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Documento 62017CJ0646

Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 13 de junho de 2019.
Processo penal contra Gianluca Moro.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunale di Brindisi.
Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Diretiva 2012/13/UE — Direito a informação no âmbito dos procedimentos penais — Artigo 6.o, n.o 4 — Direito do arguido de ser informado da acusação — Informação das alterações nas informações prestadas caso tal seja necessário para salvaguardar a equidade do processo — Alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação — Impossibilidade de o arguido requerer, na audiência, a aplicação da pena negociada prevista no direito nacional — Diferença em caso de alteração dos factos nos quais a acusação se baseia.
Processo C-646/17.

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2019:489

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

13 de junho de 2019 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Diretiva 2012/13/UE — Direito a informação no âmbito dos procedimentos penais — Artigo 6.o, n.o 4 — Direito do arguido de ser informado da acusação — Informação das alterações nas informações prestadas caso tal seja necessário para salvaguardar a equidade do processo — Alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação — Impossibilidade de o arguido requerer, na audiência, a aplicação da pena negociada prevista no direito nacional — Diferença em caso de alteração dos factos nos quais a acusação se baseia»

No processo C‑646/17,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Tribunale di Brindisi (Tribunal de Primeira Instância de Brindisi, Itália), por Decisão de 20 de outubro de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 17 de novembro de 2017, no processo penal contra

Gianluca Moro,

sendo intervenientes:

Procura della Repubblica presso Tribunale di Brindisi,

Francesco Legrottaglie,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: J.‑C. Bonichot, presidente de secção, C. Toader, A. Rosas, L. Bay Larsen e M. Safjan (relator), juízes,

advogado‑geral: M. Bobek,

secretário: R. Schiano, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 14 de novembro de 2018,

vistas as observações apresentadas:

em representação de F. Legrottaglie, por D. Vitale, avvocato,

em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por G. Palatiello, avvocato dello Stato,

em representação do Governo húngaro, por M. Z. Fehér, G. Koós et G. Tornyai, na qualidade de agentes,

em representação do Governo neerlandês, por M. K. Bulterman e M. A. M. de Ree, na qualidade de agentes,

em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por C. Cattabriga, R. Troosters e C. Zadra, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 5 de fevereiro de 2019,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.o, n.o 1, do artigo 3.o, n.o 1, alínea c), e do artigo 6.o, n.os 1 a 3, da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal (JO 2012, L 142, p. 1), bem como do artigo 48.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado contra Gianluca Moro (a seguir «arguido»), pelo facto de este ter cometido um crime de «recetação» de joias, na aceção do direito italiano. Posteriormente, na audiência, procedeu‑se a uma requalificação do crime para crime de «furto» das referidas joias.

Quadro jurídico

Direito da União

Carta

3

O artigo 48.o da Carta, intitulado «Presunção de inocência e direitos de defesa», enuncia:

«1.   Todo o arguido se presume inocente enquanto não tiver sido legalmente provada a sua culpa.

2.   É garantido a todo o arguido o respeito dos direitos de defesa.»

Diretiva 2012/13

4

Nos termos dos considerandos 3, 4, 9, 10, 14, 27 a 29, 40 e 41 da Diretiva 2012/13:

«(3)

A aplicação do princípio do reconhecimento mútuo das decisões penais pressupõe a confiança mútua dos Estados‑Membros nos respetivos sistemas de justiça penal. A dimensão do reconhecimento mútuo depende estreitamente de certos parâmetros, entre os quais figuram os regimes de garantia dos direitos dos suspeitos e dos acusados e a definição de normas mínimas comuns necessárias para facilitar a aplicação do princípio do reconhecimento mútuo.

(4)

O reconhecimento mútuo das decisões penais só pode funcionar eficazmente num clima de confiança em que, não só as autoridades judiciais, mas também todos os intervenientes no processo penal considerem as decisões das autoridades judiciais dos outros Estados‑Membros como equivalentes às suas, o que implica confiança não apenas na adequação das regras dos outros Estados‑Membros, mas também na sua correta aplicação.

[…]

(9)

O artigo 82.o, n.o 2, [TFUE] prevê o estabelecimento de regras mínimas aplicáveis nos Estados‑Membros para facilitar o reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais e a cooperação policial e judiciária nas matérias penais com dimensão transfronteiriça. Aquele artigo refere‑se aos “direitos individuais em processo penal” como um dos domínios em que podem ser estabelecidas regras mínimas.

(10)

As regras mínimas comuns deverão contribuir para o reforço da confiança nos sistemas de justiça penal de todos os Estados‑Membros, o que, por seu turno, deverá conduzir ao aumento da eficiência da cooperação judicial num clima de confiança mútua. Essas regras mínimas comuns deverão ser estabelecidas no domínio da informação em processo penal.

