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Documento 62018CJ0419

Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 7 de novembro de 2019.
Profi Credit Polska S.A. contra Bogumiła Włostowska e o. e Profi Credit Polska S.A. contra OH.
Pedidos de decisão prejudicial apresentados, respetivamente, pelo Sąd Rejonowy dla Warszawy Pragi-Południe w Warszawie e pelo Sąd Okręgowy w Opolu, II Wydział Cywilny Odwoławczy.
Reenvio prejudicial — Proteção dos consumidores — Diretiva 93/13/CEE — Artigo 3.o, n.o 1 — Artigo 6.o, n.o 1 — Artigo 7.o, n.o 1 — Diretiva 2008/48/CE — Artigo 10.o, n.o 2 — Contratos de crédito aos consumidores — Licitude da garantia de um crédito emergente desse contrato que se consubstancia numa livrança emitida em branco — Pedido de pagamento da dívida cartular — Âmbito do conhecimento oficioso do juiz.
Processos apensos C-419/18 e C-483/18.

Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2019:930

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

7 de novembro de 2019 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Proteção dos consumidores — Diretiva 93/13/CEE — Artigo 3.o, n.o 1 — Artigo 6.o, n.o 1 — Artigo 7.o, n.o 1 — Diretiva 2008/48/CE — Artigo 10.o, n.o 2 — Contratos de crédito aos consumidores — Licitude da garantia de um crédito emergente desse contrato que se consubstancia numa livrança emitida em branco — Pedido de pagamento da dívida cartular — Âmbito do conhecimento oficioso do juiz»

Nos processos apensos C‑419/18 e C‑483/18,

que têm por objeto pedidos de decisão prejudicial apresentados, nos termos do artigo 267.o TFUE, respetivamente, pelo Sąd Rejonowy dla Warszawy Pragi‑Południe w Warszawie (Tribunal de Primeira Instância de Varsóvia Praga‑Sul de Varsóvia, Polónia) e pelo Sąd Okręgowy w Opolu, II Wydział Cywilny Odwoławczy (Tribunal Regional de Opole, II.a Secção dos Recursos Cíveis, Polónia), por Decisões de 13 de fevereiro e de 3 de julho de 2018, que deram entrada no Tribunal de Justiça, respetivamente, em 26 de junho e em 24 de julho de 2018, nos processos

Profi Credit Polska S.A.

contra

Bogumiła Włostowska,

Mariusz Kurpiewski,

Kamil Wójcik,

Michał Konarzewski,

Elżbieta Kondracka‑Kłębecka,

Monika Karwowska,

Stanisław Kowalski,

Anna Trusik,

Adam Lizoń,

Włodzimierz Lisowski (C‑419/18),

e

Profi Credit Polska S.A.

contra

OH (C‑483/18),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: J.‑C. Bonichot, presidente de secção, R. Silva de Lapuerta, vice‑presidente do Tribunal de Justiça, M. Safjan, L. Bay Larsen e C. Toader (relatora), juízes,

advogado‑geral: H. Saugmandsgaard Øe,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

em representação do Governo checo, por M. Smolek, J. Vláčil e S. Šindelková, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por G. Goddin, K. Herbout‑Borczak e N. Ruiz García, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação do artigo 3.o, n.o 1, do artigo 6.o, n.o 1, e do artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO 1993, L 95, p. 29), bem como das disposições da Diretiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores e que revoga a Diretiva 87/102/CEE do Conselho (JO 2008, L 133, p. 66; retificações no JO 2009, L 207, p. 14, no JO 2010, L 199, p. 40, no JO 2011, L 234, p. 46, e no JO 2015, L 36, p. 15).

2

Estes pedidos foram apresentados no âmbito de litígios que opõem a Profi Credit Polska S.A., por um lado, a Bogumiła Włostowska, a Mariusz Kurpiewski, a Kamil Wójcik, a Michał Konarzewski, a Elżbieta Kondracka‑Kłębecka, a Monika Karwowska, a Stanisław Kowalski, a Anna Trusik, a Adam Lizoń e a Włodzimierz Lisowski e, por outro, a OH, a respeito de pedidos de pagamento de dívidas cartulares que têm origem em créditos, emergentes de contratos de mútuo, que se baseiam em livranças emitidas em branco por estes últimos.

Quadro jurídico

Direito da União

Diretiva 93/13

3

O vigésimo e vigésimo quarto considerandos da Diretiva 93/13 têm a seguinte redação:

«Considerando que os contratos devem ser redigidos em termos claros e compreensíveis, que o consumidor deve efetivamente ter a oportunidade de tomar conhecimento de todas as cláusulas e que, em caso de dúvida, deve prevalecer a interpretação mais favorável ao consumidor;

[…]

Considerando que as autoridades judiciárias e órgãos administrativos dos Estados‑Membros devem dispor de meios adequados e eficazes para pôr termo à aplicação das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores.»

4

O artigo 1.o, n.o 1, desta diretiva prevê:

«A presente diretiva tem por objetivo a aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas às cláusulas abusivas em contratos celebrados entre profissionais e consumidores.»

5

O artigo 3.o, n.o 1, da referida diretiva dispõe:

«Uma cláusula contratual que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa‑fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.»

6

O artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13 enuncia:

«A avaliação do caráter abusivo das cláusulas não incide nem sobre a definição do objeto principal do contrato nem sobre a adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os bens ou serviços a fornecer em contrapartida, por outro, desde que essas cláusulas se encontrem redigidas de maneira clara e compreensível.»

