislativos, dos atos do Conselho, da Comissão e do Banco Central Europeu, que não sejam recomendações ou pareceres, e dos atos do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu destinados a produzir efeitos jurídicos em relação a terceiros. O Tribunal fiscaliza também a legalidade dos atos dos órgãos ou organismos da União destinados a produzir efeitos jurídicos em relação a terceiros.

    […]

    Os recursos previstos no presente artigo devem ser interpostos no prazo de dois meses a contar, conforme o caso, da publicação do ato, da sua notificação ao recorrente ou, na falta desta, do dia em que o recorrente tenha tomado conhecimento do ato.»

    5

    Segundo o artigo 269.o TFUE:

    «O Tribunal de Justiça é competente para se pronunciar sobre a legalidade de um ato adotado pelo Conselho Europeu ou pelo Conselho nos termos do artigo 7.o [TUE] apenas a pedido do Estado‑Membro relativamente ao qual tenha havido uma constatação do Conselho Europeu ou do Conselho e apenas no que se refere à observância das disposições processuais previstas no referido artigo.

    Esse pedido deve ser formulado no prazo de um mês a contar da data da referida constatação. O Tribunal pronuncia‑se no prazo de um mês a contar da data do pedido.»

    Protocolo (n.o 24)

    6

    O artigo único do Protocolo (n.o 24) relativo ao direito de asilo de nacionais dos Estados‑Membros da União Europeia [JO 2010, C 83, p. 305; a seguir «Protocolo (n.o 24)»] dispõe:

    «Atendendo ao nível de proteção dos direitos e liberdades fundamentais por parte dos Estados‑Membros da União Europeia, cada Estado‑Membro será considerado pelos restantes como constituindo um país de origem seguro para todos os efeitos jurídicos e práticos em matéria de asilo. Assim sendo, um pedido de asilo apresentado por um nacional de um Estado‑Membro só pode ser tomado em consideração ou declarado admissível para instrução por outro Estado‑Membro nos seguintes casos:

    […]

    b)

    Se tiver sido desencadeado o processo previsto no n.o 1 do artigo 7.o [TUE], e enquanto o Conselho, ou, se for caso disso, o Conselho Europeu, não tomar uma decisão sobre a questão relativamente ao Estado‑Membro de que o requerente é nacional;

    […]»

    Regimento do Parlamento Europeu

    7

    O artigo 178.o, n.o 3, do Regimento do Parlamento Europeu, na sua versão aplicável no momento da aprovação da resolução impugnada (a seguir «Regimento»), enuncia:

    «Para decidir se um texto foi aprovado ou rejeitado, só entram no cálculo dos votos expressos os votos a favor ou contra, salvo nos casos em que os Tratados preveem uma maioria específica.»

    8

    O artigo 226.o, n.o 1, do Regimento dispõe:

    «Em caso de dúvidas quanto à aplicação ou à interpretação do presente Regimento, o Presidente poderá decidir enviar a questão à comissão competente para apreciação.

    Os presidentes das comissões podem agir do mesmo modo se surgirem dúvidas semelhantes durante os trabalhos em comissão, relacionadas com esses trabalhos.»

    9

    Resulta do anexo V, secção XVIII, ponto 8, do Regimento que a Comissão dos Assuntos Constitucionais do Parlamento é competente em matéria de interpretação do mesmo.

    Antecedentes do litígio

    10

    Por Resolução de 17 de maio de 2017 sobre a situação na Hungria [2017/2656 (RSP)] (JO 2018, C 307, p. 75), o Parlamento encarregou a Comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos de elaborar um relatório específico a respeito deste Estado‑Membro, com o objetivo de pôr à votação, em sessão plenária, uma proposta fundamentada solicitando ao Conselho da União Europeia que adotasse as medidas previstas no artigo 7.o, n.o 1, TUE. Este relatório foi aprovado em 25 de junho de 2018.

    11

    Por carta de 10 de setembro de 2018, o representante permanente da Hungria junto da União informou o secretário‑geral do Parlamento da posição do Governo húngaro segundo a qual as abstenções deviam ser consideradas na votação da resolução impugnada, em conformidade com o artigo 354.o TFUE e o artigo 178.o, n.o 3, do Regimento, e pediu que os membros do Parlamento fossem informados disso.

    12

    Em 10 de setembro de 2018, o secretário‑geral adjunto do Parlamento informou os deputados por mensagem de correio eletrónico de que, no âmbito do cálculo dos votos expressos, só seriam considerados os votos a favor ou contra a aprovação da resolução, com exclusão das abstenções.

    13

    Em 12 de setembro de 2018, o Parlamento Europeu procedeu à votação da resolução impugnada. 448 membros expressaram um voto favorável a essa resolução, 197 membros expressaram um desfavorável e 48 membros abstiveram‑se. Após a votação, o presidente da sessão anunciou que a resolução impugnada tinha sido aprovada.

    Pedidos das partes e tramitação do processo no Tribunal de Justiça

    14

    A Hungria pede que o Tribunal de Justiça se digne:

    anular a resolução impugnada;

    condenar o Parlamento nas despesas.

    15

    O Parlamento pede que o Tribunal de Justiça se digne:

    julgar o recurso manifestamente inadmissível ou, a título subsidiário, improcedente;

    condenar a Hungria nas despesas.

    16

    Em conformidade com o artigo 16.o, terceiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, a Hungria solicitou ao Tribunal de Justiça que julgasse o processo em Grande Secção.

    17

    Por Despacho de 14 de maio de 2019, Hungria/Parlamento (C‑650/18, não publicado, EU:C:2019:438), o Tribunal de Justiça ordenou que o parecer do serviço jurídico do Parlamento, que figurava no anexo 5 da petição da Hungria, fosse retirado dos autos e indeferiu o pedido de apresentação de documento formulado por este Estado‑Membro.

    18

    Por Decisão de 22 de maio de 2019, o presidente do Tribunal de Justiça admitiu a intervenção da República da Polónia em apoio dos pedidos da Hungria.