[…]

(14)

A presente diretiva […] [e]stabelece normas mínimas comuns a aplicar no domínio da informação a prestar aos suspeitos ou acusados de terem cometido uma infração penal no que se refere aos seus direitos e sobre a acusação contra eles formulada, com o objetivo de reforçar a confiança mútua entre os Estados‑Membros. A presente diretiva alicerça‑se nos direitos estabelecidos na Carta, nomeadamente nos artigos 6.o, 47.o e 48.o, que por sua vez assentam nos artigos 5.o e 6.o da [Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir “CEDH”),] conforme interpretados pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Na presente diretiva, o termo “acusação” é utilizado para descrever o mesmo conceito que o termo “acusação” utilizado no artigo 6.o, n.o 1, da CEDH.

[…]

(27)

As pessoas que forem acusadas de terem cometido uma infração penal deverão receber todas as informações necessárias sobre a acusação contra elas formulada a fim de lhes permitir preparar a sua defesa e garantir a equidade do processo.

(28)

Deverão ser prontamente prestadas aos suspeitos ou acusados informações acerca do ato criminoso de que sejam suspeitos ou acusados de ter cometido, pelo menos antes da sua primeira entrevista oficial pela polícia ou outra autoridade competente, e sem prejudicar as investigações em curso. Deverá ser dada, com detalhes suficientes, uma descrição dos factos constitutivos do ato criminoso de que as pessoas sejam suspeitas ou acusadas de terem cometido, incluindo, caso se conheça, a hora e o local, e a eventual qualificação jurídica da alegada infração, tendo em conta a fase do processo penal em que essa descrição for dada, a fim de salvaguardar a equidade do processo e permitir o exercício efetivo dos direitos de defesa.

(29)

Caso, no decurso do processo penal, os detalhes da acusação sejam de tal modo alterados que a posição dos suspeitos ou acusados seja substancialmente afetada, tal deverá ser‑lhes comunicado caso seja necessário para salvaguardar a equidade do processo e para, em tempo útil, lhes permitir o exercício efetivo dos direitos de defesa.

[…]

(40)

A presente diretiva fixa regras mínimas. Os Estados‑Membros podem alargar os direitos nela previstos a fim de proporcionarem um nível de proteção mais elevado igualmente em casos que não sejam expressamente abrangidos pela presente diretiva. O nível de proteção nunca deverá ser inferior ao das normas previstas na CEDH, tal como têm vindo a ser interpretadas pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

(41)

A presente diretiva respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos pela Carta. A presente diretiva procura, nomeadamente, promover o direito à liberdade, o direito a um processo equitativo e os direitos de defesa. Deverá ser aplicada no mesmo sentido.»

5

O artigo 1.o desta diretiva, intitulado «Objeto», enuncia:

«A presente diretiva estabelece regras relativas ao direito à informação dos suspeitos ou acusados sobre os seus direitos em processo penal e sobre a acusação contra eles formulada. Estabelece igualmente regras relativas ao direito à informação das pessoas submetidas a um mandado de detenção europeu sobre os seus direitos.»

6

O artigo 2.o da referida diretiva, intitulado «Âmbito de aplicação», prevê, no seu n.o 1:

«A presente diretiva é aplicável a partir do momento em que a uma pessoa seja comunicado pelas autoridades competentes de um Estado‑Membro de que é suspeita ou acusada da prática de uma infração penal e até ao termo do processo, ou seja, até ser proferida uma decisão definitiva sobre a questão de saber se o suspeito ou acusado cometeu a infração penal, incluindo, se for caso disso, até que a sanção seja decidida ou um eventual recurso seja apreciado.»

7

O artigo 3.o da mesma diretiva, intitulado «Direito a ser informado sobre os direitos», dispõe, no seu n.o 1:

«Os Estados‑Membros asseguram que os suspeitos ou acusados de uma infração penal recebam prontamente informações sobre pelo menos os seguintes direitos processuais, tal como aplicáveis nos termos do direito nacional, a fim de permitir o seu exercício efetivo:

a)

O direito de assistência de um advogado;

b)

O direito a aconselhamento jurídico gratuito e as condições para a sua obtenção;

c)

O direito de ser informado da acusação, nos termos do artigo 6.o;

d)

O direito à interpretação e tradução;

e)

O direito ao silêncio.»

8

O artigo 6.o da Diretiva 2012/13, intitulado «Direito à informação sobre a acusação», tem a seguinte redação:

«1.   Os Estados‑Membros asseguram que os suspeitos ou acusados recebam informações sobre o ato criminoso de que sejam suspeitos ou acusados de ter cometido. Estas informações são prestadas prontamente e com os detalhes necessários, a fim de garantir a equidade do processo e de permitir o exercício efetivo dos direitos de defesa.

2.   Os Estados‑Membros asseguram que os suspeitos ou acusados que sejam detidos ou presos sejam informados das razões para a sua detenção ou prisão, incluindo o ato criminoso de que sejam suspeitos ou acusados ter cometido.

3.   Os Estados‑Membros asseguram que, pelo menos aquando da apresentação da fundamentação da acusação perante um tribunal, sejam prestadas informações detalhadas sobre a acusação, incluindo a natureza e qualificação jurídica da infração penal, bem como a natureza da participação do acusado.

4.   Os Estados‑Membros asseguram que os suspeitos ou acusados sejam prontamente informados das alterações nas informações prestadas nos termos do presente artigo caso tal seja necessário para salvaguardar a equidade do processo.»