7

Nos termos do artigo 5.o desta diretiva:

«No caso dos contratos em que as cláusulas propostas ao consumidor estejam, na totalidade ou em parte, consignadas por escrito, essas cláusulas deverão ser sempre redigidas de forma clara e compreensível. Em caso de dúvida sobre o significado de uma cláusula, prevalecerá a interpretação mais favorável ao consumidor. […]»

8

O artigo 6.o, n.o 1, da referida diretiva enuncia:

«Os Estados‑Membros estipularão que, nas condições fixadas pelos respetivos direitos nacionais, as cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional não vinculem o consumidor e que o contrato continue a vincular as partes nos mesmos termos, se puder subsistir sem as cláusulas abusivas.»

9

O artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 está redigido nos seguintes termos:

«Os Estados‑Membros providenciarão para que, no interesse dos consumidores e dos profissionais concorrentes, existam meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores por um profissional.»

Diretiva 2008/48

10

Conforme especificado no seu artigo 1.o, a Diretiva 2008/48 visa a harmonização de determinados aspetos das regras dos Estados‑Membros em matéria de contratos que regulam o crédito aos consumidores.

11

O artigo 10.o, n.o 2, desta diretiva enumera, nomeadamente, os elementos de informação que devem ser especificados de forma clara e concisa nos contratos de crédito.

12

O artigo 14.o da referida diretiva institui, no âmbito do contrato de crédito e em benefício do consumidor, um direito de retratação sem que o consumidor tenha de indicar motivos.

13

O artigo 17.o da Diretiva 2008/48, intitulado «Cessão dos direitos», dispõe, no seu n.o 1:

«Caso os direitos do mutuante ao abrigo de um contrato de crédito ou o próprio contrato sejam cedidos a um terceiro, o consumidor pode exercer em relação ao cessionário qualquer meio de defesa que pudesse invocar perante o mutuante inicial, incluindo o direito à indemnização, desde que esta seja autorizada no Estado‑Membro em causa.»

14

O artigo 19.o desta diretiva precisa as modalidades de cálculo da taxa anual de encargos efetiva global do crédito ao consumo.

15

O artigo 22.o da referida diretiva, intitulado «Harmonização e caráter imperativo da presente diretiva», enuncia:

«1.   Na medida em que a presente diretiva prevê disposições harmonizadas, os Estados‑Membros não podem manter ou introduzir no respetivo direito interno disposições divergentes daquelas que vêm previstas na presente diretiva para além das nela estabelecidas.

2.   Os Estados‑Membros devem assegurar que o consumidor não possa renunciar aos direitos que lhe são conferidos por força das disposições da legislação nacional que dão cumprimento ou correspondem à presente diretiva.

3.   Os Estados‑Membros devem assegurar, além disso, que as disposições que venham a aprovar para dar cumprimento à presente diretiva não possam ser contornadas em resultado da redação dos contratos, em especial integrando levantamentos ou contratos de crédito sujeitos ao âmbito de aplicação da presente diretiva em contratos de crédito cujo caráter ou objetivo permitiria evitar a aplicação desta.

4.   Os Estados‑Membros devem tomar as medidas necessárias para assegurar que o consumidor não seja privado da proteção concedida pela presente diretiva pelo facto de ter sido escolhido o direito de um país terceiro como direito aplicável ao contrato de crédito, desde que este contrato apresente uma relação estreita com o território de um ou mais Estados‑Membros.»

16

Nos termos do artigo 23.o da mesma diretiva, intitulado «Sanções»:

«Os Estados‑Membros devem determinar o regime das sanções aplicáveis à violação das disposições nacionais aprovadas em aplicação da presente diretiva e tomar todas as medidas necessárias para assegurar a aplicação das referidas disposições. As sanções assim previstas devem ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas.»

Direito polaco

17

O artigo 10.o da ustawa prawo wekslowe (Lei relativa ao direito cartular), de 28 de abril de 1936, conforme alterada (Dz. U. de 2016, posição 160) (a seguir «Lei sobre o direito cartular»), enuncia que se não se respeitarem os acordos realizados quando se completar uma letra de câmbio, que não estava completa no momento em que foi emitida, a inobservância desses acordos não pode ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de câmbio de má‑fé ou, adquirindo‑a, tenha cometido uma falta grave.

18

Esta disposição é aplicável às livranças, nos termos do artigo 103.o, n.o 2, desta lei.

19

Nos termos do artigo 17.o da referida lei, as pessoas acionadas em virtude de uma livrança não podem opor ao portador exceções fundadas nas suas relações pessoais com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador, quando adquiriu a livrança, tenha agido conscientemente em detrimento do devedor.

20

Nos termos do artigo 101.o da Lei relativa ao direito cartular:

«A livrança contém:

1)

a palavra “livrança” inserta no próprio texto do documento e expressa na língua empregada para a sua redação;

2)

a promessa pura e simples de pagar uma determinada quantia;

3)

a época do pagamento;

4)

a indicação do lugar em que se deve efetuar o pagamento;

5)

o nome da pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga;

6)

a indicação da data em que e do lugar onde a livrança é passada;

7)

a assinatura do subscritor da livrança.»

21

Nos termos do artigo 233.o, n.os 1 e 2, da ustawa — Kodeks postępowania cywilnego (Lei que aprova o Código de Processo Civil), de 17 de novembro de 1964, texto consolidado, conforme alterado (Dz. U. de 2018, posição 155) (a seguir «kpc»), o juiz aprecia, com base numa análise aprofundada dos elementos reunidos, a credibilidade e o valor dos elementos de prova apresentados. O juiz, baseando‑se nos mesmos elementos reunidos, avalia de que forma deve ser interpretada a recusa de comunicar uma prova ou qualquer ato de uma das partes que impeça a instrução do processo que lhe foi submetido.