    Quanto ao recurso

    Quanto à competência do Tribunal de Justiça e à admissibilidade do recurso

    Argumentos das partes

    19

    O Parlamento invoca a inadmissibilidade do presente recurso de anulação porquanto resulta do artigo 269.o TFUE e, a título subsidiário, do artigo 263.o TFUE que a resolução impugnada não pode ser objeto de semelhante recurso.

    20

    No que respeita, em primeiro lugar, ao artigo 269.o TFUE, o Parlamento considera que resulta da interpretação literal desta disposição que a mesma limita a competência do Tribunal de Justiça aos atos definitivos adotados pelo Conselho ou pelo Conselho Europeu nos termos do artigo 7.o TUE.

    21

    Na sua opinião, essa interpretação é corroborada pela génese do artigo 269.o TFUE. Com efeito, resulta da evolução dos Tratados que a sujeição do processo previsto no artigo 7.o TUE a uma certa fiscalização do Tribunal de Justiça apenas ocorreu de modo gradual. Por conseguinte, os atos adotados ao abrigo desta última disposição, que não são abrangidos pelo âmbito de aplicação material do artigo 269.o TFUE, continuam a pertencer à «esfera política» dos Tratados, a qual não é objeto de nenhuma fiscalização jurisdicional.

    22

    Por outro lado, o artigo 269.o TFUE deve ser considerado uma lex specialis relativamente ao artigo 263.o TFUE e figura entre as disposições que, como os artigos 271.o, 275.o e 276.o TFUE, preveem uma possibilidade limitada de fiscalização jurisdicional em domínios específicos predefinidos.

    23

    Além disso, não é coerente que, com exceção dos seus aspetos processuais, as constatações do Conselho e do Conselho Europeu, que são expressamente referidas no artigo 269.o TFUE e podem ter graves consequências para o Estado‑Membro em causa, estejam, no essencial, excluídas de qualquer fiscalização jurisdicional, por força do artigo 269.o TFUE, enquanto uma simples proposta destinada a desencadear o processo previsto no artigo 7.o TUE pode ser objeto de uma fiscalização jurisdicional completa.

    24

    Em segundo lugar, o Parlamento considera que o recurso, mesmo admitindo que deva ser examinado à luz do artigo 263.o TFUE, é inadmissível pelo facto de a resolução impugnada não apresentar as características de um «ato impugnável», na aceção do primeiro parágrafo deste artigo.

    25

    Com efeito, essa resolução não implica nenhuma alteração da situação jurídica da Hungria, uma vez que apenas desencadeia o processo previsto no artigo 7.o TUE sem vincular o Conselho quanto à constatação suscetível de ser adotada. Além disso, ainda que a aprovação da referida resolução permitisse aos nacionais húngaros apresentar um pedido de asilo noutro Estado‑Membro, em virtude do artigo único, alínea b), do Protocolo (n.o 24), essa possibilidade não implicaria efeitos prejudiciais para esses nacionais ou para qualquer outro cidadão da União ou a própria Hungria.

    26

    Por outro lado, no seu Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário) (C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586), o Tribunal de Justiça limitou‑se a declarar que as informações factuais contidas numa proposta fundamentada adotada em conformidade com o artigo 7.o, n.o 1, TUE constituem um elemento particularmente pertinente quando se trata de apreciar, em abstrato, se existe um risco real de violação dos direitos fundamentais no Estado‑Membro de emissão de um mandado de detenção europeu. Por conseguinte, esse acórdão não permite considerar que tais propostas produzem efeitos jurídicos vinculativos.

    27

    Além disso, a resolução impugnada deve ser considerada um ato intermédio, na medida em que não fixa a posição definitiva do Parlamento. Ora, só as medidas intermédias que tenham efeitos jurídicos imediatos, certos e suficientemente vinculativos podem ser objeto de uma fiscalização jurisdicional direta, o que não é o caso da resolução impugnada.

    28

    A Hungria, apoiada pela República da Polónia, considera que o recurso é admissível pelo facto de a resolução impugnada ser um ato impugnável, na aceção do artigo 263.o TFUE, tendo em conta os efeitos que produz, nomeadamente por força do artigo único, alínea b), do Protocolo (n.o 24), e o ensinamento que decorre do Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário) (C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586). Por outro lado, o artigo 269.o TFUE é de interpretação estrita e não priva o Tribunal de Justiça da sua competência para conhecer do presente recurso.

    Apreciação do Tribunal de Justiça

    29

    Em primeiro lugar, importa examinar se, como sustenta o Parlamento, o Tribunal de Justiça é, por força do artigo 269.o TFUE, incompetente para conhecer do presente recurso.

    30

    A este respeito, há que salientar, primeiro, que, em conformidade com esse artigo, o Tribunal de Justiça é competente para se pronunciar sobre a legalidade de um ato adotado pelo Conselho Europeu ou pelo Conselho, nos termos do artigo 7.o TUE, apenas a pedido do Estado‑Membro relativamente ao qual tenha havido uma constatação do Conselho ou do Conselho Europeu e apenas no que se refere à observância das regras processuais previstas no referido artigo 7.o TUE. Além disso, esse pedido deve ser apresentado no prazo de um mês a contar da data dessa constatação.

    31

    O artigo 269.o TFUE, na medida em que sujeita a possibilidade de interpor recurso de anulação dos atos adotados pelo Conselho Europeu ou pelo Conselho ao abrigo do artigo 7.o TUE a condições mais estritas do que as impostas no artigo 263.o TFUE, comporta uma limitação à competência geral que este artigo confere ao Tribunal de Justiça da União Europeia para fiscalizar a legalidade dos atos das instituições da União, pelo que deve ser interpretado de forma restritiva. (v., por analogia, Acórdão de 19 de julho de 2016, H/Conselho e o., C‑455/14 P, EU:C:2016:569, n.o 40 e jurisprudência referida).