Direito italiano

9

O artigo 61.o do codice penale (Código Penal), intitulado «Circunstâncias agravantes gerais», enuncia, no seu n.o 7:

«Quando as circunstâncias seguintes não forem elementos constitutivos do crime nem circunstâncias agravantes especiais, agravam o crime:

[…]

7)

no caso de crimes cometidos contra o património ou que o prejudiquem e de crimes cometidos com um fim lucrativo, o facto de causar à vítima um dano patrimonial grave».

10

Nos termos do artigo 624.o do Código Penal, intitulado «Furto»:

«Quem se apropriar de coisa móvel alheia, subtraindo‑a ao seu detentor, com o objetivo de daí retirar benefício para si ou para outra pessoa, é punido com pena de prisão de seis meses a três anos e com multa de 154 a 516 euros. […]»

11

O artigo 648.o do Código Penal, intitulado «Recetação», prevê:

«Exceto em caso de cumplicidade, quem, com intenção de obter vantagem, para si ou para outra pessoa, adquirir, receber ou dissimular, ou atuar como intermediário para comprar, recetar ou dissimular, quantias de dinheiro ou coisas que foram obtidas mediante facto ilícito é punido com pena de prisão de dois a oito anos e com multa de 516 a 10329 euros. […]»

12

O artigo 444.o do codice di procedura penale (Código de Processo Penal), na sua versão aplicável à data dos factos no processo principal (a seguir «Código de Processo Penal»), intitulado «Aplicação de uma pena negociada», dispõe:

«1.   O arguido e o Ministério Público podem requerer ao juiz a aplicação, no tipo e na medida indicada, de uma sanção com natureza de substituição ou de uma sanção pecuniária, reduzida até um terço, ou de uma pena privativa da liberdade quando esta, atendendo às circunstâncias e reduzida até um terço, não for superior a cinco anos, sendo estes considerados de forma única ou sendo acompanhados de uma sanção pecuniária. […]

2.   Se a parte que não apresentou o requerimento der o seu acordo e desde que não seja proferida decisão de absolvição nos termos previstos no artigo 129.o, o juiz, com base nos autos, e pressupondo que estão corretas a qualificação jurídica dos factos, a aplicação e a comparação das circunstâncias expostas pelas partes, bem como que a sanção indicada é adequada, decreta através de sentença a aplicação da sanção indicada, fazendo constar do dispositivo que esta foi solicitada pelas partes. No caso de uma parte se ter constituído parte civil, o juiz não se pronuncia sobre este requerimento; o arguido é, no entanto, condenado nas despesas efetuadas pela parte civil, exceto se existirem motivos justos para se pronunciar sobre uma compensação total ou parcial. O artigo 75.o, n.o 3, não se aplica.

3.   No requerimento, a parte pode subordinar o deferimento do seu requerimento à condenação numa pena cuja execução seja suspensa. Neste caso, se considerar que a execução da pena não pode ser suspensa, o juiz indefere o requerimento.»

13

O artigo 516.o do Código de Processo Penal, intitulado «Alteração dos factos descritos na acusação ou no despacho de pronúncia», tem a seguinte redação, no seu n.o 1:

«Se, no decurso da audiência de julgamento (istruzione dibattimentale), resultar que o facto não corresponde ao facto descrito na acusação ou no despacho de pronúncia e se deste facto não resultar a competência de um órgão jurisdicional superior, o Ministério Público altera a acusação e o procedimento penal prossegue.»

14

O artigo 521.o do Código de Processo Penal, intitulado «Correlação entre a acusação e a sentença», estabelece:

«1.   Na sentença, o juiz pode atribuir ao facto uma qualificação jurídica diferente da qualificação que consta da acusação ou do despacho de pronúncia, desde que o ilícito penal não exceda a competência do juiz e que a competência para conhecer deste facto pertença a um juiz singular e não a um tribunal coletivo.

2.   O juiz ordena a remessa dos autos ao Ministério Público se ficar provado que o facto não corresponde ao facto descrito na acusação formulada ou no despacho de pronúncia formulado ao abrigo dos artigos 516.o, 517.o e 518.o, n.o 2.

3.   O juiz procede da mesma forma se o Ministério Público deduzir nova acusação, excetuados os casos previstos nos artigos 516.o, 517.o e 518.o, n.o 2.»

15

O artigo 552.o do Código de Processo Penal, intitulado «Despacho que designa dia para a audiência», enuncia, no seu n.o 1:

«O despacho que designa dia para a audiência contém:

[…]

c)

a indicação dos factos, apresentada de forma clara e precisa, das circunstâncias agravantes e das circunstâncias de que podem resultar a aplicação de medidas de segurança, com indicação das disposições pertinentes;

[…]»

16

O artigo 555.o do Código de Processo Penal, intitulado «Audiência de julgamento de processo sumário», enuncia, no seu n.o 2:

«Antes de ser declarada a abertura da audiência, o arguido ou o Ministério Público podem apresentar o requerimento previsto no artigo 444.o, n.o 1; além disso, o arguido pode requerer que o processo seja submetido a tramitação acelerada ou que lhe seja aplicada uma contraordenação.»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

17

Em 11 de março de 2015, Francesco Legrottaglie apresentou uma queixa junto dos serviços da Polícia de Ostuni (Itália) contra o arguido. Nos termos da queixa, este último recebeu de uma pessoa, cuja identidade permanece desconhecida, várias joias em ouro que haviam sido furtadas à família Legrottaglie e que o arguido entregou a um estabelecimento, situado em Ostuni, com o objetivo de obter uma vantagem.