22

Nos termos do artigo 248.o, n.o 1, do kpc, cada uma partes é obrigada a comunicar, a pedido do juiz, no prazo concedido e no local indicado, qualquer documento que se encontre na sua posse e que constitua uma prova do facto pertinente para a resolução do processo, salvo se esse documento contiver informações confidenciais.

23

Resulta do artigo 321.o, n.o 1, do kpc que um juiz não se pode «pronunciar sobre um pedido que não tenha sido formulado e [não pode] decidir ultra petita».

24

Em conformidade com o disposto no artigo 339.o, n.os 1 e 2, deste código, será proferida sentença à revelia quando o réu não tiver comparecido em juízo e não tiver apresentado contestação oral ou escrita. Neste caso, as informações comunicadas pelo demandante consideram‑se provadas com base nos factos articulados pelo demandante na petição ou nos articulados notificados ao réu antes da audiência, exceto se suscitarem dúvidas ou se se considerar que tais informações se destinam a contornar a lei.

25

As disposições da Diretiva 2008/48 foram transpostas para o direito polaco pela ustawa o kredycie konsumenckim (Lei sobre o crédito ao consumo), de 12 de maio de 2011, texto consolidado, conforme alterado (Dz. U. de 2016, posição 1528) (a seguir «Lei relativa ao crédito ao consumo»). O artigo 41.o desta dispõe:

«1.   [Numa] livrança […] emitida pelo consumidor que seja entregue ao mutuante para efeitos da execução de ou para garantir uma prestação que tenha origem num contrato de crédito ao consumo, deve ser inserida a menção “não à ordem” ou uma expressão equivalente.

2.   Se o mutuante aceitar uma livrança […] que não contenha a menção “não à ordem” e essa livrança for endossada […] a outra pessoa, o mutuante é obrigado a indemnizar ao consumidor os prejuízos que para este resultarem do pagamento da livrança […]

3.   O disposto no n.o 2 também se aplica quando a livrança ou o cheque se encontrar na posse de outra pessoa, contra a vontade do mutuante.

[…]»

Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

Processo C‑419/18

26

A Profi Credit Polska é uma sociedade com sede na Polónia que tem por principal objeto social a concessão de crédito. Esta sociedade celebrou com cada um dos devedores contratos de crédito ao consumo. No âmbito de cada um desses contratos, o pagamento do respetivo crédito é garantido pela emissão de uma livrança incompleta dita «livrança em branco», na qual nenhum montante é inicialmente inscrito. Não tendo os mutuários cumprido as obrigações contratualmente previstas, a Profi Credit Polska, que é igualmente beneficiária daquelas livranças, completou‑as inscrevendo um montante.

27

Desde 2016, a Profi Credit Polska submeteu diferentes pedidos de pagamento das quantias indicadas nas referidas livranças à apreciação do órgão jurisdicional de reenvio.

28

Aquele órgão jurisdicional indica que, em todos os litígios que se encontram pendentes perante si, a cobrança, pela demandante, dos respetivos créditos se baseia unicamente nas livranças (a seguir «relação cartular»). Por a demandante não apresentar os contratos de crédito, o referido órgão jurisdicional só dispõe, graças à parte demandada, do contrato constitutivo da relação jurídica subjacente à obrigação cartular (a seguir «relação fundamental») no primeiro dos litígios nos processos principais. Nos outros processos, os demandados não se pronunciaram. Por conseguinte, aquele mesmo órgão jurisdicional decidiu não deferir os pedidos da demandante de que estes processos fossem submetidos a procedimentos de injunção, tendo decidido submetê‑los a tramitação comum.

29

O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, em primeiro lugar, sobre se, em conformidade com as Diretivas 93/13 e 2008/48, um profissional que tenha a qualidade de mutuante pode de forma lícita fazer com que o reembolso de um crédito emergente de um contrato de crédito ao consumo seja garantido, em relação a um mutuário que seja consumidor, através de uma livrança emitida em branco por este último.

30

Aquele órgão jurisdicional precisa que, após a emissão de uma livrança, é criada uma obrigação abstrata. Resulta da legislação nacional que, em caso de pedido de pagamento baseado numa livrança, o âmbito da fiscalização do juiz se limita à relação cartular e não se pode estender à relação fundamental que está na origem da relação cartular. Segundo o referido órgão jurisdicional, a impossibilidade de examinar oficiosamente se as cláusulas do contrato constitutivo da relação de direito fundamental subjacente à obrigação cartular podem ser declaradas abusivas não resulta dos limites do processo, mas unicamente da força probatória específica da livrança enquanto título que incorpora a obrigação do devedor.

31

O órgão jurisdicional de reenvio indica que, para dar cumprimento às exigências resultantes dos artigos 10.o e 103.o da Lei sobre o direito cartular, a livrança em branco implica sempre que entre o sacado e o sacador seja celebrado um acordo que especifique a forma de preenchimento da livrança (a seguir «acordo cartular»). Em conformidade com a jurisprudência nacional, esse acordo tem por efeito «conferir ao devedor o direito de se opor» ao primeiro credor através da alegação de «que o preenchimento da livrança não respeitou as disposições do acordo, o que denota, em especial, um enfraquecimento da natureza abstrata da livrança».

32

Assim, segundo o referido órgão jurisdicional, não há nenhuma dúvida de que um tribunal chamado a pronunciar‑se sobre litígios como os que estão em causa nos processos principais só pode verificar se a livrança foi preenchida em conformidade com o acordo celebrado no caso de o devedor invocar uma exceção. Assim, no âmbito de processos cartulares, o órgão jurisdicional nacional não tem fundamento legal para examinar oficiosamente a relação de direito fundamental, exceto se o réu invocar exceções, o que tem por consequência alargar o litígio para que este inclua também a relação fundamental.