    32

    Segundo, há que observar que o artigo 269.o TFUE visa apenas os atos do Conselho e do Conselho Europeu adotados no âmbito do processo previsto no artigo 7.o TUE. As resoluções do Parlamento, aprovadas ao abrigo do artigo 7.o, n.o 1, TUE, não são mencionadas neste artigo 269.o

    33

    Por conseguinte, deduz‑se da redação deste último artigo que os autores dos Tratados não pretenderam excluir um ato como a resolução impugnada da competência geral reconhecida ao Tribunal de Justiça da União Europeia pelo artigo 263.o TFUE, para efeitos de fiscalizar a legalidade dos atos das instituições da União.

    34

    De resto, esta interpretação do artigo 269.o TFUE é suscetível de contribuir para o respeito do princípio segundo o qual a União Europeia é uma União de direito que estabeleceu um sistema completo de vias de recurso e de processos destinado a confiar ao Tribunal de Justiça da União Europeia a fiscalização da legalidade dos atos das instituições da União (v., neste sentido, Acórdãos de 23 de abril de 1986, Les Verts/Parlamento, 294/83, EU:C:1986:166, n.o 23; de 28 de março de 2017, Rosneft, C‑72/15, EU:C:2017:236, n.o 66 e jurisprudência referida; e de 5 de novembro de 2019, BCE e o./Trasta Komercbanka e o., C‑663/17 P, C‑665/17 P e C‑669/17 P, EU:C:2019:923, n.o 54).

    35

    Contrariamente ao que sustenta o Parlamento, esta conclusão não é posta em causa pelo contexto em que se inscreve o artigo 269.o TFUE. Com efeito, basta salientar que os artigos 271.o, 275.o e 276.o TFUE, com os quais o Parlamento compara este artigo 269.o, não privam o Tribunal de Justiça de competência para fiscalizar, em virtude do artigo 263.o TFUE, a legalidade dos atos da União neles visados e, em todo o caso, incidem sobre domínios totalmente alheios ao processo previsto no artigo 7.o TUE. Por outro lado, esses artigos 271.o, 275.o e 276.o TFUE estão redigidos em termos sensivelmente diferentes dos do artigo 269.o TFUE, pelo que não se pode retirar dos mesmos nenhum ensinamento útil para interpretar este último artigo.

    36

    Daqui decorre que o artigo 269.o TFUE não é suscetível de excluir a competência do Tribunal de Justiça para conhecer do presente recurso.

    37

    Em segundo lugar, no que respeita à admissibilidade deste recurso, é jurisprudência constante que o recurso de anulação previsto no artigo 263.o TFUE pode ser interposto contra todas as disposições adotadas pelas instituições, seja qual for a sua forma, que visem produzir efeitos jurídicos vinculativos (Acórdãos de 26 de março de 2019, Comissão/Itália, C‑621/16 P, EU:C:2019:251, n.o 44, e de 9 de julho de 2020, República Checa/Comissão, C‑575/18 P, EU:C:2020:530, n.o 46 e jurisprudência referida).

    38

    Para determinar se um ato produz esses efeitos e, por conseguinte, é suscetível de ser objeto de recurso de anulação em virtude do artigo 263.o TFUE, importa atender à substância desse ato e apreciar os referidos efeitos à luz de critérios objetivos, como o conteúdo desse mesmo ato, tendo em conta, sendo caso disso, o contexto da sua adoção e os poderes da instituição que dele é autora (Acórdão de 9 de julho de 2020, República Checa/Comissão, C‑575/18 P, EU:C:2020:530, n.o 47 e jurisprudência referida).

    39

    No caso em apreço, importa salientar que a aprovação da resolução impugnada desencadeia ao processo previsto no artigo 7.o, n.o 1, TUE. Ora, por força do artigo único, alínea b), do Protocolo (n.o 24), logo que seja desencadeado este processo e enquanto o Conselho ou o Conselho Europeu não tiver tomado uma decisão relativamente ao Estado‑Membro em causa, um Estado‑Membro pode, por derrogação à regra de princípio estabelecida nesse artigo único, tomar em consideração ou declarar admissível para instrução um pedido de asilo apresentado por um nacional de um Estado‑Membro que seja objeto do referido processo.

    40

    Daqui decorre que a aprovação da resolução impugnada tem por efeito imediato afastar a proibição que, em princípio, impende sobre os Estados‑Membros de tomarem em consideração ou de declararem admissível para instrução um pedido de asilo apresentado por um nacional húngaro. Esta resolução altera, portanto, no âmbito das relações entre Estados‑Membros, a situação da Hungria no domínio do direito de asilo.

    41

    Por conseguinte, a resolução impugnada produz efeitos jurídicos vinculativos desde a sua aprovação e enquanto o Conselho não se tiver pronunciado sobre o seguimento que lhe deve ser dado.

    42

    Todavia, o Parlamento sustenta que a resolução impugnada constitui um ato intermédio que exprime uma posição provisória, que não é suscetível de ser objeto de uma fiscalização jurisdicional ao abrigo do artigo 263.o TFUE.

    43

    A este respeito, há que recordar que medidas intermédias cujo objetivo é preparar a decisão final não constituem, em princípio, atos que possam ser objeto de recurso de anulação (Acórdão de 15 de março de 2017, Stichting Woonlinie e o./Comissão, C‑414/15 P, EU:C:2017:215, n.o 44 e jurisprudência referida).

    44

    Todavia, por um lado, os atos intermédios assim visados são, em primeiro lugar, atos que exprimem uma opinião provisória da instituição em causa (v., neste sentido, Acórdão de 13 de outubro de 2011, Deutsche Post e Alemanha/Comissão, C‑463/10 P e C‑475/10 P, EU:C:2011:656, n.o 50).