18

Em 1 de abril de 2016, o arguido foi citado pelo Ministério Público, nos termos previstos no artigo 552.o do Código de Processo Penal, para comparecer no Tribunale di Brindisi (Tribunal de Primeira Instância de Brindisi, Itália) para responder pelo crime de «recetação», conforme previsto no artigo 648.o do Código Penal.

19

Em 15 de setembro de 2016, no decurso de uma audiência que se realizou à revelia do arguido, F. Legrottagalie constituiu‑se parte civil.

20

Em 13 de outubro de 2017, no decurso de uma audiência em que esteve presente, o arguido prestou declarações e reconheceu ser o autor do furto das joias em causa.

21

Naquele momento processual, o juiz informou o arguido de que a tipificação do crime de que vinha acusado podia ser alterada, podendo o crime ser requalificado no tipo de crime previsto no artigo 624.o e no artigo 61.o, n.o 7, do Código Penal, a saber, «furto», a que acrescia a circunstância agravante de a vítima ter sofrido um dano patrimonial grave.

22

O arguido autorizou o seu advogado a requerer a aplicação de uma pena negociada (denominada «patteggiamento»), conforme previsto no artigo 444.o do Código de Processo Penal, no que respeita a este crime, conforme juridicamente requalificado. Este requerimento foi julgado inadmissível por já ter expirado o prazo previsto no artigo 555.o, n.o 2, do Código de Processo Penal.

23

O juiz convidou o Ministério Público a alterar a acusação, nos termos do artigo 516.o do Código de Processo Penal, para que o arguido pudesse beneficiar de uma pena negociada nos termos previstos no artigo 444.o do referido código. O Ministério Público decidiu não promover esta alteração e submeteu ao juiz, no caso ao Tribunale di Brindisi (Tribunal de Primeira Instância de Brindisi), a decisão relativa à exata qualificação jurídica dos factos em causa.

24

O órgão jurisdicional de reenvio salienta que a Corte costituzionale (Tribunal Constitucional, Itália) declarou a inconstitucionalidade do artigo 516.o do Código de Processo Penal por este artigo não conferir ao arguido a faculdade de requerer ao órgão jurisdicional que conhece do processo em sede de julgamento a aplicação da pena negociada, nos termos do artigo 444.o do referido código, relativamente a um facto diferente que seja revelado durante a audiência e que seja objeto de nova acusação.

25

Assim, resulta da jurisprudência da Corte costituzionale (Tribunal Constitucional) relativa ao artigo 516.o do Código de Processo Penal que, na audiência, o arguido pode requerer a aplicação de uma pena negociada nos termos do artigo 444.o do referido código, voltando os prazos para apresentação do requerimento a correr quando a alteração dos factos nos quais a acusação se baseia resulte tanto de um erro como da normal tramitação do processo, estando esta possibilidade de requerer a aplicação de uma pena negociada excluída quando a alteração tiver unicamente por objeto a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação.

26

O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se o direito da União se opõe a que sejam reconhecidos ao arguido direitos de defesa diferentes, consoante a alteração diga respeito aos factos nos quais a acusação se baseia ou à qualificação jurídica dos factos constantes da acusação.

27

Com efeito, quando a alteração da acusação se refere aos elementos de facto, o arguido beneficia de direitos de defesa plenos e inteiros, que incluem a possibilidade de requerer a aplicação de uma pena negociada nos termos do artigo 444.o do Código de Processo Penal, ao passo que, quando essa alteração se refere à qualificação jurídica dos factos, o arguido só tem direito de apresentar argumentos em sua defesa.

28

Nestas condições, o Tribunale di Brindisi (Tribunal de Primeira Instância de Brindisi) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Devem os artigos 2.o, n.o 1, 3.o, n.o 1, alínea c), e 6.o, [n.os 1 a 3], da Diretiva 2012/13, bem como o artigo 48.o da [Carta,] ser interpretados no sentido de que se opõem a disposições processuais penais de um Estado‑Membro com base nas quais as garantias da defesa subsequentes à alteração da acusação são asseguradas, qualitativa e quantitativamente, em termos diferentes consoante a alteração diga respeito aos aspetos factuais da acusação ou à qualificação jurídica da mesma, em particular na medida em que só no primeiro caso permitem ao acusado requerer o procedimento alternativo mais favorável de aplicação da pena por acordo (o chamado [acordo sobre a sentença penal]?»