33

Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a extensão das suas funções no âmbito de uma ação na qual é pedida a condenação num pagamento, que é intentada por um profissional contra um consumidor, com base numa livrança. Com efeito, na sequência da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa aos poderes e às obrigações do órgão jurisdicional nacional que conhece litígios abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 93/13, nomeadamente à obrigação de examinar oficiosamente o caráter abusivo de uma cláusula constante de um contrato submetido à sua apreciação, aquele órgão jurisdicional pretende saber se tal jurisprudência também se aplica às cláusulas de um contrato celebrado por um consumidor num litígio em cujo âmbito o profissional procede à cobrança do seu crédito ao abrigo de uma livrança emitida em branco e que garante a execução do referido crédito. As interrogações do referido órgão jurisdicional visam também o impacto de tal exame à luz do princípio dispositivo, conforme enunciado no artigo 321.o, n.o 1, do kpc, segundo o qual o juiz não se pode pronunciar sobre um pedido que não tenha sido formulado na ação nem pode decidir ultra petita.

34

Nestas condições, o Sąd Rejonowy dla Warszawy Pragi‑Południs w Warszawie (Tribunal de Primeira Instância de Varsóvia Praga‑Sul de Varsóvia, Polónia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Opõem‑se os artigos 3.o, n.o 1, 6.o, n.o 1, e 7.o, n.o 1, da Diretiva [93/13] e a Diretiva [2008/48], em especial os seus artigos 10.o, 14.o, 17.o, n.o 1, e 19.o, às normas da lei nacional que permitem garantir créditos concedidos por credores que sejam profissionais a mutuários que sejam consumidores por via de livranças incompletas (passadas em branco)?

2)

Devem os artigos 6.o, n.o 1, e 7.o, n.o 1, da Diretiva [93/13] ser interpretados no sentido de que impõem ao tribunal que julga um litígio como o mencionado na primeira questão que aprecie oficiosamente se o contrato que regula a relação jurídica que está na base das obrigações cambiárias contém cláusulas abusivas, mesmo nos casos em que o credor profissional baseie o seu pedido de pagamento do crédito unicamente na relação [cartular]?»

Processo C‑483/18

35

As circunstâncias no litígio em causa no processo principal, que opõe a Profi Credit Polska a OH, são comparáveis às do processo C‑419/18.

36

No seu Acórdão de 15 de maio de 2017, o Sąd Rejonowy d’Opole (Tribunal de Primeira Instância de Opole, Polónia) julgou improcedente a ação intentada pela Profi Credit Polska contra OH, a qual tinha por objeto o pagamento do montante de 9494,21 zlótis polacos (PLN) (cerca de 2211,69 euros).

37

Embora os requisitos exigidos para proferir uma sentença à revelia estivessem preenchidos, o órgão jurisdicional de primeira instância julgou improcedente o pedido da Profi Credit Polska devido às dúvidas que aquele órgão jurisdicional tinha a respeito do real conteúdo do vínculo contratual que unia as partes, decorrendo essas dúvidas do facto de aquele órgão jurisdicional não ter podido analisar as cláusulas do contrato de mútuo. Com efeito, embora o referido órgão jurisdicional tivesse exigido à Profi Credit Polska que esta apresentasse o acordo cartular e o contrato de empréstimo, este pedido ficou sem resposta. Por outro lado, resulta de outros contratos habitualmente celebrados por esta sociedade que existe uma diferença significativa entre a quantia mutuada e a quantia a reembolsar.

38

A Profi Credit Polska, por considerar que para protestar uma livrança tinha apenas de apresentar a livrança devidamente preenchida e assinada, interpôs recurso da decisão de primeira instância.

39

O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se um órgão jurisdicional, que conhece de um recurso interposto por um profissional (a seguir «sacador») que se baseia numa livrança contra um consumidor, pode examinar oficiosamente as acusações relativas à relação fundamental, quando detenha informações respeitantes à eventual irregularidade dessa relação, sem, todavia, dispor do contrato de crédito ao consumo. Tendo recordado que a jurisprudência nacional atribui especial importância ao acordo cartular no caso de uma livrança emitida em branco, o referido órgão jurisdicional sublinha que a obrigação cartular tem origem nesse contrato, embora a obrigação e o respetivo direito só se constituam depois de o sacador preencher a fórmula da livrança.

40

Nestas condições, o Sąd Okręgowy w Opolu, II Wydział Cywilny Odwoławczy (Tribunal Regional de Opole, II.a Secção dos Recursos Cíveis, Polónia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Devem as disposições da Diretiva [93/13], em especial os seus artigos 3.o, n.os 1 e 2, 6.o, n.o 1 e 7.o, n.o 1, bem como as disposições da Diretiva [2008/48], em especial o seu artigo 22.o, n.o 3, ser interpretadas no sentido de que se opõem a uma interpretação das disposições do artigo 10.o [da Lei sobre o direito cartular] conjugado com o [seu] artigo 17.o […], que não permite que o tribunal atue oficiosamente numa situação em que tenha uma convicção forte e legítima, baseada em matéria não apresentada pelas partes, de que o contrato na origem da relação jurídica subjacente é nulo, pelo menos parcialmente, e o demandante baseia a sua ação numa livrança em branco, mas o demandado não deduz oposição e adota um comportamento passivo?»