    45

    Ora, não se pode considerar que uma resolução, como a resolução impugnada, pela qual o Parlamento solicita ao Conselho que, em conformidade com o artigo 7.o, n.o 1, TUE, declare a existência de um risco manifesto de violação grave dos valores referidos no artigo 2.o TUE por parte de um Estado‑Membro, constitui a expressão de uma posição provisória do Parlamento, não obstante o facto de uma constatação posterior pelo Conselho dessa natureza estar subordinada, sendo caso disso, à aprovação prévia do Parlamento por força do artigo 7.o, n.o 1, TUE. Com efeito, semelhante aprovação só ocorrerá na medida em que o Conselho verifique a existência desse risco e, além disso, incidirá sobre um ato que resultará de uma apreciação da existência desse risco, específica do Conselho, e poderá ser diferente da apreciação realizada pelo Parlamento por ocasião da aprovação da resolução impugnada.

    46

    Por outro lado, resulta igualmente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que um ato intermédio que produz efeitos jurídicos autónomos é suscetível de ser objeto de recurso de anulação na medida em que não se pode sanar a ilegalidade associada a esse ato num recurso da decisão final de que este constitui uma fase de elaboração (v., neste sentido, nomeadamente, Acórdãos de 30 de junho de 1992, Espanha/Comissão, C‑312/90, EU:C:1992:282, n.os 21 e 22; de 30 de junho de 1992, Itália/Comissão, C‑47/91, EU:C:1992:284, n.os 27 e 28; e de 13 de outubro de 2011, Deutsche Post e Alemanha/Comissão, C‑463/10 P e C‑475/10 P, EU:C:2011:656, n.os 53, 54 e 60).

    47

    No caso em apreço, é certo que a Hungria pode, como sustenta o Parlamento, invocar a ilegalidade da resolução impugnada como fundamento do seu eventual recurso de anulação da constatação da existência de um risco manifesto de violação grave dos valores da União, constatação que é adotada pelo Conselho, com base no artigo 7.o, n.o 1, TUE, na sequência dessa resolução.

    48

    Todavia, além do facto de, como salientou o advogado‑geral no n.o 100 das suas conclusões, o Conselho não estar obrigado a tomar posição sobre a resolução impugnada, o eventual sucesso da interposição de um recurso de anulação de uma constatação adotada pelo Conselho ao abrigo do artigo 7.o, n.o 1, TUE não permite, de qualquer modo, eliminar a totalidade dos efeitos jurídicos vinculativos produzidos por essa resolução e referidos no n.o 40 do presente acórdão.

    49

    Nestas condições, importa considerar que a resolução impugnada é um ato impugnável, na aceção do artigo 263.o, primeiro parágrafo, TFUE.

    50

    Por último, no que respeita à afirmação, em apoio da exceção de inadmissibilidade do Parlamento, segundo a qual os efeitos jurídicos da resolução impugnada não dizem diretamente respeito à Hungria, há que acrescentar ao que foi salientado no n.o 40 do presente acórdão que, por força do artigo 263.o, segundo parágrafo, TFUE, um Estado‑Membro não tem, em todo o caso, de justificar nem que o ato da União cuja anulação procura obter lhe diz direta e individualmente respeito nem que dispõe de interesse em agir (v., quanto a este último aspeto, Acórdão de 5 de setembro de 2012, Parlamento/Conselho, C‑355/10, EU:C:2012:516, n.o 37 e jurisprudência referida).

    51

    Não obstante, em terceiro lugar, a competência geral que o artigo 263.o TFUE reconhece ao Tribunal de Justiça da União Europeia para fiscalizar a legalidade dos atos das instituições da União não pode ser interpretada de uma forma que seja suscetível de privar de efeito útil a limitação a essa competência geral prevista no artigo 269.o TFUE (v., por analogia, Acórdão de 1 de julho de 2010, Povse, C‑211/10 PPU, EU:C:2010:400, n.o 78).

    52

    Daqui decorre que, quando o artigo 263.o TFUE constitui, como no caso em apreço, o fundamento de um recurso de anulação de um ato adotado por uma instituição da União ao abrigo do artigo 7.o TUE, este artigo 263.o TFUE não pode ser aplicado independentemente do artigo 269.o TFUE, mas deve, pelo contrário, ser interpretado à luz deste último artigo.

    53

    A este respeito, importa salientar que o artigo 269.o TFUE sujeita os recursos de anulação dos atos do Conselho e do Conselho Europeu adotados ao abrigo do artigo 7.o TUE a certas condições específicas que visam ter em conta a natureza especial do processo instituído por esta última disposição. Assim, as condições referidas no artigo 269.o, primeiro parágrafo, TFUE reservam o direito de interpor esse recurso exclusivamente ao Estado‑Membro em causa nesse processo e restringem os fundamentos de recurso suscetíveis de ser invocados exclusivamente às alegações relativas à violação das regras processuais visadas no artigo 7.o TUE.

    54

    Ora, admitir que, com base no artigo 263.o TFUE, pode ser interposto um recurso de anulação de uma proposta fundamentada do Parlamento, adotada ao abrigo do artigo 7.o, n.o 1, TUE, por um recorrente diferente do Estado‑Membro que dela é objeto, e que, em apoio desse recurso, pode ser invocado qualquer dos fundamentos referidos no artigo 263.o, segundo parágrafo, TFUE privaria, em grande medida, do seu efeito útil as condições específicas, previstas no artigo 269.o TFUE, a que está sujeita a interposição de um recurso de anulação da constatação do Conselho referida no artigo 7.o, n.o 1, TUE, suscetível de ser adotada na sequência dessa proposta.

    55

    Assim, se essa proposta fundamentada do Parlamento viesse a ser anulada a pedido de semelhante recorrente, o Conselho ficaria impedido de verificar a existência de um risco manifesto de violação grave dos valores da União, não obstante, em conformidade com o artigo 269.o, primeiro parágrafo, TFUE, esse recorrente não poder tentar obter a anulação de semelhante constatação.

    56

    Do mesmo modo, se essa proposta viesse a ser anulada com base num fundamento diferente dos referidos no artigo 269.o TFUE, o Conselho também ficaria impedido de verificar a existência de semelhante risco, não obstante, em conformidade com o mesmo artigo, esse fundamento não poder ser invocado para obter a anulação de semelhante constatação.