Quanto à questão prejudicial

Quanto à admissibilidade

29

O Governo italiano invoca a inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial, alegando que a Diretiva 2012/13 foi adotada com base no artigo 82.o, n.o 2, TFUE, que visa unicamente as matérias penais com dimensão transfronteiriça. Por conseguinte, o âmbito de aplicação da Diretiva 2012/13 deve circunscrever‑se unicamente às infrações que revistam essa dimensão.

30

Ora, no presente caso, o processo principal diz respeito a um crime cometido por um nacional italiano, no território italiano, e que causou um dano a outro cidadão italiano. Assim, este crime não reveste nenhuma dimensão transfronteiriça e a Diretiva 2012/13 não é aplicável a um processo como aquele que está em causa no processo principal.

31

O artigo 48.o da Carta também não é aplicável porquanto, em aplicação do artigo 51.o, n.o 1, desta, quando uma situação jurídica não é abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União, o Tribunal de Justiça não tem competência para a conhecer e as disposições da Carta eventualmente invocadas não podem, por si só, servir de base a essa competência.

32

A este respeito, há que recordar que, nos termos do artigo 82.o, n.o 2, primeiro parágrafo, TFUE, «[n]a medida em que tal seja necessário para facilitar o reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais e a cooperação policial e judiciária nas matérias penais com dimensão transfronteiriça, o Parlamento Europeu e o Conselho, por meio de diretivas adotadas de acordo com o processo legislativo ordinário, podem estabelecer regras mínimas. Essas regras mínimas têm em conta as diferenças entre as tradições e os sistemas jurídicos dos Estados‑Membros».

33

No que se refere à redação da Diretiva 2012/13, nem o seu artigo 1.o, que define o objeto desta diretiva, nem o seu artigo 2.o, relativo ao âmbito de aplicação da referida diretiva, restringem a aplicação desta diretiva às situações com dimensão transfronteiriça.

34

No que respeita aos objetivos da Diretiva 2012/13, resulta dos considerandos 10 e 14 desta diretiva que esta, através do estabelecimento de regras mínimas comuns que delimitam o direito à informação em processo penal, pretende reforçar a confiança mútua entre os Estados‑Membros nos respetivos sistemas de justiça penal. Conforme indicam, em substância, este mesmo considerando 14 e o considerando 41 da referida diretiva, esta baseia‑se, para este efeito, nos direitos consagrados nomeadamente nos artigos 47.o e 48.o da Carta e visa promover esses direitos (Acórdão de 5 de junho de 2018, Kolev e o., C‑612/15, EU:C:2018:392, n.o 88).

35

No mesmo sentido, os considerandos 3 e 4 da Diretiva 2012/13 assentam na ideia de que o princípio do reconhecimento mútuo implica que as decisões das autoridades judiciais, também nas situações puramente internas, se baseiem em regras mínimas comuns. Neste âmbito, conforme salientou em substância o advogado‑geral no n.o 41 das suas conclusões, numa situação específica na qual a cooperação transfronteiriça seja necessária, as autoridades policiais e judiciárias de um Estado‑Membro poderão assim considerar que as decisões das autoridades judiciárias de outros Estados‑Membros são equivalentes às suas.

36

Por conseguinte, a Diretiva 2012/13 contribui para a realização de uma harmonização mínima dos procedimentos penais na União Europeia e a aplicação, num Estado‑Membro, das regras previstas nesta diretiva não depende da existência de uma situação transfronteiriça no âmbito de um litígio ocorrido nesse Estado‑Membro.

37

Daqui resulta que o pedido de decisão prejudicial é admissível.

Quanto ao mérito

Observações preliminares

38

F. Legrottaglie e os Governos italiano, húngaro, neerlandês e polaco sustentam, a título principal, que o objeto da questão submetida ao Tribunal de Justiça no âmbito do presente processo não é abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2012/13 e que, por conseguinte, o Tribunal de Justiça não pode examinar esta questão.

39

A este respeito, há que recordar que, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, instituído pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal, se necessário, reformular as questões que lhe são submetidas. Com efeito, o Tribunal tem por missão interpretar todas as disposições do direito da União de que os órgãos jurisdicionais nacionais necessitem para decidir dos litígios que lhes são submetidos, ainda que essas disposições não sejam expressamente referidas nas questões que lhe são apresentadas por esses órgãos jurisdicionais (Acórdão de 19 de dezembro de 2018, AREX CZ, C‑414/17, EU:C:2018:1027, n.o 34 e jurisprudência referida).

40

Consequentemente, embora, no plano formal, o órgão jurisdicional de reenvio tenha limitado as suas questões à interpretação de certas disposições do direito da União, tal circunstância não obsta a que o Tribunal de Justiça lhe forneça todos os elementos de interpretação do direito da União que possam ser úteis para a decisão do processo que lhe foi submetido, quer esse órgão jurisdicional lhes tenha ou não feito referência no enunciado das suas questões. A este respeito, cabe ao Tribunal de Justiça extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional de reenvio, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos do referido direito que requerem uma interpretação, tendo em conta o objeto do litígio no processo principal (v., neste sentido, Acórdão de 19 de dezembro de 2018, AREX CZ, C‑414/17, EU:C:2018:1027, n.o 35 e jurisprudência referida).