Quanto às questões prejudiciais

Observações preliminares

41

Importa, desde logo, salientar que a Diretiva 2008/48 não procedeu a uma harmonização da utilização da livrança para garantir o pagamento do crédito que resulta de um crédito ao consumidor, pelo que o seu artigo 22.o não é aplicável a circunstâncias como as que estão em causa nos processos principais (v., neste sentido, Acórdão de 13 de setembro de 2018, Profi Credit Polska, C‑176/17, EU:C:2018:711, n.os 34 a 37).

42

Em seguida, o direito de retratação ou o cálculo da taxa anual de encargos efetiva global não constituem o objeto dos litígios em causa nos processos principais, pelo que os artigos 14.o e 19.o desta diretiva também não são aplicáveis em semelhantes circunstâncias.

43

Por último, o artigo 17.o da referida diretiva também não é pertinente porquanto as questões prejudiciais não incidem sobre a cessão dos direitos do mutuante a um terceiro, visada neste artigo.

44

Por conseguinte, na medida em que os artigos 14.o, 17.o, 19.o e 22.o da Diretiva 2008/48 não são pertinentes para os litígios nos processos principais, só será dada resposta às questões submetidas à luz do artigo 3.o, n.o 1, do artigo 6.o, n.o 1, e do artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, bem como do artigo 10.o da Diretiva 2008/48.

Quanto à primeira questão no processo C‑419/18

45

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o, n.o 1, o artigo 6.o, n.o 1, e o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 assim como o artigo 10.o da Diretiva 2008/48 devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional, como a que está em causa nos processos principais, que permite garantir o pagamento de um crédito emergente de um contrato de crédito ao consumo, celebrado entre um profissional e um consumidor, através de uma livrança emitida em branco.

46

A título preliminar, importa salientar que, nas políticas da União, a defesa dos consumidores, que se encontram numa posição de inferioridade em relação a profissionais, que devem ser considerados menos informados, economicamente mais fracos e juridicamente menos experientes do que os seus cocontratantes, se encontra consagrada nos artigos 169.o TFUE e 38.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Acórdão de 27 de março de 2019, slewo, C‑681/17, EU:C:2019:255, n.o 32 e jurisprudência referida).

47

Neste contexto, importa recordar, por um lado, que, em conformidade com o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, incumbe aos órgãos jurisdicionais de reenvio absterem‑se de aplicar cláusulas abusivas para que não produzam efeitos vinculativos para o consumidor, salvo se o consumidor a isso se opuser (Acórdão de 26 de março de 2019, Abanca Corporación Bancaria e Bankia, C‑70/17 e C‑179/17, EU:C:2019:250, n.o 52 e jurisprudência referida). Por outro lado, nos termos do artigo 7.o, n.o 1, desta diretiva, lido em conjugação com o seu considerando 24, os Estados‑Membros providenciarão para que, no interesse dos consumidores e dos profissionais concorrentes, existam meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores por um profissional (Acórdão de 3 de abril de 2019, Aqua Med, C‑266/18, EU:C:2019:282, n.o 42 e jurisprudência referida).

48

Importa, em primeiro lugar, salientar que, embora a legislação nacional em causa nos processos principais autorize que uma livrança seja emitida para garantir o pagamento do crédito emergente de um contrato de crédito ao consumo, a obrigação de emitir essa livrança não resulta dessa legislação, mas dos contratos de crédito celebrados entre as partes.

49

Há igualmente que sublinhar que as livranças em causa nos processos principais apresentam características específicas. Com efeito, há que constatar que inicialmente estas livranças estavam incompletas, uma vez que foram emitidas em branco, a saber, sem indicação do montante. É o profissional que posteriormente inscreve de forma unilateral os montantes nestas livranças.

50

A este respeito, resulta dos artigos 10.o e 101.o da Lei relativa ao direito cartular que, embora a indicação do montante constitua em princípio um requisito de validade de uma livrança, é possível emitir uma livrança em branco desde que as modalidades nos termos das quais a referida livrança poderá posteriormente ser completada de forma lícita pelo mutuante estejam previstas num acordo cartular.

51

Ora, de acordo com o disposto no artigo 1.o, n.o 1, e no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, esta aplica‑se às cláusulas dos contratos celebrados entre um profissional e um consumidor que não tenham sido objeto de negociação individual (Acórdãos de 9 de setembro de 2004, Comissão/Espanha, C‑70/03, EU:C:2004:505, n.o 31; de 9 de novembro de 2010, VB Pénzügyi Lízing, C‑137/08, EU:C:2010:659, n.o 50, e Despacho de 14 de setembro de 2016, Dumitraș, C‑534/15, EU:C:2016:700, n.o 25 e jurisprudência referida).

52

Na medida em que, por um lado, o pagamento do crédito emergente de um contrato de crédito ao consumo é garantido por uma cláusula de um contrato por meio da qual é exigida a emissão de uma livrança em branco e, por outro, a legislação nacional exige que seja celebrado um acordo cartular, essa cláusula e esse acordo são suscetíveis de serem abrangidos pela Diretiva 93/13.

53

Em segundo lugar, a Diretiva 93/13 obriga os Estados‑Membros a preverem um mecanismo que garanta que qualquer cláusula contratual que não tenha sido objeto de negociação individual possa ser fiscalizada, de modo que o seu caráter eventualmente abusivo possa ser apreciado. Neste contexto, incumbe ao órgão jurisdicional nacional determinar, tomando em consideração os critérios enunciados no artigo 3.o, n.o 1, e no artigo 5.o da Diretiva 93/13, se, atendendo às circunstâncias específicas do caso concreto, essa cláusula respeita as exigências da boa‑fé, do equilíbrio e da transparência impostas por esta diretiva (Acórdão de 26 de março de 2019, Abanca Corporación Bancaria e Bankia, C‑70/17 e C‑179/17, EU:C:2019:250, n.o 50 e jurisprudência referida).