    57

    Em contrapartida, a possibilidade de o Estado‑Membro objeto de uma proposta fundamentada do Parlamento, adotada ao abrigo do artigo 7.o, n.o 1, TUE, interpor recurso de anulação dessa proposta no prazo de dois meses a contar da sua publicação, como prevê o artigo 263.o, sexto parágrafo, TFUE, não é suscetível de prejudicar o efeito útil das disposições específicas a que está sujeito, por força do artigo 269.o TFUE, o recurso de anulação da constatação do Conselho adotada ao abrigo do artigo 7.o, n.o 1, TUE.

    58

    Consequentemente, ainda que, em conformidade com o artigo 269.o, segundo parágrafo, TFUE, o recurso de anulação dessa constatação deva ser interposto no prazo de um mês a contar da data da sua adoção, exigir que o recurso de anulação da proposta fundamentada do Parlamento, adotada ao abrigo do artigo 7.o, n.o 1, TUE, seja sujeito a idêntica redução do prazo de interposição vai além do que é necessário para preservar o efeito útil desse artigo 269.o

    59

    Resulta das considerações expostas nos n.os 54 a 58 do presente acórdão que um recurso de anulação, ao abrigo do artigo 263.o TFUE, de uma proposta fundamentada adotada pelo Parlamento em conformidade com o artigo 7.o TUE só pode ser interposto pelo Estado‑Membro objeto dessa proposta no prazo de dois meses a contar da sua adoção. Além disso, os fundamentos de anulação invocados em apoio desse recurso só podem estar relacionados com a violação das regras processuais visadas no artigo 7.o TUE.

    60

    No caso em apreço, a Hungria é o Estado‑Membro objeto da resolução impugnada. Além disso, o recurso deste Estado‑Membro foi interposto no prazo previsto no artigo 263.o, segundo parágrafo, TFUE.

    61

    Resulta de todas as considerações precedentes que o presente recurso de anulação é admissível, sem prejuízo da questão de saber se o Tribunal de Justiça pode conhecer de cada um dos fundamentos desenvolvidos em apoio deste recurso.

    Quanto aos fundamentos do recurso

    62

    Em apoio do seu recurso, a Hungria invoca quatro fundamentos: O primeiro fundamento é relativo à violação do artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE e do artigo 178.o, n.o 3, do Regimento. O segundo fundamento é relativo à violação do princípio da segurança jurídica. Com o seu terceiro fundamento, a Hungria acusa o Parlamento de ter violado os princípios da democracia e da igualdade de tratamento. O quarto fundamento é relativo a uma violação dos princípios da cooperação leal, da cooperação de boa‑fé entre as instituições, do respeito das expectativas legítimas e da segurança jurídica.

    63

    Tendo em conta a sua conexão, importa, em primeiro lugar, examinar conjuntamente o primeiro e terceiro fundamentos de recurso.

    Quanto ao primeiro e terceiro fundamentos, relativos à violação do artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE, do artigo 178.o, n.o 3, do Regimento e dos princípios da democracia e da igualdade de tratamento

    – Argumentos das partes

    64

    Com o seu primeiro fundamento, a Hungria sustenta que o Parlamento excluiu, erradamente, as abstenções da contagem dos votos expressos para efeitos da aprovação da resolução impugnada.

    65

    Segundo esse Estado‑Membro, a exigência, imposta pelo artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE, de uma maioria qualificada com vista à adoção, pelo Parlamento, de uma proposta fundamentada ao abrigo do artigo 7.o, n.o 1, TUE demonstra a importância desse ato. Ora, uma interpretação dessa disposição do Tratado FUE no sentido de que as abstenções devem ser consideradas votos expressos, de modo que seria exigido um maior número de votos favoráveis para a adoção desse ato, permite precisamente confirmar essa importância.

    66

    O contexto em que se inscreve o artigo 354.o TFUE milita igualmente a favor dessa interpretação. Assim, resulta do primeiro parágrafo deste artigo que, no âmbito do processo previsto no artigo 7.o, n.o 1, TUE, para determinar se foi alcançada a maioria qualificada de quatro quintos dos membros do Conselho, há que ter em conta os votos de todos os Estados‑Membros, com exceção do Estado‑Membro em causa, quer se trate de um voto favorável, de um voto desfavorável ou de uma abstenção.

    67

    Por outro lado, ao impor uma maioria de dois terços dos votos expressos que representem a maioria dos membros do Parlamento, o artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE prevê uma maioria específica, na aceção do último membro de frase do artigo 178.o, n.o 3, do Regimento. Ora, decorre desta última disposição que, se os Tratados previrem uma maioria específica, tanto os votos a favor e contra a proposta colocada à votação como as abstenções devem ser considerados votos expressos.

    68

    Em contrapartida, a própria redação dessa disposição do Regimento opõe‑se a que a exceção nela prevista em caso de maioria específica imposta pelos Tratados seja interpretada no sentido de que só se aplica ao cálculo da maioria dos membros do Parlamento. Com efeito, a referida disposição contém uma oposição muito clara entre a situação em que só os votos a favor ou contra o texto em causa devem ser considerados no cálculo do número de votos expressos e as situações em que esse texto só pode ser validamente aprovado mediante uma maioria específica prevista nos Tratados.

    69

    De resto, em sessão plenária do Parlamento, os deputados exprimem o seu voto escolhendo entre os botões «a favor», «contra» ou «abstenção». Daqui resulta claramente que a abstenção é uma das formas de expressão do voto.

    70

    A República da Polónia alega que o artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE deve ser entendido, à luz do primeiro parágrafo deste artigo, como uma obrigação de considerar as abstenções como votos expressos. Com efeito, a indicação que figura no artigo 354.o, primeiro parágrafo, último período, TFUE segundo o qual, no Conselho Europeu, as abstenções não devem ser consideradas constitui uma exceção à regra, pelo que a inexistência de idêntica indicação no artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE demonstra a contrario que as abstenções devem ser consideradas quando o Parlamento delibera para efeitos do artigo 7.o TUE.