41

Na sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio refere o artigo 2.o, n.o 1, o artigo 3.o, n.o 1, alínea c), e o artigo 6.o, n.os 1 a 3, da Diretiva 2012/13, bem como o artigo 48.o da Carta.

42

A este respeito, há que salientar que o artigo 1.o da Diretiva 2012/13 prevê que esta estabelece regras relativas ao direito à informação dos suspeitos ou acusados sobre os seus direitos em processo penal e sobre a acusação contra eles formulada.

43

Conforme resulta da leitura conjugada dos artigos 3.o e 6.o da Diretiva 2012/13, o direito referido no artigo 1.o desta diz respeito a, pelo menos, dois direitos diferentes. Por um lado, os suspeitos ou os arguidos devem, em conformidade com o artigo 3.o desta diretiva, ser informados sobre, pelo menos, certos direitos processuais, que figuram numa lista que consta desta disposição e que compreendem o direito de assistência de um advogado, o direito a aconselhamento jurídico gratuito e as condições para a sua obtenção, o direito de ser informado da acusação, o direito à interpretação e tradução, bem como o direito ao silêncio. Por outro lado, a referida diretiva define, no seu artigo 6.o, regras relativas ao direito à informação sobre a acusação (Acórdão de 15 de outubro de 2015, Covaci, C‑216/14, EU:C:2015:686, n.os 54 a 56).

44

No presente caso, o litígio no processo principal tem por objeto a possibilidade, em caso de alteração da qualificação jurídica dos factos nos quais a acusação se baseia, de requerer a aplicação de uma pena negociada nos termos do artigo 444.o do Código de Processo Penal, durante a audiência, da qual resulta que voltam a correr os prazos para apresentação do requerimento.

45

Por conseguinte, semelhante problema jurídico deve ser examinado à luz do artigo 6.o da Diretiva 2012/13, relativo ao direito à informação sobre a acusação.

46

A este respeito, não há que analisar o referido problema jurídico à luz do artigo 6.o, n.os 1 a 3, desta diretiva. Com efeito, atendendo à redação destas disposições, não se contesta, primeiro, que o arguido foi informado do facto objeto de sanção penal que lhe foi imputado, segundo, que não foi detido e que não se encontra preso e, terceiro, que as informações sobre a acusação que recebeu, nomeadamente sobre a qualificação jurídica desta, lhe foram comunicadas antes de, em sede de julgamento, o órgão jurisdicional ser chamado a pronunciar‑se sobre o mérito desta acusação.

47

Em contrapartida, há que salientar que o artigo 6.o, n.o 4, da Diretiva 2012/13 é uma disposição pertinente para um processo como o processo principal.

48

Nos termos da referida disposição, os Estados‑Membros asseguram que os suspeitos ou acusados sejam prontamente informados das alterações nas informações prestadas nos termos do artigo 6.o da referida diretiva, caso tal seja necessário para salvaguardar a equidade do processo.

49

Importa assim, no âmbito do processo principal, determinar o alcance do direito à informação do arguido à luz desta mesma disposição em caso de alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação.

50

Nestas condições, há que entender a questão no sentido de que visa saber, em substância, se o artigo 6.o, n.o 4, da Diretiva 2012/13 e o artigo 48.o da Carta devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional nos termos da qual o acusado pode requerer, durante a audiência, a aplicação de uma pena negociada em caso de alteração dos factos nos quais a acusação se baseia, não tendo direito a apresentar semelhante requerimento em caso de alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação.

Quanto à Diretiva 2012/13

51

Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a Diretiva 2012/13 não regula as modalidades segundo as quais a informação sobre a acusação, prevista no seu artigo 6.o, deve ser comunicada ao arguido. Todavia, estas modalidades não podem pôr em causa o objetivo visado nomeadamente neste artigo 6.o, que consiste, como resulta igualmente do considerando 27 da referida diretiva, em permitir aos suspeitos ou aos acusados de um ilícito penal preparar a sua defesa e em garantir a equidade do processo (Acórdão de 15 de outubro de 2015, Covaci, C‑216/14, EU:C:2015:686, n.os 62 e 63).

52

A este respeito, a exigência de que o arguido, ou o seu advogado, possa participar de forma útil nas audiências com respeito pelo princípio do contraditório e da igualdade de armas, para poder fazer valer a sua posição de maneira efetiva, não exclui que as informações relativas à acusação transmitidas à defesa possam ser objeto de alterações posteriores, nomeadamente no que se refere à qualificação jurídica dos factos imputados, nem que novos elementos de prova possam ser juntos aos autos durante a audiência. Tais alterações e tais elementos devem, no entanto, ser comunicados ao arguido ou ao seu advogado num momento em que estes ainda disponham da oportunidade de reagir de maneira efetiva, antes da fase de deliberação. Esta possibilidade está aliás prevista no artigo 6.o, n.o 4, da Diretiva 2012/13, que prevê que os suspeitos ou acusados sejam prontamente informados das alterações nas informações prestadas, que ocorram durante o processo penal, caso tal seja necessário para salvaguardar a equidade do processo (v., neste sentido, Acórdão de 5 de junho de 2018, Kolev e o., C‑612/15, EU:C:2018:392, n.o 95).