54

Nos termos do artigo 3.o, n.o 1, da referida diretiva, uma cláusula contratual que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa‑fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.

55

Segundo jurisprudência constante, para aferir se uma cláusula pode ser qualificada de «abusiva», o órgão jurisdicional nacional deve verificar se o profissional, ao tratar de forma leal e equitativa com o consumidor, podia razoavelmente esperar que este último aceitaria essa cláusula, na sequência de uma negociação (v., neste sentido, Acórdão de 14 de março de 2013, Aziz, C‑415/11, EU:C:2013:164, n.o 69, e Despacho de 22 de fevereiro de 2018, Lupean, C‑119/17, não publicado, EU:C:2018:103, n.o 30 e jurisprudência referida).

56

Há ainda que salientar que não se pode considerar que a cláusula contratual que obriga o mutuário a emitir uma livrança em branco para garantir o crédito conferido pelo mutuante ao abrigo desse contrato e o acordo cartular incidem sobre a definição do objeto principal do contrato ou sobre a adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os bens ou serviços a fornecer, por outro, na aceção do artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13.

57

Por outro lado, a apreciação da natureza potencialmente abusiva desta cláusula contratual e do acordo cartular deve tomar simultaneamente em consideração a exigência relativa ao desequilíbrio significativo e à exigência de transparência que decorre do artigo 5.o da Diretiva 93/13. Com efeito, é jurisprudência constante que a informação, antes da celebração de um contrato, sobre as cláusulas contratuais e as consequências da referida celebração é de importância fundamental para o consumidor. É, nomeadamente, com base nesta informação que este último decide se deseja vincular‑se às condições previamente redigidas pelo profissional (Acórdão de 21 de dezembro de 2016, Gutiérrez Naranjo e o., C‑154/15, C‑307/15 e C‑308/15, EU:C:2016:980, n.o 50 e jurisprudência referida).

58

Daqui resulta que um órgão jurisdicional nacional ao qual são submetidos litígios como os que estão em causa nos processos principais deverá determinar se o consumidor recebeu todas as informações suscetíveis de terem um impacto no âmbito das suas obrigações e que lhe permitem avaliar, nomeadamente, as consequências processuais da garantia dos créditos emergentes do contrato de empréstimo ao consumo através de uma livrança emitida em branco e a possibilidade de uma cobrança posterior do crédito apenas com base nessa livrança. No âmbito dessa avaliação, em conformidade com o vigésimo considerando da Diretiva 93/13, é determinante a questão de saber se a cláusula contratual em causa está redigida em termos claros e compreensíveis e se o consumidor teve efetivamente a oportunidade de tomar conhecimento do seu conteúdo.

59

Há ainda que recordar que o Tribunal de Justiça já declarou que o artigo 10.o, n.o 2, da Diretiva 2008/48 impõe a um órgão jurisdicional nacional, chamado a pronunciar‑se num litígio relativo a créditos resultantes de um contrato de crédito, na aceção desta diretiva, que examine oficiosamente o cumprimento da obrigação de informação prevista nessa disposição e extraia as consequências que, segundo o direito nacional, decorrem do incumprimento dessa obrigação, desde que essas sanções cumpram as exigências do artigo 23.o da referida diretiva (Acórdão de 21 de abril de 2016, Radlinger e Radlingerová, C‑377/14, EU:C:2016:283, n.o 74).

60

Atendendo às considerações que precedem, há que responder à primeira questão no processo C‑419/18 que o artigo 1.o, n.o 1, o artigo 3.o, n.o 1, o artigo 6.o, n.o 1, e o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma legislação nacional, como a que está em causa nos processos principais, que, para garantir o pagamento de um crédito emergente de um contrato de crédito ao consumo, celebrado entre um profissional e um consumidor, permite estipular nesse contrato uma obrigação que impende sobre o mutuário de emitir uma livrança em branco, e que subordina a licitude da emissão de tal livrança à prévia celebração de um acordo cartular que prevê as modalidades nos termos das quais essa livrança pode ser completada, desde que, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, essa cláusula contratual e esse acordo respeitem os artigos 3.o e 5.o desta diretiva assim como o artigo 10.o da Diretiva 2008/48.

Quanto à segunda questão no processo C‑419/18 e à questão no processo C‑483/18

61

Com a segunda questão no processo C‑419/18 e com a questão no processo C‑483/18, os órgãos jurisdicionais de reenvio perguntam, em substância, se o artigo 6.o, n.o 1, e o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 assim como o artigo 10.o da Diretiva 2008/48 devem ser interpretados no sentido de que, quando, em circunstâncias como as dos processos principais, um órgão jurisdicional nacional tem dúvidas sérias sobre o mérito de um pedido que se baseia numa livrança destinada a garantir o crédito emergente de um contrato de crédito ao consumo, tendo essa livrança sido inicialmente emitida em branco pelo sacado e posteriormente completada pelo sacador, esse órgão jurisdicional deve examinar oficiosamente se as cláusulas contratuais acordadas entre as partes revestem caráter abusivo e, a este respeito, pode exigir ao profissional que apresente o documento escrito que contém essas cláusulas para que o referido órgão jurisdicional possa garantir que os direitos dos consumidores que decorrem destas diretivas são respeitados.

62

No presente caso, a interrogação dos órgãos jurisdicionais de reenvio diz respeito a duas configurações distintas na medida em que, no primeiro dos litígios em causa no processo C‑419/18, o órgão jurisdicional nacional dispõe do contrato de crédito ao consumo, ao passo que, nos demais litígios, tal não sucede.