    71

    Além disso, segundo esse Estado‑Membro, considerar que a última parte do artigo 178.o, n.o 3, do Regimento foi introduzida para confirmar o facto de que, nos casos em que os Tratados preveem uma maioria específica, não basta uma maioria simples para adotar uma decisão seria ilógico, tendo em conta a redação do artigo 83.o, n.o 3, do referido Regimento, que faz expressamente referência à maioria prevista no artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE. Por último, o referido Estado‑Membro sublinha que o artigo 180.o do Regimento prevê formalmente a possibilidade de se abster.

    72

    O Parlamento considera que, embora o artigo 354.o TFUE não especifique se as abstenções devem ser consideradas nos votos expressos, tal disposição confere‑lhe a faculdade de regulamentar essa questão no seu Regimento. Ora, decorre do artigo 178.o, n.o 3, deste Regimento que as abstenções não tinham de ser consideradas no caso em apreço, uma vez que a exceção que figura no fim desta disposição visa unicamente derrogar o princípio, consagrado no artigo 231.o, n.o 1, TFUE, segundo o qual a maioria é alcançada se houver mais votos favoráveis do que votos desfavoráveis, e deve ser interpretada no sentido de que os votos a favor do texto em causa também devem representar a maioria dos membros do Parlamento.

    73

    Com o seu terceiro fundamento, a Hungria alega, por um lado, que o artigo 354.o TFUE e o artigo 178.o, n.o 3, do Regimento deviam ter sido interpretados à luz do princípio da democracia, consagrado no artigo 2.o TUE, impondo a consideração das abstenções no cálculo dos votos expressos, o que teria permitido assegurar da melhor forma os valores democráticos da União mediante a garantia de uma plena representação popular.

    74

    A forma como, no caso em apreço, o Parlamento contabilizou os votos expressos conduz, pelo contrário, a esvaziar a abstenção de sentido enquanto opção de voto. Os membros do Parlamento não dispuseram de todas as possibilidades decorrentes do exercício das suas funções, sem que esta restrição assente num objetivo legítimo.

    75

    Por outro lado, a interpretação do artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE e do Regimento adotada pelo Parlamento implica uma desigualdade de tratamento, que não pode ser justificada por nenhum objetivo legítimo, entre os membros do Parlamento que se abstiveram na votação da resolução impugnada e os membros do Parlamento que expressaram um voto a seu respeito.

    76

    O Parlamento considera que a Hungria alterou o sentido do seu terceiro fundamento na réplica, ao sustentar aí que o Parlamento tinha violado o artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE e o artigo 178.o, n.o 3, do Regimento. Este argumento não é compreensível e, por conseguinte, é inadmissível. Em todo o caso, o terceiro fundamento da Hungria não é procedente.

    – Apreciação do Tribunal de Justiça

    77

    A título preliminar, importa salientar, primeiro, que o Tribunal de Justiça não pode conhecer do primeiro fundamento na medida em que, com o mesmo, a Hungria acusa o Parlamento de, para efeitos da aprovação da resolução impugnada, ter violado o artigo 178.o, n.o 3, do Regimento. Com efeito, esta disposição não pode ser considerada uma regra processual prevista no artigo 7.o TUE, na aceção do artigo 269.o TFUE, contrariamente às que figuram no artigo 354.o TFUE, o qual é expressamente referido no artigo 7.o, n.o 5, TUE.

    78

    Segundo, no que respeita à exceção de inadmissibilidade, suscitada pelo Parlamento a respeito do terceiro fundamento, importa recordar que, por força do artigo 120.o, alínea c), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça e da jurisprudência a ele relativa, a petição inicial deve indicar o objeto do litígio, os fundamentos e argumentos invocados e a exposição sumária desses fundamentos. Essa indicação deve ser suficientemente clara e precisa para permitir ao demandado preparar a sua defesa e ao Tribunal de Justiça exercer a sua fiscalização. Daqui resulta que os elementos essenciais de facto e de direito em que a ação ou recurso se funda devem decorrer, de forma coerente e compreensível, do texto da própria petição e que os pedidos desta última devem ser formulados de forma inequívoca, a fim de evitar que o Tribunal de Justiça decida ultra petita ou não decida quanto a uma das acusações (Acórdão de 16 de abril de 2015, Parlamento/Conselho, C‑540/13, EU:C:2015:224, n.o 9 e jurisprudência referida).

    79

    No caso em apreço, decorre da petição inicial que, com o seu terceiro fundamento, a Hungria contesta, em substância, a conformidade da resolução impugnada, nomeadamente, com o artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE, lido em conjugação com o princípio da democracia e o princípio da igualdade de tratamento, pelo facto de as abstenções não terem sido consideradas no cálculo dos votos expressos.

    80

    Uma vez que essa alegação foi invocada na fase da petição e não é ambígua, há que julgar improcedente a exceção de inadmissibilidade suscitada pelo Parlamento.

    81

    Por outro lado, na medida em que, como foi salientado no n.o 79 do presente acórdão, com esse terceiro fundamento, a Hungria não invoca de forma isolada a violação dos princípios da democracia e da igualdade de tratamento, mas pretende demonstrar que a aprovação da resolução impugnada violou, nomeadamente, a regra processual referida no artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE, lida à luz desses princípios, o Tribunal de Justiça pode conhecer do terceiro fundamento, como resulta do n.o 59 do presente acórdão.

    82

    Quanto ao mérito, importa sublinhar, em primeiro lugar, que, por força do artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE, quando é chamado a tomar uma decisão ao abrigo do artigo 7.o TUE, o Parlamento delibera por maioria de dois terços dos votos expressos que representem a maioria dos membros que o compõem.