53

Em todo o caso, independentemente do momento em que sejam prestadas as informações detalhadas sobre a acusação, deve nomeadamente, no respeito pelo princípio do contraditório e da igualdade das armas, ser concedido ao arguido e ao seu advogado um prazo suficiente para tomarem conhecimento dessas informações e devem ser‑lhe dadas condições para prepararem eficazmente a defesa, apresentarem eventuais observações e, sendo caso disso, apresentarem requerimentos, nomeadamente de abertura de instrução, a que tenham direito nos termos do direito nacional. Esta exigência impõe que o processo, se necessário, seja suspenso e que seja fixada uma nova data para a realização da audiência (v., neste sentido, Acórdão de 5 de junho de 2018, Kolev e o., C‑612/15, EU:C:2018:392, n.o 96).

54

Por outro lado, nos termos do considerando 40 da Diretiva 2012/13, esta fixa regras mínimas e os Estados‑Membros podem alargar os direitos previstos nesta diretiva a fim de proporcionarem um nível de proteção mais elevado igualmente em casos que não sejam expressamente abrangidos por esta diretiva, não devendo o nível de proteção nunca ser inferior ao das normas previstas na CEDH, tal como têm vindo a ser interpretadas pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

55

A este respeito, segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em matéria penal, uma informação precisa e completa das acusações deduzidas contra um arguido, e assim a qualificação jurídica que um órgão jurisdicional pode reter contra um arguido, constitui um requisito essencial da equidade do processo. O direito de ser informado sobre a natureza e o fundamento da acusação deve ser avaliado à luz do direito de preparar a defesa que assiste ao arguido (TEDH, 25 de março de 1999, Pélissier e Sassi c. França, CE:ECHR:1999:0325JUD002544494, §§ 52 e 54). Embora, quando este direito lhes é reconhecido no direito interno, possam requalificar os factos que lhes são submetidos de forma regular, os órgãos jurisdicionais que conhecem do processo em sede de julgamento devem certificar‑se de que os arguidos tiveram oportunidade de exercer os seus direitos de defesa sobre este ponto de forma concreta e efetiva, sendo informados, em tempo útil, do fundamento da acusação, ou seja, dos factos materiais cuja autoria lhes é imputada e nos quais a acusação se baseia, bem como da qualificação jurídica conferida a esses factos, e isto de forma detalhada (TEDH, 11 de dezembro de 2007, Drassich c. Itália, CE:ECHR:2007:1211JUD002557504, § 34, e TEDH, 22 de fevereiro de 2018, Drassich c. Itália, CE:ECHR:2018:0222JUD006517309, § 65).

56

Conforme resulta da jurisprudência referida nos n.os 51 a 53 e 55 do presente acórdão, a informação de qualquer alteração no que respeita à acusação, conforme prevista no artigo 6.o, n.o 4, da Diretiva 2012/13, deve incidir nomeadamente sobre a alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, para que o arguido possa exercer os seus direitos de defesa de forma concreta e efetiva.

57

Resulta da decisão de reenvio que a regulamentação nacional em causa no processo principal estabelece uma distinção consoante a alteração diga respeito aos factos nos quais a acusação se baseia ou à qualificação jurídica dos factos constantes da acusação. Só no caso de se verificar uma alteração dos factos é que o arguido pode requerer, no decurso da audiência, a aplicação de uma pena negociada, voltando a correr os prazos de apresentação do requerimento.

58

No presente caso, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a circunstância de o arguido ter reconhecido ser o autor de um furto de joias, da qual decorreu a alteração da qualificação do crime de «recetação» para crime de «furto», conforme tipificado no direito nacional, consubstancia uma alteração da qualificação jurídica dos factos nos quais a acusação se baseia.

59

Conforme resulta da decisão de reenvio, e como foi indicado no n.o 21 do presente acórdão, o arguido foi informado, durante a audiência, desta alteração da qualificação jurídica dos factos.

60

O órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a Diretiva 2012/13 impõe que, para garantir a equitativa do processo penal, o arguido possa pedir a aplicação de uma pena negociada em semelhante caso de alteração da qualificação jurídica dos factos.

61

A este respeito, conforme salientou o advogado‑geral no n.o 71 das suas conclusões, as obrigações definidas na Diretiva 2012/13 constituem uma expressão da forma como deve ser garantida a equidade do processo no que diz respeito à prestação de informações aos suspeitos de terem cometido um crime e aos arguidos contra os quais foi deduzida acusação.

62

Ora, como previsto no considerando 14 e no artigo 1.o desta diretiva, esta tem por objetivo estabelecer normas mínimas comuns a aplicar no domínio da informação a prestar aos suspeitos ou aos arguidos (Acórdão de 5 de junho de 2018, Kolev e o., C‑612/15, EU:C:2018:392, n.o 82).