63

Nesta primeira configuração, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, quando o órgão jurisdicional disponha dos elementos de direito e de facto necessários, este tem obrigação de proceder oficiosamente ao exame das cláusulas suscetíveis de ser abusivas (v., neste sentido, Acórdão de 13 de setembro de 2018, Profi Credit Polska, C‑176/17, EU:C:2018:711, n.o 42 e jurisprudência referida).

64

Na segunda configuração, e no que se refere nomeadamente aos esclarecimentos do órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑483/18, que indica que não dispõe do contrato que vincula as partes no litígio em causa no processo principal, mas que tem conhecimento do conteúdo de outros contratos habitualmente utilizados pelo profissional, importa recordar que, embora, nos termos do seu artigo 3.o, n.o 1, a Diretiva 93/13 se aplique às cláusulas que não tenham sido objeto de negociação individual, o que inclui, nomeadamente, os contratos tipo, não se pode considerar que um órgão jurisdicional «dispõe dos elementos de facto e de direito», na aceção da jurisprudência acima referida, apenas porque tem conhecimento de certos modelos de contratos utilizados pelo profissional, sem que o referido órgão jurisdicional tenha na sua posse o instrumento que permite provar o contrato que foi celebrado entre as partes no litígio que lhe foi submetido (v., neste sentido, Acórdão de 13 de setembro de 2018, Profi Credit Polska, C‑176/17, EU:C:2018:711, n.o 47).

65

A este respeito, o Governo polaco precisa, nas observações que apresentou no Tribunal de Justiça, que não é incomum que o acordo cartular, embora constitua uma convenção distinta do contrato de crédito, esteja consignado dentro deste contrato.

66

Seja como for, resulta de jurisprudência constante que incumbe ao órgão jurisdicional nacional adotar oficiosamente medidas de instrução para determinar se uma cláusula que figura no contrato que é objeto do litígio que lhe submetido, e que foi celebrado entre um profissional e um consumidor, é abrangido pelo âmbito de aplicação da diretiva e e, em caso de resposta afirmativa, apreciar o caráter eventualmente abusivo de tal cláusula (Acórdãos de 9 de novembro de 2010, VB Pénzügyi Lízing, C‑137/08, EU:C:2010:659, n.o 56; de 14 de junho de 2012, Banco Español de Crédito, C‑618/10, EU:C:2012:349, n.o 44; e de 21 de fevereiro de 2013, Banif Plus Bank, C‑472/11, EU:C:2013:88, n.o 24). Com efeito, na falta de fiscalização eficaz do caráter potencialmente abusivo das cláusulas do contrato em causa, o respeito pelos direitos conferidos pela Diretiva 93/13 não pode ser garantido (Acórdão de 13 de setembro de 2018, Profi Credit Polska, C‑176/17, EU:C:2018:711, n.o 62 e jurisprudência referida).

67

Daqui resulta que quando a um órgão jurisdicional nacional é submetido um pedido que se baseia numa livrança, inicialmente emitida em branco e que posteriormente é completada, a qual visa garantir o crédito emergente de um contrato de crédito ao consumo, pedido sobre o qual aquele órgão jurisdicional tem sérias dúvidas quanto ao respetivo mérito, o artigo 6.o, n.o 1, e o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 exigem que o referido órgão jurisdicional possa exigir a apresentação dos documentos que servem de fundamento a esse pedido, incluindo o acordo cartular, quando tal acordo constitua, nos termos da legislação nacional, um requisito prévio para a emissão desse tipo de livrança.

68

Importa ainda sublinhar que as considerações anteriores não contrariam o princípio dispositivo, evocado pelo órgão jurisdicional de reenvio. Com efeito, a circunstância de um órgão jurisdicional nacional exigir ao demandante que apresente o conteúdo do ou dos documentos que servem de fundamento ao pedido que formulou decorre simplesmente do quadro probatório do processo, uma vez que esse pedido se destina unicamente a assegurar o fundamento da petição inicial.

69

No que respeita ao artigo 10.o, n.o 2, da Diretiva 2008/48, quando um órgão jurisdicional nacional tenha oficiosamente constatado que esta disposição foi violada, está obrigado, sem esperar que o consumidor apresente um pedido para esse efeito, a retirar todas as consequências que daí resultam nos termos do direito nacional, sem prejuízo do respeito pelo princípio do contraditório (v., neste sentido, Acórdão de 21 de abril de 2016, Radlinger e Radlingerová, C‑377/14, EU:C:2016:283, n.o 71 e jurisprudência referida).

70

Depois de, com base nos elementos de facto e de direito de que dispõe ou que lhe foram comunicados na sequência de medidas de instrução que tomou oficiosamente para esse efeito, ter determinado que uma cláusula está abrangida pelo âmbito de aplicação da diretiva, se o órgão jurisdicional nacional constatar que essa cláusula reveste caráter abusivo, esse órgão jurisdicional é, regra geral, obrigado a informar do facto as partes no litígio e a convidá‑las a debater, com observância do contraditório, de acordo com as formas previstas nas regras nacionais processuais (Acórdão de 21 de fevereiro de 2013, Banif Plus Bank, C‑472/11, EU:C:2013:88, n.o 31).

71

No presente caso, o Governo polaco alega que o artigo 10.o da Lei sobre o direito cartular não impede que um órgão jurisdicional nacional constate que o crédito assente numa livrança não existe no que diz respeito ao montante que ultrapassa a quantia resultante do acordo cartular. Tal constatação pode ser feita não apenas na sequência de uma alegação do consumidor, mas também, oficiosamente, em aplicação da jurisprudência do Tribunal de Justiça na matéria. Do mesmo modo, uma vez que o acordo cartular constitui um requisito de emissão de uma livrança em branco que é posteriormente completada, a sua razão de ser reside precisamente na faculdade que este institui de fiscalizar a utilização deste tipo de livrança e o montante que nela passou a estar inscrito.