    83

    Uma vez que os Tratados não definem o que se deve entender por «votos expressos», este conceito autónomo do direito da União deve ser interpretado de acordo com o seu sentido habitual na linguagem comum, tendo em conta o contexto em que é utilizado e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (v., por analogia, Acórdão de 23 de abril de 2020, Associazione Avvocatura per i diritti LGBTI, C‑507/18, EU:C:2020:289, n.o 32 e jurisprudência referida).

    84

    Ora, como salientou o advogado‑geral nos n.os 128 a 130 das suas conclusões, o conceito de «votos expressos» só engloba, no seu sentido habitual, a manifestação de um voto positivo ou negativo sobre uma dada proposta. Uma vez que a abstenção deve ser entendida, no seu sentido habitual, como o facto de recusar tomar posição sobre uma dada proposta, não pode a mesma ser equiparada a um «voto expresso».

    85

    Dito isto, há que recordar que a regra de maioria estabelecida no artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE comporta uma dupla exigência. Com efeito, os atos adotados pelo Parlamento ao abrigo do artigo 7.o TUE devem obter o acordo, por um lado, de dois terços dos votos expressos e, por outro, da maioria dos membros do Parlamento.

    86

    Ao impor que os atos adotados pelo Parlamento ao abrigo do artigo 7.o TUE obtenham essa dupla maioria, os autores do Tratado FUE sublinharam a importância desses atos, tanto no plano político como constitucional.

    87

    Assim, embora não se possa, pelos motivos expostos no n.o 84 do presente acórdão, considerar as abstenções para determinar se foi alcançada uma maioria de dois terços de votos expressos a favor da adoção de semelhante ato, essas abstenções entram, em contrapartida, em linha de conta para verificar, como exige o artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE, que os votos favoráveis representam a maioria dos membros que compõem o Parlamento. Com efeito, em conformidade com esta regra de maioria, não pode ser adotada uma proposta fundamentada do Parlamento, ao abrigo do artigo 7.o TUE, se o número de membros que votaram a seu favor não ultrapassar o restante número de membros do Parlamento, quer estes tenham votado contra essa proposta, se tenham abstido ou tenham estado ausentes durante a votação.

    88

    Resulta das considerações expostas nos n.os 84 a 87 do presente acórdão que o artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE deve ser interpretado no sentido de que, para efeitos do artigo 7.o TUE, não há que considerar as abstenções no cálculo da maioria de dois terços dos votos expressos.

    89

    A circunstância de, como alegou a Hungria, as abstenções serem consideradas no cálculo da maioria qualificada de quatro quintos dos membros do Conselho, referida no artigo 7.o, n.o 1, TUE, não é pertinente a este respeito. Com efeito, como resulta do n.o 87 do presente acórdão, é inerente a uma regra de votação que impõe a obtenção de uma maioria dos membros de uma instituição que os que se abstenham de exprimir o seu voto sejam tidos em consideração para determinar se essa maioria dos membros é alcançada, diferentemente do que sucede numa regra de votação que impõe a obtenção de uma maioria dos votos expressos.

    90

    O argumento da República da Polónia, baseado no último período do artigo 354.o, primeiro parágrafo, TFUE, também não pode ser acolhido. Embora seja verdade que esta disposição prevê que as abstenções dos membros presentes ou representados no Conselho Europeu não impedem que o mesmo verifique por unanimidade, ao abrigo do artigo 7.o, n.o 2, TUE, a existência de uma violação grave e persistente, por parte de um Estado‑Membro, dos valores em que a União se funda, daí não decorre, porém, que, na falta dessa precisão no artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE, as abstenções devam ser consideradas no cálculo dos dois terços dos votos expressos no Parlamento.

    91

    A este respeito, importa salientar que a precisão relativa às abstenções expressamente contida no artigo 354.o, primeiro parágrafo, TFUE permite afastar qualquer incerteza quanto ao peso das abstenções dos Estados‑Membros presentes ou representados no Conselho Europeu para efeitos da aplicação do artigo 7.o, n.o 2, TUE.

    92

    Assim, ao prever, no artigo 354.o, primeiro parágrafo, último período, TFUE, que as abstenções não impedem a adoção, por essa instituição, da constatação a que se refere o artigo 7.o, n.o 2, TUE, os autores do Tratado FUE pretenderam excluir expressamente que a abstenção de um único dos Estados‑Membros presentes ou representados no Conselho Europeu, com exceção do Estado‑Membro em causa, possa impedir a referida instituição de verificar a existência de uma violação grave e persistente, por parte desse Estado‑Membro, dos valores em que a União se funda.

    93

    Em contrapartida, contrariamente ao que sustenta a República da Polónia, não era necessário introduzir essa precisão no artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE, uma vez que, como resulta do n.o 84 do presente acórdão, o conceito de «votos expressos» implica, segundo o sentido habitual dos seus termos, que no cálculo desses votos não sejam consideradas as abstenções. Por conseguinte, mesmo sem uma precisão como a contida no artigo 354.o, primeiro parágrafo, TFUE, uma regra que, como o artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE, imponha uma votação por maioria dos votos expressos deve ser entendida no sentido de que exclui a tomada em consideração das abstenções.

    94

    No que respeita, em segundo lugar, à alegada violação do artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE, lido à luz do princípio da democracia e do princípio da igualdade de tratamento, importa sublinhar que estes dois princípios constituem valores em que a União se funda, em conformidade com o artigo 2.o TUE. Além disso, por força do artigo 10.o TUE, o funcionamento da União baseia‑se na democracia representativa e o artigo 20.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia consagra o princípio da igualdade de tratamento.

    95

    No que se refere, por um lado, ao princípio da democracia, há que recordar que a importância política e constitucional de uma proposta fundamentada ao abrigo do artigo 7.o, n.o 1, TUE, como a resolução impugnada, se reflete na dupla maioria exigida, no artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE, para a sua adoção.