63

Por outro lado, não resulta da jurisprudência referida nos n.os 51 a 53 e 55 do presente acórdão que o direito à informação do suspeito ou do arguido no que respeita à alteração da qualificação jurídica dos factos que são objeto da acusação implique a obrigação de permitir que o arguido possa beneficiar do direito de requerer a aplicação de uma pena negociada no decurso da audiência.

64

Além disso, no presente processo, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que, em caso de semelhante alteração da qualificação jurídica dos factos, a legislação nacional garante ao arguido o direito de apresentar argumentos de defesa.

65

Por conseguinte, num processo como o que está em causa no processo principal, o direito de um arguido a ser prontamente informado das alterações nas informações prestadas, caso tal seja necessário para salvaguardar a equidade do processo, em aplicação do artigo 6.o, n.o 4, da Diretiva 2012/13, não impõe ao Estado‑Membro em causa a obrigação de conceder a essa arguido o direito de requerer, após a abertura da audiência, a aplicação de uma pena negociada em caso de alteração da qualificação jurídica dos factos que são objeto da acusação.

Quanto à Carta

66

A título preliminar, há que recordar que o âmbito de aplicação da Carta, no que respeita à ação dos Estados‑Membros, se encontra definido no seu artigo 51.o, n.o 1, nos termos do qual as disposições da Carta têm por destinatários os Estados‑Membros apenas quando apliquem o direito da União (Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson, C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 17).

67

Com efeito, resulta, em substância, da jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que os direitos fundamentais garantidos pela ordem jurídica da União são aplicáveis em todas as situações reguladas pelo direito da União, mas não fora dessas situações. É nesta medida que o Tribunal de Justiça já recordou que não pode apreciar, à luz da Carta, uma regulamentação nacional que não se enquadra no âmbito do direito da União. Em contrapartida, quando uma regulamentação nacional se enquadra no âmbito de aplicação desse direito, o Tribunal de Justiça, chamado a pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial, deve fornecer todos os elementos de interpretação necessários à apreciação, pelo órgão jurisdicional nacional, da conformidade desta regulamentação com os direitos fundamentais cujo respeito assegura (Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson, C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 19, e Despacho de 23 de novembro de 2017, Cunha Martins, C‑131/17, não publicado, EU:C:2017:902, n.o 10).

68

Dizendo o processo principal respeito ao âmbito do direito do arguido à informação sobre a acusação, e em particular à informação sobre as alterações relativas ao facto objeto de sanção criminal que lhe é imputado, na aceção do artigo 6.o, n.o 4, da Diretiva 2012/13, há que constatar que esta situação jurídica é abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União.

69

Nos termos do artigo 48.o, n.o 2, da Carta, é garantido a todo o arguido o respeito dos direitos de defesa.

70

A este respeito, conforme resulta da jurisprudência referida nos n.os 51 a 53 e 55 do presente acórdão, o respeito pelos direitos de defesa, na aceção desta disposição da Carta, exige que, em caso de alteração da qualificação jurídica dos factos que são objeto da acusação, esta informação seja prestada ao arguido num momento em que este ainda tem oportunidade para reagir de forma efetiva, antes da fase de deliberação, para que lhe sejam dadas condições para preparar eficazmente a sua defesa.

71

No presente caso, resulta da decisão de reenvio, conforme foi indicado nos n.os 21 e 27 do presente acórdão, que, depois de na audiência ter prestado declarações e ter reconhecido ser o autor dos factos, o arguido foi informado de que a qualificação jurídica dos factos de que vinha imputado se alterou e de que tinha direito de apresentar argumentos em sua defesa.

72

Em contrapartida, os direitos de defesa previstos no artigo 48.o, n.o 2, da Carta, no âmbito do direito à informação do arguido, não impõem que este possa requerer a aplicação, após ser declarada aberta a audiência, de uma pena negociada em caso de alteração dos factos nos quais a acusação se baseia ou de alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação.

73

A este respeito, no que respeita à possibilidade de requerer a aplicação de uma pena negociada consoante a alteração diga respeito aos factos nos quais a acusação se baseia ou à qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, a mera circunstância de o direito nacional não reconhecer ao arguido os mesmos direitos não constitui, por si só, uma violação dos direitos de defesa, na aceção do artigo 48.o, n.o 2, da Carta, à luz do direito à informação sobre a acusação assegurado aos suspeitos ou aos arguidos.

74

Atendendo às considerações precedentes, há que responder à questão que o artigo 6.o, n.o 4, da Diretiva 2012/13 e o artigo 48.o da Carta devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma regulamentação nacional nos termos da qual o arguido pode requerer, durante a audiência, a aplicação de uma pena negociada em caso de alteração dos factos nos quais a acusação se baseia e não tem direito de apresentar semelhante requerimento em caso de alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação.

Quanto às despesas

75

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

 

O artigo 6.o, n.o 4, da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal, e o artigo 48.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma regulamentação nacional nos termos da qual o arguido pode requerer, durante a audiência, a aplicação de uma pena negociada em caso de alteração dos factos nos quais a acusação se baseia e não tem direito de apresentar semelhante requerimento em caso de alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: italiano.

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