72

No entanto, segundo os órgãos jurisdicionais de reenvio, estes só podem verificar se a livrança foi preenchida em conformidade com o acordo celebrado se o devedor suscitar uma exceção.

73

A este respeito, importa recordar que a obrigação que incumbe a um Estado‑Membro de adotar todas as medidas necessárias para alcançar o resultado imposto por uma diretiva é uma obrigação vinculativa que se encontra prevista no artigo 288.o, terceiro parágrafo, TFUE e na própria diretiva. Esta obrigação de tomar todas as medidas gerais ou específicas impõe‑se a todas as autoridades dos Estados‑Membros, incluindo, no âmbito das suas competências, às autoridades judiciárias (Acórdão de 21 de abril de 2016, Radlinger e Radlingerová, C‑377/14, EU:C:2016:283, n.o 76 e jurisprudência referida).

74

No presente caso, resulta de jurisprudência constante que a obrigação de proceder ao exame oficioso do caráter abusivo de certas cláusulas e da presença de menções obrigatórias de informação num contrato de crédito constitui uma norma processual que impende sobre as autoridades judiciárias (Acórdão de 21 de abril de 2016, Radlinger e Radlingerová, C‑377/14, EU:C:2016:283, n.o 77 e jurisprudência referida).

75

Assim, quando aplicam o direito interno, os órgãos jurisdicionais nacionais são obrigados a interpretá‑lo, tanto quanto possível, à luz do texto e da finalidade da diretiva em causa, para alcançar o resultado por esta prosseguido (Acórdão de 21 de abril de 2016, Radlinger e Radlingerová, C‑377/14, EU:C:2016:283, n.o 79 e jurisprudência referida).

76

Neste contexto, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, quando não se possa proceder a uma interpretação e a uma aplicação da legislação nacional conformes com as exigências da Diretiva 93/13, os órgãos jurisdicionais nacionais têm obrigação de examinar oficiosamente se as cláusulas contratuais acordadas entre as partes revestem caráter abusivo, não aplicando se necessário for todas as disposições ou jurisprudência nacionais que se oponham a tal exame (v., neste sentido, Acórdãos de 4 de junho de 2009, Pannon GSM, C‑243/08, EU:C:2009:350, n.os 32, 34 e 35; de 14 de junho de 2012, Banco Español de Crédito, C‑618/10, EU:C:2012:349, n.o 42 e jurisprudência referida; e de 18 de fevereiro de 2016, Finanmadrid EFC, C‑49/14, EU:C:2016:98, n.o 46).

77

Daqui resulta que há que responder à segunda questão no processo C‑419/18 e à questão no processo C‑483/18 que o artigo 6.o, n.o 1, e o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 assim como o artigo 10.o, n.o 2, da Diretiva 2008/48 devem ser interpretados no sentido de que, quando, em circunstâncias como as que estão em causa nos processos principais, um órgão jurisdicional nacional tem dúvidas sérias sobre o mérito de um pedido que se baseia numa livrança destinada a garantir o crédito emergente de um contrato de crédito ao consumo, tendo essa livrança sido inicialmente emitida em branco pelo sacado e posteriormente completada pelo sacador, esse órgão jurisdicional deve examinar oficiosamente se as cláusulas contratuais acordadas entre as partes revestem caráter abusivo e, a este respeito, pode exigir ao profissional que apresente o documento escrito que contém essas cláusulas contratuais para que o referido órgão jurisdicional possa garantir que os direitos dos consumidores que decorrem destas diretivas são respeitados.

Quanto às despesas

78

Revestindo o processo, quanto às partes nas causas principais, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

 

1)

O artigo 1.o, n.o 1, o artigo 3.o, n.o 1, o artigo 6.o, n.o 1, e o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma legislação nacional, como a que está em causa nos processos principais, que, para garantir o pagamento de um crédito emergente de um contrato de crédito ao consumo, celebrado entre um profissional e um consumidor, permite estipular nesse contrato uma obrigação que impende sobre o mutuário de emitir uma livrança em branco, e que subordina a licitude da emissão de tal livrança à prévia celebração de um acordo cartular que prevê as modalidades nos termos das quais essa livrança pode ser completada, desde que, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, essa cláusula contratual e esse acordo respeitem os artigos 3.o e 5.o desta diretiva assim como o artigo 10.o da Diretiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores e que revoga a Diretiva 87/102/CEE do Conselho.

 

2)

O artigo 6.o, n.o 1, e o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 assim como o artigo 10.o, n.o 2, da Diretiva 2008/48 devem ser interpretados no sentido de que, quando, em circunstâncias como as que estão em causa nos processos principais, um órgão jurisdicional nacional tem dúvidas sérias sobre o mérito de um pedido que se baseia numa livrança destinada a garantir o crédito emergente de um contrato de crédito ao consumo, tendo essa livrança sido inicialmente emitida em branco pelo sacado e posteriormente completada pelo sacador, esse órgão jurisdicional deve examinar oficiosamente se as cláusulas contratuais acordadas entre as partes revestem caráter abusivo e, a este respeito, pode exigir ao profissional que apresente o documento escrito que contém essas cláusulas contratuais para que o referido órgão jurisdicional possa garantir que os direitos dos consumidores que decorrem destas diretivas são respeitados.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: polaco.

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