    96

    Acresce que, contrariamente ao que sustenta a Hungria, os membros do Parlamento que pretendiam exercer as suas prerrogativas abstendo‑se na votação da resolução impugnada não foram privados dessa possibilidade, uma vez que as abstenções foram consideradas enquanto tais para verificar que votos favoráveis foram expressos por uma maioria dos membros que compõem o Parlamento. Por outro lado, os membros do Parlamento que decidiram abster‑se nessa votação agiram com conhecimento de causa, dado que não se contesta que tinham sido previamente informados de que as abstenções não seriam contabilizadas como votos expressos.

    97

    Daqui decorre que a exclusão das abstenções da contagem dos votos expressos, na aceção do artigo 354.o TFUE, não é contrária ao princípio da democracia.

    98

    Por outro lado, no que respeita ao princípio da igualdade de tratamento, cuja violação é igualmente alegada pela Hungria, há que recordar que este princípio exige que situações comparáveis não sejam tratadas de maneira diferente e que situações diferentes não sejam tratadas de maneira igual, a menos que esse tratamento seja objetivamente justificado (v., neste sentido, Acórdãos de 16 de setembro de 2010, Chatzi, C‑149/10, EU:C:2010:534, n.o 64, e de 8 de setembro de 2020, Comissão e Conselho/Carreras Sequeros e o., C‑119/19 P e C‑126/19 P, EU:C:2020:676, n.o 137).

    99

    No caso em apreço, há que concluir que todos os membros do Parlamento dispuseram das mesmas opções na votação da resolução impugnada, a saber, expressar um voto favorável ou desfavorável à aprovação dessa resolução ou ainda abster‑se nessa votação, e estavam plenamente conscientes, no momento dessa votação, das consequências da escolha que fizessem a esse respeito, em especial do facto de as abstenções, diferentemente dos votos a favor ou contra a referida resolução, não serem considerados no cálculo dos votos expressos. Por conseguinte, e tendo em conta o salientado no n.o 84 do presente acórdão, não se pode considerar que os deputados que fizeram a escolha de se abster nessa votação estão numa situação objetivamente comparável aos que se exprimiram a favor ou contra essa aprovação, para efeitos da contagem dos votos expressos, na aceção do artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE.

    100

    Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que concluir que o Parlamento não violou o artigo 354.o, quarto parágrafo, TFUE, lido à luz dos princípios da democracia e da igualdade de tratamento, ao não contabilizar as abstenções como votos expressos quando da aprovação da resolução impugnada.

    101

    Por conseguinte, devem ser rejeitados o primeiro e terceiro fundamentos.

    Quanto ao segundo e quarto fundamentos, relativos à violação do artigo 4.o, n.o 3, TUE e dos princípios da cooperação de boa‑fé entre as instituições da União, do respeito das expectativas legítimas e da segurança jurídica.

    – Argumentos das partes

    102

    Com o seu segundo fundamento, a Hungria alega que a resolução impugnada viola o princípio da segurança jurídica, pelo facto de ter sido aprovada sem que o Parlamento tenha previamente clarificado a incerteza quanto à interpretação do artigo 178.o, n.o 3, do Regimento, interrogando a Comissão dos Assuntos Constitucionais.

    103

    Embora o artigo 226.o do Regimento deixe ao presidente do Parlamento a incumbência de decidir submeter a questão a essa comissão, não é menos verdade que a referida comissão não pode ser privada das suas competências, permitindo‑se que seja aprovada uma medida com base numa regra cuja interpretação é duvidosa.

    104

    Além disso, não se pode excluir que, no futuro, a Comissão dos Assuntos Constitucionais venha a interpretar o Regimento de forma diferente, pondo em causa, a posteriori, o resultado da votação sobre a resolução impugnada, o que conduziria a uma situação incerta.

    105

    O Parlamento considera este fundamento manifestamente inadmissível e, em todo o caso, improcedente.

    106

    Com o seu quarto fundamento, a Hungria entende que a resolução impugnada viola o artigo 4.o, n.o 3, TUE e os princípios da cooperação de boa‑fé entre as instituições da União, do respeito das expectativas legítimas e da segurança jurídica. Este Estado‑Membro alega, a esse respeito, que, para efeitos da aprovação dessa resolução, o Parlamento se baseou, erradamente, em processos de incumprimento do direito da União que a Comissão tinha encerrado ou a propósito dos quais o referido Estado‑Membro e a Comissão iniciaram um processo de diálogo. Além disso, a Hungria salienta que, apesar da existência desses processos, a Comissão não considerou que era justificado desencadear o processo previsto no artigo 7.o TUE, o que exclui que esses processos de incumprimento possam servir de base para a resolução impugnada.

    107

    O Parlamento tem dúvidas quanto à admissibilidade deste fundamento e, em todo o caso, considera‑o improcedente.

    – Apreciação do Tribunal de Justiça

    108

    Resulta do n.o 59 do presente acórdão que o Tribunal de Justiça só pode decidir da legalidade da resolução impugnada no que se refere à observância das regras processuais previstas no artigo 7.o TUE.

    109

    Ora, com o seu segundo e quarto fundamentos, a Hungria não invoca a violação de nenhuma dessas regras processuais.

    110

    Daqui decorre que o segundo e quarto fundamentos devem ser afastados.

    111

    Tendo em conta todas as considerações precedentes, deve ser negado provimento ao recurso na sua totalidade.

    Quanto às despesas

    112

    Nos termos do artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo o Parlamento pedido a condenação da Hungria nas despesas e tendo esta sido vencida, há que condená‑la nas despesas.

    113

    Em conformidade com o artigo 140.o, n.o 1, do referido regulamento, a República da Polónia suportará as suas próprias despesas enquanto interveniente no litígio.

     

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) decide:

     

    1)

    É negado provimento ao recurso.

     

    2)

    A Hungria é condenada a suportar, além das suas próprias despesas, as despesas efetuadas pelo Parlamento Europeu.

     

    3)

    A República da Polónia suporta as suas próprias despesas.

     

    Assinaturas


    ( *1 ) Língua do processo: húngaro.

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